Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
23259/23.0YIPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE MARTINS RIBEIRO
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
Nº do Documento: RP2024020523259/23.0YIPRT.P2
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O caso julgado é uma exceção dilatória que, entre o mais, conduz à absolvição da instância (tendo o efeito negativo de proibir a repetição de uma causa), enquanto a autoridade de caso julgado é uma exceção perentória, que conduz à absolvição do pedido (tendo o efeito positivo de vincular as partes e os tribunais a uma decisão anterior).
II – Nos contratos de prestação de serviço de fornecimento de água ou de saneamento resultantes de contrato de parceria e gestão entre o Estado e outras entidades, para prossecução do interesse público, a cessão da posição contratual do cedente não carece de comunicação ou autorização do cedido, nos termos do art.º 424.º do Código Civil, por a cessão e a sua eficácia erga omnes decorrer da lei – cujo desconhecimento não pode ser invocado, nos termos do art.º 6.º do mesmo Código.
III – Cabendo aos tribunais aplicar a Justiça em nome do Povo, o soberano Constituinte, não podem aqueles proferir uma decisão que patentemente seja chocante para o sentimento geral de Justiça e, ainda por cima, em violação de normas imperativas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 23259/23.0YIPRT.P2


SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.)

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Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.º Adjunto: Manuel Fernandes e
2.ª Adjunta: Fernanda Almeida

ACÓRDÃO

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos é autora (A.) “A... SA”, titular do N.I.F. ...84, com sede na Rua ..., ... Vila Real, e é réu (R.) AA, titular do N.I.F. ...36, residente na Rua ..., ... Santo Tirso.


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Procedemos agora a uma síntese do processado, e factual, destinada a facilitar a compreensão do objeto do presente recurso.

1) Trata-se de autos de injunção, em que a A. veio, aos 08/03/2023, pedir a condenação do R. a pagar o total de 99,41 Euros, sendo: “capital: €98,54; juros de mora: €0,87 à taxa de: 4,00%, desde 20/10/2022” e até pagamento, invocando um contrato de prestação de serviço, saneamento, nos precisos termos constantes do requerimento inicial.


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2) Aos 0405/04/2023 o R. apresentou oposição, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Nas várias exceções que deduziu, insere-se a dilatória de caso julgado (in casu, material), nos termos do artigo (art.º) 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (C.P.C.) e do art.º 577.º, al. i), do C.P.C., tal como a perentória de autoridade de caso julgado, nos termos do art.º 576.º, n.º 3, do C.P.C., porquanto noutro processo em que as partes eram as mesmas (Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 1, processo n.º 2620/19.0YIPRT), ainda que respeitante a outros momentos (períodos de tempo, faturas), o R. foi absolvido do pedido, por inexistência de um contrato entre as partes.

3) No dia 25/06/2023 (depois de exercido o contraditório quanto às invocadas exceções) foi proferido o despacho saneador (cujo teor damos por reproduzido), em que o tribunal a quo julgou improcedentes as exceções invocadas, designadamente, a excepção de autoridade de caso julgado (e da ilegitimidade ativa substancial fundada na falta de contrato entre a autora e ré.

4) No dia 24/10/2023 (em que se realizou a audiência de julgamento com produção de prova testemunhal e alegações orais) viria a ser proferida sentença (cujo teor damos integralmente por reproduzido) em que o R. foi condenado no pedido, tendo a ação sido julgada totalmente procedente.

5) O R. interpôs recurso aos 22/11/2023 no atinente à configurada violação da autoridade de caso julgado.

Das alegações constam as seguintes conclusões:

A- A douta sentença não se fundamentou correctamente nos factos alegados e dados como provados e não provados, estando arredada do melhor direito aplicável.

