Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6099/20.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS
PESSOA FALECIDA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RP202204076099/20.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É o conjunto dos herdeiros, nos termos do art.º 2091º do Código Civil, quem tem legitimidade substantiva para instaurar ação de responsabilidade civil por factos ilícitos para apuramento dos danos morais e patrimoniais causados à pessoa falecida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6099/20.6T8VNG.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – RESENHA HISTÓRICA DO PROCESSO
1. AA e BB instauraram ação contra M..., Lda., pedindo a sua condenação a pagar aos Autores o montante global de € 21.015,60, assim descriminado:
• € 2.500,00, correspondente a todo o sofrimento causado à mãe dos Autores com a forma como executou as obras no prédio, facto que contribuiu para o agravamento do estado de saúde daquela e para a sua morte;
• € 7.500,00, correspondente ao sofrimento causados pela Ré aos Autores com o desaparecimento dos bens da família;
• € 10.000,00, correspondente ao valor dos bens pertencentes aos Autores e que a Ré fez desaparecer do arrendado;
• € 879,54, relativos aos consumos excessivos de água a que a Ré deu causa;
• € 136,06, relativos aos consumos excessivos de luz a que a Ré deu causa
A Ré impugnou parcialmente a factualidade alegada.
Após instrução dos autos e realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, considerando que os Autores não tinham legitimidade substantiva para os pedidos formulados ─ todos os bens/danos pertenciam à herança por óbito da mãe dos Autores, e não a estes ─, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré de todos os pedidos.

2. Inconformados, vieram os Autores apelar para esta Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Dos documentos autênticos (certidão do assento de óbito e certidão do assento de nascimento) juntos resulta inquestionável que os AA. são herdeiros de CC;
2. Qualidade esta expressamente invocada no artigo 4º da petição inicial;
3. E na qualidade de herdeiros têm os AA. legitimidade para exigir a entrega (ou correspondente valor) dos bens que pertenciam à de cujus, como dispõe o artigo 2078º do Código Civil;
4. Por outro lado, face à posição assumida pela Ré relativamente às fotografias do prédio juntas pelos AA. com a petição inicial, não pode deixar de considerar-se que essas fotografias retratam a situação do prédio no decurso das obras;
5. Ao considerar não provado que essas fotos sejam do prédio, a sentença recorrida desrespeitou, designadamente o disposto na 2ª parte do nº 4 do artigo 607º do CPC;
6. Pelo que, deve a decisão de facto, nessa parte, ser alterada, considerando-se provado que as fotos juntas respeitam ao prédio;
7. Por outro lado, provado (F) que a Ré em 27/06/2019 enviou através de carta registada um comunicado datado de 19/06/2019 a informar que iria iniciar as obras no prédio, e que em 19/06/2019 a Ré iniciou essas obras, não pode ao mesmo tempo considerar não provado que, sem qualquer aviso prévio, a Ré tenha tido as intervenções que essas obras pressupõem, designadamente destruindo o interior de todas as restantes habitações com exceção da habitação da mãe dos AA.;
8. Porque, como a sentença considera, as consequências de obras no prédio são por demais conhecidas por todas as pessoas socialmente inseridas: a poluição sonora, a poluição do ar, a poluição do espaço, como também o efeito desta poluição no ser humano que, sendo mais idoso, são necessariamente mais gravosas;
9. Porque ainda, como igualmente a sentença considera, as obras incomodam profundamente os que foram sujeitos à poluição de diversa natureza que elas provocam;
10. Não podia deixar de tirar daí as respetivas consequências e condenar a Ré na indemnização dos danos que dessa forma causou à mãe dos AA. e a estes, que muito sofreram por ver sua mãe assim perturbada e grosseiramente desrespeitada no seu sossego e na sua vida;
11. Por último, face aos documentos relativos aos consumos de energia elétrica e de “água da companhia”, porque esses consumos ocorreram após a Ré iniciar as obras no prédio e estão em total desconformidade com os consumos habituais da mãe dos AA;
12. Sendo, por isso, óbvio que tais consumos ou foram abusivamente feitos pela Ré, ou provocados por ação desta;
13. Deve também a Ré ser condenada a pagar aos AA. o valor de 879,54 € relativo ao consumo de água e 136,06 € relativo ao consumo de energia elétrica;
14. Os descritos comportamentos da Ré assumidos com culpa e grosseiro desrespeito da pessoa da mãe dos AA., constituem atos violadores do direito da mãe dos AA. e destes e daí o seu dever de indemnizar, à luz do disposto no artigo 483º do C. Civil;
15. Ao decidir como decidiu a sentença recorrida, violou designadamente as normais legais citadas.»

3. A Ré não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:
FACTOS PROVADOS
A) Por contrato de arrendamento datado de 22.10.1957, DD, no estado de casado com CC, tomou de arrendamento a EE o 1º andar esquerdo do prédio sito na Rua ..., em Vila Nova de Gaia, sendo que em 1976, DD e CC divorciaram-se tendo, a partir de então, CC assumido a posição de arrendatária do imóvel.
