Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
247/04.0TVPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
DESISTÊNCIA DA PENHORA
PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO
CREDOR RECLAMANTE
Nº do Documento: RP20180711247/04.0TVPRT-C.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º839, FLS.148-155)
Área Temática: .
Sumário: I - O credor reclamante vem ao processo executivo invocar um crédito de que é titular e, após a verificação do mesmo, passa a ter um estatuto processual próprio, passando a assumir a posição de parte na ação executiva.
II - A aplicação dos princípios constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis à ação executiva, a análise do estatuto legal do credor reclamante e o elemento teleológico das normas jurídicas de proteção dos direitos dos credores reclamantes, levam-nos a concluir que, se a prossecução da penhora se justifica na situação de extinção da execução, nenhuma razão existe para, na situação de mera desistência da penhora pelo Exequente, não se aplicar a mesma solução legal.
III - Não existindo norma expressa, deve proceder-se à aplicação analógica dos art.º 809.º, n.º 4, e 850.º, n.º 2, do CP Civil, admitindo-se o prosseguimento da execução quanto ao bem penhorado, assumindo a Reclamante a posição de Exequente, para pagamento do seu crédito reclamado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 247/04.0TVPRT-C.P1
Comarca: [Juízo de Execução do Porto (J2); Comarca do Porto]
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Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunto: Fernando Samões
Adjunto: Vieira e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
“B…, S.A.”, entretanto substituída processualmente por “C…”, intentou ação executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma comum, contra D…, residente na Praça …, .., …, Braga, para pagamento da quantia de €32 852,82, apresentando como título executivo uma livrança.
Em 03/03/2005, foi penhorada a fracção autónoma, designada pelas letras “CB”, correspondente a uma habitação no 4.º andar, esquerdo, traseiras, do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º 00462/050689 de freguesia de ….
Foi efectuado o registo desta penhora na Conservatória do Registo Predial de Braga, através da Apresentação n.º 40, de 03/03/2005.
Oportunamente, a “E…, S.A.” veio apresentar reclamação de créditos, relativamente às quantias de €45 447,87 e €22 724,38 (acrescidas de juros de mora), referentes a dois contratos de mútuo celebrados com o Executado.
Com data de 07/11/2007, foi proferida sentença de reclamação de créditos reconhecendo que estes créditos reclamados gozam, sobre aquele bem, da garantia resultante de hipotecas constituídas a favor da Reclamante, as quais foram registadas anteriormente à penhora dos autos, e com a seguinte parte decisória: “Pelo exposto, julgo reconhecidos os créditos reclamados e passo a graduar os créditos pela seguinte forma: a) Em primeiro lugar, pagar-se-ão os créditos reclamados e respectivos juros; b) Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito exequendo.”
Com data de 10/01/2017, a Exequente apresentou requerimento à Sr.ª Agente de Execução com o seguinte teor: “atenta a aparente dificuldade na venda do imóvel penhorado, bem como a existência de créditos reclamados pelo credor hipotecário em montante superior ao valor do imóvel, vem informar V/Ex.ª que desiste da penhora registada sobre o imóvel em questão. Mais se requer a V/Ex.ª a realização de pesquisas actualizadas às bases de dados disponíveis, a fim de apurar da existência de outros bens ou rendimentos susceptíveis de penhora.”
Notificada para se pronunciar, a Reclamante “E…, S.A.” veio, por requerimento de 02/03/2017, “requerer o prosseguimento das diligências de venda do imóvel penhorado, sendo que, ademais, vem apresentar proposta de aquisição, pelo valor de €47.250,00 (quarenta e sete mil duzentos e cinquenta euros), do imóvel penhorado, a saber….”
Sequencialmente, a Sr.ª Agente de Execução prestou a seguinte informação ao Tribunal: “….vem informar V. Exa. que o credor reclamante E…, S.A. apresentou proposta para aquisição da fracção CB do prédio 462 da freguesia de … por €47.250,00. O valor proposto não cumpre o disposto no n.º 2 do artigo 816.º do CPC, sendo o valor de venda 63.750,00€ e o base 75.000,00€. Foram as partes, executado e credor F…, uma vez que o exequente desistiu da penhora do imóvel e os credores pediram o seu prosseguimento, notificadas da proposta apresentada para se pronunciarem. O executado e credor F… declararam não aceitar a proposta, contudo importa referir que foi a única proposta apresentada até ao momento. Nesta conformidade, vem a signatária requerer a V. Exa. que se digne ordenar o que tiver por conveniente, nomeadamente, se pode a Agente de Execução adjudicar o bem imóvel ao credor pelo preço oferecido.”
