Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
425/18.5T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PORTAGENS ELECTRÓNICAS
TAXA
RECEITAS DO ESTADO
Nº do Documento: RP20191202425/18.5T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 12/02/2019
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O pagamento da taxa de portagem pelos utentes da autoestrada representa a cobrança de uma receita coativa, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato sinalagmático, constituindo um crédito tributário.
II - As coimas aplicadas por infrações que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem, encargos com o processo, juros e custas constituem uma receita do Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-Recl-TxPortagem-425/18.5T8AMT-A.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente apenso de verificação e graduação de créditos que corre os seus termos por apenso ao processo de insolvência de B…, melhor identificada nos autos, o administrador da insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
Na “Relação de Créditos Reconhecidos” constam como credores da insolvente e como valor total de cada um dos respetivos créditos reconhecidos, a “C…, S.A.” (€ 8.539,01), a “Fazenda Nacional” (€ 201.781,41) e o “Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Distrital do Porto” (€ 1.055,43).
Na parte relativa aos créditos reconhecidos à “Fazenda Nacional” e respetivos fundamentos consignou-se:
- o valor de € 76,02 – relativo a «Imposto Único de Circulação», sendo o montante de € 72,58 a título de capital e € 3,44 referente a juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 193.099,54 – relativo a «Taxas de Portagem», sendo o montante de € 173.906,44 a título de capital e € 19.193,10 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 437,95 – relativo a «Coimas e Encargos de Processos de Contra-Ordenação», sendo € 423,33 a título de capital e € 14,62 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- valor de € 8.167,90 – relativo a «Custas».
Os valores em referência quanto ao credor “Fazenda Nacional”, qualificados como sendo de natureza comum, totalizam créditos reconhecidos no montante de € 201.781,41.
Na relação de créditos reconhecidos e na parte que aqui interessa anota-se em rodapé que “não existem créditos de natureza garantida ou privilegiada” e que “também não existem créditos sujeitos a quaisquer condições”.
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A insolvente, B…, invocando o disposto no artigo 130.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, veio então impugnar a lista de credores reconhecidos, pretendendo ser incorreto o englobamento que é feito das categorias de “Imposto Único de Circulação”, de “Taxas de Portagem”, de “Coimas e Encargos de Processos de Contraordenação” e de “Custas” na titularidade do credor “Fazenda Nacional” (Autoridade Tributária), dado que, no seu entendimento, esta não é titular de todos os créditos em questão.
Alegou para o efeito que as taxas de portagem e os seus juros, os custos administrativos, as coimas e os seus encargos integram o ativo das concessionárias de autoestradas “D…, S.A.”, “D1…, S.A.”, “D2…, S.A.”, “E…, S.A.” e “F…, S.A.”, “…constituindo um recurso daquele, uma receita, um benefício económico que o mesmo usufrui por permitir, não só mas também, a circulação de viaturas dos utentes por eixos viários sobre os quais possui exclusividade”. O que releva para que o Estado assuma aqui “a função de mero cobrador dessas receitas”, mantendo-se, concomitantemente, a titularidade das mesmas na esfera jurídica das referidas concessionárias, disto resultando que os créditos das mesmas não assumam a natureza de créditos tributários, ou seja, de créditos titulados pelo Estado.
Para fundamentar a sua pretensão cita o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 2 de Maio de 2016, no âmbito do processo 1749/14.GTBVCT-B.G1, disponível nas bases jurídico-documentais do IGFEJ (www.dgsi.pt).
Não nega a natureza comum da quantia global de € 201.705,39, referente ao total dos valores em questão (taxas de portagem; coimas e encargos de processos de contraordenação; custas), refutando sim a sua inclusão enquanto crédito da Fazenda Nacional (Autoridade Tributária).
Terminou por pedir a procedência da respetiva impugnação e sem questionar os montantes, requereu que passassem a constar como titulares dos créditos referentes a taxas de portagem, coimas e encargos de processos de contraordenação e custas, no valor total de € 201.705,39, as credoras acima referidas (“D…, S.A.”, “D1…, S.A.”, “D2…, S.A.”, “E…, S.A.” e “F…, S.A.”).
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O Ministério Público – que reclamou os aludidos créditos em representação da Autoridade Tributária – veio responder à impugnação (artigo 131.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Alegou para o efeito e em síntese, que a insolvente embora não o refira expressamente pretende que o tribunal decida que tais créditos não integram a categoria de créditos tributários para evitar que fiquem abrangidos pela alínea d) do n.º 2 do artigo 245.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, assim, possibilitar a sua sujeição aos efeitos da exoneração do passivo restante. Mas a catalogação dos créditos na categoria de créditos tributários ou não tributários é matéria que extravasa a competência material dos Tribunais do Comércio, sendo os Tribunais Fiscais exclusivamente competentes em razão da matéria para sobre ela proferir as necessárias decisões.
