Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
309/07.2PQPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RICARDO COSTA E SILVA
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
BUSCA
NULIDADES
Nº do Documento: RP20111109309/07.2PQPRT.P1
Data do Acordão: 11/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Há que distinguir entre a nulidade da prova obtida por meio de uma busca, que determina a inutilidade processual dessa prova, nos termos do art. 126º do Código de Processo Penal, e a nulidade da própria busca, por inobservância de um seu requisito formal, sujeita, ela sim, ao regime das nulidades processuais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº309/07.2PQPRT.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,

I.
1. Por sentença, proferida, em 2010/11/22, no processo comum n.º 309/07.2PQPRT, do 1.º Juízo Criminal do Porto, 1.ª secção, foi decidido, além do mais sem interesse para a presente decisão, condenar o arguido B…, com os demais sinais dos autos, como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/06, de 23/2, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 3,50 (três euros e cinquenta cêntimos), no montante de € 630,00 (seiscentos e trinta euros).
2. Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido condenado.
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«A) Imputa-se ao Arguido a prática de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, n°1, alínea c), da Lei 5/06, de 23 de Fevereiro, ora, não pode o ora Recorrente concordar com a sua condenação.
«B) Concretamente, quanto à matéria de facto, entende o Recorrente que estão incorrectamente julgados os pontos A, B, C, e F (assim identificados na narração dos factos dados como provados na douta sentença).
«C) Desde logo, quanto ao primeiro facto não ficou, de todo, cabalmente demonstrado: o ora Recorrente, não deteve no dia 11 de Agosto de 2007, cerca das 23h30m, na Rua …, .., nesta cidade, o arguido B… detinha consigo (sic) um revólver, arma de fogo curta, sem marca, de calibre .320 Short Revolver, com 5 cm de cano e com comprimento total de 14 cm, de alma estriada, com carregamento por tambor, com capacidade para cinco cartuchos metálicos, carregados com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), de percussão central, com cão, contendo no seu tambor quatro cartuchos metálicos com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), calibre .32 S&W Short, de percussão central, próprios para arma de fogo, e ainda um cartucho metálico, carregado com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), calibre 7,56 mm Browning, de percussão central, próprio para armas de fogo.
«B O referido revólver encontra-se inoperacional por avaria no mecanismo de disparo; as escorvas dos cinco cartuchos metálicos foram percutidas sem que a sua carga de fogo deflagrasse;
«Depoimento de C… (cfr. declarações da testemunha, conforme (acta da Audiência de Julgamento do dia 15-10-2010, gravadas no respectivo suporte digital e aí devidamente identificadas, 00:11).
«Depoimento de D… (cfr. declarações da testemunha, conforme (acta da Audiência de Julgamento do dia 15-10-2010, gravadas no respectivo suporte digital e aí devidamente identificadas, 00:11).
«Depoimento de E… (cfr. declarações da testemunha, conforme (acta da Audiência de Julgamento do dia 15- 10-2010, gravadas no respectivo suporte digital e aí devidamente identificadas, 00:11).
«Depoimento de F… (cfr. declarações da testemunha, conforme (acta da Audiência de Julgamento do dia 15-10-2010, gravadas no respectivo suporte digital e aí devidamente identificadas, 00:11).
«E) Em audiência de julgamento, não ficou demonstrado que a arma supostamente detida pelo arguido, tivesse as suas impressões digitais, não tendo em momento algum sido efectuada essa prova, perguntado ao agente G… cfr. (acta da Audiência de Julgamento do dia 15-10-2010, gravadas no respectivo suporte digital e aí devidamente identificadas, 07:32).
«F) De igual modo, não foi visualizado em audiência de julgamento a arma sujeita a exame, constante dos documentos, pelo que nem sequer sabemos se estaremos a tratar da arma apreendida, pelo que, nesta matéria a prova, salvo devido respeito não foi devidamente valorada.
«G) Desde logo a recolha da prova está ferida de nulidade, uma vez que, o agente da polícia entrou no prédio em que o arguido presta serviço, sem que para tal estivesse autorizado, sendo nulas as provas obtidas, cfr. art. 126°, n°3 CPP, razão pela qual a lei tratar-se (sic) de métodos proibidos de prova. Trata-se de um direito garantido e que não respeita ao inquérito ou à instrução, mas à matéria de obtenção de prova.
«H) Quanto aos restantes pontos (B, C, e F), também os mesmos foram, erroneamente, considerados provados.
«I) O Tribunal "a quo", minimamente em consideração (sic) o estado em que a dita arma foi encontrada. Ora, seria obrigação do Tribunal "a quo", valorar esse facto, e nessa medida ponderar se a detenção do revolver em causa, integrava o crime de detenção.
«J) Neste sentido, cfr. acordão do Tribunal da Relação do Porto de 16-01-1991, "...detenção de um revólver de calibre 0,32, ferrugento, estragado e não utilizável, não manifestado nem registado, integra o crime previsto e punido pelo Artigo 260 do Código Penal "se for susceptível de conserto ou reparação por forma a poder vir a ser utilizável, como tal”. Como assim, deverá ser declarado perdido a favor do Estado."