B- Resulta claramente dos documentos 1,2,3 juntos pela requerida, e não impugnados , nem contraditados pela requerente de que o objecto da presente acção foi já decidido por sentença transitada em julgado em 18/09/2021 no âmbito de uma injunção/acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a qual correu termos no proc. Nº 2620/19.0 YIPRT do Juizo Local Cível de Santo Tirso-Juiz 1, em que a causa de pedir ali alegada corresponde essencialmente á da presente causa, o suposto contrato de fornecimento de bens ou serviços feito em 27/03/1997.

C- O objecto da presente acção e o do Proc. 2620/19.0YIPRT tem por verificada, além da identidade de sujeitos e da causa de pedir, a coincidência das respectivas pretensões na parte em que versam sobre o alicerçado no mesmo contrato.

D- Atendendo a que a anterior acção foi totalmente julgada improcedente por o R. não ter celebrado qualquer contrato com a A. e que tendo havido cessão da posição contratual a mesma não foi consentida pelo recorrente, pelo que consequentemente não está obrigado ao pagamento do serviço, devendo ser considerado o efeito de autoridade de caso julgado por na presente acção o valor peticionado radica precisamente na mesma causa de pedir/facto jurídico a existência e celebração de um eventual contrato de prestação de serviços datado de 27/03/1997.

E- A autoridade de caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejucialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial da segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

F- No caso em apreço o pedido formulado na presente acção contra o requerido funda-se além do mais também no mesmo facto jurídico/contrato de prestação de serviços, com a mesma data, e dado como não provado na anterior acção. Temos por assente que a decisão absolutória do pedido proferida na acção anterior traduz-se em decisão de questão fundamental que constitui precedente lógico indiscutível da peticionada extensão do serviço de saneamento anteriormente invocado e negado o direito ao seu pagamento.

G- Nessa medida não pode deixar de se considerar o efeito de autoridade de caso julgado material decorrente da decisão absolutória proferida na acção nº 2620/19.0YIPRT, como radical e substantivamente impeditivo da procedência da pretensão deduzida na presente acção, pese embora a não coincidência integral do petitório formulados nas duas acções.

H- Acresce ainda que em parte alguma da sentença ora posta em crise   a referencia ao dito contrato que a A. diz ter celebrado com o R., porque efectivamente ele não existiu, nada dos autos e da sentença resulta qualquer vinculo contratual entre A. E R., e só pela constatação deste facto impunha-se a absolvição da R. do pedido.

I- E mais, não existindo contrato a pretensão da A. não se reporta a uma obrigação pecuniária emergente de contrato, logo não se enquadra nos limites e finalidades legalmente definidos para a providencia de injunção,  daí o requerimento inicial ser inepto por força do Artº 186º do C.P.C.

J- Aínda outra nossa discordância quanto á sentença diz respeito ao facto de ter sido ado como não provado que a A. tivesse enviado mensalmente para o R. as facturas e respectiva cobrança, aludidas no requerimento de injunção, e tal impunha-se como obrigatório nos termos do Artº 63º do DL. 194/2009 de 20 de Agosto.

K- Foram assim violados entre outros o Artº 63º do DL 194/2009, ARTºs 186º,580º, 619ºe 621º do C.P.C.”.

6) A A., no dia 13/12/2023, apresentou contra-alegações, concluindo pela total improcedência do recurso.

7) No dia 16/12/2023, foi proferido o despacho a admitir o requerimento de interposição de recurso.


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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).

Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.


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II – FUNDAMENTAÇÃO

Os factos

A matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida é a seguinte([1]):

“Factos Provados:

A. A A..., S.A. é uma sociedade anónima que presta serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, constituída pelo Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 72/2016, de 4 de novembro, a qual sucedeu nos direitos e obrigações das sociedades extintas, “B..., S.A.” e “C..., S.A.”, sem necessidade de qualquer formalidade, de forma plenamente eficaz e oponível a terceiros, a partir da sua data de entrada em vigor, ou seja, a partir do dia 30 de junho de 2015, nos termos dos n.ºs 3 e 4, do artigo 4.º do referido diploma legal.