Impugna depois a argumentação da reclamante, afirmando que, embora não seja matéria pacífica, entende que os créditos das taxas de portagem, porque de verdadeiras taxas se trata, são créditos tributários, na medida em que são a contrapartida devida pela utilização por cada um dos utentes das autoestradas, que constituem bens públicos. Tanto assim que o Estado, apesar de, por ato normativo, conceder à entidade privada concessionária o poder de solicitar o pagamento voluntário das taxas de portagem e das coimas e custos administrativos, vedou-lhe pela mesma via a competência para a cobrança coerciva de tais créditos, atribuindo tal competência à Autoridade Tributária Aduaneira.
Termina por pedir que se julgue procedente a exceção dilatória da incompetência absoluta em razão da matéria deste tribunal, nos termos dos artigos 64.º e 96.º, do CPC, 4.º, 49.º, 49.º-A do ETAF aprovado pela Lei 13/2002, de 19/12, com as alterações posteriores, 98.º, 99.º, 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. a), do CPC, com a consequente absolvição da Autoridade Tributária Aduaneira da instância e caso assim não se entenda, pretende que se julgue improcedente a impugnação apresentada pela B… e, em consequência, que se mantenha o crédito de € 201.705,39 como sendo da Fazenda Nacional e revestido de natureza de crédito tributário, nos termos reclamados e reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial na lista definitiva apresentada.
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A administradora de insolvência, notificada da reclamação e ao abrigo da mesma norma (artigo 131.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), também veio responder, alegando que é a Fazenda Nacional que, nos termos da lei, está incumbida de cobrar os créditos em questão e a quem tem que pagar qualquer valor que seja distribuído por rateio.
Alegou, ainda, que no âmbito do presente apenso cabe ao Tribunal verificar e graduar os créditos reconhecidos, ou seja, verificar qual o seu montante, proveniência e natureza (privilegiado, garantido, comum ou subordinado) e colocá-lo no lugar que lhe compete dentro de todos os créditos verificados. Saber se os créditos são ou não créditos fiscais é uma questão que não pode ser discutida ou decidida no âmbito do presente apenso, sendo que, para efeitos de reclamação de créditos a Fazenda Nacional é o credor que deve ser indicado na lista elaborada em cumprimento do artigo 129.º do CIRE.
Conclui que se deve julgar improcedente a impugnação apresentada.
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A insolvente, notificada para se pronunciar, querendo, sobre a invocação, pelo Ministério Público e relativamente ao tribunal, da exceção dilatória da incompetência absoluta em razão da matéria, veio pronunciar-se no sentido de ser competente o Tribunal de Comércio para se pronunciar quanto à titularidade de todos os créditos da insolvente.
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Proferiu-se sentença com a seguinte decisão:
“Por todo o exposto, julgam-se verificados os créditos constantes da lista apresentada ora homologada, e procede-se à sua graduação para pagamento com o montante que venha a ser obtido no âmbito da cessão de rendimento disponível, nos seguintes termos:
1º) Os créditos comuns; e
2º) Os créditos subordinados.
Valor da causa: o do ativo (artigo 301º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Custas pela massa insolvente, nos termos do artigo 303º e 304º do CIRE”.
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Em sede de fundamentação e naquilo que aqui interessa, ponderou-se o seguinte:
“Para análise desta questão, importa atentar na Lei nº 25/2006, de 30 de Junho, com as subsequentes alterações, a qual estipula o Regime sancionatório aplicável às transgressões (hoje contraordenações) ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias, onde seja devido o pagamento de taxas de portagem.
Preceitua o art. 17.º-A daquela Lei:
“1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover a cobrança coerciva dos créditos relativos à taxa de portagem, dos custos administrativos e dos juros de mora devidos, bem como da coima e respetivos encargos.
2 - Os créditos previstos no número anterior gozam de privilégio mobiliário especial sobre os veículos com os quais hajam sido praticadas as infrações a que se refere a presente lei, quando propriedade do arguido à data daquela prática.”
Não restam dúvidas que fora intenção do legislador atribuir competência à autoridade tributária para cobrar, através do processo de execução fiscal, aquelas quantias relativas a taxas de portagem, juros, coimas e demais custos associados.
Ademais, importa ter presente o destino a dar a essas quantias, nos termos do art. 17.º da citada lei:
“1 - O produto da coima cobrado na sequência de processo de contraordenação reverte:
a) 40 /prct. para o Estado;
b) 35 /prct. para a Direção-Geral dos Impostos (DGCI);
c) 10 /prct. para o InIR-Instituto de Infraestruturas Rodoviárias, I. P.;
d) 15 /prct. para as entidades a que se refere o artigo 11.º
2 - (Revogado.)
3 - (Revogado.)
4 - A Autoridade Tributária e Aduaneira entrega mensalmente os quantitativos das taxas de portagem, das coimas e das custas administrativas às entidades a que pertencem, de acordo com o n.º 1.”
Logo por aqui que se vê que, pelo menos, o produto da coima cobrado e relativo ao não pagamento das taxas de portagem reverte em grande parte para o Estado e para a DGCI. Assim, com a sua cobrança o Estado tem necessariamente interesse em atuar em juízo e reclamar tais créditos, nos processos de execução comum e de insolvência, sendo representado pelo Ministério Público. nos termos dos art.s 3.º, n.º 1, al. a) e 5.º, n.º 1, al. a), do EMP, os quais preceituam:
“1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público:
a) Representar o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta;” – art. 3.º, n.º 1, al. a), EMP;
“1 - O Ministério Público tem intervenção principal nos processos:
a) Quando representa o Estado;” – art. 5.º, n.º 1, al. a). EMP.
