Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3104/22.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: EXIGÊNCIAS NA TIPIFICAÇÃO LEGAL PENAL/CONTRAORDENACIONAL
CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL
Nº do Documento: RP202403043104/22.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONTRAORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - A tipificação e a consequente determinabilidade do tipo legal da contraordenação não é tão rigorosa nem exaustiva como no direito criminal, sendo pacífico que no âmbito da definição dos ilícitos contraordenacionais, somente são impostas «exigências mínimas de determinabilidade».
II - As normas constantes do art.º 3º, al. e) e art.º 6º, nos 2 e 3, ambos do DL nº 50/2005, de 25 de fevereiro, falando em “manutenção adequada” e “verificação periódica”, reportam-se a uma multiplicidade de equipamentos de trabalho, cuja manutenção varia em função das suas caraterísticas, pelo que nunca poderia fazer uma descrição mais pormenorizada da manutenção a observar ou das verificações/ensaios a realizar, havendo que o conjugar com outros elementos, como sejam as recomendações do fabricante/fornecedor do equipamento de trabalho.
III - Cabendo ao destinatário da norma informar-se sobre essas recomendações, concluímos que o tipo legal permite que seja conhecida qual é a conduta proibida e da sanção que lhe corresponde, pelo que não se verifica a desconformidade com a Constituição da República Portuguesa.
(elaborado pelo seu relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal (contraordenação) n.º 3104/22.5T8PNF.P1
Origem: Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel – J2

Acordam em conferência na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO

Em processo de contra ordenação foi aplicada pela Sub/Diretora da Unidade Local de Penafiel da Autoridade para as Condições do Trabalho (no uso de competência delegada pelo Sr. Inspetor-Geral do Trabalho), à sociedade “A..., S.A.” (arguida), coima única no valor de €9.384,00 (92 UC’s[1]), correspondendo às seguintes coimas parcelares:

● coima no valor de 91 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 9.282,00], pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelo art.º 3.º, al. e), conjugado com os artos 6º, 20º, al. b), e 43º, nº 1, todos do DL nº 50/2005, de 25 de fevereiro, e art.º 554º, nos 1, 4, al. e) e 5), do Código do Trabalho;

● coima no valor de 16 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 1.632,00], pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artos 202º, nos 1, 2 e 5 e 554º, nos 1, 3, al. e) e 5), do Código do Trabalho.

Mais foi a arguida condenada na sanção acessória de publicidade, prevista nos nos 1 e 3 do art.º 562º do Código do Trabalho.

Foi ainda determinado que AA, como representante legal (Presidente do Conselho de Administração) da sociedade arguida, ficasse solidariamente responsável pelo pagamento da referida coima, nos termos do art.º 551º, nº 3 do Código do Trabalho.

Mostrando-se inconformada com tal decisão, apresentou a sociedade arguida impugnação judicial, concluindo dever ser revogada a decisão administrativa com consequente absolvição da arguida da prática das contra ordenações.


Foi proferido despacho a admitir a impugnação, e, depois de realizado julgamento, foi proferida sentença decidindo julgar a impugnação judicial deduzida pela arguida parcialmente procedente e, em consequência, manter a decisão da Subdiretora da Unidade Local de Penafiel da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) com exceção da parte relativa à sanção acessória de publicidade, que não é aplicada.

Mostrando-se inconformada com a sentença proferida, dela interpôs recurso a sociedade arguida, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[2]:

1ª O presente recurso tem por objeto a sentença proferida nos autos que condenou a Recorrente ao pagamento de coima única no valor de € 9.384,00 (nove mil trezentos e oitenta e quatro euros), por cúmulo jurídico das seguintes coimas: a) uma coima de 91 UC´s, pela prática, com negligência, de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelos artos 3º, alínea e), conjugado com os artigos 6º, 20º, alínea b) e 43º, nº 1, todos do Decreto-lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro, e artigos 554º, nos 1, 4, al. e) e 5), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro e b) Uma coima de 16 UC´s, pela prática, com negligência, de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artos 202º, nºs 1, 2 e 5 e artigos 554º, nos 1, 3, al. e) e 5), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro.

2ª Na sequência do acidente de trabalho ocorrido nas instalações da Recorrente, no dia 21 de outubro de 2021, a ACT levou a cabo uma ação inspetiva que culminou na instauração e condenação num processo contraordenacional por infração das normas acima enunciadas e na instauração do Inquérito criminal nº 10646/21.8T9PRT, que corre os devidos termos junto da Procuradoria da República da Comarca do Porto Este – Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Penafiel.

3ª A Recorrente foi constituída Arguida nos autos de inquérito acima identificados no dia 27 de setembro de 2023, com vista ao apuramento de eventuais responsabilidades criminais no acidente ocorrido.

4ª Ora, os processos supra identificados têm origem num único facto da vida, um único facto naturalístico, um facto complexo, mas um único “pedaço de vida”, sendo certo que em ambos se visa apurar as responsabilidades contraordenacionais e criminais de Recorrente, que poderá ser sancionada com base nos mesmos factos, em frontal violação ao princípio ne bis in idem, previsto no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.

5ª Existindo um concurso de crime e contraordenação, deve o agente ser punido, nos termos do artigo 20º do RGCO, apenas a título de crime, situação em que o processamento da contraordenação cabe, única e exclusivamente, às autoridades competentes para o processo criminal (nº 1 do artigo 38º do RGCO).

6ª Verificando-se, aquando da instauração de um inquérito criminal, que se encontra pendente um processo contraordenacional junto da autoridade administrativa, impõe-se que esta remeta os autos às autoridades competentes para o processo criminal, cabendo ao juiz competente para o julgamento crime a aplicação de coima e sanções acessórias, tudo ao abrigo do disposto nos artos 38º, nos 2 e 39º do RGCO.

7ª No caso presente, em violação dos direitos e garantias da Recorrente, a ACT tramitou todo o processo contraordenacional na “fase administrativa” e terminou proferindo uma decisão de condenação da Recorrente. Posteriormente, foram os Juízos do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que procederam ao julgamento da decisão do processo, tudo em manifesta violação da lei.

8ª Daqui decorre que a ACT e o tribunal a quo não tinham competência para julgar e decidir os presentes autos, dado o manifesto concurso existente, o que constitui nulidade insanável de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 32º e artigo 119º, al e) do CPP, com a consequente invalidade da decisão administrativa e de todo o processado posterior, conforme determina o art.º 122º do CPP, o que, desde já, se requer, com todas as demais consequências. Sem prescindir,

9ª A Recorrente entende que os artigos 3º, alínea e) e os nºs 2 e 3 do artigo 6º, do DL 50/2005, com as especificidades alegadas na motivação, são normas generalistas, vagas, imprecisas, pouco claras, indeterminadas e que não concretizam ou tipificam de forma minimamente aceitável os pressupostos da punição ou os comportamentos contraordenacionais puníveis nos termos do artigo 43º do identificado diploma.

10ª Tais normas padecem de claríssima inconstitucionalidade por violação dos princípios da previsibilidade e da confiança jurídica ínsitos no princípio do Estado de direito democrático previsto no artigo 2º da Constituição da República, do principio da audiência e defesa, previsto no artigo 32º, nº 10 e do principio da legalidade, na vertente da tipicidade, conforme decorre dos artigos 3º, nº 2 e 29º, nºs 1 e 2 da Constituição, cuja declaração se impõe a este Venerando Tribunal, declaração que aqui se requer expressamente.

11ª A sentença sub judice é nula por violação do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP, ex vi, art.º 60º da Lei nº 107/2009 e art.º 41º do RGCO, na medida em que não se pronunciou sobre inconstitucionalidade do disposto no artigo 3º, alínea e) do DL 50/2005, alegada em sede de impugnação judicial, vício que, desde já, se invoca.

12ª A sentença sub judice é, ainda, nula por violação do disposto nas normas conjugadas dos artigos 358º, nº 3 e 379, nº 1, alínea b) do CPP, porquanto vem condenar a Recorrente por violação da obrigação de efetuar verificações extraordinárias ao equipamento, prevista no nº 3 do artigo 6º DL 50/2005, sendo certo que a decisão administrativa não faz qualquer referência a estes factos, nem lhe imputa a violação de tal norma. Mais, a própria sentença recorrida não faz constar do elenco de factos provados qualquer referência à violação da obrigação de realização de verificações extraordinárias.

13ª A decisão recorrida é nula por, em violação do disposto nos artigos 39º, nº 4 da Lei 107/2009, 379º, nº 1, a) e 374º, nº 2 do CPP por se limitar, nos factos 17 e 18 da lista de factos provados, a remeter para documentos constantes dos autos, sem que faça uma descrição dos concretos factos que dos mesmos resultam e que se consideram provados, sendo certo que a decisão sobre a matéria de facto deve enunciar claramente os factos provados e não provados, sob pena de os mesmos serem insindicáveis pelos tribunais superiores e, por outro lado, impossibilitarem a Recorrente de exercer cabalmente o seu direito de defesa.

14ª A sentença em análise padece de nulidade, na medida em que no momento da aplicação do direito utiliza argumentos de facto que não encontram sustentação direta na factualidade provada, o que constitui violação do disposto nos artigos 39º, nº 4 da Lei 107/2009, 379º, nº 1, a) e 374º, nº 2 do CPP, e se arguiu.

15ª Ora, sendo certo que a subsunção jurídica se faz relativamente aos factos que constam do elenco de factos e não provados, está vedado ao Juiz sustentar a sua decisão de direito em argumentos fácticos que não decorram claramente da factualidade provada.

16ª No que respeita ao dispositivo de segurança, a sentença fixa que “O autoclave possui um dispositivo de segurança que bloqueia mecanicamente a porta, na posição de fechada, quando existe pressão no interior do autoclave”, que o mecanismo de segurança não estava “operacional” à data da peritagem (não à data do acidente), bem como se considera provado que o acidente ocorreu devido à conjugação de dois fatores, “Falha no dispositivo de segurança de bloqueio da porta” e “operação de abertura da porta na fase “lavagens a 90º”.

17ª Não obstante os factos provados, vem a considerar-se, sem que possa sustentar estas considerações na factualidade provada, “Ou seja, é legítimo concluir que, caso esse dispositivo de segurança estivesse operacional à data do acidente, como deveria estar, nunca o trabalhador BB conseguiria proceder à abertura da porta na fase em que a efetuou, pois que o vapor e a pressão existentes no interior do autoclave eram de tal maneira elevados que a abertura daquela porta representava um perigo para os trabalhadores que se encontravam a operar com a máquina em questão, com consequências que poderiam vir a ser fatais, como infelizmente vieram a ser.”

18ª Sendo, pois, certo que na factualidade provada não consta qualquer facto concreto que sustente que à data do acidente o dispositivo de segurança não estava operacional, nem se vislumbra em nenhum ponto da factualidade provada, que no momento do acidente o dispositivo de segurança deveria estar a funcionar, como a Meritíssima Juiz defende na subsunção jurídica. Igualmente não se encontra transposto para a matéria de facto que o trabalhador BB não conseguiria abrir a porta na fase e no momento em que o acidente aconteceu. Tal como não se vislumbra onde foi considerado provado que o “vapor e a pressão existentes no interior do autoclave eram de tal maneira elevados”.

19ª Ora, tais considerações tecidas pela Meritíssima Juiz em sede de subsunção jurídica constituem argumentação fáctica que terá por base o depoimento da técnica do CATIM, mas que nunca foi levada, como devia, à matéria de facto provada, o que impede que no momento da subsunção jurídica efetue uma aplicação do direito a factualidade que não se encontre especificamente elencada nos factos provados, desde logo, por clara violação do disposto nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do CPP, nesta parte não afastados pelo artigo 39º da Lei 107/2009, pois que neste se não prescinde da exigência de enumeração dos facto provados, cuja declaração, desde já, se requer.

20ª Nos presentes autos está em causa apurar, nomeadamente, se a Recorrente efetuou ou não a manutenção adequada de acordo com o plano que ela própria estabeleceu, assim como determinar se deu cumprimento à obrigação de proteger os trabalhadores contra a verificação dos riscos indicados na alínea b) do artigo 20º.

21ª Ora, do facto provado 11 consta que “O último registo de manutenção data de 11 de janeiro de 2021, não estando conforme a periodicidade de manutenção referida no mesmo documento” e o facto 16 da matéria provada refere, na parte que aqui releva, “Este dispositivo de segurança, à data da peritagem não estava operacional”. (itálico nosso)

22ª Ora, em ambos os casos, as expressões assinaladas a itálico não constituem “factos” propriamente ditos, isto é, não constituem uma realidade da vida, mas antes uma conclusão, um juízo manifestamente conclusivo que, sem mais, resolve os themas decidendum dos autos, ou seja, resolvem de imediato a questão jurídica que cumpre ao tribunal dirimir, na medida em que dão por verificados os elementos objetivos do tipo legal contraordenacional imputado à Recorrente, preenchendo, sem mais a previsão dos artigos 3º e 20º, alínea b).

23ª Ora, a decisão sobre a matéria de facto contém exclusivamente factos provados e não provados, estando absolutamente vedado que neste elenco se incluam juízos conclusivos, juízos de valor ou matéria de direito. A inclusão de tais conclusões e juízos, deve considerar-se como não escrita, com fundamento no artigo 646º/4 C P Civil, aplicável subsidiariamente, por força do artigo 4º C.P.Penal, ex vi, art.º 60º da Lei nº 107/2009 e art.º 41º do RGCO, sendo certo que o disposto no artigo 39º da Lei nº 107/2009 não afasta a aplicação do regime enunciado, o que se invoca para os devidos efeitos.

24ª A decisão sob análise padece, ainda, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que consubstancia o vício previsto na alínea a), do nº 2 do artigo 410º CPP, o que se invoca.