Com data de 06/09/2017, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Nos termos do art.º 850.º, n.º2 do Código de Processo Civil, os credores reclamantes apenas podem requerer o prosseguimento da execução, para venda dos bens sobre os quais incide a sua garantia, se a execução tiver sido declarada extinta. No caso dos autos, não ocorreu qualquer extinção da execução, mas apenas a desistência da penhora por parte da exequente (o que implica o seu levantamento), pelo que não é lícito àqueles credores requererem a venda do bem imóvel, extinguindo-se a instância, relativamente aos créditos reclamados, por impossibilidade superveniente da lide. Assim, deverá a Sr.ª Agente de Execução diligenciar pela concretização do levantamento da penhora e consequente cancelamento do seu registo, indeferindo-se a requerida venda.”
Inconformada com esta decisão, a Credora Reclamante “E…, S.A.” interpôs o presente recurso, terminando com as seguintes:
CONCLUSÕES:
I. Foi penhorada no âmbito e à ordem dos presentes autos a fracção autónoma designada pelas letras “CB”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º 462/… – “CB”, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 3969º-“CB”.
II. Por possuir hipoteca registada sobre o bem em questão, foi a E… citada para reclamar os seus créditos, o que fez por via de meio próprio e tempestivo.
III. Tendo, de resto, tais créditos sido reconhecidos, verificados e graduados em primeiro ligar para pagamento pelo produto da venda do bem em questão.
IV. Corridos os normais trâmites processuais, veio a Exequente, a 10 de janeiro de 2017, desistir da penhora que incide sobre tal imóvel.
V. Notificada que foi de tal desistência, veio a E…, mediante requerimento de 02 de março de 2017, peticionar o prosseguimento dos autos quanto ao imóvel em questão, apresentando, concomitantemente, proposta de aquisição pelo valor de €47.250,00.
VI. Ocorre que o Tribunal a quo entendeu que “os credores reclamantes apenas podem requerer o prosseguimento da execução para venda dos bens sobre os quais incide a sua garantia, se a execução tiver sido declarada extinta.”
VII. Considerando, por conseguinte, que no caso dos autos “não ocorreu qualquer extinção da execução, mas apenas a desistência da penhora por parte da exequente (o que implica o seu levantamento), pelo que não é lícito àqueles credores requererem a venda do bem imóvel, extinguindo-se a instância, relativamente aos créditos reclamados, por inutilidade superveniente da lide”, indeferindo, como tal, a requerida venda.
VIII. Não podemos concordar com tal decisão, a qual, por errada e excessivamente formalista, configura solução injusta, claramente atentatória do espírito do legislador na previsão constante dos artigos 809.º e 850.º do CPC e violadora do princípio da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis.
IX. Com a admissão liminar da reclamação de créditos, nos termos do artigo 789.º, n.º 1, do CPC, o credor reclamante torna-se parte principal não só na ação de verificação e graduação de créditos, como, também, na ação executiva, com uma posição de co-exequente ou parte principal em litisconsórcio com o exequente.
X. A reforma introduzida pelo D.L. n.º 329-A, de 12.12, com a nova redacção que conferiu ao n.º 2 do artigo 850.ºdo CPC (anterior 920.º), alargou a todos os credores reclamantes, cujos créditos tivessem sido liminarmente admitidos, a faculdade de fazer prosseguir a execução que até aí só era conferida ao credor graduado, faculdade que se estendeu ao caso de o exequente desistir da penhora, nos termos do n.º 4 do artigo 809.º do CPC.
XI. Ora, se o Credor Reclamante pode prosseguir a execução, assumindo a posição de exequente, e estando subjacente ao comando do n.º 2 do artigo 850.º do CPC uma ideia de racionalidade e economia de meios, natural é que todos os atos até aí praticados relativamente aos bens em que prossegue a execução sejam aproveitados, conforme dispor o n.º 4 do referido artigo 850.º. Pelo que se torna inútil e desnecessário proceder a novo ato de penhora e respectivo registo.
XII. A ratio do já mencionado artigo 850.º do CPC baseia-se, assim, na aplicação do princípio do menor esforço ou da economia de meios (princípio da economia processual), permitindo que se aproveite tudo o que relevantemente tiver sido processado antes da prolação da sentença de extinção, para tanto se conferindo ao credor reclamante a dignidade de parte principal.
XIII. Esta aceitação do credor reclamante como parte principal na ação executiva é a única que respeita a coerência do sistema legal que estrutura aquele mesmo processo.