Assim, quanto ao produto das coimas não pode deixar de se considerar que se trata de um crédito do Estado, uma vez que o mesmo reverte em grande parte para o Estado (conforme já referido), sendo para nós forçoso concluir que é necessariamente um crédito do Estado (na verdade, afigura-se-nos artificial distinguir entre a qualidade de cobrador e sujeito que recebe apenas uma remuneração por esse trabalho de cobrança do crédito e qualidade de titular desse crédito, conforme defendido no artigo citado).
Mas à mesma conclusão chegamos quanto às próprias taxas de portagem, juros e custos administrativos que revertem a favor das concessionárias.
Com efeito, a “Taxa de portagem” enquadra-se no conceito genérico de tributo, da espécie “taxa” prevista nos artigos 3.º, n.º 2, e 4.º, n.º 2, da LGT. Tal taxa assenta na utilização de um bem de domínio público (autoestrada, bem público integrado no domínio público do Estado).
Mantém-se a natureza de taxa enquanto tributo, apesar do Estado, através do “contrato de concessão”, sujeito às regras do direito público administrativo, conceder/concessionar o gozo de parte dos seus poderes, de titular do direito à prestação, à entidade concessionária. Através do contrato de concessão administrativa o Estado não cede o seu estatuto de titular do direito ao tributo, embora ceda o direito à titularidade da respetiva receita.
É consabido que os tributos são prestações coativamente exigidas (não são preços) por pessoa coletiva de direito público, no uso de poderes tributários e com a finalidade de obtenção de receitas ou, no caso das taxas, para financiamento de custos gerados pelo particular segundo o princípio da equivalência ou do “utilizador pagador”.
Ora, no caso das taxas de portagem exigidas pela utilização das autoestradas integradas no domínio público estatal, a única entidade de direito público titular desse direito é o Estado. Ainda que para o exercício desse direito concessione a exploração e ceda parte dos seus poderes a entidades públicas ou privadas.
Sendo créditos cuja titularidade pertence ao Estado, ainda que a receita desses créditos, seja cedido a entidades de direito privado (concessionários), é nosso entendimento que assiste legitimidade ao Ministério Público, em representação do Estado, para reclamar essas taxas de portagem, juros, coimas e demais custos no âmbito de um processo de insolvência.
Tendo legitimidade para reclamar tais créditos, bem andou a Administradora da Insolvência em reconhecer os créditos e ali colocando como credor a “Fazenda Pública”, atualmente Autoridade Tributária. Na verdade, em sede de rateio os pagamentos terão que ser efetuados à Autoridade Tributária.
Repare-se que a Sra. Administradora da Insolvência discriminou a proveniência dos créditos, pelo que fica claro quais os créditos que decorrem de impostos e quais os créditos que resultam de Taxas de Portagem, Portagem, Coimas e Encargos de Processos de Contra-ordenação e Custas.
Tal como salienta o Ministério Público, embora não o refira expressamente, o que pretende a impugnante é que o tribunal decida que tais créditos não integram a categoria de créditos tributários para obstar que fiquem abrangidos pela al. d) do n.º 2, do artigo 245.º, do CIRE, e, assim, possibilitar a sua sujeição aos efeitos da exoneração do passivo restante.
Porém, não incumbe a um processo de insolvência decidir se um crédito é ou não de natureza fiscal – a catalogação dos créditos na categoria de créditos tributários ou não tributários é matéria que extravasa a competência material dos tribunais do Comércio.
Assistindo ao Ministério Público, em representação da Fazenda Pública / Autoridade Tributária, legitimidade para reclamar tais créditos, e devendo os pagamentos em rateio ser efetuados à Fazenda Pública / Autoridade Tributária nos termos legais, deve ser indicado como credor daqueles créditos que resultam de Taxas de Portagem, Portagem, Coimas e Encargos de Processos de Contra-ordenação e Custas a Fazenda Pública / Autoridade Tributária, e isto independentemente de o crédito ser qualificado ou não de natureza fiscal. Na verdade, não cabe a este Tribunal decidir se o crédito é ou não de natureza fiscal[…].
Pelo exposto, julgo improcedente a impugnação deduzida pela insolvente, por falta de fundamento legal, devendo manter-se como reconhecido à Autoridade Tributária, o crédito relativo a IUC, taxas de portagens, juros, coimas e demais encargos e custos a estas associadas e custas, constante na lista de créditos reconhecidos, no montante global de € 201.781,41[…]”.
[…]
No que diz respeito aos demais créditos constantes da lista definitiva apresentada, importa notar a inexistência de impugnação ou erro manifesto, julgando-se reconhecidos os demais créditos incluídos na lista apresentada pela Sra. Administradora da Insolvência.