25ª Em primeiro lugar, do elenco da factualidade provada não consta que a Recorrente não tenha efetuado a manutenção prevista no mês de outubro de 2021. Nesta matéria o que se provou foi apenas o que consta dos factos 11 e 22. No limite, do facto 11 poderá retirar-se que o plano não continha qualquer registo de manutenção em outubro de 2021, mas não se pode considerar provado que a manutenção não tenha sido efetivamente executada e que a falta de registo se deva a esquecimento do operador, situação muito plausível em ambiente fabril.

26ª Não obstante, dada a crucial importância deste facto para a verificação dos elementos objetivos do tipo imputado, impunha-se ao tribunal, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 340º do CPP, que averiguasse a veracidade deste facto, o que não aconteceu. O Tribunal optou, ao invés, por proferir uma decisão condenatória, dando por verificados os elementos objetivos da infração, sem que os factos provados permitissem tal decisão.

27ª Em segundo lugar, não se considera provado que o registo de manutenção da Recorrente não tivesse a expressa previsão de que, em caso de não utilização do equipamento, a manutenção não era necessária. Aliás, a decisão reconhece até que existe uma nota no plano que prevê “Cruzar os campos em que maquina está parada”. Não obstante, vem condenar a Recorrente com o argumento de que em lado algum do registo se prevê a desnecessidade de manutenção nos períodos em que máquina não está em utilização!

28ª Resulta daqui evidente que o tribunal, previamente à tomada de decisão, não se esclareceu devidamente sobre o conteúdo do plano de manutenção, sendo certo que dada a importância do facto em causa seria de primordial importância obter os esclarecimentos necessários à prova (ou não) deste facto. E é certo que a lei lhe permite e impõe a obtenção desses esclarecimentos artigo 340º do CPP, de forma a que não tome uma decisão em violação do disposto no art.º 410º, 2, b) do CPP, como veio a acontecer e aqui se argui.

29ª Em terceiro lugar, e sem prescindir do que se alega a respeito do carácter conclusivo do facto 16, na parte assinalada, a verdade é que em nenhum ponto da factualidade provada se diz que o dispositivo de segurança não estava operacional no dia do acidente (refere-se tão-só o dia da peritagem), nem a Meritíssima Juiz procurou apurar tais factos, nos termos que lhe são permitidos e até exigidos na lei.

30ª Em quarto lugar, dada a factualidade provada nos pontos 16 a 20, resulta evidente que o trabalhador que dirigia a operação procedeu à abertura do autoclave antes da fase prevista, ou seja, antes do ciclo de arrefecimento e em violação das instruções existentes na empresa. Se assim não fosse, se a abertura tivesse sido efetuada no momento previsto e de acordo com as instruções, o autoclave não teria sido aberto nas lavagens a 90 graus e o acidente não teria ocorrido.

31ª Não obstante, a prova feita e levada ao elenco dos factos provados, o tribunal recorrido não procurou determinar, em que medida esta atuação do Chefe de Produção terá contribuído para o facto de o trabalhador BB ter procedido à abertura da tampa do autoclave. Não se apurou em que medida o acidente teria ou não ocorrido, se o chefe de Produção tivesse operado a máquina em cumprimento integral das instruções de segurança e de instruções de trabalho vigentes na empresa.

32ª Mais uma vez, o apuramento destes factos é de enorme relevância para a boa decisão da causa e o tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes, podia e devia ter averiguado, de forma a tomar uma decisão justa e fundamentada. No entanto, optou por não usar os poderes que a lei lhe confere, terminado por decidir sem que os factos apurados e provados lhe permitissem uma decisão fundamentada.

33ª Em quinto lugar, diz a sentença que “o vapor e a pressão existentes no interior do autoclave eram de tal maneira elevados” e, mais uma vez, não encontramos na factualidade provada qualquer facto concreto provado neste sentido, que fundamente, com segurança, a decisão que veio a ser tomada.

34ª A verdade é que não consta da matéria provada se efetivamente existia ou não pressão dentro do equipamento, sendo certo que o autoclave estava equipado com manómetros indicativos da pressão. Também não se revela qualquer referência à exata medida da pressão que, a existir, se encontrava dentro do equipamento. Como não se apurou ou provou se a pressão existente no interior do autoclave era suficiente para ativar o dispositivo de segurança. Não se apurou se o autoclave estava concebido para estar ativado no momento concreto e nas condições concretas que se verificaram quando o acidente ocorreu.

35ª Sem que tais factos concretos sejam provados, e levados à lista de factualidade provada, não pode o tribunal a quo fundamentar a sua decisão no entendimento de que o vapor e a pressão existentes no interior do autoclave eram muito elevados, muito simplesmente porque tal não se provou. Ora, sem que haja factos concretos considerados provados e que respondam objetivamente a estas questões de facto, fulcrais para a boa e justa decisão da causa, entende a Recorrente que falham os factos provados necessários a uma decisão de direito, como a que veio a ser proferida.

36ª Por último, sem prescindir da inconstitucionalidade da norma, a Recorrente alegou em sede de impugnação que os operadores efetuavam verificações periódicas às máquinas, para além das manutenções. Contudo, não resultou da prova levada à factualidade provada que a Requerente não efetuasse verificações periódicas, como aliás esta alega em sede de impugnação judicial. O que foi considerado provado nos autos é que a Recorrente não dispunha dos registos das verificações periódicas e esta obrigação não está incluída nos elementos objetivos do artigo 6º, nº do DL 50/2005.

Ora, são factos bem diferentes e competia ao tribunal recorrido ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos, averiguar se efetivamente as verificações periódicas eram efetuadas, mas não registadas.

37ª Face à claríssima insuficiência da prova efetuada cabia ao tribunal recorrido indagar essa mesma factualidade, apurar toda a factualidade necessária a uma decisão justa e legal. É que, como já referido atrás, todos estes factos, para além do que já consta dos autos e foi alegado pela Recorrente em sede de impugnação, poderiam ter sido devidamente apurados em depoimento do Chefe de Secção responsável pela operação e único sobrevivente do fatídico acidente 38ª Em conclusão, nas situações supra enunciadas, resulta à saciedade, com o devido respeito por opinião contrária, a factualidade provada não permite, com o mínimo de segurança e certeza, decidir pela condenação da Recorrente não só porque o elenco de factos provados, por nítida insuficiência, não permite uma tal decisão, como porque o Tribunal não procurou investigar toda a matéria necessária à aplicação do direito ao caso vertente, descurando assim da obtenção de uma decisão justa e legal. Donde resulta que tal decisão padece do vício previsto 410º, nº 2, alínea a) CPP.

39ª A sentença enferma do vício previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do CPP, por considerar provado, sob o nº 6 que, no dia do acidente de trabalho, o trabalhador CC se encontrava “aparentemente a dar instruções ao trabalhador BB para a operação” de branqueação de gaze, durante a qual ocorreu o acidente. E simultaneamente, no facto nº 23 dar como assente que no dia do acidente “o Engenheiro CC, na sua qualidade de chefe de secção, dirigiu a operação de branqueação da gaze no autoclave nº 5.”

40ª Ora, tais factos são claramente contraditórios, na medida em que, ou se prova que o Eng.º CC aparentemente dava instruções (como se não dirigisse a operação) ou se prova que o referido trabalhador efetivamente se encontrava a dirigir a operação, tudo no pressuposto, também provado, de que o BB executava uma operação ocasional e que desconhecia em absoluto.

41ª A sentença incorre em claro erro de aplicação do direito aos factos quando considera verificados os elementos objetivos e subjetivos das infrações imputadas à Recorrente. Vejamos:

42ª Não se provou que a Recorrente não tenha efetuado a manutenção adequada em outubro de 2021. Quanto muito, provou-se que os registos não foram efetuados, mas a norma não pune a falta de registos de manutenção, mas apenas a não realização de manutenção.

43ª Não se provou que o plano de manutenção da Recorrente não previa que se efetuasse manutenção nos períodos em que a máquina se encontra inativa, isto é, sem utilização.

44ª Não se provou que o plano de manutenção não estivesse de acordo com a periodicidade referido no mesmo documento, na medida em que tal facto é conclusivo e não pode ser levada à lista de factualidade provada, como assenta em argumentação fáctica que o tribunal recorrido teceu sem que houvesse factos provados que o sustentassem.

45ª Não se provou que a Recorrente não efetuasse as verificações periódicas previstas no nº 2 do artigo 6º, sendo que apenas foi levado aos factos provados que a Recorrente não evidenciou prova dos registos.

46ª Não se provou que o dispositivo de segurança do autoclave se encontrava inoperacional, sendo certo que o facto 16 não só é conclusivo e não pode ser levado à factualidade provada, como deve ser considerado não escrito na parte assinalada atrás por conter em si argumentação fáctica que não se fundamenta em factos provados, antes decide, de imediato, o objeto do processo.

47ª Não se provou que o dispositivo de segurança estivesse inoperacional à data do acidente.

48ª Não se apurou qual o papel do Chefe de Produção da verificação do acidente, dada a provada violação das instruções de segurança e de trabalho que vigoravam na empresa.

49ª Não se provou a existência de vapor ou pressão elevados no momento do acidente, tais factos não foram levados ao elenco de factos provados e, por outro lado, várias foram as questões importantes que o tribunal decidiu não apurar.

50ª Mais, sem prescindir, entende a Recorrente que a al. b) do artigo 20º não impõe ao Empregador a implementação de medidas que protejam o trabalhador de riscos que não são expectáveis, que não são previsíveis, que não decorrem do normal funcionamento do equipamento. Nada no regime legal permite a conclusão de que os Empregadores estejam adstritos a prever todo o tipo de riscos e, muito menos, riscos totalmente imprevisíveis e que, como no caso concreto, foram causados pela atuação do próprio Chefe de Produção que comandava a operação e que mandou efetuar uma abertura da tampa do autoclave quando este se encontrava a uma temperatura interna de cerca de 90º.

51ª Nenhum elemento de facto revela que, antes da ocorrência do acidente era previsível ele acontecer (daquele modo); nenhum elemento de facto revela que era previsível, objetivamente, o risco de alguém, instruído para não o fazer e sabendo que o não devia fazer, abrir a tampa do autoclave. O modo como sucedeu o acidente é claramente imprevisível; deve (no sentido de dever jurídico e objetivo, que é o que está em causa) prever-se o imprevisível?

52ª Pelo que, contrariamente ao sentido que foi dado na sentença, não nos parece ser imputável um comportamento negligente ao empregador que não prevê determinado risco, que era de todo imprevisível.

53ª Não se verificando no caso concreto prova de factos que preencham o elemento subjetivo do tipo em causa, não se verifica a existência de contraordenação laboral, o que impõe o arquivamento dos presentes autos, com as demais consequências.

54ª Deve a Recorrente ser integralmente absolvida da prática das contraordenações em que vem acusada ao abrigo do disposto no artigo 551º, nº 1 do Código do Trabalho, pois decorre dos factos provados que o Eng.º CC era o Chefe de Produção, responsável pela operação de branqueação e que o mesmo agiu em transgressão das instruções de trabalho e de segurança em vigor na empresa, o que retira qualquer responsabilidade à Recorrente no que respeita às infrações em que vem condenada.

55ª Dado o circunstancialismo que envolveu a ocorrência e os factos que vieram a ocorrer posteriormente, justifica-se inteiramente a atenuação especial da coima ao abrigo do artigo 72º do Código Penal, até porque, a moldura punitiva normal ora em causa é manifestamente desproporcionada.

Termina dizendo dever o recurso ser julgado procedente e, em consequência:

a) ser o processo declarado nulo por violação das regras de competência, sem prescindir,

b) ser declarada a inconstitucionalidade dos 3º, alínea e) e os nos 2 e 3 do artigo 6º, do DL 50/2005, sem prescindir

c) ser declarada a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos da al. c) do nº 1 do artigo 379º CPP, sem prescindir,

d) ser declarada a nulidade da sentença por alteração da qualificação jurídica, nos termos dos artos 358º, nº 3 e 379º, nº 1, al b) do CPP, sem prescindir

e) ser declarada a nulidade da sentença por violação do disposto nos artigos 39º, nº 4 da Lei 107/2009, 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do CPP, sem prescindir,

f) serem considerados não escritos os trechos assinalados dos factos provados nº 11 e 16, sem prescindir,

g) ser declarada a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP, nos termos explanados, sem prescindir

h) ser declarada contradição insanável entre os factos previstos sob os nos 6º e 23º do elenco de factualidade provada, ao abrigo do art.º 410º, nº 2, al. b) do CPP, sem prescindir,

i) absolver-se a Recorrente devido ao não preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais imputados, sem prescindir,

j) absolver-se a Recorrente da prática das infrações imputadas por efeitos do disposto no artigo 551º, nº 1 do Código do Trabalho, sem prescindir

k) determinar a atenuação especial da coima ao abrigo do disposto no artigo 72º do Código Penal, fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.

O MºPº, em 1ª instância, apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que igualmente se transcrevem:

1. De acordo com o disposto no artº. 20º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL nº 433/82, na redação dada pela Lei nº 109/2001, de 24/12, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação.

2. No entanto, no caso concreto, na fase administrativa dos presentes autos, não existe qualquer referência ao processo de natureza criminal, nem tal questão é colocada pela recorrente A..., S.A. em sede de requerimento de recurso judicial de impugnação, motivo pelo qual se entende ser extemporânea a alegação agora realizada em sede de recurso judicial restrito por lei à apreciação da matéria de direito.

3. A própria Recorrente A..., S.A. esclarece, na motivação do recurso a que se responde que apenas foi constituída arguida em 27 de setembro de 2023, já após a prolação da decisão recorrida, proferida no âmbito dos presentes autos.

4. Colocada esta questão em sede de recurso para esse Venerando Tribunal da Relação, importa dizer que a responsabilidade criminal da arguida não se encontra delimitada ou definida, tratando-se apenas de uma eventualidade.

5. Assim sendo, é prematura a consideração da possibilidade da violação do principio da violação do principio constitucional consagrado no art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, dado o estado do processo de inquérito.