XIV. Como refere o Professor Lebre de Freitas “a partir da reclamação de créditos há que atender também ao interesse dos credores reclamantes, o artigo 885.º, n.º 1 (deve ler-se artigo 809.º) confere ao credor cujo crédito esteja vencido, bem como ao exequente em outra execução que reclame, nos termos do artigo 865.º, n.º 3 e 5 (leia-se artigo 788.º) o direito de prosseguir com a execução para satisfação dos seus créditos” (in “A Ação Executiva Depois da Reforma”, 5.ª Ed., página 351).
XV. A desistência da penhora por parte do exequente não pode prejudicar a satisfação do crédito reclamado, já admitido liminarmente, pelo produto da venda do bem penhorado, sendo-lhe concedida, para tanto, a prerrogativa do prosseguimento da execução, com a manutenção da penhora daquele bem.
XVI. Face à proteção que a lei confere ao credor reclamante, máxime nas situações apontadas nos artigos 850.º e 809.º do CPC, mal se compreenderia que o mesmo visse a sua pretensão de satisfação do seu crédito totalmente posta em causa, e mesmo impossibilitada, só porque o Exequente (obviamente depois de ver que do produto da venda do bem penhorado não iria lograr recuperar o seu crédito, em virtude de existirem créditos graduados preferencialmente em relação ao seu) desistiu da penhora.
XVII. Ora, atendendo à posição que o Credor Reclamante ocupa no processo de execução, e como supra mencionado, estando a sua intervenção limitada ao bem sobre o qual incide a sua garantia real, desistindo o Exequente da penhora sobre esse bem, mas mantendo-se o interesse dos demais Credores na prossecução da execução em virtude das garantias que detém sobre os referidos bens, deve a execução prosseguir, mantendo-se a penhora, no respeito pelo princípio da economia processual e aproveitando-se os atos até então praticados, bem atento a dinâmica do processo de execução.
XVIII. Não parece, de todo, justo ou conforme com os impositivos de economia processual que, para recuperar os seus créditos, a Recorrente tenha agora que instaurar uma nova ação executiva e ver praticados novamente todos os atos aqui acautelados de citação, penhora e fixação de modalidade e valor de venda, com as delongas e custos inerentes.
XIX. Ao Exequente é conferido, é certo, o direito de desistir livremente da penhora registada sobre bem imóvel, contudo isso não pode prejudicar o Credor Reclamante (cujo crédito foi admitido, verificado e graduado para pagamento pelo produto de tal bem), o qual tem, também, um estatuto processual próprio, entendendo a aqui Recorrente que é necessário o seu assentimento para levantamento da penhora, sob pena de ver, como viu na decisão recorrida, os seus créditos prejudicados em virtude de serem unicamente considerados os créditos do Exequente.
XX: A situação em apreço não está diretamente regulada no n.º 2 do artigo 850.º do CPV, contudo, entende a Jurisprudência que em caso de desistência da penhora por parte do Exequente, como sucedeu in casu, o credor reclamante pode requerer a manutenção da penhora, por aplicação analógica dos artigos 809.º, n.º 4, e 850.º, n.º 2, ambos do CPC.
XXI. Do exposto resulta que, não sendo a situação suj judice expressamente tratada nem prevista no Código de Processo Civil, torna-se necessário recorrer às regras de analogia de acordo com o disposto no artigo 10.º do Código Civil, aplicando-se-lhe o regime imposto pelo n.º 4 do artigo 809.º do CPC, segundo o qual “desistindo o exequente da garantia, o requerente assume a posição do exequente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.º 2 a 4 do artigo 850.º”.
XXII. De referir, ainda, que o disposto no artigo 850.º, n.º 2, do CPC não seja diretamente aplicável, “nada obstando, porém, a que dele se retire, por analogia, um argumento de maioria de razão – se a instância se pode renovar, visando a satisfação de um crédito reclamado, por maioria de razão se há-de admitir que a mesma prossiga, mantendo-se a penhora de que o exequente desistiu, para pagamento desse mesmo crédito reclamado” (neste sentido vide Ac. TRP de 16.03.2006, proc. N.º 0630642, Ac. TRL de 05.06.2013, proc. N.º 340-A.1999.4, disponíveis em www.dgsi.pt).