«K) O acórdão encontra-se inquinado pelo vício do art° 410° n° 2 al. a) — uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque se nos afigura que resulta do texto do acórdão que tal condenação nunca poderia ter sido decidida (com remissão para a prova ali referida e os fundamentos ali vertidos);
«L) O Tribunal na dúvida e nesse caso, e em virtude da existência de versões contraditórias, pouco claras, e suportadas no conhecimento da prova, feito a posteriori, pelo menos, como foi o caso da identificação da arma, deveria ter permitido ao arguido beneficiar do Princípio "in dubio pro reo" que determina que todas as dúvidas sejam resolvidas a favor do arguido;
Terminou com o pedido de revogação da decisão recorrida e da sua absolvição.
3. Notificado do recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto (PGA) juntou aos autos parecer em que se pronunciou por dever o recurso improceder.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
6. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, o recurso versa sobre matéria de facto e de direito e as questões nele são as seguintes:
– De a recolha da prova estar ferida de nulidade, uma vez que “o agente da policia entrou no prédio (…) sem estar autorizado”, tratando-se de método proibido de prova (art.126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
– Da verificação, na sentença recorrida, do vício da decisão contemplado no art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal;
– Da não exibição da arma apreendida em audiência de julgamento;
– Da impugnação da decisão sobre matéria de facto, por incorrecto julgamento dos factos consignados sob A, B, C e F, da matéria de facto provada da sentença recorrida e da violação do princípio in dubio pro reo.
2. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
«II - Fundamentação de facto:
«Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
«A) No dia 11.Agosto.2007, cerca das 23h30m, na Rua …, .., nesta cidade, o arguido B… detinha consigo um revólver, arma de fogo curta, sem marca, de calibre .320 Short Revolver, com 5cm de cano e com comprimento total de 14cm, de alma estriada, com carregamento por tambor, com capacidade para cinco cartuchos metálicos, carregados com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), de percussão central, com cão, contendo no seu tambor quatro cartuchos metálicos, carregados com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), calibre .32 S&W Short, de percussão central, próprios para arma de fogo, e ainda um cartucho metálico, carregado com carga propulsora de pólvora, escorva e um projéctil metálico (bala), calibre 7,56 mm Browning, de percussão central, próprio para armas de fogo;
«B) O referido revólver encontra-se inoperacional por avaria no mecanismo de disparo; as escorvas dos cinco cartuchos metálicos foram percutidas sem que a sua carga de fogo deflagrasse;
«C) Ao agir do modo descrito, o arguido sabia que não lhe era permitido ter consigo o referido revólver e munições;
«D) O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei;
«E) O arguido presta serviço de porteiro no referido prédio sito na Rua … há cerca de 4 anos, encontrando-se ao serviço das 23horas às 5horas;
«F) Entre o arguido e algumas pessoas que frequentam o H…, localizado naquele local, nomeadamente D…, existem quezílias desde há algum tempo por distúrbios provocados; nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, ocorreu uma altercação entre o arguido, o referido D… e C…, no seguimento da qual o arguido empunhou a arma descrita supra, a qual foi encontrada por elemento da PSP na sala das caldeiras do prédio numa caixa de papelão aberta e, então, apreendida;
«G) O arguido é considerado pessoa trabalhadora, correcta e respeitadora por aqueles que com ele privam, zelando pela harmonia e sossego da zona onde se insere o referido prédio;
«H) O arguido não tem antecedentes criminais;
«I) O arguido aufere o vencimento mensal de € 381,50; a esposa aufere o salário mínimo nacional; vive em casa arrendada, pela qual paga € 80,00/mês.
*
«Produzida a prova e discutida a causa, não resultaram provados os seguintes factos:
«1) Que nas referidas circunstâncias de tempo e lugar o arguido tenha empunhado um cinzel ou uma tranca;
«2) Que a referida arma tivesse sido colocada na sala das caldeiras do prédio para incriminar o arguido.
*
«III - Motivação:
«A convicção do Tribunal apoiou-se no conjunto da prova produzida em julgamento:
«– nas declarações do arguido, que afirmou ter sido insultado pela testemunha D… e seus acompanhantes, situação que já era usual acontecer, tendo aquele lhe deferido um empurrão, o que provocou que lhe desferisse dois murros; afirmou que, pelo facto de essas pessoas, nessa altura, terem vindo na sua direcção, empunhou um cinzel que trazia consigo para os forçar a recuar, após o que entrou no prédio; negou que o revólver fosse seu ou que de alguma forma o mesmo tivesse sido por si utilizado;
«– no depoimento das testemunhas C… e D…, que afirmaram que, após uma altercação com o arguido, este empunhou na sua direcção uma arma de fogo, cujas características não viram com nitidez, após o que se refugiou no prédio, onde se encontrava quando a polícia acorreu ao local; os seus depoimentos revelaram-se consistentes e credíveis;
«– no depoimento da testemunha E…, que afirmou ter visto o arguido, quando dele se encontrava a 2 ou 3 metros, a empunhar uma arma tipo revólver, de pequenas dimensões; o seu depoimento foi coerente e credível;
«– no depoimento das testemunhas I… e G…, agentes da PSP que acorreram ao local após solicitação nesse sentido, dando conta de agressões e ameaças com arma de fogo; a segunda testemunha afirmou ter apreendido a arma na sala de caldeiras do prédio, situada num vão de escadas, cuja porta se encontrava aberta, pousada num caixote aberto, e que o arguido se encontrava no hall do prédio, no seu local de trabalho; a primeira testemunha confirmou a existência de queixas dos habitantes do prédio por distúrbios provocados por pessoas que frequentam o café da zona e que o arguido por diversas vezes solicitou a presença da polícia por esse motivo;
