Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1314/09.0PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: BURLA
ELEMENTOS DO TIPO
NEXO DE IMPUTAÇÃO
Nº do Documento: RP201312111314/09.0PAVNG.P1
Data do Acordão: 12/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para que se esteja perante um crime de Burla, do art. 217º, CPenal, não basta o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, de atos de que decorram prejuízos patrimoniais.
II - A consumação do crime passa, assim, por um duplo nexo de imputação objetiva: i) entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio); e ii) entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo.
III - Mesmo que se tivesse provado que a arguida, no âmbito da sua atividade comercial, “convenceu” a ofendida a celebrar com ela um negócio diverso daquele que ela inicialmente pretendia, ainda assim, tal não seria suficiente para se concluir pelo cometimento do crime de Burla.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1314/09.0PAVNG.P1

Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I)- Relatório

Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que correram termos pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi a arguida B… condenada pela autoria de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º nº 1 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 20,00€, ou seja na multa de 2.400,00€.
Inconformada com a decisão proferida dela veio a arguida interpor recurso nos termos e pelos fundamentos que expende nas suas alegações e que se constam de folhas 264 a 289 dos autos e que sintetiza nas conclusões seguintes:
“I - DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
II. O vício acima referido revela-se através de uma insuficiência de fundamentação atentas as regras da experiência comum, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou míngua de premissas, em termos tais que a afirmação de um facto não implique necessariamente a verificação de outro, e assim reciprocamente.
III É violado o principio, quando o tribunal “a quo” considera que o facto de a arguida não ter comunicado a compra à polícia judiciária abalou todos os elementos de prova, considerados, até então, consistentes, pela meritíssima juiz, e inverteu toda a convicção do tribunal “a quo” servindo por si só para justificar a decisão da matéria de facto que deu como provada.
IV. É o que sucede, com a sentença recorrida, ora, confrontando a matéria dada como provada e a própria fundamentação verifica-se a insuficiência de premissas para a sua concretização.
V. Quando muito a falta de comunicação do negócio à polícia judiciária encerra em si uma ilegalidade que poderá gerar a abertura de um processo de contra-ordenação.
VI. Ora, com a motivação aduzida nunca poderia o tribunal «a quo” decidir da forma como o fez, encerrando assim a sentença o vício alegado.
VII. DOS ERROS DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
VIII. Entende a recorrente que existem concretos pontos da matéria de facto considerada provada que constam da douta sentença e que foram incorrectamente julgados.
IX. O tribunal recorrido formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, que valorou livremente fazendo apelo a regras da experiencia comum e normalidade do acontecer.
X. Foi erradamente considerado como facto provado que a ofendida telefonou para o número de telefone referido num anúncio do C… de 12-06-2009, anuncio que se publicitava a “compra e venda: ouro usado, pratas — jóias — cautelas de penhor”, fazendo-se referencia a estabelecimento situado na … n….., .. direito, em Gaia.
XI. Dos depoimentos prestados pela ofendida D… e da testemunha E…, as únicas que se pronunciaram sobre tal facto, não resulta que a ofendida tenha telefonado para um número de telefone referido num anúncio do C… de 12-06-2009, mas sim com base num anúncio do C… de 20-06-2009.
XII. Foi também erradamente considerado como facto provado que, “Na ocasião, e ainda na concretização do seu intento de se apoderar dos mencionados objectos em ouro por uma quantia inferior ao respectivo valor do mercado, a arguida apresentou à ofendida a declaração intitulada “declaração de venda”, na qual se consignava que a ofendida vendia à F…, Lda., os mencionados objectos em ouro, pelo valor de 450,00€ dizendo à ofendida de que era necessário que esta assinasse a mesma, para que a arguida pudesse ficar na posse dos objectos e, consequentemente, lhe entregar a quantia monetária em causa, o que D… fez, confiando na arguida.”
XIII. A recorrente entende ter ficado suficientemente provado que a arguida e a ofendida realizaram um negócio de compra e venda de ouro.
XIV. Das declarações prestadas pela ofendida em audiência de julgamento resulta que a mesma verificou e teve consciência do objecto do contrato celebrado e de todo o seu conteúdo, tendo-se, aliás, conformado com o mesmo.
XV. Do depoimento da testemunha G…, sua amiga de longa data, e atentas as regras da experiência, resulta ser muito pouco provável que a ofendida em virtude da sua elevada instrução fosse assinar um contrato de compra e venda sem o perfeito conhecimento do mesmo e das suas consequências.