XXIII. A decisão recorrida, ao concluir que os autos não podem prosseguir com a venda, para satisfação do crédito reclamado pela E…, perfilha-se, assim, como decisão violadora dos artigos 809.º, n.º 4, 850.º, n.º 2 e 130.º do CPC e 2.º da CRP, devendo ser substituída por outra que declare que a execução deve prosseguir com a venda do bem imóvel hipotecado a favor da E…, para satisfação do respetivo crédito e que aprecie da aceitação da proposta de aquisição apresentada pela E….
Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso, é a de saber se, perante a desistência de uma penhora pelo Exequente, o Credor Reclamante pode prosseguir com a venda do bem em causa.
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III – PROSSEGUIMENTO DO CREDOR RECLAMANTE NA VENDA DE BEM EM RELAÇÃO AO QUAL O EXEQUENTE DESISTIU DA PENHORA
No presente recurso, a Credora Reclamante/Recorrente sustenta – em síntese – que, com a admissão liminar da reclamação de créditos, nos termos do artigo 789.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[1], o credor reclamante torna-se parte principal não só na ação de verificação e graduação de créditos, como, também, na ação executiva, com uma posição de co-exequente ou parte principal em litisconsórcio com o exequente.
Advoga que a desistência da penhora por parte do exequente não pode prejudicar a satisfação do crédito reclamado, já admitido liminarmente, pelo produto da venda do bem penhorado, sendo - lhe concedida, para tanto, a prerrogativa do prosseguimento da execução, com a manutenção da penhora daquele bem.
Defende que, não sendo a situação sub judice expressamente tratada nem prevista no CP Civil, torna-se necessário recorrer às regras de analogia de acordo com o disposto no artigo 10.º do Código Civil, aplicando-se-lhe o regime imposto pelo n.º 4 do artigo 809.º do CPC, segundo o qual “desistindo o exequente da garantia, o requerente assume a posição do exequente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.º 2 a 4 do artigo 850.º”.
Cumpre decidir.
Os factos com interesse para a apreciação do presente recurso são os contantes do relatório.
A decisão do tribunal recorrido assenta na disposição legal do n.º 2 do art.º 850.º do CP Civil, a qual versa efetivamente e diretamente apenas situações de extinção da execução, ao definir que “Também o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efetiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito.”
No entanto, em termos práticos, esta posição implica a inutilidade da reclamação de créditos e obriga a Reclamante a intentar nova ação executiva para satisfação do seu crédito, com a repetição de todos os atos processuais já praticados nestes autos e com o inerente dispêndio quer de quantias pecuniárias suplementares, quer de tempo. Em síntese, diremos que o direito do credor reclamante à satisfação do seu crédto fica atingido com intensidade.
A questão pertinente é, portanto, a de decidir se esta será a solução conforme aos princípios e disposições legais aplicáveis às execuções.
Desde logo, em termos constitucionais, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de abril de 2010[2] relembra que esse Tribunal “tem sempre dito, em jurisprudência firme, que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição “não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais» (Vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 491/02, 273/04 e 620/04, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Significa isto que, não havendo coincidência entre o conceito constitucional de propriedade e o correspondente conceito civilístico, e incluindo-se no âmbito de proteção da norma contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP situações patrimoniais outras que não apenas as respeitantes à propriedade das coisas e aos direitos reais menores, alguma tutela reservará a garantia constitucional da propriedade aos chamados direitos de crédito.”
Temos, pois, e antes de mais, que o legislador ordinário está vinculado a conformar os processos de execução aos princípios constitucionais, designadamente à proteção do direito de propriedade, na sua sub-vertente dos direitos de crédito.
Ora, o credor reclamante vem precisamente ao processo executivo invocar um crédito de que é titular e, após a verificação do mesmo, passa a ter um estatuto processual próprio.
Como explica António Carvalho Martins[3] “O fundamento do concurso de credores é o princípio de que o património do devedor é a garantia comum de todos os credores (art.º 601.º do Código Civil). Assim, promovida a execução por um credor, chamam-se os outros credores e admitem-se aqueles que estão nas condições legais, a fim da venda forçada dos bens do devedor não se realizar em proveito exclusivo do exequente, com sacrifício dos direitos dos restantes credores.”
Em concretização deste estatuto próprio, o CP Civil determina designadamente que o Credor Reclamante se possa substituir ao Exequente na prática que atos que ele tenha negligenciado (cf. art.º 763.º, n.º 3); possa requerer a adjudicação de bens penhorados (Cf. art.º 799.º, n.º 2); seja ouvido sobre a modalidade da venda, o valor base dos bens a vender e sobre a eventual formação de lotes (cf. art.º 812.º do CP Civil); possa requerer o prosseguimento da execução após acordo de pagamento a prestações (cf. art.º 809.º); requerer a dispensa do depósito do preço (cf. art.º 815.º); apreciar as propostas de venda em carta fechada (cf. art.º 820.º), suscitar irregularidades verificadas no ato de abertura das propostas (cf. art.º 822.º) e propor a modalidade de venda de estabelecimento comercial (cf. art.º 829.º, todos do CP Civil).