B. Através de um Contrato de Parceria celebrado em 5 de julho de 2013 entre o Estado Português e os municípios de Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto, Cinfães, Fafe, Santo Tirso e Trofa, foi criado o Sistema de Águas da Região do Noroeste que agregou os respetivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público (com exceção dos municípios de Fafe, Santo Tirso e Trofa) e de saneamento de águas residuais urbanas. Em virtude do Contrato de Gestão da Parceria celebrado em 26 de julho de 2013, foi atribuída à aqui Requerente a gestão e exploração do Sistema de Águas da Região do Noroeste.

C. A gestão dos serviços municipais é uma atribuição dos municípios, sendo que, por opção destes, é a Requerente que, em regime de parceria, gere e explora os serviços públicos de abastecimento de água para o consumo público e saneamento de águas residuais urbanas, assim como outros serviços decorrentes destas atividades, aos utilizadores finais nos municípios de Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto e Cinfães. No que concerne aos Municípios de Fafe, Santo Tirso e Trofa, estes agregam exclusivamente os sistemas municipais de saneamento de águas residuais, nos termos da Cláusula 1.ª, n.º 5 do Contrato de Parceria e do disposto no n.º 8, da cláusula 4.ª Contrato de Gestão.

D. No exercício da sua atividade e no âmbito da relação contratual aqui subjacente, a Requerente prestou serviços ao Requerido, e, consequentemente, foram-lhe emitidas as seguintes faturas:

FT 202210813229, de 22.81 EUR+juros de 20.10.2022 a 07.03.2023 (0.35);

FT 202210908515, de 18.62 EUR+juros de 22.11.2022 a 07.03.2023 (0.22);

FT 202310082294, de 17.64 EUR+juros de 17.02.2023 a 07.03.2023 (0.04);

FT 202211092776, de 20.01 EUR+juros de 20.01.2023 a 07.03.2023 (0.10) e

FT 202210995720, de 19.46 EUR+juros de 22.12.2022 a 07.03.2023 (0.16).

E. Não obstante se encontrar interpelado para pagar, o Requerido não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, sendo que o mesmo não procedeu à devolução das faturas.

Factos Não Provados:

Nenhuns com relevância para o objeto do litígio, designadamente que o requerido procedeu ao pagamento das faturas reclamadas”.

O Direito([2])

Temos que a questão (e não razões ou argumentos) a decidir([3]) é se a sentença recorrida ofendeu o caso julgado (tendo em conta o decidido no processo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 1, processo n.º 2620/19.0YIPRT) na sua dupla vertente: de exceção dilatória ou de exceção perentória (esta enquanto autoridade de caso julgado).

Comecemos então pelas noções fundamentais relevantes.

Segundo o disposto no art.º 628.º do Código de Processo Civil (C.P.C.), “[a] decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Como, entre outros, explicam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “[d]iz-se que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da decisão constitui assim a pedra de toque do caso julgado([4]).

O conceito de caso julgado abrange duas vertentes, a do caso julgado formal (ou externo, relativo a questões de caráter processual, tendo força obrigatória apenas no próprio processo) e a do caso julgado material (ou substancial ou interno, “referente à relação material em litígio. [O] caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada” ([5])).

O caso julgado é uma exceção dilatória (que, nos termos do art.º 576.º, n.º 2, do C.P.C., obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa ao tribunal competente), como referimos já, enunciada no art.º, 577.º, al. i), do C.P.C., sendo de conhecimento oficioso, art.º 578.º do C.P.C., assentando na repetição de uma causa – que o art.º 581.º, n.º 1, do C.P.C. define como “uma ação idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”, constando do n.º 2 que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, do n.º 3 a noção de identidade do pedido, “quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e, do n.º 4, a de causa de pedir, “quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”.