Nestes termos, homologa-se a lista de credores reconhecidos elaborada pela Sra. Administradora da Insolvência, constante dos presentes autos, reconhecendo-se os créditos ali reconhecidos.[…]”
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A insolvente-impugnante veio interpor recurso da sentença.
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O Ministério Público veio responder ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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No Tribunal da Relação proferiu-se despacho que convidou a apelante a aperfeiçoar as alegações de recurso, sintetizando as conclusões.
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A apelante veio apresentar as alegações, com as conclusões que se transcrevem:
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Termina por pedir a substituição da decisão recorrida por uma outra que julgue procedente a impugnação da lista de credores reconhecidos e consequentemente não reconheça à Autoridade Tributária, o crédito relativo a IUC, taxas de portagens, juros, coimas, demais encargos, custos a estas associadas e custas, constante na lista de créditos reconhecidos.
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Elaborado o projeto e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal de Comércio; e
- se perante o disposto nos artigos 4.º e 10.º da Lei n.º 25/2006 e no artigo 18.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, as taxas de portagem e os seus juros, os custos administrativos, as coimas e os encargos de processos de contraordenação e respetivas custas, relativos às concessões de autoestradas, configuram créditos tributários.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório de onde se destacam os seguintes factos:
- O Ministério Público em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira veio reclamar os seguintes créditos:
- o valor de € 76,02 – relativo a «Imposto Único de Circulação», sendo o montante de € 72,58 a título de capital e € 3,44 referente a juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 193.099,54 – relativo a «Taxas de Portagem», sendo o montante de € 173.906,44 a título de capital e € 19.193,10 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 437,95 – relativo a «Coimas e Encargos de Processos de Contraordenação», sendo € 423,33 a título de capital e € 14,62 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- valor de € 8.167,90 – relativo a «Custas».
- O Administrador da Insolvência incluiu na lista de créditos reconhecidos, elaborada ao abrigo do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como créditos reconhecidos à “Fazenda Nacional”:
- o valor de € 76,02 – relativo a «Imposto Único de Circulação», sendo o montante de € 72,58 a título de capital e € 3,44 referente a juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 193.099,54 – relativo a «Taxas de Portagem», sendo o montante de € 173.906,44 a título de capital e € 19.193,10 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- o valor de € 437,95 – relativo a «Coimas e Encargos de Processos de Contraordenação», sendo € 423,33 a título de capital e € 14,62 de juros vencidos até 26 de Abril de 2018, à taxa de 4,857%.
- valor de € 8.167,90 – relativo a «Custas».
- Os valores em referência quanto ao credor “Fazenda Nacional”, qualificados como sendo de natureza comum, totalizam créditos reconhecidos no montante de € 201.781,41.
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3. O direito
- Da competência em razão da matéria -
Na sentença recorrida considerou-se que o Tribunal de Comércio não tem competência em razão da matéria para qualificar um crédito como crédito tributário, reconhecendo-se, contudo, que o Ministério Público na qualidade de representante da Autoridade Fiscal e Aduaneira dispunha de legitimidade para reclamar os créditos devidos a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas.
A apelante sem se insurgir contra o segmento da sentença que versou sobre a matéria da exceção [competência material], veio renovar os argumentos da impugnação à lista de créditos reconhecidos, pretendendo que se considere indevidamente aplicadas as normas dos artigos 4.º e 10.º da Lei n.º 25/2006 e no artigo 18.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, mas também que se considere que os créditos reclamados e reconhecidos fazem parte do ativo das concessionárias.
A apelante não impugna, nem nunca impugnou, os créditos reclamados pelo Ministério Público a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas, mas pretende que os mesmos não sejam reconhecidos como créditos tributários, o que passa por apreciar previamente se o tribunal comum, em particular o tribunal de comércio, tem competência em razão da matéria para apreciar da natureza tributária ou não, de um crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[2].
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[3].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[4].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
De acordo com o art. 128º/1 a) da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013 de 26 de agosto) as seções de comércio têm competência para preparar e julgar os processos de insolvência.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores (art. 1º CIRE).
Esta particular natureza, aliada ao facto de se tratar de um processo com caráter urgente (art. 9º/1 CIRE) determina que todos os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, para obterem o pagamento dos seus créditos devem reclamar os respetivos créditos de natureza patrimonial (art. 128º/1 CIRE).
O art. 128º/5 do CIRE (na redação do DL 79/2017 de 30 de junho) prevê aliás que:”[a] verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.
O requerimento apresentado deve indicar a proveniência do crédito, natureza data de vencimento e demais requisitos previstos no nº1 do art. 128º do CIRE.
Deste regime decorre que o juiz do processo de insolvência tem competência para apreciar da verificação de créditos qualquer que seja a sua natureza e fundamento e nessa medida a sua competência em razão da matéria pode exceder o âmbito da jurisdição comum, podendo apreciar matéria de natureza laboral, fiscal ou meramente administrativa, conquanto se tratem de créditos sobre a insolvência reclamados pelos respetivos credores do insolvente.
O legislador ao atribuir legitimidade ao Ministério Público para reclamar créditos em defesa dos interesses das entidades que represente, acaba por atribuir competência ao juiz da insolvência para julgar e decidir todas as questões relacionadas com a natureza dos créditos reclamados pelo Ministério Público.