B) Em 04.12.2019, faleceu CC, no estado de divorciada de DD.
C) A 12.12.2018, o então proprietário, FF comunicou a CC a intenção de vender o prédio à Ré, com indicação das respetivas condições para lhe permitir exercer o direito de preferência nessa venda e, essa sequência, através de mensagem de correio eletrónico de 08.08.2019, a Ré informa o Autor, na qualidade de filho de CC e, posteriormente informa a sua mãe, por missiva datada de 28.08.2019, que é a nova proprietária do prédio de que faz parte o imóvel arrendado, indicando os dados bancários para a realização dos futuros pagamentos das rendas.
D) Em 19.06.2019, a Ré iniciou obras de recuperação, remodelação e/ou conservação no interior do prédio, onde se situa o arrendado identificado supra.
E) As obras realizadas provocaram poluição sonora, poluição do ar e sujidade e incómodos.
F) A 27.06.2019, a Ré enviou, através de carta registada, um comunicado datado de 19.06.2019 a informar que iria iniciar as obras no prédio no dia 25.06.2019, e que o período previsto de duração das mesmas seria de 4 a 6 meses.
G) À data do início das obras a mãe dos Autores tinha 89 anos e vivia sozinha.
H) A 18.12.2019, a Ré enviou missiva ao ora mandatário dos Autores a solicitar a entrega do locado, tendo-lhe sido respondido, em 20.12.2019, que seria cumprido o prazo legal para desocupação e entrega do arrendado.
I) Entre os meses de Janeiro e Fevereiro de 2020, os Autores deslocavam-se ao imóvel, sempre que possível, para arrumarem e separarem os pertences acumulados ao longo de mais de 60 anos, sendo que, dada necessidade de veículo pesado para o transporte dos mesmos, poucos foram os bens retirados do arrendado.
J) Mercê do período de confinamento resultante da pandemia de Covid19, só em Maio, no dia 09.05.2020 é que os Autores voltaram ao arrendado, usando a sua chave, porém o arrendado já não tinha porta, já não tinha divisões, metade do espaço já não tinha chão, as paredes mestras tinham a pedra à vista, tendo todos os bens que existiam no seu interior desaparecido.
De entre os pertences da mãe dos autores havia quadros pintados à mão por familiares, a têxteis de grande importância sentimental- bordados, atoalhados, colchas em renda feitas à mão, assim como, livros, fotografias, adornos, loiças, papeis e cartas pessoais.
L) O recheio da casa da mãe dos autores comportava na da sala de jantar: móvel em madeira mogno estilo cristaleira de dimensões grandes, Uma mesa de jantar em madeira, tampo de fórmica, quatro cadeiras de madeira estofadas, Toalha da mesa, Cortinados, Adornos vários de porcelana, 1 quadro de parede, uma lâmpada de suporte à mesa; Do quarto de banho; Armário de parede, Cilindro (propriedade da falecida), Toalhas de banho e rosto, Artigos de higiene, Loiças sanitárias (da casa); Da cozinha: Fogão, Garrafa de gás da Galp, Móveis, Eletrodomésticos de pequenas dimensões, Panelas, pratos e outros utensílios de cozinha, Armários, Cortinado, Tapete; Do corredor: Candeeiros; Da sala: Móvel estante, com armário embutido e gavetas, castanha escura com vários, pertences no seu interior e nas zonas de prateleiras: porcelanas, loiças, livros, bijuterias várias, ferramentas, sapatos, panos bordados e outros atoalhados, objetos de valor estimativo no interior das gavetas, 3 mesinhas de apoio ao sofá em madeira e todas as porcelanas que nelas se encontravam, 1 sofá de estrutura de madeira e pano estampado (3lugares), uma vitrina vertical em madeira e cristal, um móvel em mogno, com tampo em mármore contendo vários objetos, tais como, um telemóvel marca ... e suporte de carregamento, vários brincos de adorno pessoal com valor estimativo, dois relógios de pulso, papeis e cartas pessoais, agulhas de cozer e outros objetos, loiças, objetos de porcelana (adornos), um espelho de parede com caixilho de madeira, um quadro de médias dimensões, candeeiro de sala antigo com seis lâmpadas, cortinados; do quarto da mãe: uma mobília completa, em mogno castanho claro, com cama de casal devidamente composta com colchão e edredão, guarda-fatos completo com gavetas, 3 portas e espelho vertical exterior, 1 mesinha de cabeceira com 3 gavetas, cómoda com 4 gavetões e espelho de cristal incorporado, duas cadeiras antigas de estilo francês e forradas a pano estampado, candeeiros, cortinados, tapetes, um quadro pintado a óleo por um familiar, fotografias, livros, roupa pessoal; do segundo quarto: um guarda fatos de madeira antigo com várias roupas pessoais, atoalhados, colchas em renda e panos (bordados e em renda) feitos pela falecida, vários pares de sapatos de estilos diferentes, um sofá de pano de três lugares contendo em cima do mesmo dois ferros elétricos de engomar, roupa nova que se tinha comprado para a mesma usar bem como vários tapetes, cobertores e cobertas, na parede algumas pinturas feitas por familiares, uma cômoda antiga de madeira castanha estilo francês, contendo objetos vários, bem como fotografias de família, documentos de familiares falecidos, cartas entre outras papeladas de familiares que não chegamos sequer a ver que seriam, um candeeiro de teto antigo modelo francês, dois jarrões chineses antigos com cerca de cinquenta centímetros de altura.