Tal como os referidos autores realçam, “[é] através desta tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado. [Para] haver caso julgado é necessário que haja repetição da causa. E a repetição da causa pressupõe, além da identidade dos sujeitos, a identidade do pedido e também da causa de pedir. A teoria da substanciação [seguida na lei portuguesa] exige sempre a indicação do título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor. [O] caso julgado forma-

-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo [autor]. É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado. A força do caso julgado cobre apenas a resposta a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta”([6]).

Assim, continuam, “[a] força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final. [Da] orientação assim fixada na lei duas conclusões práticas muito importantes se podem extrair: 1.ª – Sendo certo que o caso julgado apenas abrange a resposta dada pelo Estado à pretensão do autor (ou do réu, no caso especial da reconvenção), revestirá sempre o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final; –Pode haver – e haverá na comum das sentenças – muitos julgamentos, quer sobre a matéria de facto, quer sobre questões de direito que, por não estarem contidos na decisão final, embora integrem os seus fundamentos, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado”([7]).

De especial relevância para o caso, uma última clarificação feita por estes autores: “[e]xclusão das relações jurídicas prejudiciais, das excepções e das qualificações jurídicas aceites na sentença. As reservas formuladas quanto à eficácia do caso julgado sobre os factos subjacentes à decisão procedem de igual modo, mutatis mutandis, quanto às relações jurídicas prejudiciais, quanto às excepções reconhecidas ou negadas e quanto às qualificações jurídicas aceites nos fundamentos da decisão. [A] regra a que as soluções sustentadas se deixam reconduzir é a de que o caso julgado não cobre os motivos [(fundamentos)] da sentença, cingindo-se apenas à decisão contida na sua parte final”([8]).

Posto isto, tendo em conta as diferentes causas de pedir e de pedidos (desde logo, e sucintamente, diferentes períodos de prestação de um serviço que deram origem a diferentes faturas, sendo que nos autos anteriores o período de faturação era o de maio de 2018 a janeiro de 2019, sendo o pedido global de 132,55 Euros, e nestes o período de faturação é de outubro de 2022 a março de 2023, sendo o pedido inicial de 99,41 Euros), desde logo concluímos não poder verificar-se a exceção dilatória de caso julgado.

Prossigamos agora com a noção de exceção perentória que, segundo o disposto no art.º 576.º, n.º 3, do C.P.C., é a que importa “a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor”.

O recorrente invoca a figura da autoridade de caso julgado, que é uma exceção perentória, como afirmámos já, tal como, entre outros, inequivocamente afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 10/05/2023, relatado por Mário Belo Morgado, proferido no processo 7473/21.6T8PRT.P1.S2([9]), cujo ponto II do sumário transcrevemos: “[a]o contrário da exceção dilatória de caso julgado, cuja procedência implica a absolvição da instância [arts. 278.º, n.º 1, e), e 576.º, n.º 2, do CPC], a exceção de autoridade do caso julgado é uma exceção perentória, importando, por isso, a absolvição do pedido, nos termos do art. 576º, nº 3, do mesmo diploma”.

Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “[v]em surgindo com alguma frequência em arestos dos diversos tribunais o recurso à figura da «autoridade do caso julgado» (ou efeito positivo do caso julgado), com vista a extrair de algumas decisões o mesmo efeito impeditivo que emerge da verificação da exceção dilatória de caso julgado. [Em] STJ 8-11-18, 478/08, decidiu-se que tal figura pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos que se apresenta como pressuposto indiscutível do efeito jurídico da decisão posterior. [Para Lebre de Freitas e Isabel Alexandre] a autoridade de caso julgado que emerge da sentença que transitou em julgado e a exceção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica: «pela exceção visa-se o efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida». [Se] o objecto de processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objetos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado”([10]).