XVI. É também dado como provado na resenha factual da sentença que, “Cerca de uma semana depois, ou seja, no sábado seguinte, dia 27 de Junho de 2009, a ofendida na posse da quantia de 450,00€, deslocou-se novamente ao mencionado estabelecimento da arguida, com vista a recuperar os seus objectos em ouro Na feira seguinte, a ofendida deslocou-se novamente ao estabelecimento da arguida, onde contactou com a mesma que, novamente, recusou devolver os mencionados objectos em ouro, em contrapartida da quantia de 450,00€ que a ofendida lhe pretendia entregar.”.
XVII. Contudo, analisando em concreto os depoimentos da testemunha E… que acompanhou a ofendida nessa deslocação, e da testemunha G…, ressalta que, a ofendida e a testemunha E… apenas se deslocaram ao estabelecimento da arguida para resgatar as peças 27 dias após a venda das mesmas, ou seja, no dia 17 de Julho de 2009.
XVIII. A ofendida apresentou sobre estes factos uma versão distinta, falaciosa e pouco credível, pretendendo com isso encobrir o decurso do prazo entre a venda e a tentativa de resgate dos bens em ouro de forma a sustentar a acusação apresentada nos autos.
XIX. DA SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO
XX. Entende a recorrente que, face à alteração da matéria de facto supra referida se impõe a absolvição da arguida da prática do crime pelo qual vem condenada e bem assim do pedido cível.
XXI. DA VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO IN DUBIO PRO REO,
XXII. No momento da celebração do negócio de compra, a arguida e a ofendida, fizeram-no, de forma espontânea, livre e conscienciosa, desde logo, por ser claro e resultar do documento assinado que se tratava de uma venda de ouro como foi, aliás, reconhecido pela ofendida no seu depoimento.
XXIII. Atendendo à escolaridade da ofendida, nomeadamente, à elevada instrução na área do direito, resulta com base nos pressupostos da experiência normal de vida que a mesma tinha a perfeita consciência do negócio que estava a realizar.
XXIV. Nenhuma das testemunhas de defesa afirmou ter presenciado a negociação dos termos do acordo e a outorga do contrato de venda celebrado entre a ofendida e a arguida.
XXV. É de salientar a forma falaciosa e persistente como a ofendida tentou alterar a verdade dos factos, no que respeita ao objecto do contrato celebrado, à sua escolaridade e à data em que se apresentou no estabelecimento da arguida para resgatar os bens em ouro.
XXVI. Os factos, testemunhos e documentos corroboram integralmente a tese apresentada pela arguida.
XXVII. Perante o confronto das versões apresentadas pela ofendida e arguida, extrai-se da motivação que o tribunal “a quo” formulou a sua convicção com base apenas na descrição factual da assistente D….
XXVIII. Sendo certo que pela análise do conteúdo do depoimento da ofendida sobressaem fortes discrepâncias quando confrontado com o depoimento da arguida, testemunhas e documentos.
XXIX. A ofendida é a pessoa que intervém no processo penal para ai fazer valer os seus interesses, ou seja, é um sujeito processual com interesse directo no desfecho da causa.
XXX. Na opinião, da recorrente, o tribunal decidiu in pejus, contra a arguida, depois de reconhecer a consistência dos seus elementos de prova, aliás, expresso, na fundamentação da douta sentença, quando posteriormente não reconhece o seu estado de dúvida, resultante da confrontação das diversas provas produzidas nos autos e que por si só ou juntamente com as regras da experiência, obrigavam a tal.
XXXI. Por tudo isto, deve a sentença ser revogada e a arguida absolvida da prática do crime pelo que vem condenada e inerentemente do pagamento da indemnização civil.

A este recurso respondeu o Ministério Público nos termos que constam de folhas 298 a 305 dos autos concluindo pela sua improcedência.

Também a assistente veio apresentar a sua resposta, nos termos que constam de folhas 306 a 324, igualmente sufragando o entendimento de que o recurso deve ser julgado improcedente.

Neste Tribunal da Relação o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu o seu Parecer no sentido de não merecer nenhum reparo a decisão proferida.

Cumprido o preceituado no artigo 417º nº 2 do Código de Processo Penal nada veio a ser acrescentado nos autos.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos a conferência.