«– no depoimento da testemunha F…, morador no referido prédio, que relatou a existência de distúrbios na zona por pessoas que frequentam o referido café, o que motivou por diversas vezes o arguido solicitar a presença da PSP no local; afirmou não ter conhecimento de o arguido e o porteiro de dia possuírem qualquer arma;
«– no depoimento da testemunha J…, que conhece o arguido há cerca de 10 anos e que com ele priva;
«– no depoimento da testemunha K…, que presta serviço de porteiro, durante o dia, no referido prédio há 16 anos, tendo afirmado nunca ter visto qualquer arma no seu local de trabalho nem na sala das caldeiras, nunca tendo visto a arma apreendida;
«– no doc. de fls. 5 (auto de apreensão da arma);
«– nos doc. de fls. 6 e 7 (fotografias da arma apreendida e munições);
«– no doc. de fls. 30 (auto de exame da arma e munições apreendidas);
«– nos doc. de fls. 131 a 143;
«– da conjugação da prova produzida em julgamento, conjugada com as regras da experiência, logrou o Tribunal formar a convicção de que o arguido detinha a referida arma de fogo, a qual, após ter sido empunhada na direcção das testemunhas D… e C…, guardou na sala de caldeiras do prédio quando se refugiou no interior do mesmo, sendo que tal arma e suas características foram observadas pela testemunha E…, sendo correspondentes à arma apreendida pelo elemento da PSP, não sendo crível a versão apresentada pelo arguido de que tal arma havia aí sido colocada com o intuito de o incriminar; igualmente logrou o Tribunal formar a convicção de que o arguido bem sabia que a detenção de tal arma, dadas as suas características era proibida e punida por lei;
«– no doc. de fls. 197 (CRC do arguido).»
*
3. As questões suscitadas:
3.1. Da nulidade da prova.
Alega o recorrente que a recolha da prova está ferida de nulidade, uma vez que, o agente da polícia entrou no prédio em que o arguido presta serviço, sem que para tal estivesse autorizado, sendo nulas as provas obtidas, cfr. art. 126°, n°3 CPP, razão pela qual a lei [estabelece] tratar-se de métodos proibidos de prova.
Sobre isto disse-se na sentença recorrida:
««Na sua contestação, o arguido invoca a nulidade da prova, por a busca e consequente apreensão da arma não ter respeitado os trâmites legais.
«Conforme estipula o artº 174, nº 3 do CPP, as revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho da autoridade judiciária competente, ressalvando-se dessa exigência as revistas e buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos referidos no nº 5 da citada norma, o que não é o caso dos autos, sendo ainda certo que não houve detenção em flagrante delito.
«Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou buscas – artº 178, nº 4 do CPP.
«A busca fundamenta-se numa suspeita de que em certo lugar se encontram objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova.
«No caso em apreço, a arma foi apreendida no decorrer de busca efectuada após ter sido a entidade policial alertada pelo facto de o arguido ter em seu poder uma arma de fogo.
«Tal busca não obedeceu às formalidades legais, tendo sido efectuada sem mandado da autoridade judiciária.
«A preterição das formalidades legais implica a nulidade da prova nos termos do artº 126, nº 3 do CPP.
«Tal nulidade, nos termos do artº 120, nº 3, al. c) do CPP, deve ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
«Não tendo sido arguida tal nulidade no referido prazo, encontra-se a mesma sanada, o que se decide.»
Em nossa opinião tal fundamentação não resolve a questão.
Atente-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2011/06/30, proferido no processo n.º 83/08.5JAFUN.L1.S1, 5.ª secção, relator Artur Costa, com as seguintes proposições do sumário publicado, quanto ao que ora nos ocupa:
«II - O art. 126.º [do CPP] consagra um regime de proibições de prova (e também, consequencialmente, de proibições de valoração) com alcance diverso em situações diferenciadas, o que não admira num domínio marcado pela heterogeneidade, logo no que toca aos métodos proibidos.
«III - No primeiro caso (n.ºs 1 e 2), em que estão em causa direitos indisponíveis, contendendo com a dignidade da pessoa humana e valores impostergáveis, a todos os títulos, enquanto inerentes ao núcleo fundamental do Estado de direito democrático, as provas obtidas ilegalmente (provas proibidas) não podem ser utilizadas (valoradas), mesmo que o titular do direito consinta na violação. O consentimento é irrelevante.
«IV - Na segunda hipótese (n.º 3), para além de se ressalvarem os casos previstos na lei, a proibição de prova pode ser afastada mediante o consentimento do titular do direito. São aquelas situações em que há intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Trata-se de um domínio, este, sem dúvida pertinente à área dos direitos fundamentais, mas em que releva a disponibilidade dos respectivos titulares, que podem consentir validamente no acto, em princípio lesivo desses direitos. Aqui, todo o relevo é conferido à vontade do titular, segundo o princípio volenti non fit injuria (não se comete injúria, ou não se prejudica a quem consente).
«V - Assim, a primeira hipótese configura uma proibição absoluta; a segunda, uma proibição relativa.
Tendo-se afirmado na fundamentação do acórdão em referência o seguinte:
«Revertendo ao art. 126.º, este consagra, como vimos, um regime de proibições de prova (e também, consequencialmente, de proibições de valoração) com alcance diverso em situações diferenciadas, o que não admira num domínio marcado pela heterogeneidade, logo no que toca aos métodos proibidos, como acentua COSTA ANDRADE (Sobre As Proibições De Prova, livraria Almedina, 1996, p. 210).