6. Depois, ainda que se verifique a responsabilização da aqui arguida A..., S.A. na dedução da eventual acusação por um qualquer crime relacionado com o evento ocorrido em 21 de outubro de 2021, com a descrição de factos que também estão em discussão nos presentes autos e que poderão eventualmente representar um concurso ideal ou real de crime e contraordenação, sempre o processo criminal terá que ter em consideração a decisão judicial dos presentes autos, após o seu trânsito em julgado.

7. Não obstante, importa realçar que, nestes autos, apenas está em apreciação o incumprimento das regras de utilização dos equipamentos do trabalho, verificação e fiscalização das suas condições de segurança, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro, constatada pela ACT após a verificação de um acidente de trabalho.

8. Finalmente, importa relembrar que dificilmente o Tribunal “a quo” poderia apreciar o recurso interposto pela própria arguida/recorrente, da forma agora pretendida, ou seja, rejeitando o mesmo e remetendo o seu conhecimento para o processo penal, se à data, e mesmo agora, se desconhece a possibilidade de responsabilização criminal A..., S.A. por factos que se apresentam numa relação de concurso ideal e/ou real de crime e contraordenação.

9. Pugna a recorrente pela inconstitucionalidade do art.º 3º, alínea e) e 6º, nº 2 e 3, do DL nº 50/2005, por tais normas serem genéricas e indicativas, que violam os princípios da previsibilidade, da confiança jurídica, da tipicidade e da defesa, com consagração constitucional.

10. O princípio da tipicidade penal não veda, em absoluto, a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação, mesmo de caráter penal, através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor, revestindo de menor exigência no âmbito do ilícito de mera ordenação social.

11. Dada a diversidade de equipamentos e ferramentas utilizadas como equipamento de trabalho, sempre a fórmula legal relativa à sua manutenção e verificação periódica teria que ter caracter genérico, mas sempre de forma a possibilitar à entidade empregadora a deteção de eventuais falhas ou deficiências, de forma a assegurar o funcionamento em segurança.

12. Embora se perceba a oportunidade da invocação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 825/2021 por parte da arguida/Recorrente, a aplicação da argumentação ao caso concreto nunca poderia colher face ao teor dos factos considerados provados e às exigências que, mesmo que para qualquer leigo em matéria de produção industrial, se impunham no caso, para a entidade empregadora.

13. Destarte, não é difícil de antecipar que, no caso concreto, para assegurar o bom funcionamento do autoclave que esteve inativo durante meses, se deveria proceder à sua verificação, antes de proceder às operações de branqueamento programadas.

14. Alega ainda a Recorrente A..., S.A. que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade invocada pela arguida, estando assim a sentença ferida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379, nº1, alínea c), do Código de Processo Penal, alegação esta que não corresponde à verdade.

15. Assim, embora o Tribunal recorrido não se alongue na fundamentação jurídica sobre as alegadas inconstitucionalidades, de resto argumentação já expendida na jurisprudência do Tribunal Constitucional produzida a respeito dos já citados art.º 3º, alínea e) e 6º, nos 2 e 3, do DL nº 50/2005, o certo é que a sentença posta em crise, a fls. 26 e 27, pronuncia-se claramente pela não verificação da alegada inconstitucionalidade.

16. A Recorrente alega ainda a nulidade da sentença por alteração da qualificação jurídica, nos termos das disposições conjugadas dos artos 358, nº3, 379, nº1, alínea b) do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal recorrido considerou que a arguida não respeitou o disposto no art.º 6º do DL nº 50/2005, e não apenas o dispositivo constante do seu nº 2. Na verdade, apurou-se que a arguida não realizou qualquer verificação da máquina, nem periódica, nem extraordinária, daí que se entenda a consideração do Tribunal recorrido a respeito desta matéria.

17. No entanto, tal referência não implicou alteração na decisão final, designadamente no que concerne ao dispositivo e à medida concreta da coima, não se alcançando assim o interesse de tal alegação.

18. A Recorrente vem ainda alegar a nulidade da sentença nos termos do disposto nos artos 39º, nº 4, da Lei 107/2009, 379, nº 1, alínea a) e art.º 374, nº 2, do Código de Processo Penal, por entender que os factos considerados provados nos pontos 17 e 18 são factos considerados provados por remissão a documento e que deviam ser considerados (ou transcritos) em toda a sua extensão.

19. Também não se concorda com tal alegação, por se entender que os factos considerados provados nos pontos 17) e 18) da sentença recorrida valem por si, isto é, o Tribunal considerou tais factos por si, especificando de seguida, na própria decisão da matéria de facto, outros factos atinentes e/ou insertos em tais documentos, com interesse/relevância para a discussão e para a decisão da causa, julgamos nós, sem prejudicar o direito de defesa da arguida.

20. Os factos insertos em tais documentos não têm a relevância pretendida, uma vez que não está em causa se a operação de branqueação obedecia à Instrução de Trabalho nº 31-04 ou que o autoclave possuía uma Instrução de Segurança, documentos internos da autoria da arguida.

21. A Recorrente pretende destacar tais documentos para retirar conclusões que o Tribunal não tem que apreciar no caso concreto, designadamente que o trabalhador BB, vítima mortal no acidente ocorrido a 21 de outubro de 2021, terá aberto o autoclave antes da fase de arrefecimento. Mais uma vez se relembra que não está em discussão as causas próximas ou imediatas do acidente, mas tão só a falta de manutenção do equipamento que aquele sinistrado operava no fatídico dia 21 de outubro de 2021.

22. Não podendo socorrer-se da apreciação de matéria de facto por esse Venerando Tribunal de recurso, face ao disposto no art.º 51º, nº 1, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro. vem ainda a Recorrente questionar essa mesma matéria, de forma enviesada, invocado vícios e nulidades que, manifestamente, não se verificam.

23. Ao Tribunal não está vedado o recurso a presunções ou ilações que retira de outros factos provados, desde que tal ilação respeite as regras da experiencia comum e não contradiga os demais elementos de prova. Assim, mais uma vez se manifesta a concordância com os factos considerados provados pelo Tribunal recorrido, incluindo com o elencado no ponto 11), que, se encerra uma ilação, a mesma respeita as regras de apreciação e valoração de prova legalmente admissíveis.

24. De igual modo, não se entende a alegação da Recorrente relativamente ao facto considerado no ponto 16, tanto mais que a Juiz “a quo” teve o cuidado de considerar “À data da peritagem”, em conformidade com o documento que serviu de fundamentação para tal facto ser considerado provado.

25. O registo da manutenção do equipamento Autoclave nº 185, realizado pela Recorrente, não permite outra ilação a não ser que a manutenção foi apenas realizada em janeiro de 2021. Caberia à arguida a alegação e prova de coisa diferente, o que manifestamente não aconteceu.

26. Alega ainda a Recorrente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provado, nos termos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, e a contradição insanável, prevista pelo art.º 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal.

27. Ora, a nosso ver, como já se aflorou, a apreciação do presente recurso no que concerne à matéria de facto, deve ser indeferido por inadmissibilidade legal, designadamente, por falta de cumprimento dos pressupostos ou condicionantes estabelecidos no dito artigo 51º, nº 1, da Lei nº 107/2009.

28. A decisão recorrida não padece de qualquer insuficiência da matéria de facto provada, nem de contradição insanável entre os factos enunciados e/ou a sua fundamentação, não se verificando os pressupostos previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

29. Não resulta demonstrada a existência de qualquer verificação periódica da máquina, nem qualquer manutenção no período que media janeiro de 2021 e a data do acidente, sendo certo que, apesar das alegações da recorrente, nenhuma prova existe do contrário.

30. A Recorrente não discute a insuficiência da matéria de facto considerada na sentença, mas antes a prova produzida em sede de audiência e revela discordância da convicção da Juiz, tando assim que acaba por concluir pela necessidade de mais produção de prova.

31. A este propósito trazemos ainda à colação o teor do art.º 47º, nos 3 e 4 do Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que estabelece um máximo de duas testemunhas por cada infração, sendo certo que a Recorrente teve a possibilidade de indicar o chefe de produção como testemunha e não o fez.

32. Quanto ao plano de manutenção que a recorrente estabeleceu para a máquina Autoclave, conforme registo junto aos autos a fls. 13, efetivamente não foi cumprido, caso contrário o respetivo registo estaria assinalado. Se era ou não necessária tal manutenção mesmo em situação de paragem da máquina, tal plano nada diz, presumindo-se, e bem, que sim, como resulta do já exposto acerca da paragem da máquina e retoma de laboração, sem qualquer cuidado acrescido em termos de manutenção do equipamento.

33. De qualquer modo, numa máquina com tal grau de perigosidade, parada durante meses, sempre seria de colocar a questão da sua manutenção antes reiniciar o seu funcionamento, ainda por cima com recurso a um trabalhador pouco experiente em tal trabalho.

34. Se o trabalhador abriu ou não o autoclave antes da fase prevista para tal na instrução de trabalho da empresa, por sua iniciativa ou não, o certo é que se as condições de segurança da máquina estivessem a funcionar, a máquina sob pressão do calor não poderia abrir.

35. A nosso ver, a Recorrente pretende apenas, com esta discussão de facto, centrada sobre o acidente e não sobre as condições de operacionalidade da máquina, extrair consequências que não são legítimas, sequer necessárias, no âmbito dos presentes autos. Para o efeito, a Recorrente esmiúça toda a matéria de facto, descontextualizando a e, dessa forma, alegando a existência de incongruências, contradições e insuficiências que manifestamente não se verificam.

36. Mais uma vez se reafirma que a Recorrente confunde os factos em apreciação na contraordenação dos factos que poderão eventualmente ser discutidos em sede penal. Assim, não estamos a apreciar dos pressupostos para a incriminação da arguida/Recorrente, mas tão só das condições de laboração desta empresa, designadamente das condições em que se encontrava o equipamento, na data da fiscalização.

37. A Recorrente tem razão ao invocar que a entidade empregadora não poderia prever o acidente e acautelar o que se afigurava imprevisível. No entanto, a entidade empregadora encontrava-se obrigada a efetuar a manutenção e verificação da máquina, tanto mais quando esta estava inoperacional há meses, para prevenir justamente o risco de acidente para os seus trabalhadores e não o fez.

38. As alegações realizadas pela depoente a propósito da violação do art.º 551, nº 1, do Código do trabalho, quanto à atuação do Chefe de Produção da A..., S.A. e a sua eventual atuação contra normas da empresa não encontra qualquer correspondência nos factos considerados e discutidos no âmbito dos presentes autos, motivo pelo qual entendemos que não merecem qualquer outra consideração.

39. Quanto à condenação da A..., S.A. pela contraordenação prevista e punida pelos artos 202º, nos 1, 2 e 5 e artigos 554º, nos 1, 3, al. e) e 5), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, sempre será de manter, tanto mais que, quanto a esta matéria, nenhum argumento a refutar os factos e a incriminação a ela respeitantes é aduzida por esta arguida.

Termina dizendo que a decisão recorrida deve ser mantida, nos termos enunciados.

Foi proferido despacho a admitir o recurso, para subir imediatamente, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, no seguimento de promoção do Digno Procurador-Geral Adjunto nesse sentido, foi proferido despacho pelo relator determinando que os autos voltassem à 1.ª instância, para que aí ocorresse pronúncia sobre as nulidades invocadas.

Descidos os autos, foi proferido despacho que referiu, sumariamente, que não ocorriam as nulidades invocadas.

Regressados os autos a este Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, fazendo designadamente constar:

Nas conclusões da alegação a Recorrente vem impugnar o decidido invocando as nulidades a que se alude nas 8ª e 11ª a 14ª conclusões; a inconstitucionalidade do art.º 3º, alínea e) e 6º, nº 2 e 3, do DL nº 50/2005 (cfr. 9ª. a 10ª. conclusões); a nulidade da sentença por alteração da qualificação jurídica, nos termos das disposições conjugadas dos artos 358º, nº 3, 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal; nulidade por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, nos termos conjugados dos artos 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP (cfr. 24ª a 39ª conclusões).

Pugna pela procedência do recurso conforme as alíneas a) a k) do pedido final.

O Mº Pº contra-alegou, de modo proficiente, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.

Não vislumbramos circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso, que foi tempestivamente interposto pelo arguido, o qual tem legitimidade e interesse em agir, devendo manter-se o regime e efeito que lhe foi fixado.

Na decisão recorrida foi apreciada a validade da decisão administrativa, por haver sido proferida por quem tinha legitimidade para prolação do ato.

Tendo em consideração a factualidade dada como provada e os meios de prova que a sustaram, entendemos que a decisão recorrida se encontra bem fundamentada, de facto e de direito, não merecendo censura as questões a dirimir nos presentes autos, que foram adequadamente analisadas, o que afasta qualquer vício de inconstitucionalidade (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº 560/94 e J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, (7ª Reimpressão), Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226); das nulidades supra mencionadas (aqui, salvo melhor opinião, o despacho a que se alude no art.º 379.º, nº 2, do CPP deveria ter sido fundamentado – cfr. artos 205º nº 1 da Constituição e 97º nº 5 do CPP) ou vício de erro de julgamento na apreciação da matéria de facto e da matéria de direito.

No mais, bem andou a Mmª. Juíza “a quo” no modo como apreciou a caracterização dos tipos contraordenacionais imputados à Recorrente, com manutenção da condenação administrativa e tendo confirmado, sem reparo, a medida da coima única aplicada. (…).

Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não sendo apresentada resposta.

Na sequência do impedimento do anterior relator (cfr. despacho de 07/02/2024), foi distribuído “novo” relator.

Procedeu-se a exame preliminar, e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


*

Questões prévias

1)

Da admissibilidade do recurso na parte dirigida a pôr em causa a sentença no segmento que se pronunciou sobre a contraordenação sancionada com coima no valor de 16 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 1.632,00]:

O tribunal a quo admitiu o recurso, sem fazer qualquer restrição, mas, tal decisão não vincula o tribunal ad quem [cfr. art.º 414º, nº 3 do Código de Processo Penal[3]], pelo que cabe apreciar se o recurso é admissível sobre tudo o decidido em 1ª instância.