M) A mãe dos autores teve instaurado a seu benefício os autos de internamento compulsivo n.º 6252/19.5T8VNG - JL Criminal J3, com internamento em 26.07.2019 e cujo arquivamento dos autos ocorreu em 30.08.2019.
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Relativamente ao Facto Provado em A) sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como herdeiros, os seus filhos, AA e BB, ora identificados como Autores.
b) Por referência ao Facto Provado em B): sem qualquer aviso prévio, tendo, para o efeito, destruído o interior de todas as restantes habitações com exceção da habitação da mãe dos Autores.
c) A partir desse dia, as habitações alvo das referidas intervenções mantinham as portas escancaradas, e os seus logradouros começaram a ser utilizados como estaleiros da obra, a ser ocupados com móveis, nomeadamente mobiliário de cozinha, louças sanitárias, almofadas, pedaços de cortinados, estruturas metálicas, caixilhos de madeira e lixo diverso.
d) A destruição do interior das outras habitações provocou uma cerrada nuvem de pó por todo o prédio e por toda a casa da mãe dos Autores, tendo o autor, numa das visitas à mãe encontrado esta totalmente coberta de pó proveniente do desmantelamento que estava a decorrer, e o ar mostrava-se irrespirável e, concomitantemente, o ruído provocado pelas obras era absolutamente ensurdecedor.
e) Apesar das queixas apresentadas pelos Autores e pela sua mãe, a situação manteve-se.
f) Esse comunicado embora datado de 19.06.2019, apenas foi recebido pela mãe dos Autores a 01.07.2019, quando as obras já decorriam há cerca de 15 dias.
g) Nessa altura já era impossível continuar a usar o arrendado, designadamente para habitação, pois que o ruído era de tal forma ensurdecedor que as pessoas não se ouviam umas às outras, o trabalho das obras era tão violento que fazia tremer a habitação da mãe dos Autores; e o pó no interior da casa mantinha-se, apesar de limpo várias vezes; os tetos da habitação começaram a descascar e a apresentar grandes e graves fissuras provocadas pela trepidação das obras.
h) O interior e os logradouros do prédio ficaram em péssimo estado, cobertos de pó branco e de lixo.
i) No dia 03.07.2019, os Autores foram visitar a mãe a sua casa e encontraram-na novamente com as roupas e o cabelo cobertos de pó branco e o interior da casa também continuava coberto de pó, sendo o barulho no interior da habitação insuportável e toda a casa tremia.
j) A par disso, estavam a ser lançados, continuadamente, de uma varanda do 3º andar do prédio baldes de entulho, sem proteção ou mangas, para os logradouros interiores, que provocavam contínua nuvem de pó, que, apesar das janelas estarem totalmente fechadas se entranhava por toda a casa, tornando o ar irrespirável.
k) No dia 15.11.2019, constataram que a obra tinha sido abandonada subitamente, o que durou cerca de um mês, o que provocou ainda mais ansiedade na mãe dos Autores, que via o prolongar da obra e, consequentemente o retardar da sua conclusão.
l) Foi a situação de obras descrita que desequilibrou drasticamente a saúde mental da mãe dos Autores que se apresentava irritável, disfórica, exaltada, com comportamentos hétero-agressivos, e com um aspeto marcadamente descuidado, tendo a mãe dos autores, a partir da data do início das obras no prédio, começado a apresentar um discurso desorganizado denotando-se a alteração formal do pensamento com perda de associação, a necessitar de fazer medicação psicofarmacológica e acompanhamento por psiquiatria, o que nunca tinha acontecido até então.
m) Apesar da idade nunca, em momento anterior à realização das obras, a mãe dos Autores tinha antecedentes clínicos de doença psiquiátrica.
n) A partir da data da realização das obras, a mãe dos Autores recusou-se a receber/fazer tratamento médico, sendo que a mãe dos autores nunca recuperou, passando a sofrer de doença de foro psiquiátrico, que a obrigou a períodos de repouso e a consultas médicas regulares.
o) A casa onde desde sempre viveu a mãe dos autores deixou de existir como tal, sendo que com o início das obras e a forma como as mesmas foram executadas a mãe dos Autores foi ostensivamente impedida de usar a sua casa e consciente do que estava a acontecer a mãe dos Autores dizia repetidamente “vão-me tirar a casa”, “vão-me tirar a casa”.