«No primeiro caso (n.ºs 1 e 2), em que estão em causa direitos indisponíveis, contendendo com a dignidade da pessoa humana e valores impostergáveis, a todos os títulos, enquanto inerentes ao núcleo fundamental do Estado de direito democrático, as provas obtidas ilegalmente (provas proibidas) não podem ser utilizadas (valoradas), mesmo que o titular do direito consinta na violação. O consentimento é irrelevante.
«Na segunda hipótese (n.º 3), para além de se ressalvarem os casos previstos na lei, a proibição de prova pode ser afastada mediante o consentimento do titular do direito. São aquelas situações em que há intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Trata-se de um domínio, este, sem dúvida pertinente à área dos direitos fundamentais, mas em que releva a disponibilidade dos respectivos titulares, que podem consentir validamente no acto, em princípio lesivo desses direitos. Aqui, todo o relevo é conferido à vontade do titular, segundo o princípio volenti non fit injuria (não se comete injúria, ou não se prejudica a quem consente). A primeira hipótese configura uma proibição absoluta; a segunda, uma proibição relativa.
«Quando, porém, se obtenha a prova sem o consentimento do titular (caso da segunda hipótese), a consequência é a mesma que é assinalada à primeira: probição de valoração dessa prova – consequência hoje (quer dizer, a partir das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) clarificada pelo acrescento da expressão “não podendo ser utilizadas” (são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular).
«Esta inovação, todavia, na expressão de COSTA ANDRADE, configura um gesto pura e simplesmente inútil, uma vez que a proibição de valoração era já uma evidência à luz do direito anterior (“«Bruscamente no verão passado» a reforma do Código de Processo Penal”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, n.º 3951, p. 328). Ou seja, não é o facto de não poderem ser utilizadas as provas obtidas sem consentimento do titular que distingue o diverso alcance das duas modalidades de proibições de prova. É a relevância ou irrelevância do consentimento, o que nos parece retirar alguma validade à teoria defendida por MAIA GONÇALVES, pelo menos na medida em que enfatizava aquela expressão não podendo ser utilizadas, para considerar as provas proibidas dos n.ºs 1 e 2 como constituindo nulidades insanáveis, e as do n.º 3, como nulidades sanáveis (Cf. «Meios de prova», Jornadas De Direito Processual Penal, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, 1991, pp. 194/195).
«Ora, o regime das nulidades é autónomo do regime das proibições de prova, como acentua, de um modo geral, a doutrina, não podendo estas ser reconduzidas ao regime daquelas: nulidades sanáveis/nulidades insanáveis, como aliás, resulta do art. 118.º, n.º 3 do CPP, inalterado desde a versão originária do Código (para além de COSTA ANDRADE, nas obs. cits., GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso De Processo Penal II, Editorial Verbo, 3.ª edição, 2002, pp. 125 e ss. e TERESA BELEZA, A Prova – Apontamentos de Direito Processual Penal, 1992, 2.º T., pp. 151/152).
«A jurisprudência que tem dominado no STJ (Cf., por todos, o Acórdão de 20-09-2006, Proc. n.º 2321/06, da 3.ª Secção e jurisprudência aí citada, CJ- ACS STJ, Ano XIV – 2006, T. III, p. 189 e ss.) sobre tal questão, girando em torno e abonando-se muitas vezes naquela teoria de MAIA GONÇALVES, de nulidades sanáveis/ nulidades insanáveis, coincidindo as primeiras com as proibições de prova relativas e as segundas, com as proibições absolutas, não pode mais manter-se, sobretudo depois do referido acrescento ao n.º 3 do art. 126.º do CPP (são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas), pese embora a inutilidade da alteração, na opinião de COSTA ANDRADE – inutilidade que não tem, obviamente, o significado de dever prevalecer aquela orientação jurisprudencial, mas apenas o de, segundo a doutrina já então dominante, todas as provas proibidas contempladas no art. 126.º terem como consequência a proibição da sua valoração.
«Todavia, MAIA GONÇALVES estará certo quando afirma, na ob. cit., que existem «dois graus de desvalor ético-jurídico das provas obtidas contra as cominações legais, sendo maior o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos referidos no n.º 1 e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas nulidades cominadas.» Não ao nível das nulidades ditas sanáveis e insanáveis, mas no sentido de que, no caso de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações, sem consentimento, tratando-se como se trata de direitos disponíveis, a respectiva nulidade não ser de conhecimento oficioso, sendo de exigir que o titular do direito lesado o requeira (nesse sentido, também PAULO PNTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição actualizada, p. 337).
Nesta concepção da coisas, que subscrevemos, não seria, portanto, por não ter sido arguida nos termos do art.º 120.º, n.º 3, al. c), do CPP, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, que a pretensa nulidade poderia considerar-se sanada.
Há, portanto que encarar a questão noutra perspectiva.
O recorrente argumenta que o agente da polícia [que procedeu à busca] entrou no prédio em que ele, recorrente, presta serviço, sem para tal estar autorizado, daí fazendo decorrer a conclusão da nulidade da prova – consubstanciada na arma apreendida – nos ermos do disposto no art.º 126.º, n.º 3, do CPP.