Como se referiu supra, a Recorrente foi condenada, pelo tribunal a quo, pela prática de duas contraordenações, tendo sido condenada no pagamento de duas coimas, uma por cada um desses ilícitos de mera ordenação social [uma coima no valor de 91 UC´s, a que corresponde o valor monetário de € 9.282,00, e outra coima no valor de 16 UC´s, a que corresponde o valor monetário de € 1.632,00], para depois lhe ser fixada, em cúmulo jurídico, a coima única de € 9.384,00 (92 UC’s).

Prevê o art.º 49º do RPCOLSS as «decisões judiciais que admitem recurso», sendo, nos termos do nº 1 admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença, além do mais e no que ao caso importa, quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC’s, ou seja, € 2.550,00.

Para além dos casos enumerados no citado nº 1, refere o nº 2 que pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

Nestes casos, cabe ao recorrente justificar a admissibilidade do recurso, em requerimento autónomo, constituindo questão prévia a apreciação e decisão do mesmo (art.º 50º n.ºs 2 e 3 do RPCOLSS).

Ora, o valor de 25 UC reporta-se ao valor das coimas parcelares, relativas a cada contraordenação, e não ao valor da coima única aplicada em cúmulo jurídico, como está dito no acórdão desta secção Social do TRP de 08/09/2020[4], cujo trecho relevante, para o caso, se transcreve:

Como é entendimento pacífico, o nº 1, do artigo 49.º, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, ao condicionar a admissibilidade do recurso aos casos em que tenha sido “aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente”, reporta-se ao valor da coima individualmente considerada aplicada pela prática de uma determinada contraordenação e não, quando for caso de pluralidade de infrações, à coima única aplicada em cúmulo jurídico.

Só esta interpretação tem cabimento, posto que o nº 3, do mesmo artigo, vem dizer que “ Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites”.

Com efeito, como elucida o acórdão desta Relação de 15/10/2012 [Proc.º nº 602/11.0TTGMR.P1, Desembargadora Paula Leal de Carvalho, disponível em www.dgsi.pt] “O legislador, ao dispor, como dispôs, no nº 3 do art.º 49º da Lei 107/2009, de 14/09, não poderia deixar de saber que, contemplando a decisão condenatória várias infrações, estas não poderiam deixar de ser objeto de cúmulo jurídico e, por consequência, da aplicação de uma coima única encontrada a partir das coimas parcelares correspondentes a cada uma das infrações cometidas, pelo que a citada norma reporta-se ao valor da coima parcelar”.[5]

A coima no valor de 16 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 1.632,00] foi aplicada pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artos 202º, nos 1, 2 e 5 e 554º, nos 1, 3, al. e) e 5), do Código do Trabalho.

Por conseguinte, sendo a coima aplicada em relação a essa contraordenação inferior a 25 UC, o recurso, no que a ela respeita, só poderia ser eventualmente admissível a título excecional, nos termos previstos no nº 2, do art.º 49º do RPCOLSS, caso se verificassem os necessários requisitos e, para além disso, recorde-se, desde que a Recorrente o tivesse requerido em conformidade com o disposto no art.º 50º nos 2 e 3, do RPCOLSS.

Assim, por inadmissível, rejeita-se o recurso na parte em que se insurge contra a sentença no segmento em que aplicou uma coima no montante de 16 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 1.632,00] pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artos 202º, nos 1, 2 e 5 e 554º, nos 1, 3, al. e) e 5), do Código do Trabalho.

2)

Da violação das regras de competência:

Nas conclusões 3ª a 8ª invoca a Recorrente que, tendo sido constituída arguida, no dia 27/09/2023, no inquérito criminal n.º 10646/21.8T9PRT, que corre os devidos termos junto da Procuradoria da República da Comarca do Porto Este – Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Penafiel, porque esse inquérito incide sobre os mesmos factos que deram origem ao presente processo de contraordenação, podendo assim vir a ser sancionada com base nos mesmos factos, em frontal violação ao princípio ne bis in idem, previsto no art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, estando-se perante um caso de concurso de crime e contraordenação deve o agente ser punido, nos termos do art.º 20º do RGCOC, apenas a título de crime, situação em que o processamento da contraordenação cabe, única e exclusivamente, às autoridades competentes para o processo criminal (nº 1 do art.º 38º do RGCOC).

Mais, diz, verificando-se, aquando da instauração de um inquérito criminal, que se encontra pendente um processo contraordenacional junto da autoridade administrativa, impõe-se que esta remeta os autos às autoridades competentes para o processo criminal, cabendo ao juiz competente para o julgamento crime a aplicação de coima e sanções acessórias, tudo ao abrigo do disposto nos artos 38º, nº 2 e 39º do RGCOC, sendo que, porém, no caso vertente, em violação dos seus direitos e garantias, a ACT tramitou todo o processo contraordenacional na “fase administrativa” e terminou proferindo uma decisão de condenação da Recorrente e, posteriormente, foram os Juízos do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que procederam ao julgamento da decisão do processo, tudo em manifesta violação da lei.

Conclui que a ACT e o tribunal a quo não tinham competência para julgar e decidir os presentes autos, dado o manifesto concurso existente, o que constitui nulidade insanável de conhecimento oficioso, nos termos do artos 32.º e 119.º, al. e) do Código de Processo Penal, com a consequente invalidade da decisão administrativa e de todo o processado posterior, conforme determina o art.º 122º do Código de Processo Penal.

Na resposta que apresentou, sustenta o Ministério Público, a este propósito:

− no caso concreto, na fase administrativa dos presentes autos, não existe qualquer referência ao processo de natureza criminal, nem tal questão é colocada pela Recorrente em sede de requerimento de recurso judicial de impugnação, motivo pelo qual é extemporânea a alegação agora realizada em sede de recurso judicial restrito por lei à apreciação da matéria de direito;

− a Recorrente apenas foi constituída arguida em 27 de setembro de 2023, já após a prolação da decisão recorrida, proferida no âmbito dos presentes autos, pelo que, sequer se pode dizer que a responsabilidade criminal se encontra delimitada ou definida, tratando-se apenas de uma eventualidade, e, assim sendo, é prematura a consideração da possibilidade da violação do principio da violação do principio constitucional consagrado no art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, dado o estado do processo de inquérito;

− ainda que se verifique a responsabilização da aqui arguida na dedução da eventual acusação por um qualquer crime relacionado com o evento ocorrido em 21 de outubro de 2021, com a descrição de factos que também estão em discussão nos presentes autos e que poderão eventualmente representar um concurso ideal ou real de crime e contraordenação, sempre o processo criminal terá que ter em consideração a decisão judicial dos presentes autos, após o seu trânsito em julgado;

− dificilmente o Tribunal a quo poderia apreciar o recurso interposto pela própria arguida/Recorrente, da forma agora pretendida, ou seja, rejeitando o mesmo e remetendo o seu conhecimento para o processo penal, se à data, e mesmo agora, se desconhece a possibilidade de responsabilização criminal por factos que se apresentam numa relação de concurso ideal e/ou real de crime e contraordenação.

O MºPº, em resposta ao recurso, pronunciou-se pela improcedência do alegado, sendo de destacar o seguinte:

Não obstante, importa realçar que, nestes autos, apenas está em apreciação o incumprimento das regras de utilização dos equipamentos do trabalho, verificação e fiscalização das suas condições de segurança, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro, constatada pela ACT após a verificação do acidente que vitimou BB e feriu CC. Trata-se de antecipação da tutela jurídica por comportamentos que representam o não cumprimento de deveres socialmente relevantes, por tais atos/omissões comportarem especiais perigos para bens juridicamente protegidos, não estando em apreciação a causa ou causas imediatas do acidente de trabalho enunciado. Por outras palavras, a verificação das contraordenações em apreciação na sentença recorrida não respeitam, cremos nós, exatamente ao mesmo “pedaço de vida” que estará em apreciação no âmbito do inquérito criminal.

Na verdade, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação o agente será punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias (art.º 20º do RGCOC).

Já no caso de o facto qualificado como contraordenação ser conexo ou dependente do facto qualificado como crime, sem ser elemento do crime, é sancionado autonomamente[6], ainda que a sua apreciação caiba ao tribunal competente para apreciação da responsabilidade criminal (art.º 38º do RGCOC).

Há que ter presente o disposto no art.º 82º, nº 1 do RGCOC que dispõe caducar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima ou uma sanção acessória quando o arguido venha a ser condenado em processo criminal pelo mesmo facto.

Cumprindo-nos pronúncia, e como fator desde logo determinante, importa relembrar que a questão da incompetência do tribunal apenas foi levantada no presente recurso, ou seja, sequer o foi perante o Tribunal recorrido, sendo que, por regra, como é consabido, a pronúncia do tribunal superior, em sede de recurso, incide sobre reapreciação de decisão que tenha sido proferida em 1.ª instância, o que não é o caso, pois que, como aliás a Recorrente expressamente o refere e é salientado na resposta pelo Ministério Público, em momento algum, antes de ter sido proferida a sentença, a Recorrente levantou tal questão.

Não obstante, ainda que não ocorresse o obstáculo antes mencionado, sempre se esclarecerá que sequer lhe assiste razão.

Como se refere no acórdão do STJ de 09/12/2010[7], “(…) estando em causa competência sancionatória – e em matéria sancionatória em que os princípios fundamentais da legalidade, tipicidade e competência se aproximam, e no essencial se identificam substancialmente como matéria penal e processual penal – a competência tem de ser expressa, direta e predeterminada; em matéria sancionatória não há competências implícitas, nem extensões de competência por analogia de matérias. Para evitar espaços vazios de competência, a lei tem de ser direta, expressa, clara e precisa, como são exigências do princípio da legalidade”.

Constituindo a competência de uma entidade pública o conjunto de poderes jurídicos de que dispõe para a realização das suas atribuições, poderes esses baseados e exercidos de acordo com determinado título jurídico, seja a lei, seja norma de valor correspondente, a competência material das entidades administrativas para o procedimento contraordenacional está, como é consabido, prevista em geral no Regime Geral das Contraordenações e da Coima (RGCOC) e, em especial, nos diversos conjuntos normativos, tal como ocorre no âmbito laboral, que, em razão de matérias específicas, estabelecem e definem os comportamentos que constituem contraordenações, preveem coimas aplicáveis e as entidades competentes para o seu procedimento e consequente aplicação de sanções. Estando consagrada do art.º 33º do RGCOC a regra de que o processamento das contraordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas, com as ressalvas previstas na parte final do preceito, a competência em razão da matéria para esses fins pertencerá às autoridades determinadas pela lei que prevê e sanciona as contraordenações, sendo que cada diploma legal indicará a entidade competente para a aplicação das coimas.

Existindo uma regra básica em processo civil, no sentido de que a competência se fixa no momento em que se propõe a ação, sendo, em princípio, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (por isso se designa por regra da perpetuatio fori), também se tem entendido que, no âmbito administrativo, a competência se fixa no momento em que se inicia o procedimento, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, salvo se for extinto o órgão a que o procedimento estava afeto ou se o órgão originariamente competente deixar de o ser, sucedendo-lhe outro na competência em causa (art.º 30.º do Código de Procedimento Administrativo – CPA).

A jurisprudência do Tribunal dos Conflitos tem apontado no sentido de que a data que relava para determinar o tribunal competente em razão da matéria é aquela em que o Ministério Público apresenta em juízo o processo de impugnação da coima aplicada.

Assim, refere-se no Acórdão de 28/09/2017, proferido no Conflito nº 26/17[8]:

«Nos termos do art.º 38.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013), a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, salvo os casos especialmente previstos na lei, sendo também irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou se lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.

(…)

Na ausência de qualquer regulamentação expressa no RGCO e no C.P.Penal, terá de se atender, com as necessárias adaptações resultantes da natureza do processo em causa, ao que dispõem os citados artos 38º e 5º, nº 1 e considerar que o tribunal competente é o que teria competência no momento da propositura da causa.

A impugnação judicial da decisão administrativa que aplica uma coima é dirigida ao juiz que a irá conhecer, mas é apresentada à autoridade administrativa que proferiu essa decisão (art.º 59.º, nos 1 e 3, do RGCO).

Mesmo depois da apresentação da impugnação judicial, o processo continua sob a alçada da entidade administrativa, da qual pode nem sequer sair, pois esta tem a faculdade de revogar a decisão que aplicou a coima até ao momento do envio dos autos ao MP (art.º 62º, nº 2, do RGCO).

Após o envio dos autos pela autoridade administrativa, não ao tribunal competente, mas ao MP, cabe a este decidir se os faz presentes ao juiz, caso em que a decisão que aplicou a coima se converte em acusação (art.º 62º, nº 1, do RGCO) e se inicia a fase judicial do processo de contraordenação.

O legislador do RGCO distinguiu, assim, duas fases distintas do processo: a administrativa e a judicial. A primeira, inicia-se com a participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou mediante denúncia particular, enquanto a segunda só se inicia com a apresentação, pelo MP, dos autos ao juiz, ato que tem o valor de acusação.

Nestes termos, a interposição do recurso de impugnação judicial não é um ato praticado em juízo, pois sendo apresentado perante a autoridade administrativa e aí permanecendo até que seja enviado ao MP, insere-se na fase administrativa do processo de contraordenação.

Por isso, tal como se entendeu no recente Ac. deste Tribunal de 01/06/2017 – Conflito n.º 05/17, é a introdução em juízo do feito a julgar, que corresponde à data em que os autos são apresentados no tribunal, que marca o momento em que a competência se fixa.

(…)»[9].

Em face do exposto, sem necessidade de considerações mais desenvolvidas, concluímos pela improcedência da argumentação no sentido de que se verifica nulidade por violação das regras sobre competência.