II- Fundamentação:
A sentença recorrida considerou provados os factos seguintes: (transcrição)
“No dia 20 de junho de 2009, sábado, D…, necessitando de imediato de determinada quantia monetária que lhe possibilitasse pagar a renda da casa em que habitava, onde também habitavam os seus pais que na ocasião se encontravam acamados, que ascendia a cerca de 400,00€ mensais e ainda de obter algum dinheiro para adquirir bens e primeira necessidade, decidiu ‘penhorar” os seus objectos em ouro, ou seja, entregar objectos em ouro que possuía em estabelecimento adequado, mediante contrapartida monetária, com a possibilidade de os recuperar cerca de uma semana depois, ocasião em que receberia a pensão de reforma dos seus progenitores, o que lhe possibilitava devolver a quantia monetária e recuperar os mesmos.
Assim, na data supra referida, durante a manhã, D… deslocou-se a Vila Nova de Gaia, na posse dos seus objectos em ouro que consistiam em: três anéis em ouro, 1 um anel com sete alianças e um coração, duas medalhas em ouro, uma pulseira em ouro e aço, um fio em ouro e duas pulseiras em ouro, tendo-se dirigido a diversos estabelecimentos que comercializavam ouro onde referiu pretender ‘penhorar” os referidos objectos, mediante contrapartida de quantia monetária, e recuperá-los cerca de uma semana depois, mediante a devolução da quantia em causa. Porém, não logrou concretizar os seus intentos, porquanto nesses estabelecimentos disseram-lhe apenas aceitar compras e não penhores.
Cerca das 12h 30m, desse dia, encontrando-se ainda em Vila Nova de Gaia, a ofendida telefonou para o número de telemóvel referido num anúncio do C… de 12-06-2009, anúncio no qual se publicitava a ‘compra e venda: ouro usado, pratas — Jóias —Cautelas de Penhor”, fazendo-se referência a estabelecimento situado na …, n°…, .° Direito, em Gaia.
Ao ver a referência a “cautelas de penhor”, a ofendida telefonou para o número de telemóvel aí referido, tendo sido atendida pela arguida B… que explora um estabelecimento de comércio de ouro, denominado F….
Nesse contacto de telemóvel, a ofendida referiu pretender “penhorar” os seus objectos em ouro, a fim de obter uma quantia monetária de que necessitava, e pretender recuperá-los cerca de uma semana depois, não querendo vender os mesmos, facto de que a arguida ficou ciente, tendo combinado que a ofendida se deslocaria de imediato ao estabelecimento explorado pela arguida na posse dos seus objectos em ouro.
D… deslocou-se então ao estabelecimento explorado pela arguida, situado …, n.° …, .° andar, em Vila Nova de Gaia, onde mostrou os supra referidos objectos em ouro que lhe pertenciam, explicando novamente que não queria vender os referidos objectos, mas apenas “penhorá-los” por uma semana, pois necessitava de imediato de quantia monetária para proceder ao pagamento da renda da habitação que ocupava, e que pretendia recuperar os objectos cerca de uma semana depois, mediante entrega da mesma quantia e de algum dinheiro.
Ciente que D… não pretendia vender os referidos objectos em ouro, mas apenas entregá-los mediante quantia monetária com a possibilidade de os recuperar uma semana depois, a arguida resolveu induzir em erro a ofendida, levando-a a acreditar que concordava em receber os mencionados objectos em ouro em penhor e com a possibilidade a ofendida os poder recuperar mais tarde, visando, contudo, apropriar-se dos mesmos por uma quantia inferior aquela que os objectos valiam na realidade e não pretendendo possibilitar que a ofendida os viesse a recuperar.
Na concretização de tal intento, a arguida referiu concordar em receber os mencionados objectos em penhor, pelo valor de 450,00€ valor esse que era inferior aquele que já tinham oferecido nessa manhã à ofendida pela compra dos mesmos, concordando ainda com o pretendido pela ofendida de, no espaço de uma semana, esta se deslocar à loja e, mediante entrega da referida quantia de 450,00€, voltar a recuperar os bens.
Na ocasião, e ainda na concretização do seu intento de se apoderar dos mencionados objectos em ouro por uma quantia inferior ao respectivo valor de mercado, a arguida apresentou à ofendida a declaração intitulada “declaração de venda”, na qual se consignava que a ofendida vendia à F…, Lda, os mencionados objectos em ouro, pelo valor de 450,00€, dizendo à ofendida que era necessário que esta assinasse a mesma, para que a arguida pudesse ficar na posse dos objectos e, consequentemente, lhe entregar a quantia monetária em causa, o que D… fez, confiando na arguida.