No caso concreto, o juízo de comércio é competente em razão da matéria para julgar e decidir o processo de insolvência, bem como, para julgar o apenso de verificação de créditos, com todas as especificidades que lhe estão inerentes, entre as quais apreciar da verificação do crédito reclamado pelo Ministério Público a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas, mesmo que para tal tenha que apreciar da efetiva qualificação do crédito como crédito tributário.
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- Da qualificação dos créditos reclamados pelo Ministério Público a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas -
A apelante insurge-se contra a decisão que reconheceu e julgou verificados os créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas.
Na parte final das conclusões a apelante reporta-se, ainda, ao crédito reclamado a título de IUC, o que se afigura resultar de um lapso, porque nunca foi questionado o crédito reclamado a esse título. Aliás, a não se entender assim, estaria a apelante a colocar uma questão nova, porque não suscitada e apreciada pelo juiz em 1ª instância, ficando vedado ao tribunal de recurso a sua apreciação. O tribunal de recurso tem competência para julgar questões de conhecimento oficioso, o que não e o caso e proceder à reapreciação da decisão objeto de recurso.
Passando à apreciação da questão de saber se os créditos reclamados e verificados a título de taxas de portagens, coimas e encargos com processos de contraordenação, juros e custas constituem créditos tributários, somos levados a considerar que a decisão recorrida não merece censura.
Cumpre ter presente o quadro legal em que se aprecia a questão.
A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, com ulteriores alterações, regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem diretamente na ordem interna ou em legislação especial, considerando-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas (artigo 1.º da referida Lei).
Relativamente aos tributos – que podem classificar-se, por um lado, como fiscais e parafiscais e, por outro, estaduais, regionais e locais [artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b)] –, os mesmos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente, as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas – artigo 3.º, n.º 2.
Quanto aos pressupostos dos tributos, estabelece o artigo 4.º do mesmo diploma que os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património (n.º 1) e que as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares (n.º 2).
Na definição dos sujeitos da relação jurídica tributária, o artigo 18.º do mesmo diploma legal estabelece que o sujeito ativo da relação tributária é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer diretamente quer através de representante, podendo ser ou não o Estado (n.º 1 e n.º 2), sendo o sujeito passivo a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável (n.º 3).
Ainda na consideração do quadro legal, a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 51/2015 de 08 de junho, que aprovou o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem, determina no seu artigo 1.º que as infrações que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem em infraestruturas rodoviárias, anteriormente à sua entrada em vigor, previstas e punidas como contravenções e transgressões, passassem a assumir a natureza de contraordenações.
Enuncia as condutas que como tal devem ser consideradas e punidas com coima, remetendo para Portaria a fixação dos custos administrativos (art. 5º e 6º).
A competência para a instauração e instrução dos processos de contraordenação, bem como, para a aplicação das respetivas coimas, cabe ao serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente da contraordenação (art. 15º).
Já a cobrança coerciva dos créditos relativos a taxas de portagem, custos administrativos, juros de mora, coimas e respetivos encargos (que gozam de privilégio mobiliário especial sobre os veículos com os quais hajam sido praticadas as infrações, quando propriedade do arguido à data daquela prática) compete à autoridade tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (art. 17º-A).
Nos termos do artigo 17.º deste diploma, o produto da coima cobrado na sequência de processo de contraordenação reverte 40 por cento para o Estado, 35 por cento para a Direcção-Geral dos Impostos (DGCI), 10 por cento para o InIR-Instituto de Infraestruturas Rodoviárias, I. P. e 15 por cento para as entidades a que se refere o artigo 11.º (concessionárias, subconcessionárias, entidades de cobrança das taxas de portagem e entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens).
O artigo 17.º-A determina que compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover a cobrança coerciva dos créditos relativos à taxa de portagem, dos custos administrativos e dos juros de mora devidos, bem como, da coima e respetivos encargos (n.º 1); estes créditos gozam de privilégio mobiliário especial sobre os veículos com os quais hajam sido praticadas as infrações a que se refere a presente lei, quando propriedade do arguido à data daquela prática (n.º 2).
O produto da coima reverte para o Estado (40%), para a Direcção-Geral dos Impostos (35%), para o Instituto das Infraestruturas Rodoviárias, I.P. (10%) e para as concessionárias, subconcessionárias, entidades de cobrança das taxas de portagem ou entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens (15%) (art. 17º nº 1).
A Autoridade Tributária e Aduaneira entrega mensalmente os quantitativos das taxas de portagem, das coimas e das custas administrativas às entidades a que pertencem, de acordo com o n.º 1 do art. 17º (art. 17º/4).
Em tudo o que a Lei 25/2006 de 30 de junho não regula expressamente, às contraordenações em causa aplica-se o Regime Geral das Infrações Tributárias (artigo 18º) - remetendo-se assim para o diploma aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com ulteriores alterações.
A recorrente, ao questionar a sentença proferida, sustenta o seu entendimento no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo 1749/14.GTBVCT-B.G1, em 2 de Maio de 2016, disponível nas bases jurídico-documentais do IGFEJ (www.dgsi.pt).