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FUNDAMENTAÇÃO

Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de modo uniforme, à luz do disposto no art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal (aqui aplicável por via do disposto no art.º 50º, nº 4 do RPCOLSS), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido (e porque as conclusões resumem a motivação, todas as conclusões devem ser antes objeto de motivação), sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

Importa deixar claro que no recurso da sentença ou despacho judicial que aprecie a impugnação de decisão da autoridade administrativa, a impugnação apenas pode versar matéria de direito, nos termos do art.º 51º, nº 1, do RPCOLSS.

Assim, e sem esquecer que está em causa, como se disse, tão-só a contraordenação que motivou a aplicação de coima no valor de 91 UC´s [a que corresponde o valor monetário de € 9.282,00], aquilo que importa apreciar e decidir no âmbito deste recurso é saber se:

● verifica-se a nulidade da sentença recorrida?

● verificam-se os vícios decisórios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal?

● encontram-se nos factos provados, factos conclusivos e juízos de valor que, como tal, devem ser eliminados?

● não se encontra preenchido o tipo legal da contraordenação?

● verifica-se a inconstitucionalidade das normas constantes do art.º 3º, al. e) e art.º 6º, nos 2 e 3, ambos do DL nº 50/2005?

● a Recorrente não pode ser responsabilizada, em face do disposto no art.º 551º, nº 1 do Código do Trabalho?

● deve ter lugar a atenuação especial da coima?


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Na sentença recorrida foram considerados os seguintes FACTOS PROVADOS, que se reproduzem [na totalidade, ainda que aqui, como se disse, não esteja em causa a contraordenação do processo nº 302200021]:

1) A arguida dedica-se à atividade de fabricação de outras preparações e de artigos farmacêuticos – CAE 21202.

2) Na sequência de comunicação de acidente de trabalho, foi efetuada visita inspetiva ao local de trabalho sito na Avenida ..., ..., Penafiel, no dia 21/10/2021, pelas 15h15m, com vista à verificação das condições de trabalho, circunstâncias em que ocorreu o acidente de trabalho e à elaboração do respetivo inquérito de acidente de trabalho, tendo sido interlocutores DD – Assessora Jurídica e EE – Administrador.

* Processo nº 302200043

3) O acidente de trabalho ocorreu no dia 21/10/2021, pelas 14h15m, nas instalações da arguida, no qual foram vítimas os seguintes trabalhadores:

− CC, nascido a ../../1963, Eng.º Eletrotécnico com a função de Responsável de Produção, contratado pela empresa a 01/10/1988, e,

− BB, nascido a ../../1972, com a função de Afinador, contratado pela empresa a 01/11/1991.

4) O acidente ocorreu quando o autoclave estava a realizar a atividade de “Branqueação de Gaze”, tendo sido a sua porta aberta pelo trabalhador BB, o qual se encontrava a desenvolver uma tarefa ocasional, tendo havido projeção de vapor, atingindo os dois trabalhadores.

5) O trabalhador sinistrado BB, que acabou por falecer no dia 29/10/2021 em consequência do acidente, encontrava-se a operar o equipamento, de frente para o sistema de abertura da tampa do autoclave, pelo que foi atingido com vapor na face e no tronco, tendo sofrido queimaduras de 2.º grau em várias partes do corpo. Esta vítima estava de costas para um varandim e, na sequência da projeção, sofreu ainda uma queda para o piso inferior.

6) O trabalhador CC, Responsável de Produção, encontrava-se numa secretária, de costas para o autoclave, a cerca de 7 m do autoclave, aparentemente a dar instruções ao trabalhador BB para a operação do referido equipamento na tarefa “Branqueação de Gaze”. O trabalhador CC sofreu queimaduras nas costas, braço e lateral da face.

7) O equipamento de trabalho envolvido no acidente, internamente designado por Autoclave n.º 185, possui as seguintes características:

- Proprietário: A..., S.A.

- Fabricante: B...;

- Modelo: não disponível;

- N.º de série: ...3....

8) O equipamento não possuía marcação CE nem declaração de conformidade.

9) Foi instado o identificado representante da empresa a pronunciar-se sobre o ano de fabrico da máquina, tendo o mesmo informado que a aquisição ocorreu em 1993, desconhecendo, porém, o ano de fabrico.

10) Instados os identificados interlocutores a apresentar o registo das manutenções e o registo das verificações periódicas efetuadas ao equipamento envolvido no acidente, procederam ao envio para a UL da ACT dos registos de manutenção.

11) O último registo de manutenção data de 11 de janeiro de 2021, não estando conforme a periodicidade de manutenção referida no mesmo documento.

12) Segundo o registo de lubrificação e manutenção preventiva, a lubrificação dos rolamentos da bomba teria uma periodicidade trimestral, enquanto a lubrificação dos rolamentos dos motores elétricos e a lubrificação a óleo do autoclave 5 teriam uma periodicidade mensal.

13) Não foram evidenciados os registos de verificação periódica do equipamento.

14) Foi formalizada uma notificação para apresentação de documentos e tomada de medidas, designadamente para a arguida promover uma peritagem técnica ao equipamento de trabalho envolvido no acidente, por organismo especializado, a fim de verificar o bom estado de funcionamento do mesmo e avaliar as causas do acidente de trabalho, e apresentar respetivo relatório.

15) Em cumprimento da notificação, a arguida apresentou o relatório da peritagem técnica, efetuada pelo “CATIM” ao equipamento de trabalho, datado de 29/10/2021.

16) Refere o referido relatório que foram verificadas, à data da peritagem, irregularidades relacionadas com o dispositivo de segurança de bloqueio da porta: “O autoclave possui um dispositivo de segurança que bloqueia mecanicamente a porta, na posição fechada, quando existe pressão no interior do autoclave. Este dispositivo de segurança, à data da peritagem não estava operacional”. Mais conclui o relatório: “Com base nos elementos disponíveis até à data, que resultam essencialmente da observação efetuada à máquina e recolha de informação junto das pessoas presentes na peritagem, o perito é da opinião de que o acidente ocorreu devido à conjugação de 2 fatores: (1) Falha no dispositivo de segurança de bloqueio da porta (2) Operação de abertura de porta na fase “lavagens a 90º”.

17) A operação de branqueação obedecia à Instrução de Trabalho nº 31-04, cuja cópia consta de fls. 114, que foi elaborada pelo Engenheiro CC.

18) O autoclave possuía uma Instrução de Segurança, cuja cópia consta de fls. 115.

19) A Instrução de Trabalho nº 31-04 prevê a realização da operação de branqueação em doze fases ou etapas e, relativamente a cada uma delas, estão descritos os trabalhos a realizar, o respetivo tempo de duração, a temperatura, ciclos de arrefecimento e momento preciso para abertura do autoclave.

20) Prevendo-se a abertura da tampa do autoclave apenas na fase 11 do processo, após realização de um ciclo de frio que visa o arrefecimento do interior do autoclave.

21) O Chefe de Produção, Engenheiro CC, e o trabalhador BB realizaram duas operações nos dias anteriores àquele em que aconteceu o acidente.

22) Anteriormente ao acidente, em data que não foi possível apurar em concreto, a administração da arguida tinha decidido desativar o autoclave, porque passou a comprar gaze branqueada, pelo que o autoclave passou a ter uma utilização diminuta, sendo que aquela máquina esteve parada no período compreendido entre fevereiro e setembro de 2021.

23) No dia 21 de outubro de 2021, o Engenheiro CC, na sua qualidade de chefe de secção, dirigiu a operação de branqueação de gaze no autoclave nº 5, no decurso da qual ocorreu o acidente que determinou a visita inspetiva da UL da ACT.

* Processo n.º 302200021

24) No decorrer da visita inspetiva, foi formalizada uma notificação para apresentação de documentos e tomada de medidas, designadamente para a arguida proceder ao envio dos registos de tempo de trabalho dos trabalhadores sinistrados.

25) Em consequência, a arguida apresentou os documentos constantes de fls. 138 a 145.

26) Da análise das folhas de registo apresentadas constata-se o seguinte:

− é indicado o mês a que se refere, os dias do mês, bem como o nome dos trabalhadores;

− nele não consta o n.º de horas de trabalho prestadas em cada dia;

− é omisso quanto à indicação de hora de início e termo do tempo de trabalho, assim como, quanto à indicação das interrupções ou intervalos;

− não permite apurar quando é que o trabalhador praticou trabalho suplementar.

27) A arguida, no registo apresentado, tem indicado qual o horário a que o trabalhador está afeto, bem como a hora de início da pausa de almoço, partindo do pressuposto de que este horário é cumprido, procedendo apenas à inserção no programa informático das ausências do trabalhador, com o documento anexo da justificação da ausência.

28) A arguida, no ano de 2020, apresentou um volume de negócios de € 49.746.478,00.

Foi ainda consignado que [n]ão se provaram quaisquer outros factos com interesse para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa e, designadamente, não se provou que:

− A arguida tivesse procedido à manutenção da autoclave, desde janeiro de 2021.

− Existissem registos de alterações/ reparações efetuadas; verificações periódicas e da calibração dos equipamentos de medição.

− A arguida procedesse ao registo dos tempos de trabalho efetivamente praticados pelos trabalhadores ao seu serviço.


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Da nulidade da sentença por alegada omissão de pronúncia:

Está em causa a al. c) do nº 1 do art.º 379º do Código de Processo Penal – no segmento: o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar –, verificando-se a nulidade quando a decisão deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, vício esse que tem a ver diretamente com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art.º 608º, nº 2 do Código de Processo Civil[10] (ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal).

Como se diz no sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011[11]:

● A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art.º 660°, nº 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

● Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições, na defesa das teses em presença.

● A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.

● A doutrina e jurisprudência distinguem entre questões e razões ou argumentos; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.

Alega a Recorrente que arguiu a inconstitucionalidade das normas vertidas no art.º 3º, al. e) e art.º 6º, nº 2, ambos do DL nº 50/2005, de 25 de fevereiro, mas o tribunal a quo apenas se pronunciou sobre a (in)constitucionalidade da segunda das referidas normas, não o tendo feito em relação à primeira das referidas normas.

Refere a Recorrente que arguiu a inconstitucionalidade da norma em causa na alegação e depois nas conclusões 10ª e 12ª da impugnação judicial da decisão administrativa, sendo o seguinte o teor das referidas conclusões [transcrevendo-se também a intermédia, a 11ª]:

10ª Em segundo lugar, importa considerar que, em nenhuma das suas disposições, o DL 50/2005 descreve, define ou dá qualquer indício do que entende por “manutenção adequada”, cabendo ao empregador, na sua qualidade de utilizador profissional do equipamento, definir um plano de manutenção que considere adequado ao equipamento e ao uso que dele faz.

11ª E, no caso, a Recorrente entendeu – sem infringir qualquer disposição legal – estabelecer um plano de manutenção que considerou adequado e proceder à manutenção de acordo com tal plano.

12ª Sendo certo que, à falta de uma norma legal objetiva, certa e determinada ou determinável, este entendimento da Recorrente não pode e não deve ser sancionado.

Ora, aquilo que se conclui é que a Recorrente não arguiu perante o tribunal a quo a inconstitucionalidade da norma em causa, defendendo sim, perante o tribunal a quo, que não podia haver lugar a sanção por não existir norma legal objetiva, certa e determinada ou determinável sobre o que seja “manutenção adequada”, e sobre essa argumentação pode dizer-se ter-se o tribunal a quo pronunciado, no seguinte parágrafo:

Acresce que também não colhe a argumentação da arguida quando, no seu recurso, alega que “nem se diga que o plano de manutenção estabelecido e por ela seguido não era o adequado”. Note-se que em lado algum a decisão impugnada considera que o plano de manutenção estabelecido pela Recorrente não era o adequado. O que se diz e demonstrou é que a arguida não cumpriu o plano de manutenção por ela estipulado quanto às lubrificações e manutenção preventiva, nem realizou a verificação periódica do equipamento, não tendo demonstrado a existência de algum plano relativamente a essa verificação periódica.

Assim, não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia, improcedendo o recurso nesta parte.

Da alegada nulidade da sentença por alteração da qualificação jurídica dos factos:

A sentença recorrida, a propósito da afirmação de que não considera inconstitucional a norma do art.º 6º, nº 2 do DL 50/2005, refere (pág. 27) que [p]ara além disso, importa salientar que à arguida é imputada a violação do citado artigo 6º na sua totalidade e não apenas o nº 2 dessa disposição legal.

Alega a Recorrente que tal configura alteração (não substancial) dos factos, o que implicava a mesma ter sido comunicada à Recorrente, nos termos do art.º 358º do Código de Processo Penal, pois a decisão administrativa apenas lhe imputa a não realização das verificações periódicas previstas no nº 2 desse art.º 6º.

O art.º 6º do DL nº 50/2005, de 25 de fevereiro[12], com a epígrafe «verificação dos equipamentos de trabalho», dispõe o seguinte:

1- Se a segurança dos equipamentos de trabalho depender das condições da sua instalação, o empregador deve proceder à sua verificação após a instalação ou montagem num novo local, antes do início ou do recomeço do seu funcionamento.

2- O empregador deve proceder a verificações periódicas e, se necessário, a ensaios periódicos dos equipamentos de trabalho sujeitos a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos.

3- O empregador deve proceder a verificações extraordinárias dos equipamentos de trabalho quando ocorram acontecimentos excecionais, nomeadamente transformações, acidentes, fenómenos naturais ou períodos prolongados de não utilização, que possam ter consequências gravosas para a sua segurança.

4- As verificações e ensaios dos equipamentos de trabalho previstos nos números anteriores devem ser efetuados por pessoa competente, a fim de garantir a correta instalação e o bom estado de funcionamento.

Vejamos.