Caso a arguida tivesse dito à ofendida que pretendia comprar e não receber em penhor os objectos em ouro, a D… nunca lhos teria entregue, tal como não tinha entregue em outros estabelecimentos, facto de que a arguida estava ciente.
D… perguntou ainda à arguida quanto é que a mesma “lhe iria levar pelo penhor”, tendo a arguida dito à ofendida para esta não se preocupar e se lhe trouxesse o dinheiro no espaço de uma semana, “não lhe levaria nada”, ao que a ofendida agradeceu tendo assim entregue à arguida os mencionados objectos em ouro e a arguida lhe entregue a quantia de 450,00€.
Cerca de uma semana depois, ou seja, no sábado seguinte, dia 27 de junho de 2009, a ofendida, na posse da quantia de 450,00€, deslocou-se novamente ao mencionado estabelecimento da arguida, com vista a recuperar os seus objectos em ouro.
Contudo, não lhe foram devolvidos os objectos em ouro, tendo a arguida, que na ocasião foi contactada por telefone por não se encontrar no estabelecimento, recusado a entrega dos mesmos. Na 2ª feira seguinte, a ofendida deslocou-se novamente ao estabelecimento da arguida, onde contactou com a mesma que, novamente, recusou devolver os mencionados objectos em ouro, em contrapartida da quantia de 450,00€ que a ofendida lhe pretendia entregar.
Na data, os referidos objectos em ouro, com o peso total de 43,00 gramas em ouro de 18 K valiam, como objectos usados, o valor de cerca de 903,00€.
A arguida B… agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, levando a ofendida a crer que concordava em “receber em penhor” e em permitir que a ofendida recuperasse uma semana mais tarde os objectos em ouro que pertenciam à ofendida, mas, não obstante, nunca tendo pretendido permitir à ofendida recuperar os mesmos, facto que ocultou à ofendida, actuando de forma astuciosa e assim enganando e induzindo em erro D…, levando a que aquela lhe entregasse os seus objectos em ouro por uma valor inferior ao valor que os mesmos possuíam na realidade, obtendo dessa forma um enriquecimento ilegítimo e provocando na ofendida um prejuízo patrimonial.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A arguida é empresária no que aufere a quantia de € 1.800,00.
È divorciada.
Tem a seu cargo um filho com 14 anos. O progenitor contribuiu a título de alimentos com a quantia mensal de € 500,00.
Paga a título de empréstimo para aquisição de casa própria a quantia de € 600,00.
Do seu CRC nada consta.
D… tinha apego sentimental aos objectos em ouro acima descritos.
A perda das referidas jóias causou-lhe grande preocupação, tento assim que perdeu o suporte patrimonial para acorrer a situações de carência económica momentânea do seu agregado familiar o qual é composto progenitora que se encontra acamada.”
Encontrando-se motivada pela forma seguinte:
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, que valorou livremente fazendo apelo a regras da experiência comum e normalidade do acontecer.
A arguida e demais prova testemunhal confirmaram a celebração de um negócio concernente às peças em ouro supra descritas na matéria de facto.
A questão que importava esclarecer e em relação à qual foram divergentes as declarações da arguida e da prova arrolada pela acusação prendia-se com a natureza do negócio celebrado e, consequentemente com o engano de D….
Na verdade a arguida afirmou que celebrou com a ofendida um negócio de compra e venda, sendo certo que se comprometeu com aquela, face à situação em que a mesma se encontrava, a esperar os 20 dias impostos na lei, quanto ao comércio das aludidas peças em ouro, e que se nesse período aquela obtivesse o valor do preço lhe devolveria as peças em ouro. A seu favor depunha o documento assinado pela ofendida “declaração de venda”, a circunstância de não se haver cobrado da comissão concernente ao penhor, bem como o desfasamento da data em que foi feita a denúncia relativamente à compra e venda dos objectos. A testemunha H…, empregada da arguida, confirmou esta prática, pese embora nada soubesse quanto ao negócio em questão.
O alegado pela arguida foi amplamente negado pela ofendida que confirmou ter assinado a declaração de venda apenas porque a arguida afirmou que precisava de ter um documento comprovativo da saída do dinheiro, tendo as testemunhas I… e G… confirmado que a ofendida nunca quis vender as peças, bem como que, decorrido pouco tempo reuniu o dinheiro e voltou ao estabelecimento.
Não obstante, não assistiram ao negócio.