Em face deste feixe de direitos e ónus, deve entender-se que o credor reclamante, após a verificação do seu crédito, passa a assumir a posição de parte na ação executiva.
Numa vertente puramente processual, releva atentar cumulativamente no princípio da economia processual, o qual impõe, usando as palavras de Lebre de Freitas[4] que “o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios. Esta economia de meios exige que cada processo, por um lado, resolva o maior número possível de litígios (economia de processos) e, por outro, comporte só os atos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de atos e formalidades).”
Em aplicação deste princípio à ação executiva encontramos precisamente as disposições legais relativas à reclamação e verificação de créditos, que permitem o aproveitamento da ação proposta e, consequentemente, a desnecessidade de interposição de ações executivas autónomas – transformando-a numa ação global de pagamento de todos os créditos sobre o Executado.
Tal como se explica no Acórdão desta Relação de 16/03/2006, tendo como Relator Ataíde das Neves[5]: “A ratio do artigo 920.º[6] do CPC baseia-se na aplicação do princípio de menor esforço ou da economia de meios (princípio da economia processual), permitindo que se aproveite tudo o que relevantemente tiver sido processado antes da prolação da sentença de extinção, para tanto se conferindo ao credor reclamante a dignidade de parte principal.”
Em face de tudo quanto até aqui ficou exposto, concordamos com a posição adotada no Acórdão da Relação de Lisboa de 05/06/2013, tendo como Relatora Francisca Mendes[7]: “Em caso de desistência da penhora por parte do exequente, o credor reclamante pode requerer a manutenção da penhora, por aplicação analógica dos arts. 885.º, n.º 4 e 920.º, n.º 2, do CPC, a fim de evitar a inutilidade da sua reclamação de créditos.”
Bem como com a posição adotada no Acórdão desta Relação de 16/03/2006, acima citado: “Em caso de desistência da penhora por parte do exequente, pode o credor reclamante (cujo crédito ainda não foi graduado), requerer o prosseguimento da execução, com a manutenção da penhora para pagamento do seu crédito, assumindo a partir desse momento a posição de parte principal, de exequente.”
Aderindo a esta posição, subscrevemos – da mesma forma – a solução nelas adotada de considerar que, não existindo norma expressa, se deve proceder à aplicação analógica dos art.º 809.º, n.º 4, e 850.º, n.º 2, do CP Civil.
A aplicação dos princípios constitucionais e infra-constitucionais aplicáveis à ação executiva, a análise do estatuto legal do credor reclamante e o elemento teleológico das normas jurídicas citadas de proteção dos direitos dos credores reclamantes, levam-nos necessariamente a concluir que, se a prossecução da penhora se justifica na situação de extinção da execução, nenhuma razão existe para, na situação de mera desistência da penhora pelo Exequente, não se aplicar a mesma solução legal.
Assim, por aplicação analógica dos dispositivos legais citados (cf. art.º 10.º do C Civil), deve, na situação presente, admitir-se o prosseguimento da execução quanto ao bem penhorado, assumindo a Reclamante a posição de Exequente, para pagamento do seu crédito reclamado.
A conclusão necessária é, portanto, a da procedência do recurso apresentado, prosseguindo a execução com a apreciação da proposta de aquisição apresentada pelo Recorrente e, em caso de indeferimento da mesma, assumindo este a posição de Exequente no que àquele bem respeita.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso do Credor Reclamante “E…, S.A.”, revogando-se o despacho recorrido e prosseguindo a execução com a apreciação da proposta de aquisição apresentada pelo Recorrente e, em caso de indeferimento da mesma, assumindo este a posição de Exequente no que àquele bem respeita.
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Custas a cargo da Exequente - art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.
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(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
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Porto, 11 de julho de 2018
Lina Baptista
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil.
[2] Proferido no Processo n.º 1206/2007 e disponível em www.tc.pt na data do presente Acórdão.
[3] In Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, 1996, Coimbra Editora, pág. 16.
[4] In “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 203 e ss.
[5] Proferido no Processo n.º 0630642 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Leia-se agora 850.º, n.º 2, do CP Civil.
[7] Proferido no Processo n.º 340-A.1999-4 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.