A contraordenação em análise traduz-se na violação do disposto no art.º 3º, al e) do DL nº 50/2005 [cfr. o seu art.º 43º, nº 1], ou seja, em não ter a arguida assegurado a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho [no caso um Autoclave] durante o seu período de utilização, de modo a que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes, no caso, no art.º 20º, al. b) do mesmo DL – os equipamentos de trabalho devem proteger os trabalhadores contra os riscos de incêndio, sobreaquecimento ou libertação de gases, poeiras, líquidos, vapores ou outras substâncias por eles produzidas ou neles utilizadas ou armazenadas –, sendo feito apelo ao art.º 6º do referido DL para suportar a afirmação de ausência de “manutenção adequada”, sendo dito na decisão administrativa que a arguida não procedeu às avaliações periódicas que devia.

É neste contexto que na decisão administrativa está referido o art.º 6º do citado DL, e se na “fundamentação de direito” encontramos referência a tal artigo sem ser delimitado qualquer dos seus segmentos [cfr. pág. 21 da “proposta de decisão”, que integrou a decisão conforme nº 5 do art.º 25º do RPCOLSS], o certo é que da leitura da decisão administrativa depreende-se estar em causa a parte dessa disposição legal que se refere à “verificação dos equipamentos de trabalho”, ou seja, ao seu nº 2 [como está expresso no “relatório” da “proposta de decisão”, pág. 3].

Ora, quando a decisão recorrida faz a afirmação acima transcrita – em essência: é imputada a violação do citado artigo 6º na sua totalidade –, estamos perante uma afirmação que não é totalmente correta, pois se a decisão administrativa refere o art.º 6º sem concretizar algum dos seus números, o certo é que na pág. 21 da “proposta de decisão” é feita referência ao texto dos nos 2 e 5, ainda que, também aqui, sem referir qualquer um dos seus números.

Todavia, com a afirmação referida a decisão recorrida não está a imputar uma infração diversa à arguida, não tendo alterado os factos, designadamente a qualificação jurídica dos mesmos, tendo sido mantida a decisão administrativa (revogando-a na parte em que aplicou a sanção acessória de publicidade), tudo estando em saber se a questão que estava ser apreciada quando foi feita essa afirmação [a saber, alegada inconstitucionalidade do art.º 6º, nº 2 do referido DL] deve ter solução diferente da encontrada pelo tribunal a quo, o que se verá infra.

Assim, é cristalino não haver qualquer alteração dos factos, improcedendo esta alegação da Recorrente.

Da alegada nulidade da sentença por fazer remissão para documentos sem os reproduzir:

Alega a Recorrente que nos pontos 17) e 18) dos factos provados o tribunal a quo se limita a remeter para os documentos ali referidos [Instrução de Trabalho nº 31-04 com cópia a fls. 114, e Instrução de Segurança com cópia a fls. 115 – trata-se dos doc. 1 e doc. 2 juntos pela arguida com a “impugnação judicial”[13]] sem a descrição dos factos concretos que dos mesmos resultam.

Ora, quanto ao ponto 17) dos factos provados, se é verdade que dele não consta nada do teor do documento [Instrução de Trabalho nº 31-04], logo de seguida, mais concretamente nos pontos 19) e 20) dos factos provados, encontramos referência a parte do seu conteúdo, aquela que será mais relevante para a decisão da causa.

Deste modo, a questão pode pôr-se apenas em relação ao ponto 18) dos factos provados, que na verdade nada refere quanto ao teor dessa “instrução de segurança”.

Concorda-se que não é esta a forma mais correta de consignar uma “norma de segurança” entre os factos provados, limitando-se a consignar que existia uma “instrução de segurança”, remetendo-se o seu teor para o documento junto ao processo, sem fazer referência ao seu teor, pelo menos na parte mais relevante.

Todavia, tratando-se até de documento junto pela arguida [aquando da “impugnação judicial” da decisão administrativa], não se vê que ficasse o seu direito de defesa afetado, ou que lhe ficasse qualquer dúvida sobre os factos que lhe são imputados.

Note-se que no acórdão citado pela Recorrente [TRL de 07/12/2016[14]] estava em causa ter sido consignado como factos provados [t]odos os factos constantes da acusação formulada e do pedido de indemnização deduzido, ínsitos de fls. 107 a 109 e de fls. 117 a 119 (122 a 123), os quais, para todos os devidos e legais efeitos aqui se dão por inteiramente reproduzidos, com exceção feita ao valor patrimonial de € 6.000,00, situação muito diversa daquilo que está aqui em análise, afigurando-se não ser de excluir de todo a remissão para documento, ainda que não o ideal, desde que percetível ao que se refere e não haja prejuízo para a defesa do arguido, como se refere no acórdão do TRP de 24/10/2012[15].

Em suma, in casu não foi observada a forma ideal para consignar nos factos provados uma “instrução de segurança”, mas não se trata de falta de enunciação de factos provados que leve à nulidade da sentença.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Da alegada nulidade da sentença por recorrer a argumentação fáctica sem apoio nos factos provados:

Alega a Recorrente que a sentença em análise ultrapassa largamente a matéria de facto provada e recorre a argumentação fáctica para fundamentar a condenação da recorrente, sendo certo que tal argumentação factícia não é constituída por factos que se encontrem no elenco de factos provados, estando assim, vedado ao tribunal o recurso a esta argumentação, o que concretiza [cfr. conclusões 17ª a 19ª], citando o acórdão desta Secção Social TRP de 09/01/2020[16].

Ora, este aresto refere, como diz a Recorrente, que [e]stá vedada ao tribunal, no momento da aplicação do direito, a utilização de argumentos de facto que não encontrem direta sustentação na factualidade que deu como provada, sendo que, por imperativo legal, será esta factualidade, e apenas esta, que deverá fundamentar a decisão quando àquela aplicação do direito, assim sobre a verificação ou não no caso concreto dos elementos do tipo ou tipos de infração que são imputados ao arguido – o que decorre, para além do mais, das regras de elaboração da sentença, desde logo, do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, nesta parte não afastados pelo artigo 39.º do RJCOL, mas também diz que [a]pesar do não cumprimento pelo tribunal da regra mencionada em III [a acaba de transcrever] no momento da aplicação do direito, não ocorre porém o vício da nulidade por excesso de pronúncia quando o aquele se pronuncia, em sede de matéria de facto e respetiva motivação, sobre um ponto de facto sobre o qual o mesmo tribunal tem a obrigação de se pronunciar e cuja prova, em termos de convicção, sequer dependa daqueles referidos argumentos.

Lendo o citado aresto no seu todo, constatamos que aquilo que nele se decidiu foi que, dizendo as considerações fácticas respeito à aplicação do direito será aquando do enquadramento jurídico que se aferirá se os factos provados, apenas esses, consubstanciam a prática da contraordenação pela qual a arguida/Recorrente foi condenada.

E tal tem total cabimento no caso em apreço, porquanto no fundo, segundo o alegado pela Recorrente, estão em causa conclusões que são retiradas pela julgadora a quo dos factos provados, aquando do enquadramento jurídico, pelo que não está causa nulidade da sentença, mas aferir se o enquadramento jurídico realizado em 1ª instância merece ou não censura, a fazer infra.

Sendo assim, sem necessidade de outras considerações, concluímos não se verificar nulidade, improcedendo o recurso nesta pate.

Da alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art.º 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal]:

Como se disse supra, e é consabido, no recurso da sentença/despacho judicial que aprecie a impugnação de decisão da autoridade administrativa, a impugnação apenas pode versar matéria de direito.

Mas, como refere João Soares Ribeiro[17], mesmo conhecendo a Relação só de direito, poderá o recurso ter como fundamento a insuficiência para a decisão da matéria de facto aprovada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notário na apreciação da prova (os vícios decisórios previstos no nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal).

A indagação da existência destes vícios decisórios tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum (aquilo que é usual acontecer e que funcionam como critérios de orientação da decisão, probabilidades fortes de acontecimento, critérios generalizantes de inferência lógica), não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento.

Ou seja, o vício decisório existe quando a falha, erro, omissão ou contradição são percetíveis e detetáveis no próprio texto da decisão sem que seja necessária a valoração de elementos exteriores à sentença[18].

A insuficiência para decisão da matéria de facto provada [art.º 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal]:significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.

No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa[19].

De referir que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a alegação da insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados: na primeira critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.

A alegação da Recorrente, a este propósito, desdobra-se em vários vetores (mais propriamente seis), a saber:

i) dos factos provados consta que o último registo de plano de manutenção foi efetuado em janeiro de 2021, o que permite concluir que não havia registo em outubro de 2021, mas não permite afirmar que o plano de manutenção relativo a esse mês não tenha sido cumprido ou efetuado, impondo o art.º 340º do Código de Processo Penal que o tribunal a quo indagasse esse facto;

ii) o tribunal a quo considera, sem qualquer apoio na factualidade provada, que o plano de manutenção contém uma nota que prevê a desnecessidade de manutenção nos períodos em que está inativo e, simultaneamente, que nada no mesmo plano prevê desnecessidade de manutenção quando o autoclave não estava em utilização; o tribunal a quo devia ter procurado esclarecer que o plano de manutenção não previa que se efetuasse manutenção nos períodos de inatividade e o seu conteúdo;

iii) nada na factualidade provada permite concluir que à data do acidente o dispositivo de segurança não estava operacional, pelo que não podia o tribunal a quo concluir pela violação das normas legais que levaram à sua condenação;

iv) a decisão recorrida não procurou determinar em que medida a atuação do “chefe de produção” contribuiu para que o trabalhador BB tivesse procedido à abertura da tampa do autoclave, o que era importante para saber se a infração se podia imputar à Recorrente;

v) o tribunal a quo afirma que “o vapor e a pressão existentes no interior do autoclave eram de tal maneira elevados”, mas tal não se encontra nos factos provados;

vi) não consta dos factos provados que a Recorrente não efetuasse verificações periódicas, mas tão só que não dispunha de registros, não o tendo o tribunal a quo averiguado.

Como se vê, a Recorrente discorda da apreciação feita em 1ª instância, das conclusões ali retiradas, dizendo que os factos provados são insuficientes para se concluir pela prática da infração, o que se apreciará infra, mas não estando em causa a insuficiência para ser proferida decisão de direito, ou seja, a argumentação é no sentido de que para haver condenação impunha-se que outros factos constassem entre os provados, o que quer dizer que a decisão de direito a proferir, com os factos provados, teria que ser em sentido diverso do proferido, mas não se verifica a apontada nulidade.

Improcede, então, igualmente o recurso nesta parte.

Da alegada contradição insanável prevista no art.º 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal:

Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [art.º 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal], a mesma pode reportar-se à contradição na matéria de facto, como seja a contradição insanável entre os factos dados como provados ou a contradição entre os factos provados e os não provados, bem como à contradição entre os factos – provados ou não provados – e a fundamentação ou à contradição entre esta e a decisão [20].

Alega a Recorrente que existe contradição entre os factos dos pontos 4º, 6º e 23º, pois «[r]esulta do facto provado sob o nº 4 que o trabalhador BB se encontrava a executar uma tarefa ocasional. Decorre, ainda, como provado do facto nº 6 que, no dia do acidente de trabalho, o trabalhador CC se encontrava “aparentemente a dar instruções ao trabalhador BB para a operação” de branqueação de gaze, durante a qual ocorreu o acidente. E, o facto nº 23 refere que no dia do acidente “o Engenheiro CC, na sua qualidade de chefe de secção, dirigiu a operação de branqueação da gaze no autoclave nº 5”», não sendo possível que se «considere simultaneamente provado que o Eng.º CC se encontrasse a dirigir a operação e simultaneamente que, como se não dirigisse e orientasse o outro trabalhador, estivesse aparentemente a dar instruções sobre a operação a um trabalhador que executava uma operação ocasional e que desconhecia».

Ora, o caber a direção da operação em curso não é contraditório com o estar a dar instruções sobre a operação a um trabalhador que desenvolvia tarefa ocasional no âmbito dessa operação.

A questão poderá estar em saber que “tarefa ocasional” era essa e/ou o que significa a aparência de dar instruções e sua eventual suficiência para imputar a infração.

Mas tal serão questões a apreciar infra, se oportunas, aquando do enquadramento jurídico, não determinando a existência da apontada nulidade.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Da inclusão de factos conclusivos e juízos de valor no elenco dos factos provados:

Alega a Recorrente que um trecho do ponto 11) dos factos provados e outro do ponto 16) dos factos provados, devem considerar-se como não escritos.

Vejamos cada um per si.

Começando pelo ponto 11) dos factos provados, a sua redação é a seguinte, recordemos, realçando a negrito o segmento que a Recorrente defende dever ser considerado não escrito por se tratar de juízo conclusivo relativo à verificação de um dos pressupostos da infração imputada:

11) O último registo de manutenção data de 11 de janeiro de 2021, não estando conforme a periodicidade de manutenção referida no mesmo documento [“registo de manutenção” referido no ponto anterior].

Este ponto reproduz parte do que consta do ponto 3.7 do Auto de Notícia, estando o “registo de manutenção” anexo ao mesmo.

Vendo esse documento anexo ao Auto de Notícia [“registo de lubrificações e manutenção preventiva”], relativo ao ano de 2021 e ao Autoclave nº 5, nele encontramos três operações de manutenção a realizar pelo “afinador da secção”, a saber:

1) Lubrificação dos rolamentos da bomba/Massa Molykote BR2, com periocidade trimestral (tempo máximo permitido entre registos: 4 meses);

2) Lubrificação dos rolamentos dos motores elétricos/Massa Molykote BR2, com periocidade mensal (tempo máximo permitido entre registos: 40 dias);

3) Lubrificação a óleo do autoclave 5/Óleo Repsol X 200/30, com periocidade mensal (tempo máximo permitido entre registos: 40 dias);

estando em relação a todas as operações preenchido o espaço destinado ao mês de janeiro, com a data de 11/01/2021, e com X o espaço destinado aos meses de fevereiro a setembro (indicando que não foi feita a respetiva operação).