Temos reservas quanto a este entendimento, pois que falando-se em prejudicialidade haverá que clarificar a sua força negativa, no sentido de a decisão anterior constituir per se uma realidade impeditiva, modificativa ou extintiva (ou seja, traduzir uma autêntica exceção perentória) do direito que se pretenderia fazer valer na segunda ação – o que determinaria então a inadmissibilidade desta.

Ora, e numa linha algo diferente, com a qual mais concordamos, “[j]á [Teixeira de Sousa] defende que «a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão [jurisdicional] contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão [anterior], quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada»”([11]).

Continuando a citação, desta vez reportada à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,  “respeitada a identidade dos [sujeitos], a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art.º 581.º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmos sujeitos”([12]) ([13]).

Ora, aqui chegados, e sem prejuízo do que ainda diremos, é evidente que a decisão anterior não se impõe nestes autos como autoridade de caso julgado, pois independentemente de a tal possibilidade não obstar a falta da tripla identidade inerente à exceção (pois que entre a anterior ação e esta apenas se verifica a identidade de sujeitos), o relevante é que não existe qualquer relação de prejudicialidade negativa ou obstaculizante, decorrente da decisão anterior, do conhecimento do mérito nesta ação, pois que esta não a vai contrariar em sentido próprio (na medida em que está em causa uma estrita operação de interpretação e aplicação do Direito a factos, ainda para mais distintos, que, logicamente, não é vinculativa) nem, certamente, a irá repetir([14]).

O recorrente coloca a enfâse nos factos de não ter celebrado qualquer contrato com a ora recorrida e de esta não lhe ter comunicado a cessão da posição contratual e de esta não ter sido autorizada (“de não ter sido ouvido”) – como, aliás, confessado pela recorrida.

No entanto, importa que se tire uma ilação do que o próprio recorrente alega: se invoca que não lhe foi comunicada qualquer cessão da posição contratual, confessa que era parte num contrato por si outorgado, no caso de prestação de serviço de saneamento – que terá celebrado com o Município ... antes de 2015, em data não concretamente apurada.

Teçamos agora alguns considerandos sobre o instituto da cessão da posição contratual. Segundo o disposto no art.º 424.º, n.º 1, do Código Civil (C.C.), “[n]o contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”, acrescentando o art.º 425.º do C.C. que “[a] forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios de vontade e as relações entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão”.

Como explica Almeida Costa, a cessão da posição contratual consiste “na faculdade concedida a qualquer dos contraentes (cedente), em contratos com prestações recíprocas, de transmitir a sua inteira posição contratual, isto é, o complexo unitário constituído pelos créditos e dívidas que para ele resultarem do contrato, a um terceiro (cessionário), desde que o outro contraente (cedido) consinta na [transmissão]. [E]xige-se que se trate de um contrato bilateral, quer dizer, de que advenham direitos e obrigações para ambas as [partes]. [C]onstitui ainda requisito legal o consentimento do outro contraente. [Decorre] do exposto, neste instituto, intervêm dois contratos distintos: o contrato inicial ou básico, celebrado originariamente entre o cedente e o cedido, de onde resulta o complexo de direitos e deveres que constitui o objecto da cessão; e o contrato através do qual se opera a cessão (negócio causal), que pode consistir numa venda, doação, dação em cumprimento, etc. Tratando-se de um negócio de causa variável, o respectivo regime diferirá consoante o tipo de contrato que a realiza”([15]).

Do até aqui referido resulta então que o contrato inicial ou básico, outorgado entre o recorrente (cedido) e o Município ... foi objeto de uma cessão (negócio causal) entre o prestador de serviço de saneamento inicial e a ora recorrida (cessionária). Resulta igualmente que tal cessão não foi comunicada ao cedido ou por ele autorizada.

A questão seguinte é então a de sabermos se tal é relevante ou não.

Dispõe o art.º 1.º do C.C. que “[s]ão fontes imediatas do direito as [leis]([16])”. A lei é, inequivocamente, uma das fontes das obrigações, do que são mero exemplo, as tributárias.