Dispõe tal norma:
«Artigo 126.º
«Métodos proibidos de prova
«(…)
«3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
«(…)»
Não diz o recorrente que tipo de ilegalidade entende ele ter sido cometida; se, no seu entender, a prova foi obtida com intromissão na vida privada, se no domicílio, que nos parecem ser as hipóteses que, mais plausivelmente, podem ter sido consideradas na sua linha de argumentação.
Ora, considerando a situação do arguido no prédio em que a polícia entrou, entendemos que não se verifica, em relação ele, qualquer das previsões legais em causa.
O arguido encontrava-se no prédio na situação de trabalhador, a exercer as funções de porteiro e vigilante. Não residia no prédio em causa nem aí dispunha, que se saiba, de instalações que possam considerar-se integradas no núcleo da sua privacidade pessoal. Não pode sê-lo, certamente, a secretária de serviço que a si e a outro colega está atribuída, para o desempenho das suas tarefas funcionais.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque [1] configuram intromissões na vida privada os casos dos artigos: 58.º, n.º 5, 61.º, n.º 1, al. h), 133.º e 140.º, n.º 1, 141.º, n.º 4, al. a) e 343.º, n. 1; 92.º, n.º 5; 132.º, n.º 2 e 134.º; 147.º, n.º 7; 156.º, n.os 4 e 6; e art.º167.º, todos do CPP. Todas elas são circunstâncias típicas e sem pontos de contacto com a situação de que estamos a tratar.
E também não é caso de intromissão no domicílio!
Há, antes de mais que salientar que a referência ao domicílio se afere pela pessoa do visado pela busca. Para efeito de a busca violar o domicílio é o domicílio concreto do visado que interessa considerar, mesmo que se trate de um domicílio temporário ou ocasional – v. g. hóspede.
Por outro lado o conceito de domicílio comporta limitações.
Dispõe o art.º 177.º, n.º 1, do CPP:
«Artigo 177.º
«Busca domiciliária
«1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.
«(…)»
Temos assim, que domicílio, é, para o efeito que nos interessa, a casa habitada ou uma sua dependência fechada, ou seja uma dependência fechada da casa habitada.
Lê-se nas proposições VIII a XI do sumário publicado do acórdão do STJ de 2006/09/20, processo n.º 06P2321, relator Armindo Monteiro [2]:
«VIII - O regime tutelar consagrado em relação a casa habitada ou sua dependência, na hipótese de busca, mostra-se exigível como forma de acautelar o direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art. 34.º, n.º 1, da CRP, exprimindo tal conceito, na óptica, sempre uniforme, do TC, aquela área que tem por objecto a habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar, ou seja, um núcleo restrito sob o signo da intimidade, de protecção da vida privada, da liberdade e da segurança individual, onde se desenrola a vivência essencial, no aspecto existencial, da pessoa.
«IX - Uma garagem fechada - e não um espaço aberto, inserto num espaço mais amplo de garagens de um condomínio - como é a natureza daquela onde foi efectuada a busca nos autos, é um espaço fechado dependente da casa, local ocupante de uma relação de complementaridade com aquela - foi arrendada conjuntamente com o apartamento pelo arguido - concorrendo ambas para a realização dos fins próprios do domicílio, sem ser, no entanto, isoladamente, considerada domicílio.
«X - Conjugadamente casa e garagem, enquanto espaço fechado dela dependente, merecem a tutela cominada na lei processual penal, penal e constitucional, para a busca domiciliária, não já, no caso de garagem, por se tratar de domicílio stricto sensu - em cuja intromissão indevida se não configura crime de violação de domicílio, nos termos dos arts. 190.º e 378.º do CP -, mas por imperativo legal.
«XI - Uma coisa é a garagem, enquanto espaço dependente da casa, merecer da mesma tutela para a casa - acessorium principale sequitur -, outra coisa é aquela ser ou não domicílio, que não é.
Tendo presentes estas noções, havemos de considerar que não são “espaços fechados dependentes da casa” os espaços comuns dos edifícios que dão serventia às habitações naqueles existentes ou albergam equipamentos de uso das mesmas. Dadas as características, muito complexas, de alguns equipamentos urbanos, que integram, v. g., ginásios, espaços conviviais e de práticas desportivas, piscinas e garagens colectivas, estender o “conceito de espaço fechado dependente da casa” a toda essa parafernália instrumental, frustra com certeza, o sentido da norma.
Disse-se, além do mais, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 192/01 – processo n.º 517/00, 1.ª secção – relator Artur Maurício:
«Na verdade, sem necessidade de definir com rigor os limites positivos do conceito constitucional de domicílio e por mais generosos que eles sejam, não pode considerar-se que o local onde a busca foi efectuada – os espaços comuns do recinto de uma oficina de reparação de veículos automóveis e barracões anexos – goze da protecção que a Constituição confere ao domicílio nos artigos 32º nº 8 e 34º nº 2.
«Com efeito, devendo o conceito ser "dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de intimidade da vida privada" (Acórdão nº 67/97 in ATC 36º vol., p. 247), não está seguramente essa "intimidade" em causa num tal lugar, nem este é "aquele espaço fechado e vedado a estranhos onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar" (Acórdão nº 452/89, in ATC 13º vol., tomo I, p. 543).»