p) Todas as atitudes da Ré aceleraram o agravamento do estado de saúde da mãe dos Autores conduzindo à sua morte precoce.
q) O quadro elétrico do imóvel arrendado, cujo contrato, àquela data, ainda se encontrava ativo e titulado pela mãe dos Autores, encontrava-se sem o armário que o escondia e a ele estava ligado um cabo que alimentava a obra do prédio.
r) Estavam no local os trabalhadores da Ré que obedeciam ao chefe de seu nome GG, da empresa X..., que por sua ordem retirarem todos os bens e coloca-los no contentor do lixo, por forma a iniciarem a obra no espaço que constituíra a casa da mãe dos Autores.
s) Os Autores chamaram a Polícia que tomou conta da ocorrência.
t) Depois do início das obras, os consumos de água em casa da progenitora dos Autores aumentaram substancialmente, sendo que nos meses de Outubro e Novembro o valor faturado ascendeu ao montante de €756,06 e €123,48, respetivamente, porque a Ré estava a usar a água da casa da progenitora dos Autores para a obra ou involuntária ou voluntariamente provocou fuga nas canalizações do arrendado que causou esse consumo anormal de água.
u) após o falecimento da mãe dos autores e esvaziado do andar arrendado, as faturas dos meses de Maio e Junho ascendem ao montante global de € 136,06, porque a Ré utilizava a luz da casa do arrendado para a obra no prédio.
v) Os bens elencados no Facto Provado em L, totalizam o montante global de € 10.000,00, quantia que os autores computam como danos patrimoniais.

5. APRECIANDO O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art. 666º do Código de Processo Civil (CPC).
Questões a decidir:
· reapreciação da matéria de facto;
· erro na subsunção dos factos ao direito, designadamente se aos Autores assiste a legitimidade ad causam.

5.1. Quanto à matéria de facto
Há que concluir que a Ré não cumpre o determinado no art.º 640º do CPC, e tanto bastaria para a rejeição da reapreciação da matéria de facto. No entanto, porque aqui e ali ainda é possível perceber o sentido do que os Recorrentes pretendem, iremos conhecer na medida do possível.
Conclusões 1, 2 e 3:
«1. Dos documentos autênticos (certidão do assento de óbito e certidão do assento de nascimento) juntos resulta inquestionável que os AA. são herdeiros de CC;
2. Qualidade esta expressamente invocada no artigo 4º da petição inicial;
3. E na qualidade de herdeiros têm os AA. legitimidade para exigir a entrega (ou correspondente valor) dos bens que pertenciam à de cujus, como dispõe o artigo 2078º do Código Civil;
Assim explanadas, estamos perante matéria de direito. No entanto, depreende-se das alegações de recurso que os Autores consideram existir contradição entre o facto provado “A” e o não provado “a”. É, porém, uma contradição aparente, como melhor se extrai da leitura da totalidade da sentença. O que se pretendeu dizer foi que, tendo ficado provado a filiação dos Autores e o óbito de sua mãe (com base nas certidões de nacimento e de óbito), daí não se pode extrapolar, de forma direta para a situação de eles serem os únicos e universais herdeiros, pois esta última alocução só se poderia provar por escritura pública de habilitação de herdeiros ou por decisão judicial.
Conclusões 4, 5 e 6:
4. Por outro lado, face à posição assumida pela Ré relativamente às fotografias do prédio juntas pelos AA. com a petição inicial, não pode deixar de considerar-se que essas fotografias retratam a situação do prédio no decurso das obras;
5. Ao considerar não provado que essas fotos sejam do prédio, a sentença recorrida desrespeitou, designadamente o disposto na 2ª parte do nº 4 do artigo 607º do CPC;
6. Pelo que, deve a decisão de facto, nessa parte, ser alterada, considerando-se provado que as fotos juntas respeitam ao prédio;
As fotografias são um documento particular e, como tal, um meio de prova, sujeito a contraditório e à livre apreciação do Tribunal. A Ré impugnou todos os documentos juntos (artigo 7 da contestação) e, neste particular das fotos, até suscitou a questão de as mesmas constituírem prova proibida (artigo 8 da contestação). Nesta medida, competiria aos Autores demonstrar a sua veracidade, o que não fizeram: art.º 374º nº 2 do CC. Portanto, como se diz na sentença, «As fotografias juntas são cenários de obras que podem ou não ser do local; tendo sido impugnados, nenhuma outra prova se produziu que permita concluir que aquelas fotografias são do local.»