A defesa da arguida, porém, que como já relevámos assentava em elementos de prova com alguma consistência assente ainda na circunstância por si afirmado de haver comunicado o negócio à Polícia Judiciária, conforme cópia da comunicação que juntou aos autos, perdeu toda a validade quando cotejado o mapa por si junto aos autos com o mapa efectivamente recebido pela Polícia Judiciária, no qual não figura o negócio celebrado com a ofendida. Tal omissão é para nós significativa de que realmente a arguida não celebrou com a ofendida um negócio de compra e venda, antes aceitou o negócio proposto por esta, enganando-a para desse modo se enriquecer com a mais valia decorrente do valor pago e do efectivo valor das peças.
De referir que não obstante a congruência inicial das declarações da arguida, sempre as testemunhas I… e G…, se nos afiguraram credíveis e sinceras, esforçando-se sempre por responder ao que lhes era perguntado com precisão e salvaguardando a falta de exactidão de algumas respostas.
Foi com fundamento nas declarações de D… e das testemunhas E… e G… que o tribunal deu como provado o sofrimento emocional daquela, o qual é conforme com a normalidade.
As declarações da arguida foram valoradas na parte concernente às suas condições de vida, as quais não foram infirmadas por outros elementos de prova.
Foram ainda relevantes para a descoberta do tribunal o teor do CRC, o auto de avaliação de fls. 51 e os mapas remetidos pela Policia Judiciária aos presentes autos.”

Importa conhecer:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, a recorrente impugna a matéria de facto assente e invoca padecer a decisão proferida dos seguintes vícios:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provado
- erro de julgamento da matéria de facto;
Aduz ainda que a decisão recorrida violou o princípio “ in dubio pro reo”
Vejamos: Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer das referidas hipóteses apontadas neste número 2, o vício tem de resultar da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à própria decisão.
Estaremos perante a insuficiência da matéria de facto provada quando os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções possíveis – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – advindo, essa insuficiência, da circunstância de o tribunal ter deixado de averiguar ou de se pronunciar sobre factos relevantes, alegados pela acusação ou pela defesa ou ainda resultantes da discussão da causa; de igual modo poder-se-á dizer que a decisão padece desse vício quando resulte manifesto que o tribunal não investigou factos que deveriam ter sido apurados na audiência pois eles revestiriam manifesta importância para a decisão a proferir.
E de que modo concretiza, na sua alegação, essa insuficiência: A recorrente lança mão da motivação da matéria de facto constante da decisão, para enfatizar que o tribunal descredibilizou o depoimento da arguida a partir do momento em que concluiu que esta fez a junção aos autos de um documento falso, pretendendo com ele provar que tinha comunicado, como lhe compete e como está obrigada por lei, a compra dos objetos em ouro à ofendida.
Cremos porém que esta é uma razão, tão atendível como qualquer outra, para retirar credibilidade ao depoimento da arguida e, de resto, a convicção formada sobre os vários depoimentos e testemunhos é insindicável por este tribunal de recurso.
Impõe-se-nos, desde já a referência de que, em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal de segunda instância não vai à procura de uma nova convicção, antes aquilata se a expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque estabelece o artigo 127º do Código de Processo Penal que: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciado segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Contudo a livre apreciação da prova, “ não se confunde, de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova”.[3].
Assim nenhuma censura merece, nem pode merecer, a circunstância de a senhora juíza a quo ter descredibilizado o depoimento prestado pela arguida.
Aliás, por regra, não é a “prestação” do arguido – fora, evidentemente, dos casos de confissão integral – que mais importa para se alcançar a verdade dos factos; desde logo porque ele não está obrigado a prestar declarações, prestando-as, não está obrigado a dizer a verdade caso entenda que não é essa a melhor forma de se defender.
Importa, isso sim, aquilatar se as conclusões que foram retiradas a partir da prova que foi produzida e credibilizada pelo tribunal, não contendem com as regras da experiência comum e da lógica.
Atentemos no que, a este propósito, escreveu Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, pág. 126): “ (…) a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.”[4]
A liberdade de apreciação da prova (…) “é essencialmente uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»”[5] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional. Por isso, a lei impõe, no número 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador revele o percurso que trilhou na formação da sua convicção, indicando as provas a que atendeu, as razões pelas quais deu relevância a umas e desconsiderou outras, de modo a que seja clara e compreensível, não só para aqueles a quem a decisão se destina, mas também às instâncias de recurso, a conclusão a que aportou.