Nesse acórdão não estava diretamente em causa a insolvência, aí se apreciando a aprovação e homologação de plano de revitalização, sendo este processo especial, na redação então vigente (anterior às alterações introduzidas no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pelo decreto-lei n.º 79/2017, de 30 de Junho e contido nos artigos 17.º-A a 17.º-I), destinado a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
Com a alteração entretanto operada pelo decreto-lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, os citados artigos 17.º-A e seguintes passaram a reportar-se a empresas, sendo que o regime legal que anteriormente estabeleciam, relativamente ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, agora com a denominação de processo especial para acordo de pagamento, mantém-se no essencial nos artigos 222.º-A a 222.º-J, aditados pelo aludido decreto-lei.
De comum, a qualificação, dado que nesse acórdão se pretendia determinar se estávamos em presença de credores comuns ou perante créditos do Estado e outros entes públicos, estando em causa, tal como nos presentes autos, os créditos que as concessionárias de autoestradas detêm sobre a identificada devedora referentes a taxas de portagem, juros de mora, coimas e custos administrativos.
Pondera-se nesse acórdão:
«Como é consabido, as autoestradas integram o domínio público do Estado. No entanto, por mor dos contratos de concessão que celebrou com as respetivas concessionárias, o Estado cedeu o uso desse bem público para que estas o explorem por sua conta e risco e por um determinado prazo, havendo, em regra, uma aplicação de capital privado na execução da atividade concessionada sendo que esse investimento acaba amortizado, primacialmente, pelas taxas cobradas diretamente ao utente desses eixos viários.
Como assim, o Estado, não se despojando embora da titularidade do objeto da concessão (portanto não se privando da propriedade da autoestrada, que permanece no domínio público), transfere o encargo de prestar o serviço para o concessionário particular, sendo este o responsável por esse serviço e relacionando-se este “diretamente” com o utente, posto que o Estado lhe outorgou contratualmente poderes para agir “por sua conta própria”.
Daí que, conforme se vem entendendo, a concessão não atribui ao concessionário uma função executiva ou operacional, no contexto de uma colaboração secundária com a Administração concedente. Pelo contrário, ele assume a responsabilidade de gerir um serviço público, sendo que, em resultado da celebração do contrato de concessão, são-lhe atribuídos poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atributos do Estado, nomeadamente de aplicar taxas de portagem e coimas.
É, por conseguinte, o concessionário que ao explorar o eixo viário se relaciona, como se referiu, diretamente com o respetivo utente (e não o Estado), estabelecendo-se entre ambos uma relação jurídica de natureza privada (diferente da relação contratual de direito público que, por força do contrato de concessão, se estabelece entre concedente e concessionário), nos termos da qual aquele fica autorizado a cobrar portagens aos utentes da autoestrada, sendo que tais receitas, na sua totalidade, reverterão para si e não para o Estado.
Deste modo, as portagens (enquanto contrapartida pecuniária paga pelo utente da autoestrada pela sua utilização) não têm natureza tributária já que está em causa o pagamento do serviço prestado ou do fornecimento efetuado pelo concessionário.
Nesse caso, essa contrapartida tem antes a natureza de um preço, isto é, de um valor a pagar pela prestação de um serviço regulado por um contrato de direito privado. Consequentemente, sendo de direito privado as relações de prestação constituídas entre concessionário e o utente, não faz sentido, como escreve PEDRO GONÇALVES, “sustentar a natureza fiscal da contrapartida, que é justamente um dos elementos essenciais da relação contratual”.
A taxa de portagem, correspondendo apenas a um preço pago pelo utente ao concessionário, constitui, pois, uma receita exclusiva deste no âmbito da relação jurídica de direito privado em que o Estado não é parte.
Já no concernente às coimas (enquanto consequência contraordenacional resultante do não pagamento atempado das taxas de portagem ou pagamento viciado), não se assume clara a determinação do respetivo titular e da sua natureza jurídica.
É certo que com a publicação da Lei n.º 25/2006, de 30.06, o Estado (através da Administração Tributária) decidiu chamar a si a cobrança coerciva das taxas de portagem e dos seus juros, das coimas e dos seus encargos, estabelecendo no n.º 4 do seu artigo 17.º que as quantias obtidas serão entregues mensalmente de acordo com as percentagens definidas no seu n.º 1. Certo é igualmente que o artigo 17.º-A, n.º 2 do citado diploma legal (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12) preceitua que tais créditos gozam de privilégio mobiliário especial sobre os veículos com os quais hajam sido praticadas as infrações.
Tal realidade, no entanto, não se revela decisiva para qualificar as coimas como créditos tributários.