Embora, talvez, de forma não tão pronunciada como no exemplo constante no acórdão acabado de citar, pensamos que também os espaços comuns dos edifícios – ainda que se trate de edifícios de habitação –, que, por neles estarem instalados equipamentos do prédio, são acessíveis a quem neles trabalha e a outras pessoas que ali vão prestar serviços, nomeadamente de manutenção, e que se situam no exterior das residências propriamente ditas e da alçada directa dos moradores, não estão cobertos pela referida protecção constitucional.
Assim, pelos motivos expostos nas duas vertentes examinadas, concluímos que a busca em causa nos presentes autos não foi uma busca domiciliária, pelo que não são procedentes, em relação a ela as objecções levantadas pelo recorrente.
A busca em questão foi, isso sim, realizada ao abrigo do disposto no art.º 251.º do CPP, que reza:
«Artigo 251.º
«Revistas e buscas
«1 - Para além dos casos previstos no n.º 5 do artigo 174.º, os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária:
«a) À revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se;
«b) À revista de pessoas que tenham de participar ou pretendam assistir a qualquer acto processual ou que, na qualidade de suspeitos, devam ser conduzidos a posto policial, sempre que houver razões para crer que ocultam armas ou outros objectos com os quais possam praticar actos de violência.
«2 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 174.º
Sendo certo que não estamos perante um caso de fuga iminente do suspeito nem de detenção, que não foi realizada, temos para nós que as buscas previstas no n.º 1, do artigo citado não têm por requisito tais circunstâncias – aplicáveis às revistas – mas tão só os de que os OPC tenham fundadas razões para crer, não só que no lugar a buscar se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem a prova – o que apenas justificaria a busca realizada mediante a obtenção do competente mandado – mas também e sobretudo que a não realizarem a busca de imediato tais provas poderiam perder-se.
Ora, no caso em análise, o arguido estava a ser denunciado de ter empunhado uma arma de fogo momentos antes da intervenção policial e era de crer que, sabedor dessa acusação, ele fizesse desaparecer tal arma, tão de pressa tivesse oportunidade para isso. O que justifica a realização da busca de imediato.
A realização da busca sem mandado não dispensava, porém, os seus autores de cumprirem a formalidade referida no n.º 6 do art.º 174.º, ex vi do disposto no art.º 251.º, n.º 2, ambos do CPP.
Dispõe o referido n.º 6 que:
«Artigo 174.º
«Pressupostos
«(…)
«6 - Nos casos referidos na alínea a) do número anterior, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.»
Sendo certo que tal formalidade não foi cumprida ou pelo menos não foi cumprida de imediato.
O que nos coloca perante um nulidade da busca efectuada. O que não significa que a prova tenha sido obtida por um método proibido de prova. Há que distinguir entre a nulidade da própria prova, que determina a inutilidade processual da mesma, nos termos do disposto no art.º 126.º, e a nulidade do acto processual – legal em si mesmo –, determinada pela omissão ou pela imperfeição de cumprimento de um seu requisito formal [3], efeito que se poderá ou não comunicar à prova obtida, consoante o acto se venha ou não a convalidar.
Esta nulidade do acto processual da busca, sim, afigura-se-nos subsumível ao regime das nulidades dos actos processuais, não vendo nós motivo para dele o subtrair. Assim sendo, trata-se de uma nulidade dependente de arguição, nos termos do disposto no art.º 119.º – segmento: “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” – este, a contrário sensu, e 120º, n.os 1 – segmento: “(…) além das que foram cominadas noutras disposições legais”– e que deveria ter sido arguida até cinco dias após a notificação do debate que encerrou o inquérito, nos termos do disposto no art.º 120.º, n.º 3, al. c), do CP. E não o tendo sido se considera-se sanada.
Neste sentido, cfr., v. g., o Ac. da RL de 13 de Janeiro de 2005, Proc. 7277/04-9.ª, Rel. Goes Pinheiro [4], com as seguintes três primeiras proposições do sumário publicado:
«I. Os órgãos de polícia criminal podem proceder a buscas e revistas, para além do mais, sem prévia autorização da autoridade judiciária nos casos previstos nos arts. 174.º n.º 4 e 251.º do C.P.P.
«II. Havendo apenas provas absolutamente proibidas (obtidas mediante tortura, coacção ofensa à integridade física ou moral das pessoas) estabelece-se, nos n.os 1 e 2 do dito art. 126.º, a nulidade e impossibilidade delas serem utilizadas.
«III. A nulidade de uma busca não domiciliária, a qual não é também relativamente proibida, nos termos do art. 126.° n.° 3 do C.P.P., sana-se se não for arguida até ao encerramento do debate instrutório, nos termos do art. 120.°, n.° 3, al. c) do C.P.P.
(…)»
Termos em que a nulidade da busca realizada está sanada, tal como, ainda que por diferente via, se declarou na sentença recorrida, e a prova recolhida – a arma apreendida – é válida.
3. 2. Do vício da decisão do art.º 410.º, n.º 1, al. a), do CPP.
Invocou o recorrente a existência, na sentença recorrida, de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
Disse a este título na motivação do recurso:
«(…) não teve o Tribunal "a quo", minimamente em consideração o estado em que a dita arma foi encontrada.
«É o proprio relatório de exame directo à arma apreendida que refere: "O referido revólver encontra-se inoperacional por avaria no mecanismo de disparo; as escorvas dos cinco cartuchos metálicos foram percutidas sem que a sua carga de fogo deflagrasse", facto esse que veio a ser dado como provado."