Conclusão 7:
7. Por outro lado, provado (F) que a Ré em 27/06/2019 enviou através de carta registada um comunicado datado de 19/06/2019 a informar que iria iniciar as obras no prédio, e que em 19/06/2019 a Ré iniciou essas obras, não pode ao mesmo tempo considerar não provado que, sem qualquer aviso prévio, a Ré tenha tido as intervenções que essas obras pressupõem, designadamente destruindo o interior de todas as restantes habitações com exceção da habitação da mãe dos AA.;
Põe-se em causa a existência de contradição entre o facto provado “D” e “F” e o não provado “b”. Em “D” diz-se que as obras foram iniciadas no dia 19/06/2019. Ocorre contradição quando, de acordo com as regras da lógica e/ou da experiência, resulte uma situação de mútua exclusão, por não ser possível que as ocorrências da vida em causa aconteçam, simultaneamente, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar. Quanto ao provado em “F” o que releva é que a carta registada foi enviada no dia 27/06/2019 (apesar de a carta ter a data de 19) e que dizia a Ré que iria iniciar as obras no dia 25 desse mês. Como é sabido, nem sempre a data aposta no conteúdo das cartas/comunicados coincidem com as datas em que são depois enviadas ao correio (data do registo) e, muito menos, com a da respetiva receção pelo destinatário. Ou seja, é perfeitamente possível que uma carta seja escrita no dia 19 (datada desse dia) e só depois seja enviada (levada aos correios) no dia 27. Ora, como ficou provado que a Ré iniciou as obras a 19 (e não a 25), tem todo o sentido dizer que as obras foram efetivamente iniciadas sem aviso prévio. A 19, quando se iniciaram efetivamente, ainda a mãe dos Autores não tinha recebido qualquer aviso. Daí que não vislumbremos contradição com o facto não provado “b”.
Conclusões 8, 9 e 10:
8. Porque, como a sentença considera, as consequências de obras no prédio são por demais conhecidas por todas as pessoas socialmente inseridas: a poluição sonora, a poluição do ar, a poluição do espaço, como também o efeito desta poluição no ser humano que, sendo mais idoso, são necessariamente mais gravosas;
9. Porque ainda, como igualmente a sentença considera, as obras incomodam profundamente os que foram sujeitos à poluição de diversa natureza que elas provocam;
10. Não podia deixar de tirar daí as respetivas consequências e condenar a Ré na indemnização dos danos que dessa forma causou à mãe dos AA. e a estes, que muito sofreram por ver sua mãe assim perturbada e grosseiramente desrespeitada no seu sossego e na sua vida;
Manifestamente que os Recorrentes não deram cumprimento ao art.º 640º do CPC, sendo completamente omissos quanto aos concretos pontos de facto que entendem incorretamente julgados. Para além disso, os Autores confundem o apuramento/delimitação da matéria de facto (provada e não provada) com a respetiva fundamentação, os considerandos que a M.º Juíza teceu para demonstrar o iter da formação da sua convicção. A absolvição da Ré não resultou dessa consideração (que a Sr.ª Juíza até refere como facto notório e, portanto, dispensado de alegação e prova), mas tão só de se ter concluído pretenderam exercer no processo direitos de que não eram titulares (legitimidade substantiva).
Conclusões 11, 12 e 13:
11. Por último, face aos documentos relativos aos consumos de energia elétrica e de “água da companhia”, porque esses consumos ocorreram após a Ré iniciar as obras no prédio e estão em total desconformidade com os consumos habituais da mãe dos AA;
12. Sendo, por isso, óbvio que tais consumos ou foram abusivamente feitos pela Ré, ou provocados por ação desta;
13. Deve também a Ré ser condenada a pagar aos AA. o valor de 879,54 € relativo ao consumo de água e 136,06 € relativo ao consumo de energia elétrica;
Ocorre aqui a mesma situação atrás referida. Tratando-se de documentos particulares, que foram impugnados, competia aos Autores a demonstração da sua veracidade, o que não logrou fazer.
Concluindo, nada há que alterar quanto à matéria de facto considerada em 1ª instância.

5.2. Quanto à matéria de direito
5.2.1. A legitimidade processual (ad processum) e a legitimidade substantiva (ad causam)
Uma relação humana assume relevância jurídica na medida em que for disciplinada pelo Direito. «Num sentido amplo pode designar-se por relação jurídica toda a situação ou relação da vida real (social) que é juridicamente relevante, de modo que é disciplinada pelo direito» [1]
O processo civil é um processo de partes. Nele discutem-se apenas interesses privados, ou seja, é na esfera jurídica dos pleiteantes que se irão repercutir as consequências ou efeitos das decisões judiciais.
Por outro lado, a decisão a proferir pelo Tribunal fica limitada pelo pedido e pela causa de pedir invocada. Como se viu, a sentença recorrida considerou que os Autores não eram os titulares do direito invocado, pelo que julgou a ação improcedente.
Em termos processuais, comanda o art.º 30º do CPC: o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, «(…), exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.» [2]
A legitimidade ad processum é um pressuposto processual, refere-se à capacidade das partes para estar em juízo, à titularidade da pretensão processual. Neste âmbito, quando o tribunal conclui pela ilegitimidade ativa, a consequência será a absolvição da instância (decisão de forma) do réu, sem que o tribunal se chegue a pronunciar sobre o mérito da ação: art. 576º nº 2 e 577º al. e) do CPC.