Como clarifica Almeida Costa, “não parece menos exacto que, em certos casos, é a existência de uma declaração de vontade negocial que determina directa ou imediatamente o nascimento da obrigação – as hipóteses dos contratos e dos negócios unilaterais. Enquanto, noutros casos, o surgimento da obrigação não depende de qualquer manifestação de vontade negocial. É a lei, então, que, que directa ou imediatamente deriva o vínculo obrigacional numa determinada situação, sem que se cuide, para tanto, da vontade dos intervenientes([17]).

Ora, como resulta do regime legal aplicável ao caso dos autos, a cessão em causa não está sujeita ao regime do art.º 424.º do C.C., porquanto o regime da mesma foi objeto de diferentes atos normativos, os instrumentos legais referidos nos factos provados, mormente o Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de maio([18]), na redação em vigor, conferida pelo Decreto-Lei (D.L.) n.º 72/2016, de 04 de novembro([19]), que criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, constituindo a sociedade A..., S. A., à qual atribuiu a concessão da exploração e da gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, incluindo o Município ... (neste apenas quanto ao saneamento enquanto estiver em vigor o contrato de concessão relativamente ao fornecimento de água).

Segundo o disposto no art.º 4.º, n.º 1, do D.L. 93/2015, “[é] constituída a A..., S. A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, abreviadamente designada por «sociedade»”. O n.º 3 do mesmo artigo acrescenta: “[a] sociedade sucede em todos os direitos e obrigações das sociedades concessionárias referidas no número anterior, que são extintas, sem necessidade de liquidação, incluindo na titularidade de quaisquer autorizações, licenças e concessões relativas à utilização de recursos hídricos e ao exercício de atividades acessórias ou complementares e nas respetivas posições em todos os contratos vigentes, designadamente contratos de trabalho, contratos de cedência de pessoal, contratos de prestação de serviços, contratos de financiamento, contratos de cedência e de aquisição de infraestruturas, incluindo as infraestruturas do sistema integrado de despoluição do vale do Ave, o contrato de concessão para a exploração e gestão do sistema integrado de despoluição do vale do Ave celebrado com a D..., S. A., os contratos de operação e manutenção de infraestruturas, contratos de gestão dos sistemas municipais que hajam sido celebrados por essas sociedades ao abrigo do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril, e, sem prejuízo do disposto no artigo 15.º, quaisquer contratos de fornecimento e de recolha celebrados” ([20]).

Nos termos do art.º 2.º, n.º 5, do mesmo Diploma, “[s]ão também utilizadores do sistema quaisquer pessoas singulares ou coletivas, públicas ou privadas, localizadas no âmbito geográfico do [sistema], para efeitos da distribuição direta de água para consumo público ou da recolha direta de [efluentes]([21])”, acrescentando o n.º 6 que “[a] ligação dos utilizadores ao sistema é [obrigatória]([22])”.

Ou seja, a cessão da posição contratual foi operada por força da lei, ope legis, pelo que, nos termos que temos vindo a referir, não carecia de comunicação ou autorização do cedido – ao contrário do por ele defendido, inclusive com base na anterior decisão que invoca, assente em erro de julgamento por errada aplicação do direito, na medida em que não atentou no regime legal que temos vindo a referir. Acresce que o recorrente tem de estar ligado ao sistema, por ser obrigatório.

Importa também referir que o desconhecimento da lei (no caso, entre o mais, do disposto no art.º 4.º, n.º 1 e n.º 3, do D.L. 93/2015) não aproveita ao recorrente (ou a quem quer que seja), como expressamente consagrado no art.º 6.º do C.C., “[a] ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.

Uma última nota: independentemente da obrigatoriedade de ligação ao sistema (sendo que o serviço de saneamento é prestado na sua casa), seria manifestamente atentatório do conceito de Justiça (tal como definida por Ulpiano, a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito – o brocardo suum cuique tribuere, ou dar a cada um o que é seu, em que a conceção do justo integra não só a moral como também o Direito) permitir-lhe que usufruísse de um serviço sem o pagar, numa clara injustiça perante os vizinhos, que o pagarão, e demais munícipes.