«(…)
«(…) seria obrigação do Tribunal "a quo", valorar esse facto, e nessa medida ponderar se a detenção do revolver em causa, integrava o crime de detenção.
«Neste sentido, cfr. acordão do Tribunal da Relação do Porto de 16- 01-1991, "...detenção de um revólver de calibre 0,32, ferrugento, estragado e não utilizável, não manifestado nem registado, integra o crime previsto e punido pelo Artigo 260 do Código Penal " se for susceptível de conserto ou reparação por forma a poder vir a ser utilizável, como tal ". Como assim, deverá ser declarado perdido a favor do Estado."
«84.°
«Ora pela prova produzida ficamos convencidos que o revolver em causa não seria apto a ser utilizado (…)
Vindo a concluir nos termos do disposto na conclusão “K”, que – apesar do sentido literal um tanto hermético que revela – entendemos nós só poder estar referida a este segmento da motivação.
Relevariam, na tese do recorrente, para efeito da ponderação da existência ou não do referido vício os factos provados A e B. No primeiro deu-se como provado, em resumo, que o arguido detinha o revólver aí descrito. No segundo deu-se como provado que o referido revólver estava inoperacional por avaria no mecanismo de disparo.
Porém, não tem o recorrente razão.
A Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, no seu art.º 2.º subordinado à epígrafe: “Definições legais”, define expressamente o que são “armas de fogo inutilizadas”. Assim, diz-se na al. q) [5] do referido artigo: «arma de fogo inutilizada» a arma de fogo a que foi retirada ou inutilizada pela ou parte essencial para obter o disparo do projéctil e que seja acompanhada de certificado de inutilização emitido ou reconhecido pela Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública (PSP);
Posteriormente à data da prática dos factos ao referido artigo foi acrescentada [6], no que passou a constituir a al. t) do artigo, uma nova definição, a de «arma de fogo desactivada. Tal alínea ficou assim redigida: «Arma de fogo desactivada» a arma de fogo a que foi retirada peça ou peças necessárias para obter o disparo de projéctil.
Das duas definições referidas – a segunda das quais se refere para comprovação de não se poder enquadrar a situação em análise em qualquer hipótese de descriminalização operada pela nova disposição – conclui-se, com segurança, que a própria lei estabelece em que circunstâncias concretas a deficiência funcional das armas de fogo pode relevar para o seu enquadramento no “Regime Jurídico das Armas e suas Munições”, logo, na subsunção das mesmas aos tipos legais que prevêem e punem a sua detenção e uso. E, assim sendo, a avaria detectada na arma dos presentes autos e que levou à consignação, na sentença recorrida, do facto provado B), é anódino, do ponto de vista da incriminação pela detenção dessa arma. A posse da mesma preenche o tipo legal de crime de detenção de arma proibida, estando ou não a arma avariada.
Não há, portanto, qualquer insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
3.3. Da não exibição da arma apreendida na audiência de julgamento:
O recorrente limitou-se a afirmar que «não foi visualizada em audiência de julgamento a arma sujeita a exame, pelo que nem sequer sabemos se estaremos a tratar da arma apreendida, pelo que, nesta matéria a prova, salvo o devido respeito não foi devidamente valorada». Isto disse no artigo 78.º da motivação e repetiu, ipsis verbis, na conclusão “F”.
Uma vez mais o recorrente não diz claramente o que pretende: se, simplesmente argumentar com uma, no seu entender, errada valoração do real significado desta prova concreta, no quadro da impugnação da matéria de facto julgada, se invocar a “proibição da valoração de provas consagrada no art.º 355.º do CPP”.
Seja como for, sempre se dirá que ao tribunal a quo era lícito utilizar a prova consistente na arma de fogo apreendida, com base nos autos de apreensão de fls. 5 e ss. e de exame directo de fls. 20, em que a arma foi devidamente examinada e descrita. Isto nos termos do disposto nos art.os 355.º, n.º 2 e 356.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.
Acresce que, se a arma não foi exibida em julgamento foi, certamente, porque não se colocaram dúvidas quanto à sua identificação e características – ou seja, quanto a tratar-se da arma referida nos autos de apreensão e de exame directo –, posto que não se vislumbra que tenha sido levantado qualquer entrave ao livre exercício do contraditório e em julgamento não se colocaram questões relativas à identidade da arma em causa.
Não tem pois razão, também aqui, o recorrente.
3.4 Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
É hoje doutrina pacífica que o recurso em matéria de facto perante as relações não se destina a um novo julgamento mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância [7].
O Tribunal de recurso não contacta com os intervenientes processuais, sendo a sua percepção dos factos intermediada pela do tribunal recorrido, que acede ao conhecimento e compreensão destes mediante a imediação com a prova e a oralidade da produção desta, que a audiência de julgamento assegura.
Assim, ao tribunal de recurso compete, no confronto com transcrição da prova produzida em audiência e a análise das provas examinadas em audiência, averiguar se existe um erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por essa transcrição ou essa análise evidenciarem ou que foram valoradas provas proibidas ou que as provas (admissíveis) foram valoradas com violação das regras que regem a apreciação da prova.
A apreciação da prova - por declarações e testemunhal- produzida em audiência, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova acolhido expressamente no artigo 127.º do C. P. P. e que se resume na ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e na correspondente faculdade de o tribunal [8] apreciar a prova com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal.