Já a legitimidade substantiva é apreciada à luz das regras substantivas, de direito material. Quando ela não se verifica, a consequência é a improcedência do pedido (decisão de mérito).
Isto porque a legitimidade substantiva está relacionada com a titularidade do direito. O Tribunal só pode reconhecer um direito àquele a quem a lei o atribui. É em face da relação jurídica trazida aos autos, e das normas jurídico-substantivas que regem o respetivo instituto, que o Tribunal vai apurar se é o Autor o titular dessa relação jurídica de direito material.
Como tal, a legitimidade substantiva contende com o mérito da ação, ou seja, com a decisão que há que proferir a final reconhecendo ou não o direito que o Autor se arroga, concedendo ou denegando a providência requerida. [3]

5.2.2. As regras jurídicas de direito material convocáveis ao caso
A personalidade jurídica só cessa com a morte da pessoa (art.º 68º do CC). Cessada a personalidade jurídica, abre-se uma brecha nas relações jurídicas de que o “de cuius” era titular, porque estas ficam sem o sujeito/titular. Esta situação é resolvida através do fenómeno sucessório. O conjunto de bens, direitos e obrigações que se situavam na esfera jurídica do “de cujus” constitui o acervo hereditário, vulgo herança, em que irão suceder os herdeiros.
Enquanto não for aceite, a herança denomina-se de jacente (art.º 2046º CC) e só após a aceitação pelos herdeiros se qualifica de indivisa (art.º 2091º CC). À herança jacente é atribuída personalidade judiciária [art.º 12.º al. a) do CPC], significando que pode estar por si só em juízo, enquanto a herança indivisa carece dessa personalidade judiciária, sendo representada em juízo por todos os herdeiros (art.º 2091º do CC) ou pelo cabeça de casal (art.º 2079º CC).
Em sentido estrito, a herança constitui uma universalidade de bens. A propriedade em comunhão consiste na contitularidade de um único direito sobre o todo unitário que é o acervo hereditário. O objeto da propriedade comum não se reparte entre os contitulares, antes pertence em bloco ou unitariamente ao conjunto dos contitulares. Cada um destes não tem qualquer fração ideal de que possa dispor; o direito é pertença do grupo de herdeiros e apenas deste.
Nesta medida, os herdeiros sucedem a título universal [4], ou seja, numa simples quota da totalidade do acervo hereditário e não sobre bens certos e determinados (art.º 1404º do CC). O herdeiro sabe que tem direito a uma parte do acervo hereditário, mas desconhece qual a “porção de bens” em concreto; a determinação de qual o bem que, em concreto, irá ficar a pertencer a este ou àquele herdeiro só fica definido com a escritura pública ou partilha judicial (art.º 2119º CC). [5]
Nas suas conclusões, os Autores entendem que a situação descrita é subsumível ao art.º 2078º do CC ─ Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro ─ pelo que, sendo herdeiros, teriam legitimidade para exigir a entrega (ou correspondente valor) dos bens que pertenciam à de cujus (sic).
O art.º 2078º está incluído no capítulo da ação de “petição da herança”, a qual, como se extrai do art.º 2075º, tem uma dupla finalidade: (i) o reconhecimento judicial do estatuto de herdeiro; (ii) a devolução ao herdeiro dos bens que constituem o ativo da herança.
Daqui resulta o art.º 2078º não pode ser chamado à colação pois regula apenas para a questão específica da ação de petição da herança.
E também não se pode confundir “entrega de bens”, com a “entrega do valor desses bens”. A “entrega de bens” é uma ação possessória (direitos reais): art.º 2088º do CC.
No nosso caso, os autores estribaram a sua ação com base na responsabilidade civil por factos ilícitos, que se situa no âmbito do direito das obrigações. Por isso, os Autores não pedem aqui a entrega de qualquer bem em específico. Os Autores estão a acionar direitos de crédito que pertenceriam à herança indivisa.
O direito de crédito, integrando o património da vítima é, depois da morte, transmissível em termos hereditários, de acordo com as regras gerais de direito sucessório.

5.2.3. Analisando a causa de pedir e os pedidos dos Autores
Vejamos então como os Autores estribaram a sua ação. Em resumo, alegaram o seguinte: a mãe dos Autores, entretanto falecida, era arrendatária de um prédio que hoje pertence à Ré; esta decidiu efetuar obras de restauração/remodelação no interior do prédio onde se situa o arrendado, tendo destruído o interior de todas as restantes habitações com exceção da habitação da mãe. A destruição do interior das outras habitações provocou uma cerrada nuvem de pó por todo o prédio e por toda a casa da mãe, o ar mostrava-se irrespirável e o ruído provocado pelas obras era ensurdecedor. Toda essa situação desequilibrou drasticamente a saúde mental da mãe dos Autores que, a partir do início das obras começou a apresentar um discurso desorganizado, perda de associação, a necessitar de fazer medicação psicofarmacológica e acompanhamento por psiquiatria.