Como se vê, o segmento em causa [não estando conforme a periodicidade de manutenção referida no mesmo documento] traduz aquilo que se retira do documento.

Dir-se-ia que, em vez de ser consignado aquilo que se acabou de reproduzir [operações a realizar, periocidade previstas, e registos efetuados], de onde se retiraria que não foi observada a periocidade ali prevista, apenas foi consignado o resultado da leitura do documento.

Porém, no ponto seguinte [ponto 12) dos factos provados] encontramos a densificação daquele segmento, pois estão referidas aquelas três operações de manutenção, e sua periocidade.

Assim, porque os factos têm que ser lidos no seu todo, concretamente o ponto 11) dos factos provados têm que ser lido em conjugação com os demais pontos, em especial o ponto 12) dos factos provados, não se pode dizer ser de retirar o segmento do ponto 11) dos factos provados, mantendo-se portanto o ponto 11) dos factos provados com a redação que tem.

Quanto ao ponto 16) dos factos provados, a sua redação é a seguinte, recordemos, realçando a negrito o segmento que a Recorrente defende dever ser considerado não escrito por se tratar de juízo conclusivo:

16) Refere o referido relatório que foram verificadas, à data da peritagem, irregularidades relacionadas com o dispositivo de segurança de bloqueio da porta: “O autoclave possui um dispositivo de segurança que bloqueia mecanicamente a porta, na posição fechada, quando existe pressão no interior do autoclave. Este dispositivo de segurança, à data da peritagem não estava operacional”. Mais conclui o relatório: “Com base nos elementos disponíveis até à data, que resultam essencialmente da observação efetuada à máquina e recolha de informação junto das pessoas presentes na peritagem, o perito é da opinião de que o acidente ocorreu devido à conjugação de 2 fatores: (1) Falha no dispositivo de segurança de bloqueio da porta (2) Operação de abertura de porta na fase “lavagens a 90º”.

Ora, este ponto reproduz, em parte, um meio de prova, o “relatório de peritagem técnica” referido no ponto 15) dos factos provados.

Assim, estando em causa a reprodução não há que eliminar o segmento em causa [questão diferente é a sua relevância para a imputação da infração imputada à arguida, mas essa é questão a apreciar infra, se for oportuna].

Deste modo, improcede o recurso nesta parte.

Do preenchimento do tipo legal da contraordenação/da inconstitucionalidade de normas legais:

Contra ordenação laboral é (só) todo o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito das relações laborais e seja punível com coima, assim a definindo o art.º 548º do Código do Trabalho.

Argumenta a Recorrente o seguinte:

• não se provou que a Recorrente não tenha efetuado a manutenção adequada em outubro de 2021. Quanto muito, provou-se que os registos não foram efetuados, mas a norma não pune a falta de registos de manutenção, mas apenas a não realização de manutenção.

• não se provou que o plano de manutenção da Recorrente não previa que se efetuasse manutenção nos períodos em que a máquina se encontra inativa, isto é, sem utilização.

• não se provou que o plano de manutenção não estivesse de acordo com a periodicidade referido no mesmo documento, na medida em que tal facto é conclusivo e não pode ser levada à lista de factualidade provada, como assenta em argumentação fáctica que o tribunal recorrido teceu sem que houvesse factos provados que o sustentassem.

• não se provou que a Recorrente não efetuasse as verificações periódicas previstas no nº 2 do artigo 6º, sendo que apenas foi levado aos factos provados que a Recorrente não evidenciou prova dos registos.

• não se provou que o dispositivo de segurança do autoclave se encontrava inoperacional, sendo certo que o facto 16 não só é conclusivo e não pode ser levado à factualidade provada, como deve ser considerado não escrito na parte assinalada atrás por conter em si argumentação fáctica que não se fundamenta em factos provados, antes decide, de imediato, o objeto do processo. Sem prescindir,

• não se provou que o dispositivo de segurança estivesse inoperacional à data do acidente.

• não se apurou qual o papel do Chefe de Produção na verificação do acidente, dada a provada violação das instruções de segurança e de trabalho que vigoravam na empresa.

• não se provou a existência de vapor ou pressão elevados no momento do acidente, tais factos não foram levados ao elenco de factos provados e, por outro lado, várias forma as questões importantes que o tribunal decidiu não apurar.

In casu, como já se referiu supra, está em causa, em termos de conduta típica, o não ter a arguida assegurado a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho [no caso um Autoclave] durante o seu período de utilização, de modo a que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança, estando a infração imputada a título de negligência.

Como é consabido, existe negligência quando se possa censurar o agente pela omissão de um dever objetivo de cuidado, por não ter atuado com a diligência devida – art.º 15º do Código Penal [21] [22].

Importa começar por esclarecer, para que dúvidas não haja, que neste processo não está em causa aferir de eventual responsabilidade da Recorrente na eclosão do acidente, estando tão só em causa saber se é de lhe imputar a prática da contraordenação [são questões distintas].

Sendo assim, não está em causa saber se existe uma conduta integradora de infração contraordenacional que fosse causa do acidente, podendo estar em causa uma infração que foi detetada na sequência de averiguação feita após a ocorrência do acidente [pense-se neste exemplo prático: alguém tem acidente de viação, traduzido numa distração do condutor que origina a colisão com outro veículo a circular na via pública; chamadas a tomar conta da ocorrência, as autoridades policiais detetam que o veículo desse alguém não é portador de colete refletor; existe uma infração ao disposto no art.º 88º, nos 1 e 6 do Código da Estrada e nada tem a ver com a ocorrência da colisão].

Quer isto dizer que não releva toda a argumentação da Recorrente, nem o aresto do TRP (de 22/05/2005) que cita, que vão no sentido de não lhe poder ser imputada a ausência de previsão da ocorrência do acidente, pois não é isso que está aqui em causa.

O que está aqui em causa é algo diferente: é saber se a Recorrente/arguida não assegurou a manutenção adequada do Autoclave, quando podia e devia ter atuado de outra forma.

Com efeito, estão em causa os artos 43º, nº 1, 3º, al. e), 6º e 20º, al. b) do referido DL, que passamos a analisar.

O art.º 43º, nº 1 limita-se a referir que a violação do disposto no art.º 3º do mesmo diploma constitui contraordenação muito grave.

O art.º 3º, com a epígrafe «obrigações gerais do empregador», estabelece, na sua al. e), que para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos artigos 10º a 29º e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.

E na al. b) do art.º 20º consta o requisito mínimo de segurança relacionado com os riscos elétricos, de incêndio e explosão, dispondo que os equipamentos de trabalho devem proteger os trabalhadores contra os riscos de incêndio, sobreaquecimento ou libertação de gases, poeiras, líquidos, vapores ou outras substâncias por eles produzidas ou neles utilizadas ou armazenadas.

É esta a infração a imputada à arguida, não a infração grave prevista no art.º 43º, nº 2, essa com referência à violação do art.º 6.

Ainda assim, é também citado o art.º 6º, estando em causa os nos 2 e 4 que já acima aludimos, porque a manutenção dos instrumentos de trabalho está ligada à verificação periódica [sem que seja, em simultâneo, imputada a infração do nº 2 do art.º 43º do DL citado porque a infração mais grave absorve a menos grave].

Ora, a “manutenção”, diz-nos o senso comum, tratar-se de assegurar que o equipamento [instrumento de trabalho/máquina] continue em boas condições de funcionamento, prolongando a sua vida útil mas também assegurando que a segurança no seu manuseamento se mantenha [tanto o diz o senso comum, que a generalidade das pessoas faz a manutenção do seu carro por isso mesmo], pelo que podemos definir a mesma como o conjunto de cuidados técnicos indispensáveis ao funcionamento regular e permanente do mesmo, pelo que não deixa de estar ligada com a realização de verificações periódicas[23] e, quando necessário, ensaios periódicos, aos quais se refere o citado art.º 6º.

Alberto Sérgio S. R. Miguel[24] diz-nos que uma das definições de manutenção, sob o ponto de vista industrial, é o conjunto de operações de conservação e assistência a instalações, máquinas e aparelhos de modo a garantir a sua funcionalidade.

A norma portuguesa NP EN 13306 de 2007 estabelece que a “manutenção é a combinação de todas as ações técnicas, administrativas e de gestão, durante o ciclo de vida de um bem, destinadas a mantê-lo ou repô-lo num estado em que ele pode desempenhar a função requerida”[25].

Subentendido a estas definições está, parece-nos, a ideia de dever ser garantida a funcionalidade do instrumento de trabalho, e em condições de segurança.

Decorre daqui que a manutenção pode ter periodicidade diversa para diferentes componentes do instrumentos de trabalho [voltando ao exemplo facilmente apreensível, no caso do equipamento/máquina que muitos cidadãos usam no dia a dia, o veículo automóvel, a manutenção do motor – óleo – não tem a mesma periodicidade da manutenção da suspensão].

Fundamental será a existência de um registo do histórico da manutenção.

Quanto à “manutenção adequadapodemos dizer transparecer da norma citada tratar-se da manutenção ajustada a cada tipo de equipamento.

E aqui entroncamos com a questão da inconstitucionalidade invocada pela Recorrente.

Alega a Recorrente verificar-se a inconstitucionalidade das normas constantes do art.º 3º, al. e) e art.º 6º, nos 2 e 3, ambos do já referido DL nº 50/2005, dizendo, em síntese, que tais normas nada têm de determinável ou tipificado, tendo pendor claramente generalista, mais dizendo, quanto à primeira [art.º 3º, al. e)] que impõe a realização de “manutenção adequada” sem descrever o comportamento concretamente expectável, quanto à segunda [art.º 6º, nº 2] que fica por saber em que consistem as verificações periódicas, sobre que componentes incidem, qual a periodicidade e quem a determina, além de que limita a aplicabilidade a equipamentos sem determinar quais, e quanto à última [art.º 6º, nº 3] que não permite uma perceção certa do que seja atuação proibida.

Quanto a violação de normas constitucionais, refere a Recorrente o seguinte:

Mas entendemos que, tratando-se normas generalistas inseridas num capítulo designado “Disposições gerais”, estas não respondem, nem têm de responder a estas questões. Sendo o reverso da medalha, a impossibilidade de uma infração às referidas normas ser passível da aplicação de uma sanção, uma vez que tal entendimento constituiria uma violação dos princípios da previsibilidade e da confiança jurídica ínsitos no princípio do Estado de direito democrático previsto no artigo 2º da Constituição da República, do princípio da audiência e defesa, previsto no artigo 32º, nº 10 e do princípio da legalidade, na vertente da tipicidade, conforme decorre dos artigos 3º, nº 2 e 29º, nos 1 e 2 da Constituição.

Cita, ainda, a Recorrente o acórdão do TC nº 825/2021, que se pronunciou sobre a inconstitucionalidade do art.º 6º, nº 2, dizendo valerem as considerações ali expendidas para as demais normas.

Vejamos.

A norma contraordenacional visa regular comportamentos humanos, que valora negativamente, cominando-os com uma sanção (coima).

Como é sabido, e está subjacente ao art.º 1º do RGCOC, vigora o princípio da tipicidade, segundo o qual cabe à lei, e só a ela, especificar quais os factos ou condutas que constituem contraordenação e quais os pressupostos que justificam a aplicação da sanção, optando o legislador por o fazer através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitetado pelo legislador.

Referem Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, a propósito do princípio da tipicidade [que o definem como acabámos de referir], o seguinte[26]:

7. (…)

… para tornar operativo e eficaz o princípio da legalidade, a lei estabelece, com um mínimo de rigor, o facto voluntário a considerar punível. Daí que antes de ser punível e imputável a título de culpa, deve a ação tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos «esquemas» ou «delitos-tipo» objetivamente descritos na lei sancionatória. Por isso, importa que essa valoração seja formulada de maneira tanto quanto possível precisa, o que se consegue com recurso à figura de tipo legal de contraordenação, em que o legislador descreve as expressões da vida humana que entende encarnarem a negação dos valores jurídicos que pretende tutelar.

Devem, pois, as leis contraordenacionais ser redigidas com a maior clareza possível, para que tanto o seu conteúdo como os seus limites se possam deduzir, o mais exatamente possível, do texto legal, uma vez que o grau de vinculação do juiz à norma jurídica se determina pelo grau de exatidão com que a vontade comum se consegue exprimir na Lei.

8- Na arquitetura do tipo legal, o legislador nem sempre utiliza o mesmo esquema, lançando mão, por vezes, e ao mesmo tempo, de cláusulas gerais (que fornecem um conceito) e do método casuístico (que indicam exemplos).

Em consonância com o acabado de citar, está o referido por Augusto Silva Dias, quando nos diz[27]:

A exigência de lei certa visa interditar o emprego de conceitos dotados de um elevado grau de indeterminação ou de técnicas em branco difusas, que possibilitam amplos espaços de apreciação e podem diluir por isso o vínculo do aplicador à lei. Esta proibição tem no presente contexto um rigor e um alcance menores do que na lei penal. Pretende-se com ela impedir tão-só situações de indeterminação extremas, como as que Baumann e Artz apelidaram de “salada contraordenacional”.

E tenhamos também presente o escrito por José Joaquim F. Oliveira Martins[28], a saber:

Em resumo, a própria Constituição da República Portuguesa não procura equiparar o direito penal e processual penal e o direito contraordenacional, antes distinguindo claramente entre estes ramos do direito (…) havendo também muito menores exigências constitucionais relativamente à tipificação e punibilidade dos ilícitos de mera ordenação social.

A nível da própria configuração do tipo-de-ilícito (…) há também muito menores exigências quanto à sua tipificação e concretização, abundando os ilícitos contraordenacionais em que é muito difusa, genérica ou inconcretizada a descrição do tipo objetivo do ilícito, que corresponde, muitas vezes, à mera violação de uma norma legal.

Assim, muito expressivamente (…) 2- A individualização das condutas sancionáveis como contraordenação decorre da sua referenciação à violação da normatividade administrativa violada e não do preenchimento de um modelo (tipo) abstratamente definido que integre um tipo de ilícito.