Não esqueçamos ainda que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
Apreciemos então o que consta da motivação dos factos provados pois dela tem de ressumar a lógica das conclusões retiradas a partir da prova que foi produzida. Dela relevamos a seguinte passagem: “A defesa da arguida, porém, que como já relevámos assentava em elementos de prova com alguma consistência assente ainda na circunstância por si afirmado de haver comunicado o negócio à Polícia Judiciária, conforme cópia da comunicação que juntou aos autos, perdeu toda a validade quando cotejado o mapa por si junto aos autos com o mapa efectivamente recebido pela Polícia Judiciária, no qual não figura o negócio celebrado com a ofendida. Tal omissão é para nós significativa de que realmente a arguida não celebrou com a ofendida um negócio de compra e venda, antes aceitou o negócio proposto por esta, enganando-a para desse modo se enriquecer com a mais valia decorrente do valor pago e do efectivo valor das peças.”
Será que esta ilação retirada pelo tribunal é lógica e se alicerça nas regras da experiência? Será que da prova da falta de menção no mapa remetido à PJ daqueles objetos em ouro, se pode permitir, sem mais, a inferência de que, na verdade, a arguida não celebrou com a ofendida o negócio de compra e venda do ouro?
Como se provou a arguida explora um estabelecimento de compra e venda de ouro e dessa forma publicitava a sua atividade. Que estes estabelecimentos compram objetos em ouro por valor inferior ao seu valor de mercado é a essência do próprio negócio; estes estabelecimentos, que nestes últimos anos passaram a proliferar nas ruas das nossas cidades como cogumelos, só existem porque são negócios vantajosos; fecharam tantos outros, mas abriram estes “comércios” que compram ouro, pratas, jóias, seja o que for, desde que tenham valor. Exatamente porque aproveitam a conjuntura de dificuldades; as pessoas precisam de dinheiro, não o têm e estão dispostas a vender os seus bens, tanto mais baratos quanto maior for a sua necessidade.
Ademais também se provou que foi a ofendida que se dirigiu àquele estabelecimento e não o inverso. Diz no entanto que para fazer um penhor e não para vender as peças em ouro. Ora é do senso comum, toda a gente sabe, e melhor o sabe (infelizmente) quem mais precisa, que os penhores se fazem nas casas de penhores. E existem muitas também. Casas de compra e venda de ouro são outra coisa. Qualquer pessoa sabe que um penhor se “paga”, ou seja quando se faz um penhor de objetos não é entregue o valor da avaliação que deles é feita sendo logo, à cabeça, descontados juros.
Por que razão a arguida, que não conhecia a ofendida, lhe iria fazer um “empréstimo” de dinheiro, pelo período de 8 dias, sem nada lhe cobrar, se o seu ganha pão, o seu negócio, é ganhar dinheiro comprando ouro (e outros valores), por regra de quem precisa, pois só precisando alguém recorrerá a essas casas e, quanto mais precisar, mais vantajoso será o negócio.
Aliás, que existia uma falha de lógica no relato da ofendida e das suas testemunhas resulta evidenciado da gravação do julgamento que integralmente se ouviu e das questões que, a propósito, iam sendo colocadas pelo próprio tribunal.
Todas estas incongruências que necessariamente se detetam, e que foram evidenciadas ao longo do julgamento, no relato da ofendida, como que se “esfumaram”, quando o tribunal concluiu que a arguida não tinha reportado a compra do ouro à P.J.
E regressamos à pergunta inicial – será que este facto tem por si só a virtualidade de conduzir de forma lógica à conclusão retirada?.
Salvo o devido respeito por entendimento diverso, cremos que não.
A circunstância de a arguida não ter reportado a compra que fez à PJ não nos conduz inelutavelmente à conclusão de que, então, o negócio que fez com a ofendida foi um penhor. O porquê desta conclusão não se alcança. Aliás se o motivo para a inexistência dessa menção fosse a de ter feito um penhor, então, como se compreende que tenha entregue à ofendida o valor total da avaliação dos objetos?
Concluiu, a decisão recorrida, que a razão pela qual a arguida não reportou o negócio à PJ, demonstra que ela, de facto, fez um penhor e não comprou os objetos; mas, logo de seguida, afirma-se que sempre foi intenção da arguida ficar, pelo preço que por eles pagou, com os objetos (não os devolver); ora se essa era a sua real vontade, o que faria todo o sentido, seria relacioná-los como tendo-os comprado, sendo que esse facto – como aliás se evidência – credibilizaria a tese da arguida.