Após a morte da mãe dos Autores, estes, tendo em vista a entrega do imóvel à Ré, iniciaram a arrumação/separação dos seus pertences; em maio de 2020 constataram que o arrendado já não tinha porta nem divisões, metade do espaço já não tinha chão, as paredes mestras tinham a pedra à vista e todos os bens que existiam no seu interior tinham desaparecido; o quadro elétrico, cujo contrato ainda se encontrava ativo e titulado pela mãe dos Autores, encontrava-se sem o armário e a ele estava ligado um cabo que alimentava a obra do prédio. Os trabalhadores da obra informaram que lhes foi dada ordem para retirarem todos os bens e os colocar no contentor do lixo, por forma a iniciarem a obra no espaço que constituíra a casa da mãe dos Autores.
Depois do início das obras, os consumos de água do arrendado aumentaram substancialmente porque a Ré a estava a usar ou porque provocou fuga nas canalizações; o mesmo aconteceu com os consumos de luz, porque a Ré utilizava a luz da casa do arrendado para a obra no prédio.
Daqui resulta que, quanto à causa de pedir, os Autores invocaram a responsabilidade civil por factos ilícitos: art. 483º do Código Civil (CC).
Quanto aos pedidos formulados, são eles os seguintes:
• € 2.500,00, correspondente a todo o sofrimento causado à mãe com a forma como executou as obras no prédio;
• € 7.500,00, correspondente ao sofrimento causados pela Ré aos Autores com o desaparecimento dos bens da família;
• € 10.000,00, correspondente ao valor dos bens pertencentes aos Autores e que a Ré fez desaparecer do arrendado;
• € 879,54, relativos aos consumos excessivos de água a que a Ré deu causa;
• € 136,06, relativos aos consumos excessivos de luz a que a Ré deu causa
Daqui resulta claramente que os danos cuja indemnização aqui se pretende não têm todos a mesma titularidade. Assim:
a) - Danos situados na esfera jurídica da mãe
€ 2.500,00, correspondente a todo o sofrimento causado à mãe com a forma como executou as obras no prédio;
€ 879,54, relativos aos consumos excessivos de água a que a Ré deu causa;
€ 136,06, relativos aos consumos excessivos de luz a que a Ré deu causa
· € 10.000,00, correspondente ao valor dos bens pertencentes aos Autores e que a Ré fez desaparecer do arrendado;

b) – Danos situados na esfera jurídica dos Autores
• € 7.500,00, correspondente ao sofrimento causados pela Ré aos Autores com o desaparecimento dos bens da família;
Ora, por tudo o que se vem dizendo, temos de concluir que a solução jurídica desta dupla vertente (danos na esfera jurídica dos Autores/danos na esfera jurídica dos próprios Autores) não pode ser a mesma, impondo-se a sua abordagem específica.
Na sentença o M.mº Juiz não fez essa destrinça, o que passamos a efetuar.

5.2.4. Quanto aos danos situados na esfera jurídica da mãe
Neste âmbito, face às normas legais atrás explanadas, há que concordar com o decidido em 1ª instância.
Os Autores não juntaram qualquer título de habilitação de herdeiros (escritura pública ou decisão judicial); juntaram apenas a certidão de óbito da mãe e as de nascimento deles Autores.
Ora, não basta, como pretendem os Autores, que se reconheça que “dos documentos autênticos provada a filiação dos autores e o óbito da mãe destes.”
Esses documentos provam efetivamente a filiação e o óbito; e também podemos até aceitar que já estamos perante uma herança indivisa (presumindo ter havido aceitação tácita da herança, decorrente da propositura desta ação) e que os Autores são herdeiros.
Porém, sem a competente escritura de habilitação de herdeiros, ou decisão judicial, ficamos sem saber se existem outros pois podem os Autores não ser os únicos (existem outros? Alguém renunciou? Algum herdeiro pré-falecido? – tantas hipóteses a ter em conta e que ficam definidas mediante a escritura pública ou decisão judicial de habilitação de herdeiros); em segundo lugar porque, como se disse, a Autora teria de ser a herança, representada pelos Autores. Só nessa perspetiva é que, na procedência da ação, o montante da indemnização iria entrar na titularidade da herança para depois ser objeto de partilha; e, em abstrato, não se pode sequer dizer com segurança que, de qualquer forma, iria depois ingressar na titularidade dos Autores, bastando pensar na hipótese de existirem dívidas da herança que houvessem de ser pagas primeiro.
Concluindo, os direitos de crédito aqui objeto de litígio ─ relativos a danos morais e a danos patrimoniais sofridos pela falecida mãe dos Autores ─, encontram-se na esfera jurídica da herança indivisa aberta por seu óbito, pelo que só poderiam ser exercidos por todos os herdeiros, nos termos do art.º 2091º do CC. [6] Os Autores demonstraram ser herdeiros, mas não se mostra comprovado que sejam os únicos herdeiros.