(…) Resulta, assim, do exposto que as taxas de portagem e os seus juros, os custos administrativos, as coimas e os seus encargos fazem parte do ativo do concessionário, constituem um recurso deste, uma receita, um benefício económico que o mesmo usufrui por permitir, não só mas também, a circulação de viaturas dos utentes por eixos viários sobre os quais possui exclusividade. O Estado assume a função de mero cobrador mas a titularidade dos créditos mantém-se na esfera jurídica daquele(…)»
Do aludido acórdão decorre que as taxas de portagem e os seus juros, os custos administrativos, as coimas e os seus encargos fazem parte do ativo do concessionário, constituindo um recurso deste, uma receita, um benefício económico que o mesmo usufrui por permitir, não só mas também, a circulação de viaturas dos utentes por eixos viários sobre os quais possui exclusividade, assumindo o Estado a função de mero cobrador dessas receitas, mantendo-se a titularidade das mesmas na esfera jurídica do concessionário. Os referidos créditos do concessionário não assumem, assim, a natureza de créditos tributários, isto é, de créditos titulados pelo Estado; nessa medida, os concessionários ficam vinculados às condições de pagamento estabelecidas para os credores comuns no plano de revitalização aprovado e homologado por decisão judicial, mesmo que não tenham participado nas respetivas negociações.
Este entendimento foi reafirmado no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 22 de Março de 2018, no âmbito do processo 853/17.3T8OLH-A.E1, disponível na mesma base documental e também invocado pela recorrente, onde se julgou que o crédito reclamado pela Autoridade Tributária a título de taxas de portagem, custos administrativos, juros de mora, coimas e respetivos encargos não assume natureza tributária, não se lhe aplicando a Lei Geral Tributária.
Aí se afirma a este propósito – e em conclusão – que «as taxas de portagem não se subsumem ao conceito de imposto; e, embora se integrem na definição de taxa, a mesma não é devida a qualquer entidade pública, posto que as concessionárias das autoestradas são sociedades anónimas de direito privado.
Por outro lado, o direito de exigir o pagamento da taxa de portagem pertence às concessionárias (artigos 4.º n.º 3 e 10.º n.º 1 da Lei 25/2006), atuando a Autoridade Tributária enquanto cobradora das quantias devidas e das sanções pelo seu não pagamento.
Não pode, consequentemente, concluir-se pela existência de uma relação jurídico-tributária entre a reclamante dos créditos em causa e a revitalizanda.»
Mas este entendimento não é unânime.
O Estado exerce a respetiva atividade diretamente, com recurso aos seus próprios meios ou, como se vê nomeadamente em diferentes obras públicas, por gestão indireta de serviços públicos, por via de concessão, em que o exercício da atividade em questão é delegado numa empresa privada.
No entendimento afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente no acórdão proferido em 14 de Outubro de 2004, no processo 04B2885 (disponível nas bases jurídico-documentais do IGFEJ, no endereço http://www.dgsi.pt), exercendo atividade pública de que a Administração é titular, as empresas privadas que são concessionárias de bens públicos substituem a Administração nas relações com o público e atuam como se fossem entidades públicas. O pagamento de uma “taxa de portagem” pelos utentes da autoestrada representa a cobrança de uma receita coativa, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato sinalagmático, cuja contraprestação do Estado, transferida para a concessionária, seria a possibilidade de circulação na via referida, com condições de segurança e níveis de fiscalização mais elevados em comparação com as demais estradas.
Esta via (concessão), acolhida com particular relevância na construção e conservação de autoestradas, decorre do reconhecimento de que o Estado necessita do recurso à iniciativa privada, em benefício da realização do interesse público, mas não traduz propriamente um contrato sinalagmático, o pagamento do serviço prestado ou do fornecimento efetuado pelo concessionário.
Na relação entre concessionário e utente não há propriamente liberdade contratual, na certeza de que o concessionário não pode excluir qualquer particular/condutor e este fica sujeito ao pagamento de uma taxa de trânsito quando tem necessidade de utilizar qualquer estrada em que essa taxa é exigida.
É característica da taxa, à semelhança dos restantes tributos, o facto de se tratar de uma prestação pecuniária e de ser uma obrigação de pagar que resulta da verificação de um pressuposto legal e não de um acordo de vontades entre as partes. E se é certo que não tem necessariamente que corresponder ao custo efetivo, o seu valor não deve exceder, quer o custo da prestação efetiva, quer o benefício obtido pelo particular, relevando o artigo 4.º da Lei Geral Tributária, nos termos do qual as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, o pressuposto da criação da taxa pode ser “a utilização privativa de bens de domínio público”, devendo estar sempre subjacente o princípio da equivalência.
Neste enquadramento, o montante que é cobrado quando há a utilização de uma autoestrada, a título de portagem, constitui uma taxa e não um preço, enquanto contraprestação que é devida pela utilização feita por cada utente da autoestrada, constituindo esta um bem público, tal como definido no artigo 84.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa.
A taxa é determinada tendo em conta o benefício que o particular retira da atividade pública e o custo que imputa à comunidade, e no preço pode haver uma verdadeira equivalência económica. Isto é, uma taxa não tem necessariamente que corresponder ao custo efetivo do bem ou serviço prestado, mas o seu valor deve obedecer ao princípio da proporcionalidade.
A concessionária, apesar de ser uma entidade privada, exerce funções públicas, e, como o referido acórdão conclui e antes se mencionou, o pagamento da taxa de portagem pelos utentes da autoestrada representa a cobrança de uma receita coativa, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato sinalagmático.