Tudo o que se vem de dizer parece-nos ser suficiente para evidenciar que a conclusão que o tribunal recorrido retira dos factos que dá como assentes se revela carecida de lógica a arredada das regras da experiência comum.
Cremos que é isto que refere o recorrente quando alega padecer a decisão de erro de julgamento da matéria de facto.
Mas mais importante ainda é atentarmos nos seguintes factos provados:
“Ciente que D… não pretendia vender os referidos objectos em ouro, mas apenas entregá-los mediante quantia monetária com a possibilidade de os recuperar uma semana depois, a arguida resolveu induzir em erro a ofendida, levando-a a acreditar que concordava em receber os mencionados objectos em ouro em penhor e com a possibilidade a ofendida os poder recuperar mais tarde, visando, contudo, apropriar-se dos mesmos por uma quantia inferior aquela que os objectos valiam na realidade e não pretendendo possibilitar que a ofendida os viesse a recuperar.
Na concretização de tal intento, a arguida referiu concordar em receber os mencionados objectos em penhor, pelo valor de 450,00€ valor esse que era inferior aquele que já tinham oferecido nessa manhã à ofendida pela compra dos mesmos, concordando ainda com o pretendido pela ofendida de, no espaço de uma semana, esta se deslocar à loja e, mediante entrega da referida quantia de 450,00€, voltar a recuperar os bens.
Na ocasião, e ainda na concretização do seu intento de se apoderar dos mencionados objectos em ouro por uma quantia inferior ao respectivo valor de mercado, a arguida apresentou à ofendida a declaração intitulada “declaração de venda”, na qual se consignava que a ofendida vendia à F…, Lda, os mencionados objectos em ouro, pelo valor de 450,00€, dizendo à ofendida que era necessário que esta assinasse a mesma, para que a arguida pudesse ficar na posse dos objectos e, consequentemente, lhe entregar a quantia monetária em causa, o que D… fez, confiando na arguida.
Caso a arguida tivesse dito à ofendida que pretendia comprar e não receber em penhor os objectos em ouro, a D… nunca lhos teria entregue, tal como não tinha entregue em outros estabelecimentos, facto de que a arguida estava ciente.
D… perguntou ainda à arguida quanto é que a mesma “lhe iria levar pelo penhor”, tendo a arguida dito à ofendida para esta não se preocupar e se lhe trouxesse o dinheiro no espaço de uma semana, “não lhe levaria nada”, ao que a ofendida agradeceu tendo assim entregue à arguida os mencionados objectos em ouro e a arguida lhe entregue a quantia de 450,00€.
(…)
A arguida B… agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, levando a ofendida a crer que concordava em “receber em penhor” e em permitir que a ofendida recuperasse uma semana mais tarde os objectos em ouro que pertenciam à ofendida, mas, não obstante, nunca tendo pretendido permitir à ofendida recuperar os mesmos, facto que ocultou à ofendida, actuando de forma astuciosa e assim enganando e induzindo em erro D…, levando a que aquela lhe entregasse os seus objectos em ouro por uma valor inferior ao valor que os mesmos possuíam na realidade, obtendo dessa forma um enriquecimento ilegítimo e provocando na ofendida um prejuízo patrimonial.”
São estes os factos assentes que fundamentam a condenação da arguida pelo crime de burla.
Fixemo-nos agora no respetivo tipo legal; estatui o artigo 217º do Código Penal que: “Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
A burla recobre, assim, situações em que o agente, com a intenção de conseguir enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que, por esse motivo, esta pratique actos que causam a si ou a terceiros, prejuízos patrimoniais. O bem jurídico tutelado consiste no património, globalmente considerado, reconduzindo-se este ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico.
Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são; o uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocados (1) para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, (2) com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (3).
A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como a falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou qualquer outra. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a um falsidade a aparência da verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. (…) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade (…). Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. E a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características concretas do burlado.
Por erro deve entender-se a falsa (ou nenhuma) representação da realidade concreta a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. (…) Para comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois só a partir da concretização dessa práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais"[6]
A burla integra um delito de execução vinculada em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Este traduz-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa (ou entidade, ou organismo) em erro, e com base nesse erro a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios”.[7]
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo (ou essa entidade). De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, de actos de que ocorram prejuízos patrimoniais. A consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo.