Tal seria uma manifesta violação do princípio da igualdade, no seu sentido negativo (que proíbe tratamentos de privilégio ou de discriminação([23])), pois que teria um tratamento diferenciado sem motivo justificador da diferenciação – o que violaria a proibição de arbítrio (tratamento desigual, sem motivo, de situações iguais), proibição que, juntamente com a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, integram o conteúdo jurídico-constitucional do referido princípio([24]).

Como constitucionalmente consagrado no art.º 202.º, “1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”([25]).

Improcedem assim todas as conclusões do recorrente.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo recorrente e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.

Custas, incluindo da apelação, pelo recorrente, art.º 527.º, n.º 2, do C.P.C.

Porto, 05/02/2024.
Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:
Jorge Martins Ribeiro;
Manuel Domingos Fernandes
Fernanda Almeida.
____________________
[1] Negrito no original.
[2] A fundamentação nestes autos corresponde, mutatis mutandis, à constante dos autos de apelação desta Secção, com o n.º 89953/22.3YIPRT.P1, tendo o acórdão sido proferido aos 22/01/2024, em tudo semelhantes, sendo o subscritor relator em ambos.
[3] Invocando-se a ofensa de caso julgado, é sempre admissível recurso, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 2, al. a), do C.P.C. (ainda que apenas no a tal atinente) ficando, in casu, prejudicado o critério da sucumbência.
[4] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, p. 702 (itálico no original).
[5] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, p. 702 (interpolação nossa e itálico no original).
[6] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, pp. 709-7 12 (interpolação nossa e itálico no original).
[7] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, pp. 714-715 (interpolação nossa e itálico no original).
[8] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, p. 717 (interpolação nossa e itálico no original).
[9] O acórdão está acessível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/675e1de8afd106e2802589ad002aaf31?OpenDocument [26/02/2024].
[10] Cf. António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp. 798-780 (interpolação nossa e aspas no original).
[11] Apud António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, p. 800 (interpolação nossa e aspas no original; citação de bibliografia no original).
[12] Cf. António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp. 798-780 (interpolação nossa).
[13] Ainda sobre os conceitos e efeitos de caso julgado enquanto exceção ou autoridade, cf. António Santos Abrantes GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pp.52-54.
[14] Sobre a exceção e autoridade de caso julgado, cf., ainda, Rui PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Julgar online, 2018, acessível em: Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias | Julgar [26/02/2024].
[15] Cf. Mário Júlio de Almeida COSTA, Direito das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, pp. 695-697 (interpolação nossa).
[16] Interpolação nossa.
[17] Cf. Mário Júlio de Almeida COSTA, Direito das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 166 (itálico nosso).
[18] Consultável em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/93-2015-67348946 [10/01/2024].
[19] Consultável em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2606&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo= [10/01/2024].
[20] Itálico nosso.
[21] Interpolação nossa.
[22] Interpolação nossa.
[23] Cf. Jorge Martins RIBEIRO, Da Lei do Desejo ao Desejo Pela Lei. Discussão da Legalização da Prostituição Enquanto Prestação de Serviço na Ordem Jurídica Portuguesa, Lisboa, A.A.F.D.L., 2021, p. 864 (citação de bibliografia no original).
[24] Cf. Jorge Martins RIBEIRO, Da Lei do Desejo ao Desejo Pela Lei. Discussão da Legalização da Prostituição Enquanto Prestação de Serviço na Ordem Jurídica Portuguesa, Lisboa, A.A.F.D.L., 2021, p. 866 (citação de bibliografia no original).
[25] A Constituição da República Portuguesa, na redação em vigor, está acessível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=4&tabela=leis [10/01/2022].