Acresce que nas relações entre concedente e concessionário, como decorre do art. 420º do Código dos Contratos Públicos, “constituem direitos do concedente, a exercer nos termos e condições do contrato ou da lei e com os efeitos que destes resultem: a) estabelecer as tarifas mínimas e máximas pela utilização das obras públicas ou dos serviços públicos”.
Este direito destina-se, como salienta JORGE ANDRADE DA SILVA “a proteger o interesse público subjacente à concessão.[…]a proteger os utentes. Mas não é o único, devendo igualmente considerar-se, nesse âmbito, que, como decorrência da natureza pública da obra ou serviço, o concessionário tem obrigação de garantir determinados princípios de atuação pública, tais como o princípio da igualdade e o princípio da proporcionalidade”[5].
Apesar do contrato celebrado entre o Estado (concedente) e a entidade privada (concessionária) o serviço prestado mantém a natureza de serviço público e a contrapartida é devida pelo serviço público prestado. A taxa de portagem surge como uma forma do Estado proceder à remuneração ao concessionário do serviço público que presta.
Conclui-se que o valor da portagem que a concessionária cobra ao utente, pela utilização que por este é feita da autoestrada, é uma verdadeira taxa, integrando como tal o conceito de tributo, nos termos acima reportados à Lei Geral Tributária.
Em relação ao crédito decorrente da aplicação de coimas o mesmo não configura uma simples receita das concessionárias que prestam o serviço nas diferentes redes viárias. Perante o quadro legal acima referenciado, o crédito por coimas aplicadas em infrações que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem, encargos com processos de contraordenação, juros e custas, ainda que não se possa considerar um crédito tributário, constituem uma receita do Estado e por isso, um crédito do Estado.
Cumpre desde logo assinalar que as coimas e juros, enquanto sanções por infrações de contraordenação, assim como as custas dos processos de execução fiscal para a sua cobrança coerciva são créditos do Estado - Autoridade Tributária e Aduaneira -, pois, só o Estado tem o poder de punir infrações desta natureza e exigir o cumprimento das sanções aplicadas.
A competência para a instauração e instrução dos processos de contraordenação, bem como, para a aplicação das respetivas coimas, cabe ao serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente da contraordenação (art. 15º Lei 25/2006).
O estatuído no artigo 17º, do citado diploma rege sobre o destino das coimas.
O produto da coima reverte para o Estado (40%), para a Direcção-Geral dos Impostos (35%), para o Instituto das Infraestruturas Rodoviárias, I.P. (10%) e para as concessionárias, subconcessionárias, entidades de cobrança das taxas de portagem ou entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens (15%) (art. 17º nº 1).
A Autoridade Tributária e Aduaneira entrega mensalmente os quantitativos das taxas de portagem, das coimas e das custas administrativas às entidades a que pertencem, de acordo com o n.º 1 do art. 17º (art. 17º/4).
Constituem, pois, uma receita do Estado afeta a um determinado fim.
No caso concreto, a Autoridade Tributária e Aduaneira, representada pelo Ministério Público, veio reclamar o pagamento do produto das coimas aplicadas nas contraordenações por infrações que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem, juros, encargos com os processos de contraordenação e custas.
Apenas a Autoridade Tributária e Aduaneira tem legitimidade para reclamar os créditos em causa, porque a lei apenas atribui a esta entidade poderes para cobrar tais créditos, sendo certo que as entidades concessionárias não são as titulares exclusivas de tais receitas, como decorre do art. 17º do citado diploma.
Na relação jurídico-tributária, o sujeito ativo é, de acordo com o art. 18º, n.º1 da Lei Geral Tributária, a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias. Assim, o sujeito ativo desta relação jurídico-tributária é o Estado – Administração Tributária, constituída pela Autoridade Tributária e Aduaneira, entidade criada pelo Dec. Lei n.º 118/2011, de 15.12.
O Ministério Público surge na veste de representante de tal entidade, como decorre do seu Estatuto – art. 3º/1 e art. 5º/1 a) Estatuto do Ministério Público – pelo que a inclusão de tais créditos na lista de créditos reconhecidos à Fazenda Nacional, na relação apresentada pelo Administrador da Insolvência e assim verificados, não merece censura.
Perante este entendimento improcede necessariamente o recurso, na medida em que se conclui que não há censura a fazer ao entendimento afirmado na sentença que é objeto do presente recurso.
Improcedem as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.
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Custas a cargo da apelante.
*
Porto, 02 de dezembro de 2019
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais ["com declaração de voto:
Ponderados os argumentos expostos no acórdão e depois de refletir sobre a questão, entendo que se justifica alterar a posição defendida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo 1749/14.GTBVCT-B.G1, em 2 de Maio de 2016, disponível nas bases jurídico-documentais do IGFEJ (www.dgsi.pt), citado na fundamentação e por isso subscrevo a decisão e os seus fundamentos”]
______________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[3] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[5] JORGE ANDRADE DA SILVA Código dos Contratos Públicos – Revista e Atualizada, 4ª edição, Revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 2013, pag. 848.