5.2.5. Quanto aos danos situados na esfera jurídica dos Autores
Quanto aos danos morais sofridos pelos próprios Autores, naturalmente que já temos de concluir pela sua legitimidade ad causam, pois se trata de direitos próprios, porque produzidos diretamente na sua pessoa ou esfera jurídica.
Trata-se aqui de um único item, € 7.500,00, correspondente ao sofrimento causados pela Ré aos Autores com o desaparecimento dos bens da família, designadamente quadros pintados à mão por familiares, têxteis de grande valor sentimental (bordados, atoalhados, colchas em renda feitos à mão), livros, fotografias, adornos, loiças, papéis e cartas pessoais. Segundo os Autores, “todos eles constitutivos de toda uma identidade familiar construída ao longo de gerações”.
Na verdade, estes bens, apesar de não lhes pertencerem ainda, pelas razões referidas no ponto 5.2.2., integram um legado de valores e afetos que contam a “história da família”, a evocação afetiva e familiar entre gerações, integrando um “património familiar”, a todos pertencente, independentemente do significado jurídico estrito da propriedade. Pertencem ao nível dos “objetos biográficos”, cuja destruição a todos afeta, independentemente de quem seja o seu proprietário ou os tiver à sua guarda (cf. Art.º 77º do CC).
Consideram-se danos morais as perturbações ocorridas na saúde psíquica das pessoas por força dos desgostos, dores, sofrimentos, angústias, vexames, contrariedades… Não temos dificuldade em aceitar que a perda de bens de família possa causar sofrimento, pela memória e ligação aos familiares falecidos que normalmente lhes anda associada.
Os danos morais contendem com interesses imateriais, no sentido de que não atingem o património do lesado, reportando-se antes ao seu bem-estar físico e psíquico, «(como as dores físicas, os desgostos, morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) (…), porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome)». [7]
Mas, para além da verificação do dano, há que contar com os demais pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, a responsabilidade da Ré existirá apenas, e na exata medida, em que se verificarem os pressupostos da obrigação de indemnizar.
São pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos (dita, extracontratual), uma conduta ilícita, a sua imputação ao agente a título de culpa e a existência de danos, causados ou decorrentes dessa conduta.
Quanto à ilicitude, traduz-se ela na ofensa de direitos de terceiro ou na violação de disposições legais (normas legais e/ou regulamentares, bem como princípios gerais ou regras de ordem técnica e de prudência comum) destinadas a proteger interesses alheios.
No caso não ficou provado que tivessem sido os trabalhadores da Ré que, por sua ordem, tivessem retirado todos os bens e os tivessem colocado no contentor do lixo (facto não provado “r”). Ou seja, não é possível imputar à Ré a destruição dos referidos bens de “património familiar”.
Como os pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos são cumulativos, tanto basta para determinar a improcedência deste pedido dos Autores.
Por fim, cumpre deixar consignado que, quanto aos € 10.000,00, os Autores os referem no pedido final como “correspondente ao valor dos bens pertencentes aos Autores e que a Ré fez desaparecer do arrendado”.
Contudo, trata-se certamente de um erro material uma vez que ao longo da sua petição inicial (artigos 96º a 98º da PI), referes que se tratavam do mobiliário e os mais diversos objetos de recheio de casa de sua mãe e a ela pertencentes. Isso mesmo resulta dos factos provados “I” e “L”, contra o qual os Autores não reagem.

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, ainda que com outra fundamentação, manter a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos Recorrentes.

Porto, 07 de abril de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Heinrich Ewald Hörster, “A Parte Geral do Código Civil Português”, Almedina, 2003, pág. 159.
[2] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 51.
[3] Acórdão da Relação do Porto, 2021-10-04, Processo nº 1910/20.4T8PNF.P1, disponível em disponível em www.dgsi.pt//, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem:
II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, pressuposto processual já considerado, pacificamente, verificado, em termos tabelares, no despacho saneador, bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio.
E, ainda, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2021-03-18, Processo nº 572/19.6T8OLH.E1.S1:
III - Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art. 30.º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa.
IV - Sendo um dos requisitos da responsabilidade civil a violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), é necessário que quem pede que lhe seja paga uma indemnização demonstre ser titular do direito violado, sob pena de se concluir que carece de legitimidade (substantiva) para o efeito.
[4] É isso, aliás, que distingue o herdeiro do legatário. O herdeiro sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido; já o legatário sucede em bens ou valores determinados, identificados ou identificáveis.
[5] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2009-04-21, Processo nº 09A0635:
IV – A comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, não se confunde com a compropriedade, uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
V- Da aceitação sucessória apenas decorre diretamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária.
VI- Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas.
VII – Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte em cada um “.
VIII – Até à partilha, os herdeiros são titulares, tão somente, do direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar.
IX – Só depois da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança.
[6] Concordamos aqui com Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. VI, Coimbra Editora, pág. 152, no entendimento que o art.º 2091º constitui a regra geral, sendo os artigos 2088º a 2090º regras especiais.
[7] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª edição, Almedina, pág. 601.