A realidade é tão fértil e as situações da vida tão variadas que, por vezes, a captação de quais sejam, dos factos praticados, os elementos integradores deste tipo de crime, coloca sérias dificuldades, essencialmente na decomposição de todos os seus elementos.
Não é esse porém o caso dos autos.
Da leitura da decisão proferida, com especial enfoque para os factos assentes que acima voltamos a citar, fácil é concluir o seguinte:
- Não foi a arguida que criou o facto enganoso, muito menos não foi por meio de qualquer ardil ou astúcia por ela engendrado que logrou a entrega, por parte da ofendida, dos objetos em ouro.
Com efeito a arguida tem um estabelecimento aberto de compra e venda de ouro e outros valores; foi a ofendida que se deslocou a esse estabelecimento, que o procurou, não o contrário.
Mesmo que se tivesse provado que a arguida, que tem um negócio, com determinado objeto, (que a ofendida devia conhecer, já que é do conhecimento geral que as lojas de compra de ouro, compram ouro, e caso se pretenda efetuar um penhor procura-se uma casa de penhores), tivesse “convencido” a ofendida a celebrar com ela um negócio diverso daquele que ela inicialmente pretendia, ainda assim, tal não seria suficiente para se concluir pelo cometimento da burla; quem já não entrou num estabelecimento para comprar um determinado bem e saiu depois com outro diametralmente diverso, que mais tarde concluiu como completamente imprestável face ao propósito inicial, e o fez porque foi atendido por alguém que, de tão persuasivo, levou a que se fizesse extamente o contrário do que inicialmente tinha pensado fazer. Para mais, dos factos provados consta que a arguida concordou celebrar o negócio que lhe foi proposto pela ofendida.
- Não foi a entrega do ouro à arguida que causou (à ofendida) prejuízo patrimonial; na verdade quando a ofendida entregou as peças em ouro recebeu um valor em dinheiro, que a própria referiu, nas declarações que em julgamento prestou, ser exatamente aquele de que precisava. O prejuízo que a ofendida reclama é posterior a esse momento.
Nem se entende sequer como se concluiu ser enriquecimento ilegítimo a diferença, conseguida pela arguida, resultante do que pagou pelos bens e do valor pelo qual estes foram avaliados. A obtenção dessa diferença é a essência destes negócios; só porque existe (infelizmente) muita gente precisada de dinheiro, disposta, portanto, a vender os anéis (em sentido real e figurado) por valor muito inferior ao real procurando dessa forma salvar “ os dedos”, só por isso é que florescem estes comércios. São negócios pouco simpáticos, concedemos, exatamente porque se alimentam da míngua das pessoas e porque são tanto mais rentáveis quanto maior for a necessidade de quem a ele recorre, mas são legais.
Atentemos ainda no seguinte; vamos colocar como hipótese que o que foi efetivamente contratado foi um penhor; logo quem o celebrou comprometeu-se a guardar o bem penhorado e a restituí-lo num determinado momento mediante o pagamento de juros e outros encargos; entretanto, nesse ínterim, vendeu o bem. Quid iuris? Estaremos, por este facto, caídos no cometimento de um crime ou, como julgamos acontecer, perante um incumprimento contratual?
De tudo o que se vem de dizer cremos decorrer com clareza a conclusão de que os factos dados como provados não sustentam a conclusão de direito que deles retirou o tribunal recorrido, ou seja, não são bastantes para se condenar a arguida B… pela autoria de um crime de burla, do qual terá, portanto, de ser absolvida, soçobrando igualmente a condenação no pedido de indemnização civil que nele se alicerçava.

III) – Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder total provimento ao recurso interposto pela arguida B…, absolvendo-a da autoria do crime de burla e consequentemente do pedido de indemnização civil que nele se baseava.

Sem tributação
(elaborado e revisto pela relatora: cfr. artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal)

Porto, 11 de dezembro de 2013
Maria Manuela Paupério
Adjunto: Desembargador Francisco Marcolino
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[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Ver anotação a este artigo 127º no Código do Processo Penal anotado de Maia Gonçalves
[4] Veja-se, a este propósito, anotação ao citado artigo no Código de Processo Penal anotado de Maia Gonçalves, 12ª ed., pág. 339.
[5] cfr. Fig. Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., pág. 202.
[6] Ver Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 8/11/2007, relatado por Simas Santos, votado por unanimidade, pesquisado em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf
[7] Ver a este propósito A.M. Almeida e Costa em anotação ao artigo 217º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora.