Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
521/18.9T8AMT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRAZO
PARECER DO ADMINISTRADOR
INSOLVÊNCIA CULPOSA
OBRIGAÇÃO DE MANTER A CONTABILIDADE ORGANIZADA
Nº do Documento: RP20190507521/18.9T8AMT-C.P1
Data do Acordão: 05/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 889, FLS 99-115)
Área Temática: .
Sumário: I - O prazo previsto no art. 188º, nº 1 do CIRE para o Administrador da Insolvência requerer o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa é meramente ordenador ou regulador, não podendo ser considerado perentório.
II - No art. 186º, nº 2 do CIRE consagra-se uma presunção juris et de jure de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo admitida a produção de prova em contrário;
III - Já no art. 186º, nº 3 do CIRE prevê-se uma presunção ilidível de culpa grave, sendo ainda necessário que fique demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento das obrigações aí previstas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
IV - O incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada constitui presunção inilidível de culpa grave da insolvente, nos termos do disposto no art. 186º, nº 2, al. h) do CIRE.
V - No entanto, para que tal se verifique não é suficiente uma qualquer deficiência, exigindo-se que se trate de irregularidade com influência na percepção que a contabilidade transmite quanto à situação patrimonial e financeira do devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 521/18.9 T8AMT-C.P1
Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 3
Apelação
Recorrente: B…
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Por sentença proferida em 5.4.2018 foi declarada a insolvência de “C…, Lda.”,
O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência apresentou o parecer de fls. 2 e segs., no qual pugnou pela qualificação da insolvência como culposa, tendo, para tal efeito, alegado que a devedora violou, pelo menos, o disposto no art. 186º, nº 2, als. a) e e) do CIRE (Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Após convite para o efeito, veio o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência declarar que a pessoa que deve ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa é o gerente da sociedade, B….
Por despacho de fls. 57 foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos termos do art. 188.º, n.º 1 do CIRE.
O Ministério Público apresentou parecer nos termos que constam de fls. 58 e segs., defendendo a qualificação de insolvência como culposa, nos termos do disposto nos arts. 185º e 186º, nºs 1 e 2, als. a) e e) do CIRE, defendendo a afetação por tal qualificação de B…, com as consequências previstas no art. 189º, nº 2 do mesmo diploma.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 188º, nº 6 do CIRE.
Nessa sequência, veio B…, apresentar oposição nos termos que constam de fls. 62 e segs..
Invocou, em primeiro lugar, a nulidade da admissão do parecer do Exmo. Sr. Administrador da Insolvência como tempestivo.
Alegou também que o parecer do Ministério Público é inepto, por falta da causa de pedir.
Impugnou ainda a factualidade alegada pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público.
Terminou, pugnando pela:
a) Declaração de nulidade do despacho de admissão do parecer do Exmo. Sr. Administrador da Insolvência;
b) Declaração de ineptidão do parecer do Digno Magistrado do Ministério Público por falta da causa de pedir;
c) Absolvição do opoente dos factos que lhe são imputados, por não provada a sua culpa e a ilicitude da sua conduta.
Por despacho de fls. 76 e segs. foi julgada improcedente a arguida nulidade, bem como a invocada ineptidão do parecer do Digno Procurador da República.
Além disso, por despacho de fls. 78v foi dado a conhecer às partes que a matéria factual alegada nos autos pela opoente poderia motivar o enquadramento na al. h) do nº 2 do art. 186.º do CIRE.
Foi dispensada a audiência prévia, fixado o valor da causa, saneado o processo, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova em termos que não mereceram reclamação.
Por despacho de 17.10.2018 foi aditado um novo tema de prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com a observância das formalidades legais.
Em sede de julgamento, fez-se constar e deu-se a conhecer às partes que o facto de a partir de Junho de 2016 a sociedade insolvente ter continuado a laboração, sendo que o resultado desta foi vendido a terceiros, ou entregue a terceiros no âmbito de prestação de serviços nos casos em que as matérias-primas não eram fornecidas pelas entidades a quem a insolvente prestava serviços poderia eventualmente vir a ser considerado na sentença final.
Foi depois proferida sentença, na qual se decidiu:
a) Qualificar como culposa a insolvência da sociedade “C…, Lda.”;
b) Considerar afetado pela qualificação da insolvência B…;
c) Decretar a inibição de B… para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 5 (cinco) anos;
d) Declarar B… inibido para o exercício do comércio pelo período de 5 (cinco) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
e) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por B…, condenando-se o mesmo na restituição dos bens ou direitos que já tenha recebido em pagamento desses créditos;
f) Condenar B… a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
Inconformado com o decidido, B… interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por base a sentença do Meritíssimo Juiz a quo que decidiu:
I. Qualificar como culposa a insolvência da sociedade “C…, LDA.”;
II. Considerar afectada pela qualificação da insolvência B…;
III. Decretar a inibição de B… para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 5 (cinco) anos;
IV. Declarar B… inibido para o exercício do comércio pelo período de 5 (cinco) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
V. Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por B…, e condena-se o mesmo na restituição dos bens ou direitos que já tenha recebido em pagamento desses créditos;
VI. Condenar B… a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
B. O Meritíssimo Juiz a quo interpretou de forma errada a prova produzida, designadamente a prova testemunhal e documental junta aos autos, o que o levou a, por um lado, dar como não provado um facto que o deveria considerar como provado, - designadamente quanto ao fim dado à matéria-prima subsidiária e de consumo, aos produtos inacabados e intermédios, entrando em contradição com os factos dados como provados, pois dá como não provado “que as existências identificadas em 17. e 18. não foram vendidas ou consumidas” e dá como provado que “Desde Agosto de 2016 a sociedade insolvente continuou a laborar e a consumir matérias-primas pela força do trabalho dos seus trabalhadores.”.
C. Da errónea apreciação da prova produzida e gravada, resultou errada a decisão acerca da matéria de facto, com relevância para a decisão da causa, que deverá ser diversa da proferida pelo Tribunal a quo, o que desde já se pede.
PRIMEIRA
D. No dia 24.05.2018 foi realizada a Assembleia de Credores da insolvente “C…, LDA.”
E. No dia 08.06.2018 o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência por requerimento autuado por apenso emitiu parecer no sentido de que deveria ser aberto incidente de qualificação de insolvência, sem indicar as pessoas que deviam ser afectadas pela insolvência. F. No dia 11.06.2018 por douto despacho proferido pelo Tribunal a quo foi o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência notificado para, em complemento do parecer, “…indicar as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação”, mas não o fez no prazo legal de dez dias.
G. No dia 02.07.2018 o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência foi notificado novamente para complementar o requerimento e com a cominação de multa, tendo apenas neste dia cumprido o legalmente previsto e ordenado judicialmente por notificação.
H. Pelo que, só ao fim de 25 dias a contar do término do prazo que detinha nos termos do art. 188.º, n.º 1 do CIRE, o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência cumpriu com o ordenado e identificou as pessoas que deviam ser afectadas pela qualificação da insolvência.
I. O requerimento apresentado pelo Senhor Administrador de Insolvência nos termos do n.º 1 do art. 188.º do CIRE e que despoletou a abertura do incidente de abertura de qualificação deveria ter sido liminarmente indeferido, por falta de verificação dos pressupostos legais, na medida em que não indicou em prazo as pessoas que deviam ser afectadas pela declaração de insolvência. J. Nem deveria o douto Tribunal a quo ter notificado o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência para complementar o requerimento.
K. O Exmo. Senhor Administrador apenas complementou o requerimento em 02.07.2018, muito além do prazo legal de dez dias, e a ser assim o aludido requerimento deveria ter sido, sem outros considerandos, considerado extemporâneo pelo douto Tribunal a quo.
L. Pretende-se, pois, uma nova ponderação jurídica e nova decisão quanto ao despacho proferido pelo douto Tribunal a quo que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, concluindo o Venerando Tribunal ad quem pela revogação da decisão que declarou aberto o incidente de qualificação de insolvência, declarando encerrado o incidente de qualificação de insolvência por legalmente e manifestamente extemporâneo.
SEGUNDA
M. O Tribunal a quo deu como não provado que as existências identificadas em 17 e 18 não foram vendidas ou consumidas, dado que de entre os activos apreendidos para a massa insolvente, não constam nem matérias-primas subsidiárias e de consumo, nem produtos acabados e intermédios e por inexistirem registos contabilísticos sobre o destino ou utilização que foi dado a estas existências.
N. Andou mal o Meritíssimo Juiz a quo ao não considerar como provado que as existências foram consumidas pela força do trabalho, pois tal resultou efectivamente da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.
O. Quer do depoimento do Senhor Exmo. Senhor Administrador que afirmou que tudo o quanto reverteu no seu relatório diz respeito ao aspecto formal e objectivo da contabilidade, da forma como ela estava objectivamente organizada oficialmente (sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 1:00 ao minuto 2.41).
P. Resultou do seu depoimento que limitou-se, para realizar o seu relatório, a analisar, perdoe-se a expressão, a papelada sem cuidar de aferir a realidade da insolvente, reunindo com o contabilista e recorrente e aferir junto de quem efectivamente está in loco, os seus trabalhadores.
Q. Não ficou provada qualquer dissipação, qualquer destino fraudulento dos stocks, das existências evidenciadas pela contabilidade em Agosto de 2016, bem pelo contrário ficou provado que a empresa laborou, vendeu, apenas não registou tais movimentos na contabilidade.
R. Tal foi corroborado pelo depoimento do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência (registado em sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 47:35 ao minuto 47:41).
S. Bem como pelo depoimento da testemunha D…, de uma forma serena, coerente, espontânea, explicou o destino dado ao stock, matérias-primas existentes na insolvente, (depoimento gravado em sistema Habilus Média Studio, 20181108152830__3570471_2871651, do minuto 04.14 ao minuto 5.29 e sistema Habilus Média Studio, 20181108152830__3570471_2871651, do minuto 12.49 ao minuto 13.35), depoimento de um ex-funcionário da insolvente que não foi errada e devidamente valorado pelo douto Tribunal a quo.
T. A testemunha demonstrou conhecimento directo da realidade desta empresa, e de uma forma coerente, clara e espontânea explicou ao douto Tribunal que as matérias-primas existentes e reflectidas na contabilidade em Agosto de 2016 não foram dissipadas, nem desapareceram de uma forma fraudulenta, mas foram consumidas pelo trabalho.
U. O facto de contabilisticamente não constar o destino de tais existências, tal não pode ser conclusivo que tais existências foram usadas em prejuízo da sociedade insolvente ou em benefício de terceiros, estranhos ou não à sociedade.
V. Deveria o douto tribunal a quo dar como provado que as existências identificadas em 17. e 18 foram consumidas pelo trabalho, o que agora deve ser efectuado pelo Venerando Tribunal ad quem, o que desde já se pede.
W. Devia dar como não provado que as existência identificadas em 17. e 18. foram vendidas.
X. Estes factos relevam para a situação da falta do nexo de correspectividade entre a insolvência e os alegados actos que lhe foram imputados a título de incumprimento pelo tribunal a quo.
Y. A experiência do Tribunal ad quem facilmente rebaterá a precipitação e a ausência acadimada de habilidade de julgamento por parte do Tribunal a quo, o que desde já se pede.
TERCEIRA
Z. Concluiu o douto Tribunal a quo que a insolvência em causa deve qualificar-se como culposa, em consonância com o disposto art. 186.º, n.º 3, al. a) do CIRE.
AA. Resulta dos factos provados que “No processo de insolvência foram reconhecidos créditos a 35 credores (…) sendo que a ATA reclamou créditos de capital no montante de €271.851,62 (de capital) e a Segurança Social no montante de €567.761,61 (a título de contribuições; montante de capital)”.
BB. Resulta também dos factos dados como provados que “As referidas dívidas à Segurança Social são de constituição ininterrupta entre Maio de 2010 a Fevereiro de 2018”.
CC. A insolvência foi apresentada pela própria insolvente em 5 de Abril de 2018.
DD. Dos factos dados como provados apenas se verifica que a insolvente “C…” encontrava-se em situação de incumprimento generalizado apenas com o credor Segurança Social desde Março de 2016, não se dando como provado o incumprimento, àquela data com demais credores, designadamente com os fornecedores, trabalhadores, etc.
EE. Trata-se de um incumprimento generalizado com um credor relativamente a créditos da mesma natureza, que na parte criminal tal prática poderá configurar um crime na forma continuada, o que desde logo, atenua a gravidade do incumprimento, e o mesmo deveria suceder para efeitos de qualificação de insolvência como culposa.
FF. Tal como referiu o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência em sede de depoimento a insolvente em Abril de 2015 beneficiou de um PER, e como tal os credores foram chamados, tinham perfeito conhecimento da situação da insolvente e votaram e aprovaram um plano de pagamento (gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 54.45 ao minuto 55.05 e gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 56.17 ao minuto 56.39).
GG. Nesta medida, andou mal o Meritíssimo Juiz a quo a considerar que em Abril de 2015 já se verificava um facto notório de insolvência, e que por inépcia técnica de julgamento desconsiderou o depoimento do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, nesta parte.
HH. A insolvente manteve-se a laborar, quer consumindo o stock existente e apurado em 2016, quer trabalhando para terceiros mediante o fornecimento de matérias-primas, e não ficou demonstrada nem provada a incapacidade generalizada da insolvente em cumprir as suas obrigações, aliás, quer o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência (sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651 do minuto 5.46 ao minuto 6.27), quer mesmo a testemunha (sistema Habilus Média Studio, 20181108152830_3570471_2871651, do minuto 9:09 ao minuto 9:19) nada referem quanto à incapacidade da insolvente cumprir as suas obrigações, designadamente nada referem à falta de encomendas, à falta de trabalho, nem tão pouco foi alegado e demonstrado pela prova produzida que a insolvente incumpria com os fornecedores e com os trabalhadores, bem pelo contrário.
II. Ficou provado que a insolvente desde Março de 2016 manteve-se a laborar.
JJ. Tal foi demonstrado no depoimento do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência gravado em sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651 do minuto 5.46 ao minuto 6.27), quando afirmou que apenas se encontravam por pagar aos trabalhadores os vencimentos de Março e Abril de 2018, também demonstrado nos documento juntos aos autos.
KK. Ficou provado a total colaboração do aqui recorrente em todo o processo de insolvência da empresa “C…”, mostrando-se disponível para prestar todas as informações, e retirar todas e quaisquer dúvidas ao Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, mas isto o Tribunal a quo não cuidou de valorar, o que ficou afirmado pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência (sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651 do minuto 25.11 ao minuto 25:24), tendo este referido que o legal representante lhe comunicou que a empresa esteve sempre em laboração (gravação em sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651 do minuto 25:43 ao minuto 26:12).
LL. O mesmo foi corroborado pela testemunha D…, que também afirmou que a insolvente esteve sempre a laborar (gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108152830_3570471_2871651, do minuto 3.01 ao minuto 4.10).
MM. Não existem elementos nos autos, nem decorre da prova produzida que a insolvente se encontrava à data de Abril de 2015 sem meios financeiros para cumprir as suas obrigações, mas ainda que se entenda que à data de Abril de 2015 já se verificava a situação de insolvência, o que só por mero dever de patrocínio (…), sempre se dirá que a não apresentação de insolvência naquela data não é por si suficiente para qualificar a insolvência como culposa.
NN. Não se verifica o requisito previsto no n.º 1 do art. 188.º, isto é, o nexo de causalidade entre a omissão do dever de apresentação de insolvência e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, o qual não podendo presumir-se, terá que ser demonstrado, sendo certo que não resulta dos documentos juntos aos autos e muito menos da produção de prova testemunhal tal liame jurídico.
OO. Importa referir, e tal resultou do depoimento do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência que a empresa passou por um processo judicial de recuperação (PER), em 2015, e por esse facto nem o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência configurou a qualificação como insolvência pelo incumprimento de dever de apresentação, gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 54.45 ao minuto 55.05 e gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 56.17 ao minuto 56.39).
PP. Para se poder concluir que o incumprimento do dever de requerer a insolvência agravou o estado desta, sempre seria necessário conhecer a evolução, passo a passo, da situação produtiva e económico-financeira da empresa e o que se apurou nos autos, ainda que de forma minimalista, é que a insolvente em Abril de 2015 mantinha uma situação de incumprimento apenas para com a Segurança Social, e manteve essa situação de incumprimento generalizado até Abril de 2018, data da sua apresentação à insolvência.
QQ. Não ficou demonstrado nem provados quaisquer factos que permitam concluir que a insolvente viu «a sua situação» agravada, como tal, fez uma interpretação errónea quer da prova documental, quer da prova testemunhal produzida.
RR. Muito menos ficou provado, porque o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência não demonstrou elementos que permitam concluir tal, que o dito incumprimento com a Segurança Social e consequente agravamento do passivo está directa e necessariamente relacionado como causa/efeito do comportamento doloso do recorrente e que agravou necessariamente a sua situação.
SS. A testemunha D… referiu que o legal representante da empresa não possuía sinais de riqueza (gravação registo em sistema Habilus Média Studio, 20181108152830_3570471_2871651, do minuto 07.46 ao minuto 08.15), o [que] demonstra que o mesmo não se locupletou com tais valores.
QUARTA
TT. O Tribunal a quo afirmou, ainda, na sentença que “Ademais, a insolvência em causa sempre deveria qualificar-se culposa em face da citada al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.”, e qualificou como culposa a insolvência, com fundamento na verificação do circunstancialismo da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
UU. O Meritíssimo Juiz a quo conceptualizou a relevância da contabilidade das empresas perante terceiros, escreveu assim na sentença: “Ora, no caso dos autos, apurou-se que a insolvente não depositou as contas da sociedade relativamente aos anos de 2015, 2016 e 2017. Por outro lado demonstrou-se que desde Agosto de 2016 até ``a data de declaração de insolvência, apesar de permanecer a laborar e de ter vendido o produto da sua laboração ou ter entregue a terceiros nas situações em que as matérias primas eram por estas fornecidas, a sociedade insolvente não registou contabilisticamente qualquer valor dessas vendas e/ou prestação de serviços.”.
VV. Concluiu que o não registo das referidas vendas/prestações (…) “só pode revelar-se como causador de prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeiras da devedora.”.
WW. A sentença em causa revela que só está em causa a desorganização contabilista de uma empresa que não tinha departamento financeiro, departamento técnico tal como consta dos documentos junto aos autos, bem como do depoimento da testemunha D… (sistema Habilus Média Studio 20181108152830_3570471_2871651 do minuto 6:54 ao minuto 7:20).
XX. Ficou por demais provado que a insolvente laborou, vendeu sem que tenha registado oficialmente tais movimentos na sua contabilidade.
YY. Disse-o o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência (gravação em sistema Habilus Média Studio 20181108142654-3570471-2871651, ao minuto 19.17 a 19.34 e sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 47:35 ao minuto 47:41).
ZZ. A insolvente tinha o registo das operações, apenas não as lançou oficialmente, isto é, só não elaborou as contas anuais, no prazo legal, e não as depositou na conservatória do registo comercial. Só isto, mas que hoc sensu é muito, dado que o tratamento da situação em causa deverá ser efectuado pelo n.º 3 e não pelo n.º 2.
AAA. Estando em causa o decalque perfeito da al. b) do n.º 3 e estando em causa um incidente acusatório e sancionatório dever-se-á optar pela aplicação da norma mais benéfica ao eventual afectado, ao que acresce a alínea h) do n.º 2 do art. 186.º revela-se com um conteúdo bastante genérico, pelo que havendo uma outra norma que disponha concretamente sobre um elemento específico da factologia da norma genérica, como é justamente o caso, deverá ser aplicada a especial em detrimento da geral.
BBB. É evidente que a não elaboração das contas anuais, no prazo legal, e o seu não depósito na conservatória do registo comercial (al. b) do n.º 3) poderá ser interpretado como um incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, ou a prática de uma irregularidade contabilística (al. h) do n.º 2), todavia a teoria geral da interpretação de normas é decisiva na justa-composição do caso sub judice: a norma especial afasta a aplicação da norma geral.
CCC. Em todo o caso, será de cogitar se os factos dados como provados configurará uma contabilidade cuja organização foge às regras do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), em vigor, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que não reflicta a actividade da empresa.
DDD. Para o apuramento da falta de contabilidade organizada o Tribunal a quo considerou os seguintes factos: A sociedade insolvente não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017 e demonstrou-se que desde Agosto de 2016 até à data de declaração de insolvência, apesar de permanecer a laborar e de ter vendido o produto da sua laboração ou ter entregue a terceiros os bens acabados no âmbito de contratos de prestação de serviços com eles celebrados nas situações em que as matérias primas eram por estas fornecidas, a sociedade insolvente não registou contabilisticamente qualquer valor dessas vendas e/ou prestação de serviços.
EEE. Dar como provados tais factos – só por si – não configura as violações que o Tribunal a quo associou ao não lançamento contabilístico de certas operações que, efectivamente, não existe.
FFF. Quer com isto o recorrente dizer que, em 1.ª linha, um juízo tão severo sobre falta de contabilidade organizada, em termos substanciais, não deveria ter sido efectuado, pois ficou demonstrado que a empresa tinha a sua organização contabilística de facto efectivada, desde logo porque o próprio contabilista da insolvente asseverou ao Exmo. Senhor Administrador ser conhecedor das operações comerciais efectuadas e por lançar (sistema Habilus Média Studio 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 47:35 ao minuto 47:41), ao que acresce que a insolvente laborou e organizou mensalmente os seus pagamentos para o efeito, pois não se pode esquecer que foi o recorrente que a apresentou à insolvência e não foi requerida por qualquer credor.
GGG. Da falta de apresentação e registo de aprovação das contas dos anos de 2015, 2016 e 2017 não pode por si só qualificar a insolvência como culposa, nem o facto da insolvente ter efectuado vendas, sem as reflectir formalmente na contabilidade deve conduzir sem mais à qualificação como culposa da insolvência.
HHH. O Exmo. Senhor Administrador de Insolvência não conseguiu determinar qual o prejuízo relevante para a compreensão dos credores da situação patrimonial e financeira do devedor.
III. Não se provou o prejuízo relevante de terceiros devido à não elaboração das contas anuais, no prazo legal, e ao seu não depósito na conservatória do registo comercial, nem a perturbação destes, sendo certo que se fosse pela natureza e utilidade da contabilidade o legislador insolvencial não teria acrescentado a parte final da alínea h) – prejuízo relevante para a compreensão dos credores da situação patrimonial e financeira do devedor, pois já pressuponha tal circunstância, ou seja, que toda e qualquer desconformidade contabilística determinaria um prejuízo relevante para a compreensão dos credores da situação patrimonial e financeira do devedor.
JJJ. Pelo que, deveria ter sido provado o prejuízo relevante para os terceiros decorrente da falta de registo das vendas realizadas pela insolvente e da falta de registo da aprovação das contas, o que não ocorreu.
KKK. Antes pelo contrário, na prática um dos indicadores de alarme dos credores é a não publicação das contas e não o seu inverso.
LLL. Acresce que se fez prova de que ninguém cuida de saber das contas de uma empresa para contratar com a mesma, nem mesmo os comerciantes ou profissionais liberais.
MMM. De modo lapidar assim o confirma as declarações do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência (sistema Habilus Média Studio, 20181108142654_3570471_2871651, do minuto 51:44 ao minuto 52:14).
NNN. Tudo o alegado e concluído demonstra o desajuste da decisão recorrida.
OOO. Assim foram violados, entre outros, os artigos 18.º, 186.º e 188.º todos do CIRE.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida e a consequente qualificação da insolvência como fortuita.
O Min. Público apresentou contra-alegações nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
*
As questões a decidir são as seguintes:
I – Extemporaneidade da apresentação do requerimento de qualificação da insolvência;
II Impugnação da matéria de facto;
III – Qualificação da insolvência como culposa [A. Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência; B. Incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada].
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
1. A insolvente C…, Lda. foi matriculada no registo comercial em 19-05-2005, tendo por objecto o fabrico, acabamento, distribuição e comercialização, importação e exportação de artigos de calçado (cfr. certidão permanente de fls. 82 e ss. do processo de insolvência, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
2. A gerência da sociedade insolvente cabe, desde 2-11-2009 a B… (cfr. certidão permanente de fls. 82 e ss. do processo de insolvência, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
3. B… é sócio da insolvente desde 03-10-2012 (cfr. certidão permanente de fls. 82 e ss. do processo de insolvência, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
4. Em 04 de Abril de 2018, a sociedade C…, Lda., requereu a sua declaração de insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 05 de Abril de 2018.
5. No processo de insolvência foram reconhecidos créditos a 35 credores, no valor de €1.019.642,89, acrescidos de €153.559,50 de juros de mora, sendo que a ATA reclamou créditos de capital no montante de €271.851,62 (de capital) e a Segurança Social no montante de €567.761,61 (a título de contribuições; montante de capital) (cfr. lista de credores constante de fls. 6 verso e ss. do apenso B).
6. Os referidos créditos foram reconhecidos por sentença, já transitada, proferida no apenso B.
7. Existem dívidas da insolvente à Segurança Social desde Março de 2006.
8. As referidas dividas à Segurança Social são de constituição ininterrupta entre Maio de 2010 a Fevereiro de 2018 (cfr. documentos que constam de fls. 52 a 55 cujo teor se dá aqui por reproduzido e integrado para os devidos e legais efeitos).
9. A sociedade insolvente não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017 (cfr. certidão permanente de fls. 82 e ss. do processo de insolvência, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
10. Na declaração Anual de IES relativa ao exercício de 2016, foram declarados os seguintes valores:
a) Inventários: Euros 253.150,26.
11. De acordo com tal declaração, o referido valor de Inventário era composto por:
a) Matérias-primas, subsidiárias e de consumo: €uros 13.114,07;
b) Produtos acabados e intermédios: €uros 240.036,19.
12. No ano de 2016 a insolvente emitiu as seguintes facturas:

13. No ano de 2017 não se encontra registada na Autoridade Tributária a emissão de qualquer factura por parte da insolvente.
14. No ano de 2018 não se encontra registada na Autoridade Tributária a emissão de qualquer factura por parte da insolvente.
15. Também na informação contabilística relativa ao exercício de 2017 – balancete relativo ao período das regularizações de fls. 41 verso e ss. – não consta qualquer valor quanto a vendas e/ou prestação de serviços.
16. Na informação contabilística relativa ao exercício de 2018 (até Março) – balancete relativo a Março – não consta qualquer valor quanto a vendas e/ou prestação de serviços.
17. De entre os activos apreendidos para a massa insolvente não constam nem matérias-primas, subsidiárias e de consumo, nem produtos acabados e intermédios.
18. Inexistem registos contabilísticos sobre o destino ou utilização que foi dado a estas existências.
19. Desde Agosto de 2016 que a insolvente manteve a sua normal actividade, com os seus trabalhadores a continuarem a trabalhar.
20. À data da declaração de insolvência a sociedade tinha ao seu serviço 25 trabalhadores.
21. O resultado da laboração da insolvente desde Agosto de 2016 foi vendido a terceiros ou,
22. …entregue a terceiros no âmbito de contratos de prestação de serviços nas situações em que as matérias primas eram fornecidas pelas entidades a quem a insolvente prestava serviços.
23. No presente processo encontram-se apreendidos bens a que foi atribuído, nos autos de apreensão, o valor global de €25.330 (cfr. autos de apreensão de fls. 3 a 4 e 8 e ss. do apenso A).
24. Desde Agosto de 2016 a sociedade insolvente continuou a laborar e a consumir matérias-primas pela força do trabalho dos seus trabalhadores.
25. A insolvente encontra-se numa relação de dependência funcional e comercial com a sociedade E…, S.A., partilhando a mesma sede social.
26. O órgão social de administração de ambas as empresas é composto pela mesma pessoa: o Exmo. Sr. B….
27. As despesas com a renda, luz e resíduos sólidos da insolvente eram suportadas pela E…, S.A..
28. A sociedade insolvente desde o ano de 2016 até ao seu encerramento encontrou-se sempre a laborar.
29. À data da declaração de insolvência encontravam-se vencidos e não pagos os vencimentos dos trabalhadores dos meses de Março e Abril de 2018.
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Não se provaram quaisquer factos diferentes e/ou contrários dos que foram dados como provados, designadamente, que:
a) As existências identificadas em 17. e 18. não foram vendidas ou consumidas.
b) Os trabalhadores da insolvente continuaram a trabalhar em exclusivo beneficio da sociedade E…, S.A..
c) O exercício da actividade da insolvente desde Agosto de 2016 foi feito em beneficio exclusivo da sociedade E…, S.A..
d) O custo dos vencimentos dos trabalhadores da insolvente desde Agosto de 2016 foi pago pela sociedade E…, S.A..
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
IExtemporaneidade da apresentação do requerimento de qualificação da insolvência
O art. 188º, nº 1 do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estatui o seguinte:
«Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes
No caso dos autos realizou-se assembleia para apreciação do relatório no dia 24.5.2018 e o Sr. Administrador da Insolvência, em 8.6.2018, apresentou requerimento para os efeitos do art. 188º, nº 1 do CIRE, no qual se pronunciou no sentido de ser aberto incidente de qualificação da insolvência, mas sem ter indicado as pessoas que deviam ser afetadas pela insolvência.
Por esse motivo, no dia 11.6.2018 o Mmº Juiz “a quo” ordenou a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para em complemento do parecer apresentado indicar as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação.
Sucede que o Sr. Administrador da Insolvência não deu cumprimento ao ordenado neste despacho no prazo de dez dias, e apenas o viria a fazer no dia 2.7.2018 depois de nova notificação judicial para o efeito e agora sob cominação de aplicação de multa por falta de colaboração com o tribunal.
Ou seja, segundo entende o recorrente o Sr. Administrador da Insolvência só cumpriu com o ordenado 25 dias após o termo do prazo assinalado no art. 188º, nº 1 do CIRE, de tal forma que o incidente de qualificação da insolvência deveria ter sido liminarmente indeferido por extemporaneidade.
Vejamos então se lhe assiste razão.
Reportando-se ao nº 1 do art. 188º do CIRE escrevem o seguinte Carvalho Fernandes e João Labareda (“CIRE Anotado”, Quid Iuris, 2ª ed., págs. 726/727) na anotação 8 a este artigo:
“Uma vez que é de uma faculdade conferida aos interessados que o n.º 1 trata pode dar-se o caso de não haver qualquer alegação de nenhum interessado.
Mas pode suceder que o incidente de qualificação já tenha sido aberto na sentença declaratória e, se assim for, seguem-se naturalmente os termos dos n.ºs 3 e seguintes.
Na outra hipótese, será normal que o juiz, em face do silêncio dos interessados, nada despache, situação em que a insolvência se haverá necessariamente como fortuita.
É, porém, de crer que, apesar da falta de alegações, o juiz possa, por sua própria iniciativa, e desde que o processo contenha elementos suficientes para a suportar, decidir a abertura.
Concorrem para esta asserção, as seguintes razões.
Desde logo, se o juiz pode, numa fase precoce do processo – momento da declaração da insolvência –, optar por abrir o incidente, não se vê porque recusar esse poder no quadro do art.º 188º, numa altura em que, a própria marcha possa ter revelado factos significativos – e até com valor próprio e autónomo, como sucede com o previsto no art.º 83º, n.º 3 – e indiciadores da culpa, que nem sequer eram facilmente percetíveis àquela primeira data.
De resto, como ficou dito, dispondo agora o juiz de uma segunda oportunidade para avaliar a situação, em conformidade com a disciplina do n.º 1 deste art.º 188º, normal será que prescinda de decidir logo na primeira, pelo que limitar o seu poder de abertura do incidente à alegação de interessados pode até ter um efeito perverso.
Por outro lado, é indiscutível, à vista da parte final do n.º 1, que o juiz não tem de seguir o entendimento manifestado nas alegações dos interessados, podendo, sem dúvida, decidir pela não abertura do incidente apesar do que for sugerido e requerido. Não se vê nenhum motivo sério para que essa liberdade só ocorra quando o resultado seja favorável aos potenciais afetados pela qualificação da insolvência. É que a questão da qualificação não é, nem pode ser, considerada como algo que se situa no estrito âmbito dos interesses particulares e, nessa medida, no âmbito da disponibilidade.
Acresce que (…), o legislador alterou o atual n.º 5 – anterior n.º 4 – no sentido de, mesmo coincidindo os pareceres do administrador e do Ministério Publico na proposta da qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal não ficar vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.
Ora, se bem avaliarmos, o poder de, mesmo nessa situação particular, mandar prosseguir o incidente justifica, só por si, que não fique também vinculado a não abrir o incidente quando ninguém alegou nada.
Finalmente, não pode deixar de se ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no art. 11.º.”
Concordando-se com esta posição doutrinária, é de concluir que o prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo perentório, mas meramente ordenador ou regulador.
Conforme se afirma no Acórdão da Relação de Guimarães de 15.3.2018 (proc. 253/16.2 T8VNF-D.G1, relator António Barroca Penha, disponível in www.dgsi.pt), se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar “ex officio” a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não se vislumbra, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1 do CIRE.
Assim, para quem sustente o entendimento de que este prazo é meramente ordenador, a questão que se mostra colocada pelo recorrente no sentido da extemporaneidade do requerimento de qualificação da insolvência formulado pelo Sr. Administrador não pode alcançar qualquer acolhimento, uma vez que este requerimento poderá ser apresentado para lá daquele prazo.[1]
Contudo, não se ignora a existência de jurisprudência que defende o contrário, ou seja, que o prazo aludido no art. 188º, n.º 1, do CIRE, por se tratar de um prazo de “iniciativa processual”, quando o incidente de qualificação de insolvência ainda não foi determinado oficiosamente pelo tribunal na sentença que decretou a insolvência, deverá antes ser considerado um prazo perentório.[2]
Mas, mesmo em face desta corrente, não pode no caso dos autos o requerimento apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência com vista à abertura do incidente de qualificação ser havido como intempestivo.
Com efeito, este requerimento foi apresentado dentro dos 15 dias posteriores à assembleia de apreciação do relatório, embora dele não tivesse constado a identificação da pessoa ou pessoas que deveriam ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, tal como prescreve o dito art. 188º, nº 1.
Essa omissão levou o Mmº Juiz “a quo” a, por despacho de 11.6.2018, ordenar a notificação do Sr. Administrador de Insolvência para, em complemento do parecer apresentado no sentido da qualificação da insolvência como culposa, indicar a(s) pessoa(s) que deva(m) ser afetada(s) pela qualificação.
Acontece que no prazo supletivo legal - 10 dias - o Sr. Administrador da Insolvência não complementou o seu requerimento, só o tendo feito em momento posterior.
Todavia, conforme entendeu o Mmº Juiz “a quo”, o facto de tal indicação não ter sido feita no prazo concedido para o efeito não constitui qualquer nulidade.
É que não se pode descurar que, ainda que se siga a tese da perentoriedade do prazo previsto no art. 188º, nº 1 do CIRE, o essencial no âmbito deste preceito é a apresentação de requerimento com vista à qualificação da insolvência no prazo de 15 dias, sendo que a lei não estabelece qualquer sanção para a circunstância de o Sr. Administrador da Insolvência não indicar expressamente as pessoas que devam ser afetadas por essa qualificação.
Aliás, mesmo que o Sr. Administrador da Insolvência não indicasse qualquer pessoa que pudesse vir a ser afetada pela qualificação de insolvência como culposa, pode o Ministério Público, nos termos do disposto no art. 188.º, n.º 4 do CIRE, pronunciar-se no sentido da afetação.
E, no sistema vigente, ainda que nenhum credor, nem o Administrador de Insolvência, nem o Min. Público tenham indicado expressamente a pessoa que possa vir eventualmente a ser afetada pela qualificação de insolvência, nem por isso o juiz deve deixar de ordenar a citação das pessoas que em seu entender possam ser afetadas pela qualificação como culposa.
É que o art. 188.º, n.º 6 do CIRE determina que, caso não qualifique a insolvência como fortuita, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação de insolvência como culposa, para que se oponham.
Resta, pois, concluir, em sintonia com a 1ª Instância, que não foi cometida qualquer nulidade e que o requerimento apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência nos termos do art. 188º, nº 1 do CIRE se mostra tempestivo, como tempestiva se mostra a posterior indicação das pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência.
Improcede assim, neste segmento, o recurso interposto.
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IIImpugnação da matéria de facto
O recorrente insurgiu-se também contra a matéria de facto provada e não provada, pretendendo que seja dado como provado que as existências identificadas em 17. e 18. foram consumidas pelo trabalho e como não provado que foram vendidas.
Os nºs 17 e 18 têm a seguinte redação:
“17. De entre os activos apreendidos para a massa insolvente não constam nem matérias-primas, subsidiárias e de consumo, nem produtos acabados e intermédios.
18. Inexistem registos contabilísticos sobre o destino ou utilização que foi dado a estas existências.”
No sentido das alterações pretendidas indicou excertos dos depoimentos prestados pelo Sr. Administrador da Insolvência e pela testemunha D….
Procedemos assim à audição integral destes depoimentos.
O Sr. Administrador da Insolvência, F…, disse que a contabilidade da sociedade evidenciava no final de 2016 um stock de matérias-primas, subsidiárias e de consumo, bem como produtos acabados e intermédios em valor ligeiramente superior a 250.000,00€. Contabilisticamente esse valor vai-se mantendo, mas essa mesma contabilidade não evidencia que a sociedade a partir de Agosto de 2016 tenha realizado vendas ou prestado serviços, onde possa ter utilizado ou consumido esse stock, sendo certo que à data da apreensão dos bens na sua sede não foram apreendidos bens que pudessem ser qualificados como produtos acabados ou matérias-primas, nem se consegue justificar qual o destino dado a esses bens. Mais referiu que a partir de Agosto de 2016 não há qualquer registo de vendas ou de prestação de serviços, mas, no entanto, manteve ao seu serviço cerca de 25 trabalhadores até à data da insolvência. Sucede que nessa altura a sociedade trabalhava em exclusivo para uma outra sociedade – a “E…” -, tendo realçado que no período em causa apenas ficaram em atraso os salários dos trabalhadores relativos aos meses de Março e Abril de 2018. Porém, de Agosto de 2016 até à data da insolvência contabilisticamente a sociedade não tem proveitos. Em 2017 apenas regista custos com pessoal. Disse também que não sabe qual a relação de bens da sociedade, tendo, porém, informação do contabilista no sentido de que houve supostas vendas que não foram faturadas. Referiu ainda que a insolvente se apresentou no âmbito de um PER em Abril de 2015 com chamamento dos credores para negociarem um plano que foi aprovado e homologado.
A testemunha G… trabalhou para a sociedade insolvente entre Junho de 2013 e a data do seu encerramento. Disse que quando se deu a insolvência estavam há 3 ou 4 semanas em casa. Quando chegou à empresa havia lá stock, que se foi gastando na fábrica. Depois foi-se apercebendo de que trabalhavam mais à base de mão-de-obra e o material vinha de outras fábricas. A empresa era gerida na base da confiança. O Sr. B… trabalhava com os empregados e era o primeiro a entrar e o último a sair. Os seus salários foram pagos exceto os últimos dois meses. Nos últimos 2 ou 3 anos trabalharam a maior parte o tempo para terceiros e não fizeram novas compras, Faziam algum stock do material que havia lá. Nunca ouviu falar da “E…”. Quando a insolvente fazia fabrico próprio utilizava-se o material que havia em stock; quando era de terceiros o material vinha de outras fábricas. Disse ainda que nos últimos tempos a maior parte das vezes a insolvente só prestava mão-de-obra, sendo a matéria-prima de terceiros, a quem o produto era depois entregue.
O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil estabelece que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
Na declaração anual de IES, relativa ao exercício de 2016, consta que a insolvente tinha matérias-primas, subsidiárias e de consumo, no valor de 13.114,07€ e produtos acabados e intermédios, no valor de 240.036,19€ - cfr. nºs 10 e 11.
Porém, entre os ativos apreendidos para a massa insolvente não constam nem matérias-primas, subsidiárias e de consumo, nem produtos acabados e intermédios, tal como inexistem registos contabilísticos sobre o destino ou utilização que foi dado a essas existências – cfr. nºs 17 e 18.
Sucede que da prova produzida, e em particular dos depoimentos prestados pelo Administrador da Insolvência e pela testemunha G…, que atrás se deixaram sintetizados, não se pode extrair com certeza qual o destino que foi dado pela insolvente àquelas existências.
Com efeito, se da contabilidade da insolvente não resulta, como devia, o destino dado às existências, não pode ser o depoimento da testemunha G…, só por si, a permitir dar como assente que as mesmas foram consumidas pela força do trabalho, conforme pretende o recorrente.
Por conseguinte, no que tange ao segmento factual impugnado não se dissente da convicção probatória da 1ª Instância, razão pela qual se mantém nos seus precisos termos a matéria de facto – provada e não provada -, assim improcedendo, também nesta parte, o recurso interposto.
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III - Qualificação da insolvência como culposa
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, podendo esta ser qualificada como culposa ou fortuita – cfr. arts. 3º, nº 1 e 185º do CIRE.
O art. 186.º, n.º 1 do CIRE estabelece que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência
Depois, os nºs 2 e 3, do mesmo preceito legal estatuem o seguinte:
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188º.
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
Referindo-se ao art. 186º, nº 2 do CIRE, Menezes Leitão (in “Direito da Insolvência”, 3ª ed., págs. 284/5) escreve que este contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais.”
Tais factos vêm descritos na enumeração do nº 2 do art. 186º e verificados algum ou alguns deles, o juiz terá que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. E prosseguindo, escreve Menezes Leitão (ob. e loc. cit.): “A lei institui … no art. 186º, nº 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.
Já no que concerne ao art. 186º, nº 3 diz-nos o mesmo Professor (ob. cit., pág. 285) que este contem “uma presunção juris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submetê-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial. Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porém, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efectivamente, o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.”
Por seu turno, Carvalho Fernandes e João Labareda (in “CIRE Anotado”, 2ª ed., págs. 719/720)[3] relativamente ao art. 186º, nº 2 perfilham também o entendimento que neste preceito se consagra uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, que não admite prova em contrário (art. 350º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil) e quanto ao seu nº 3 consideram igualmente que a presunção aí prevista é juris tantum, podendo assim ser ilidida nos termos da primeira parte do nº 2 do art. 350º do Cód. Civil.
É também este o entendimento que tem sido seguido pela grande maioria da nossa jurisprudência conforme se alcança, por exemplo, dos seguintes acórdãos: Rel. Porto de 18.6.2007, p. 0730992, relator Pinto de Almeida; Rel. Porto de 3.3.2009, p. 0827686, relator Pinto dos Santos; Rel. Coimbra de 19.1.2010, p. 132/08.7 TBOFR-E.C1, relator Isaías Pádua; Rel. Guimarães de 29.6.2010, p. 1965/07.7 TBFAF-A.G1, relatora Rosa Tching; Rel. Lisboa de 10.5.2011, p. 1166/08.7 TYLSB.B.L1-7, relator Roque Nogueira; Rel. Porto de 27.2.2014, p. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, relator Leonel Serôdio; Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8 TBOAZ-C.P1, relatora Ana Paula Amorim e Rel. Porto de 1.6.2017, proc. 35/16.1 T8AMT-A.P1, relator Filipe Caroço, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Em sentido contrário, defendendo posição claramente minoritária, que não perfilhamos, referimos o Acórdão da Relação do Porto de 10.2.2011 (p. 1283/07.0 TJPRT-AG.P1, relator Freitas Vieira, disponível in www.dgsi.pt.), em cujo sumário se escreveu: “A mera alegação de alguma das situações descritas nos nºs 2 e 3 do art. 186º do CIRE não é suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, exigindo-se, ainda, a alegação e prova do nexo de causalidade entre a actuação ali presumida e a situação de insolvência nos termos previstos nonº 1 do mesmo artigo.”
Assim, em concordância com a orientação que doutrinal e jurisprudencialmente se mostra quase unânime, entendemos que:
i) no art. 186º, nº 2 prevê-se uma presunção juris et de jure de insolvência culposa; a lei consagra aqui uma presunção de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo admitida a produção de prova em contrário;
ii) no art. 186º, nº 3 prevê-se uma presunção ilidível de culpa grave, sendo ainda necessário que fique demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento das obrigações aí previstas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Regressando ao caso dos autos, há então que apurar se ocorre alguma das situações previstas nos nºs 2 e 3 do art. 186º do CIRE, sendo que na decisão recorrida se consideraram verificadas as previsões da al. a) do nº 3 e da al. h) do nº 2.
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A. Incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência
No que toca à qualificação da insolvência como culposa com fundamento na al. a) do nº 3 do art. 186º sustenta o recorrente que nos autos não existem elementos factuais dos quais decorra que a insolvente, em Abril de 2015, estava sem meios financeiros que lhe permitissem cumprir as obrigações vencidas. E, mesmo que assim se entenda, considera que a não apresentação à insolvência naquela data é insuficiente para que esta se possa qualificar como culposa, uma vez que da circunstância de a insolvente se manter em incumprimento generalizado para com a Segurança Social não decorre o agravamento da sua situação de insolvência.
Acontece que, também nesta parte, não merece censura a sentença recorrida.
Com efeito, em 4.4.2015, data em que se inicia o período de três anos a que alude o art. 186º, nº 1, “in fine” do CIRE, a insolvente tinha dívidas à Segurança Social desde Março de 2006, sendo as mesmas de constituição ininterrupta entre Maio de 2010 e Fevereiro de 2018 – cfr. nºs 7 e 8 e documentos de fls. 52 a 55.
Significa isto que na referida data – 4.4.2015 – se verificava incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas referentes a contribuições e quotizações para a segurança social, o que corresponde a um dos factos-índices ou presuntivos da insolvência previstos no art. 20º do CIRE, mais concretamente na sua alínea g) ii).
E se ocorria o referido facto presuntivo da insolvência também se constata não se ter alegado nem demonstrado, com referência a essa mesma data, a solvência da “C…, Lda.”.
Ora, o devedor deve requerer a sua declaração de insolvência no prazo de 30 dias seguintes à data do conhecimento dessa situação ou à data em que devesse conhecê-la – cfr. art. 18º, nº 1 do CIRE.
Neste contexto, o sócio-gerente da “C…, Lda.”, face ao incumprimento generalizado das suas obrigações para com a Segurança Social, o qual remonta, de forma contínua, a Maio de 2010, não podia deixar de conhecer, e há muito tempo, a sua real situação de insolvência.
Por isso, terá forçosamente que se concluir que a sociedade “C…, Lda.”, através do seu gerente, não se apresentou à insolvência no prazo que tinha para o efeito previsto no art. 18º, nº 1 do CIRE, donde decorre, conforme se escreve na sentença recorrida, a verificação da presunção de culpa grave a que se refere o art. 186º, nº 3, al. a) do mesmo diploma, a qual não se mostra ilidida.
Estabelecida a ocorrência de uma situação de culpa grave (presumida e não ilidida), há, por último, que indagar se do incumprimento da obrigação de requerer a declaração de insolvência, por parte do sócio-gerente da insolvente, resultou agravamento dessa situação de insolvência.
Em consonância com o Mmº Juiz “a quo” entendemos que a resposta a esta questão não pode deixar de ser afirmativa.
É que, tomando como referência a assinalada data de 4.4.2015, verifica-se que, ininterruptamente, todos os meses, se continuaram a vencer dívidas à Segurança Social, as quais variam entre um mínimo de 5.000,82€ em Maio de 2015 e um máximo de 12.862,81€ em Julho de 2015, sendo igualmente de destacar pela sua relevância as dívidas vencidas em Dezembro de 2015 (12.839,12€) e em Julho de 2016 (12.394,31€).
Como tal, haverá que concluir que, no caso “sub judice”, se mostra demonstrada a existência de nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o agravamento desta situação, o que conduz à qualificação da insolvência como culposa nos termos do art. 186º, nºs 1 e 3, al. a) do CIRE.
Deste modo, igualmente neste segmento, improcede o recurso interposto.
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B. Incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada
Por fim, o recorrente insurge-se ainda contra a qualificação da insolvência como culposa com referência ao art. 186º, nº 2, al. h) do CIRE, sustentando que relativamente ao incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada sempre faltaria o requisito da substancialidade imposto por esta norma.
Mas também aqui não lhe assiste razão.
No que concerne a esta alínea, já atrás citada, há a salientar que «o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada é prevista, a par de outras situações que denunciam mais claramente a gravidade exigível: manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Contudo, o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada preenche por si a primeira parte da previsão da citada al. h).
Segundo Pires Cardoso, em Noções de Direito Comercial, pág. 114, (citado no Ac. Rel. Porto de 27/02/2014) “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados - lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (...).
Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (…)
Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa.”
No mesmo registo Menezes Cordeiro, em Manual de Direito Comercial, vol. I, pág. 297 e 298, escreve: “a escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante (…) Mas além disso, desde cedo se verificou que servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título:
- incentivando o comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas;
- permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.
A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado actuar, com fins de polícia, de fiscalização ou de supervisão.”
A contabilidade assume, assim, particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados.
Apesar da relevância em abstracto da contabilidade para se verificar a previsão da 1ª parte da al. h) do n.º 2 art. 186º não é suficiente qualquer deficiência, tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas e com influência na percepção que tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.
Assim, como se escreveu no Ac. da Rel. de Coimbra de 08.02.2011, Proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1, C J, Tomo I/2011, pág. 32[4], “o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.»[5]
Retornando à situação “sub judice”, constata-se que a insolvente não depositou as contas da sociedade relativamente aos anos de 2015, 2016 e 2017 – cfr. nº 9.
Por outro lado, está provado que desde Agosto de 2016 até à data da declaração de insolvência – 5.4.2018 – a insolvente, apesar de ter continuado a laborar e de ter vendido o produto da sua atividade ou de ter entregue a terceiros os bens acabados no âmbito de contratos de prestação de serviços com eles celebrados nas situações em que as matérias-primas eram por estes fornecidas, não registou contabilisticamente qualquer valor dessas vendas e/ou prestações de serviços – cfr. nºs 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 24 e 28.
Acontece que o não registo contabilístico de tais vendas/prestações de serviços, face ao período de tempo decorrido [20 meses] e ao montante do inventário constante dos registos contabilísticos no final de 2016 [253.150,26€, sendo 13.114,07€ de matérias-primas, subsidiárias e de consumo e 240.036,19€ de produtos acabados e intermédios], não pode deixar de ser havido como prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.
Conclusão que não pode deixar de ser realçada pela circunstância de nos meses anteriores compreendidos entre Janeiro e Julho de 2016 a sociedade ter registado faturas no montante global de 501.409,72€.
Por conseguinte, as irregularidades cometidas a nível da faturação, que não espelha a realidade da empresa, especialmente no que concerne às vendas efetuadas e serviços prestados entre Agosto de 2016 e a data da declaração de insolvência, não permitem aos credores, ao Administrador da Insolvência, nem sequer ao tribunal identificar o trajeto comercial da sociedade insolvente e conhecer, com precisão e clareza, a sua situação patrimonial e financeira.
Conforme se refere na sentença recorrida, que temos vindo a seguir, a contabilidade da empresa não possibilita a reconstituição da vida comercial da insolvente a partir de Agosto de 2016 e, assim, terá que se considerar que ocorreu incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter a contabilidade organizada, o que significa o preenchimento da previsão da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE e a consequente verificação de presunção, inilidível, de culpa grave na atuação da insolvente.
Como tal, afastada que está, face à argumentação expendida, a possibilidade de subsumir a situação acabada de descrever tão-somente à al. b) do nº 3 do art. 186º [incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial], impõe-se, igualmente nesta parte, a confirmação da sentença recorrida e a consequente improcedência “in totum” do recurso interposto.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso interposto por B… e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 7.5.2019
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] No sentido do prazo previsto no art. 188º, nº 1 ser meramente ordenador, para além da jurisprudência e doutrina que se mostra referenciada no texto, cfr. ainda Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª ed., pág. 286, nota 352, Ac. STJ de 13.7.2017, proc. 2037/14.3 T8VNG-E.P1.S2, relator João Camilo, Ac. Rel. Porto de 14.3.2017, proc. 2037/14.3 T8VNG-E.P1, relator José Carvalho (onde o presente relator foi primeiro adjunto), Ac. Rel. Guimarães de 30.5.2018, proc. 616/16.3 T8VNF-E.G1, relatora Eugénia Cunha, Ac. Rel. Porto de 23.2.2012, proc. 621/09.6TBOAZ.P1, relator Pinto de Almeida, Ac. Rel. Porto de 29.10.2009, proc. 10/07.7TYVNG-B.P1, relator Filipe Caroço, Ac. Rel. Guimarães de 2.6.2011, proc. 881/07.7TBVCT-U.G1, relator António Sobrinho, Ac. Rel. Guimarães de 14.11.2011, proc. 881/07.7TBVCT-S.G1, relator Manso Rainho e Ac. Rel. Porto de 9.10.2018, proc. 2928/16.7 T8AVR-A.P1, relator Estelita de Mendonça, todos disponíveis in www.dgsi.pt. [as cinco últimas decisões jurisprudenciais reportam-se ao parecer referido no atual art. 188º, nº 3 do CIRE, mas, pela sua similitude, são transponíveis para o caso dos autos].
[2] Neste sentido, cfr. Ac. Rel. Coimbra de 8.9.2015, proc. 132/13.5 TBVZL-A.C1, relatora Maria Catarina Gonçalves e Ac. Rel. Guimarães de 30.5.2018, proc. 1193/13.2 TBBGC-A.G1, relator José Amaral, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. ainda Carvalho Fernandes, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor” in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, reimpressão, 2011, pág. 262.
[4] Relator Beça Pereira.
[5] Esta citação, também feita na sentença recorrida, surge igualmente nos seguintes acórdãos: Rel. Porto de 27.2.2014, proc. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, relator Leonel Serôdio; Rel. Porto de 9.10.2018, proc. 2928/16.7 T8AVR-A.P1, relator Estelita de Mendonça; Rel. Guimarães de 12.1.2017, proc. 2253/15,0 T8GMR-A.G1, relator José Cravo, todos disponíveis in www.dgsi.pt.