O que não significa uma apreciação arbitrária da prova – como tal imotivável e insusceptível de aferimento dos factos provados com a fonte de onde promanam. A apreciação tem de ser objectivamente fundada e controlável.
A livre ou a íntima convicção do tribunal não poderá ser uma pura convicção subjectiva, emocional, que abstraia da realidade de que parte para dar lugar a uma ficção. Porém há-de ser uma convicção pessoal – porque nela relevam a par da actividade imediatamente cognitiva, elementos dificilmente transponíveis para o plano do discurso racional, como a impressão que causa uma testemunha não apenas pelo que diz, mas pelo modo como diz, pela atitude que revela, por toda a soma de comunicação gestual, que não é representável em palavras.
Mas, mesmo aqui, a convicção é objectivável e motivável, pela capacidade de ser revelada aos outros, designadamente, ao tribunal de recurso, quando este é chamado ao controlo efectivo da apreciação da prova.
Acresce que esta convicção tem por exigência ultrapassar o crivo da subsistência de uma dúvida razoável. Não se bastará, com a mera opção voluntarista, contra a dúvida, pela certeza de um facto ou com a superação daquela com apoio na alta verosimilhança ou probabilidade do facto. Antes se trata de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável, ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse [9].
Dito isto e analisadas a motivação do recurso, a motivação de facto da sentença recorrida e a gravação da prova produzida em julgamento, verificamos que o recorrente, a pretexto do cumprimento do disposto no n.º 3 do art.º 412.º do CPP alinhou extractos de depoimentos prestados em julgamento que têm muito pouco que ver com o esclarecimento da questão que aparentemente justifica a interposição do recurso: a negação da detenção ilegal a arma de fogo, pelo arguido.
O recorrente reconhece, aliás, que as testemunhas que referiu na motivação do seu recurso, C…, D… e E… depuseram no sentido de o terem visto com a arma na sua posse. Aliando estes depoimentos ao da testemunha G…, sobre a apreensão do revólver apreendido nos autos e fazendo apela às regras da experiência comum, não há outra conclusão aceitável senão a de que a arma que tais testemunhas referiram ter visto na mão do arguido é a mesma que foi encontrada e apreendida pela polícia. Aos indicados testemunhos acresce o do outro agente da polícia inquirido, I…, no mesmo sentido do G…, tal como consta da motivação de facto da sentença recorrida.
A teoria da conspiração para incriminar o arguido não tem qualquer suporte factual e, de facto, não passa de uma tentativa de juntar extractos dispersos de aspectos marginais dos depoimentos das testemunhas indicadas, para tentar dar-lhes um sentido que eles manifestamente não comportam.
Aliás, tal conspiração, para poder ser real, teria de ter tido a colaboração dos dois polícias, que só intervierem nos factos no exercício das suas funções, acidentalmente, portanto. Não havendo, assim, o mais pequeno indício de que tal colaboração pudesse ter sucedido.
Não é, como tal, credível a posição do arguido, de que arma apareceu não se sabe de onde, para o incriminar.
O argumento, do recorrente, de que não se demonstrou que na arma houvesse impressões digitais suas não é relevante. Desde logo porque não foi feito qualquer exame para tal fim, nem tal se impunha.
Não existe qualquer razão para a invocação do princípio in dubio pro reo. A dúvida susceptível de justificar a aplicação do referido princípio não resulta necessariamente de haver testemunhos contraditórios entre si. Se assim fosse os tribunais muito poucas vezes teriam oportunidade de formar um convicção sobre os factos. O princípio em causa releva quando, em razão do valor relativo dos depoimentos contraditórios – e de todo o conjunto das provas de que o tribunal posa validamente socorrer-se – não lhe seja possível, em consciência, formar uma convicção sobre o acontecido. É nessa hipótese, face à proibição legal de proferir um non liquet, que o princípio intervêm decidindo a dúvida a favor do arguido, em homenagem ao princípio de presunção de inocência do arguido.
No caso presente nem versões contraditórias dos factos havia – em sede testemunhal [10], porquanto os depoimentos das testemunhas presenciais dos factos foram unânimes no sentido de que o arguido empunhou uma arma de fogo.
Tudo ponderado, a impugnação da matéria de facto deduzida tem de improceder.
* * *
Não se tendo levantado outras questões no recurso, nomeadamente relacionadas com a pena aplicada, o recurso tem de improceder integralmente.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente no pagamento de 2 UC de taxa de justiça.

Porto, 2011/11/09
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
_______________
[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, [Lisboa
2010], pág.343.
[2] Consultável em http://www.dgsi.pt/
[3] Há quem entenda que a homologação da busca deve ter lugar junto do MP por ser, no caso, a entidade com competência para a emissão do mandado de busca e que a mesma pode ser tácita: Cfr. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2011, p. 692 (nota 4. ao art.º 251) e p. 499 (nota 12 ao art.º 177.º ).
[4] Apud Vinício Ribeiro, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NOTAS E COMENTÁRIOS, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2011.p. 462
[5] Alínea q), na versão da lei vigente à data da prática dos factos; actualmente, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio, alínea r).
[6] Pela Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.
[7] Cfr. Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21.
[8] O princípio é válido em todas as fases do processo penal.
[9] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, Coimbra Editora, Limitada, 1974, p. 202 e ss.
[10] Havia, sim, versões contraditórias apenas entre as declarações do arguido, por um lado, e os das testemunhas que presenciaram os factos, por outro.