Tem pertinência citar igualmente o referido, também a propósito do princípio da tipicidade, por João Soares Ribeiro[29]:

A tipificação e a consequente determinabilidade do tipo legal da contraordenação não é tão rigorosa nem exaustiva como no direito criminal, frequentemente sucedendo que a lei fixa apenas cláusulas gerais ou normas em branco, cabendo depois à Administração, através de regulamentos, integrá-las ou preenchê-las.

E ocorre também muitas vezes que a lei se limita a estabelecer o sancionamento das condutas, permanecendo a descrição destas em textos do tempo do ilícito contravencional, anteriores à consagração do ilícito contraordenacional, técnica utilizada quando as condutas contravencionais naturalmente se mantém. É que é difícil, até pelo elevado volume e minudência dessas condutas, seguir o critério do direito penal de a norma conter a previsão e a estatuição, deparando-se frequentemente nos diplomas que consagram ilícitos contraordenacionais normas imperfeitas, hoc sensu.

Por isso costuma a doutrina, a este propósito, falar da maleabilidade dos tipos legais[30] e da indeterminação do conceito de bem jurídico e do conteúdo da própria ilicitude material.[31]

A este propósito refere o acórdão do TC nº 825/2021, citado pela Recorrente[32], o seguinte (final do ponto 11.):

Da jurisprudência constitucional pode extrair-se, pois, com toda a segurança, que, no âmbito da definição dos ilícitos contraordenacionais, a Constituição somente impõe «exigências mínimas de determinabilidade»; mas estas apenas se encontrarão satisfeitas na medida em que o tipo legal permita aos respetivos destinatários darem-se conta de qual é a conduta proibida e da sanção que lhe corresponde.[33]

Tal aresto decidiu «julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica ínsito no artigo 2.º da Constituição, a norma do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, quando conjugada com o artigo 43.º, n.º 2, do mesmo diploma, enquanto estabelece que a falta de verificação periódica dos equipamentos de trabalho sujeitos a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos, constitui uma contraordenação grave; e em consequência, escrevendo na fundamentação o seguinte:

12. Saber se certo tipo contraordenacional é ou não suficientemente determinado é questão a que deverá responder-se tendo em conta a acessibilidade e a previsibilidade da norma de comportamento pelos respetivos destinatários.

Tais requisitos mostrar-se-ão verificados sempre que, mas apenas quando, tais sujeitos puderem conhecer, através do texto da lei – complementado, se necessário, pela respetiva interpretação jurisprudencial, bem como pelo recurso a aconselhamento técnico especializado –, quais os atos e omissões suscetíveis de os responsabilizar [v. Radio France and Others v. France (2004) e Vasiliauskas v. Lithuania (2015)], em termos que lhes permitam proceder, de forma minimamente esclarecida e segura, ao planeamento da respetiva atuação.

Com ressalva das exceções já salientas (supra, n.º 9), os destinatários da obrigação de verificação dos equipamentos de trabalho imposta pelo n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 50/2005 – vimo-lo já – são todos empregadores de todos dos sectores privado, cooperativo e social, independentemente do ramo de atividade, da administração pública central, regional e local, institutos públicos e demais pessoas coletivas de direito público, bem como os trabalhadores por conta própria.

O dever que recai sobre todo esse vasto conjunto de distintos sujeitos – vimo-lo também – incide sobre «qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho» sujeito(a) «a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos» (objeto), consistindo na obrigação de «proceder a verificações periódicas e, se necessário, a ensaios periódicos periodicamente ao exame detalhado» do mesmo (conteúdo).

Tendo em conta o elevado número de conceitos indeterminados utilizados na descrição quer do objeto, quer do conteúdo do dever genérico de verificação periódica dos equipamentos de trabalho, o acentuado nível de indeterminação de certos deles e, sobretudo, o incrementado grau de abertura que a sua utilização simultânea confere à norma tipificadora, a questão que importa seguidamente resolver é a de saber se a caracterização do ilícito que resulta da conjugação do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 50/2005 com o n.º 2 do respetivo artigo 43.º foi, ainda assim, levada pelo legislador ao ponto necessário a permitir ao vasto conjunto dos potenciais autores da infração a antecipação, com o mínimo de segurança, da atuação suscetível de os eximir de responsabilidade.

13. Ao incidir sobre todo o tipo de máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho – como decorre, aliás, da alínea a) do artigo 2º da Diretiva 89/655/CEE – o dever de verificação dos equipamentos que impende sobre o empregador abrange, à partida, um conjunto ilimitado de artefactos, que poderão ir desde o agrafador utilizado pela secretária da administração de uma qualquer empresa até à maquinaria pesada empregue na execução dos trabalhados de construção civil.

A amplitude do conceito de equipamento de trabalho, já de si elevada, acentua-se ainda mais perante a indicação – que igualmente se extrai da alínea b) do n.º 2 da Diretiva 89/655/CEE – de que por utilização de um equipamento de trabalho é havida qualquer atividade em que o trabalhador contacte com um equipamento de trabalho, nomeadamente a colocação em serviço ou fora dele, o uso, o transporte, a reparação, a transformação, a manutenção e a conservação, incluindo a limpeza.

Para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, o conceito de equipamento de trabalho compreenderá assim todo o instrumento que se encontre afeto à atividade desenvolvida pelo empregador e com o qual o trabalhador interaja, seja qual for a qualidade em que o faça ou o tipo de interação que estabeleça com aquele.

Dentro deste vastíssimo conjunto de apetrechos de distinta natureza e com as mais diversas funcionalidades, concorrem para a delimitação do âmbito de incidência do dever de verificação dos equipamentos de trabalho dois elementos apenas.

13.1. Em primeiro lugar, o dever de verificação a cargo do empregador somente poderá afirmar-se em relação a máquina, aparelho, ferramenta ou instalação cuja verificação pressuponha a realização de um «exame detalhado» [artigo 2.º, alínea g)] por «pessoa com conhecimentos teóricos e práticos e experiência no tipo de equipamento a verificar» [artigo 2.º, alínea f)].

Trata-se de um elemento que atua sobre a delimitação negativa do dever de verificação – no sentido em que conduz à exclusão daquele tipo de artefactos, como o agrafador manual atrás referido, cujas condições de segurança podem ser aferidas por qualquer pessoa através do simples recurso a indicações de senso comum –, mas cuja contribuição para a delimitação positiva do respetivo âmbito de aplicação é, na melhor das hipóteses, escassa.

Sempre que, como sucedeu nos presentes autos (cf. ponto 18 dos factos provados elencados na decisão recorrida), não esteja em causa máquina, aparelho, ferramenta ou instalação cuja verificação/inspeção seja imposta por disposição legal ou regulamentar ou se encontre recomendada de acordo com as instruções técnicas do respetivo fabricante, a identificação dos equipamentos de trabalho sujeitos a verificação periódica obrigatória a partir de um critério baseado no grau de detalhe do exame para o efeito requerido e ou no nível de conhecimento e experiência exigidos à pessoa em condições de o realizar não permite determinar, em termos minimamente concludentes e seguros – pense-se, por exemplo, no caso de um agrafador elétrico ou pneumático –, as circunstâncias em que o empregador responderá contraordenacionalmente no caso de não diligenciar por essa verificação.

13.2. De entre as máquinas, aparelhos, ferramentas ou instalações cuja verificação implique a realização de um exame detalhado por pessoa especialmente qualificada, o empregador apenas se encontra obrigado a proceder à verificação dos equipamentos de trabalho que se encontrem «sujeitos a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos» (artigo 6.º, n.º 2).

Considerado o nível de imprecisão – ou vaguidade até – da formulação empregue, a medida em que este segundo elemento é suscetível de contribuir para a determinação da norma de comportamento é igualmente baixa.

Ao invés do que sucedeu com as definições de «equipamento de trabalho» e «utilização de um equipamento de trabalho» (supra, o n.º 8), o Decreto-Lei n.º 50/2005 não seguiu, pelo menos tão de perto, a tipificação dos pressupostos do dever de verificação periódica constante da Diretiva, em particular na parte em que, por via do n.º 2 do seu artigo 4.º-A, esta restringe o âmbito desse dever aos equipamentos de trabalho «sujeitos a influências geradoras de deteriorações suscetíveis de estar na origem de situações perigosas».

Retomando a previsão que constava já do nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 82/99, o legislador de 2005 optou antes por manter o critério de delimitação do âmbito objetivo desse dever exclusivamente assente no conceito de risco – que mais não é do que a probabilidade de um evento acontecer –, prescindido do incremento que adviria da referência (ou simultânea referência) à potencialidade para dar origem a «situações perigosas».

Fê-lo, todavia, sem simultaneamente fornecer um critério minimamente indicativo do tipo de «influências» e de «riscos» que o empregador deverá levar em consideração para identificar, de entre os equipamentos de trabalho afetos ao prosseguimento da respetiva atividade, aqueles por cuja verificação se encontra obrigado a diligenciar.

Em maior ou menor medida, todos os equipamentos de trabalho encontram-se inevitavelmente sujeitos a influências suscetíveis de provocar a sua deterioração, designadamente as que decorrem do desgaste natural inerente à sua normal utilização; deterioração que, por sua vez, poderá, em última análise, colocar em risco, ainda que mínimo, a segurança de um determinado trabalhador, independentemente da sua efetiva potencialidade originar a verificação de uma «situação perigosa».

Assim, apesar de fazer relevar todas as «deteriorações suscetíveis de causar riscos», o artigo 6.º do Decreto-Lei nº 50/2005 não fornece qualquer indicação qualitativa que permita mensurar o risco para a segurança do trabalhador tipicamente relevante, seja do ponto de vista da probabilidade de o mesmo vir a concretizar-se (“elevado risco”), seja do ponto de vista da magnitude das consequências que poderão associar-se-lhe (“risco para a vida” ou “risco de lesão grave”). À face da norma contida no nº 2 do artigo 6º, em conjugação com o nº 2 do artigo 43º, qualquer tipo de risco será, à partida, tipicamente relevante.

Na ausência de um qualquer critério à luz do qual possam ser apreendidas e antecipadas as «influências» e os «riscos» que, independentemente das recomendações técnicas do fabricante, colocam sob o dever de verificação obrigatória todos os equipamentos de trabalho cuja inspeção pressuponha a realização de exame detalhado por pessoa especialmente habilitada, não é possível afirmar-se, como tende a fazer o recorrido, que o conjunto de elementos que integram o tipo objetivo do ilícito em causa permita que, em face dele, «se torne objetivamente motivável e dirigível» (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 186) a conduta dos diversos empregadores que operam em cada um dos múltiplos ramos de atividade abrangidos pelo Decreto-Lei nº 50/2005.

14. Se assim é no plano da delimitação do objeto do dever de verificação dos equipamentos do trabalho, o problema da determinabilidade do tipo objetivo de ilícito agrava-se ainda mais quando nos confrontamos com o respetivo conteúdo.

Tal dever – diz-nos o nº 2 do artigo 6º – consiste na realização de «verificações periódicas e, se necessário, [de] ensaios periódicos dos equipamentos de trabalho».

Apesar de o n.º 4 do artigo 4.º-A da Diretiva determinar que «[c]ompete aos Estados-membros determinar as modalidades dessas verificações», o Decreto-Lei n.º 50/2005 não contém qualquer indicação, ainda que mínima, sobre a periodicidade, regularidade ou frequência com as mesmas deverão ser realizadas.

Tomando por exemplo o sector da construção civil, pergunta-se: com que regularidade deverá o empregador proceder à verificação dos martelos pneumáticos ou, como sucedeu no caso dos autos, das rebarbadoras elétricas manuais que são diariamente utilizado(a)s numa determinada obra e, nessa medida, se encontram diariamente sujeito(a)s a influências resultantes da sua normal utilização suscetíveis de provocar deteriorações no equipamento?

A resposta encontrada pelo Tribunal recorrido foi a seguinte: «[a] periodicidade das verificações depende do próprio equipamento e dos riscos inerentes ao mesmo, podendo culminar numa combinação de verificações, de distinta periodicidade e profundidade e deverão ser realizadas tendo em conta as instruções do fabricante, as características do equipamento e as condições de utilização».

Do ponto de vista da função de garantia cometida ao tipo legal, tal resposta não é, todavia, suficientemente esclarecedora. E isto porque, ou se trata de equipamento de trabalho cuja verificação se encontra recomendada pelo respetivo fabricante – caso em que a periocidade a observar pelo empregador só poderá ser a que resultar das instruções técnicas fornecidas por aquele –, ou se trata, como sucedeu no caso dos autos, de equipamento cujo fabricante «não especifi[ca] em concreto “nada” no que diz respeito a verificações» (cf. ponto 18 dos factos provados elencados na decisão recorrida) – caso em que o critério apontado pelo Tribunal recorrido, que torna a frequência da verificação exclusivamente dependente das características do «próprio equipamento e dos riscos inerentes ao mesmo», adquire contornos de tal modo imprecisos e vagos que deixa de poder funcionar como referência minimamente segura para a antecipação dos atos ou omissões geradores de responsabilidade.

15. Tendo em conta a explicitação legal de cada um dos elementos que a integram, a norma sindicada pode formular-se, em termos definitivos, do seguinte modo: constitui contraordenação grave (artigo 43º, nº 2) a violação pelo empregador do dever de proceder periodicamente ao exame detalhado e, se necessário, a ensaios periódicos (artigo 6.º, n.º 2), de qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação que se encontre afeto à prossecução da respetiva atividade e com o qual o trabalhador interaja, seja qual for a qualidade em que este o faça ou o tipo de interação que estabeleça com o(a) mesmo(a) [artigo 2.º, alíneas a) e b)], sempre que se trate de equipamento cuja verificação pressuponha um exame detalhado por pessoa com conhecimentos teóricos e práticos e experiência no tipo de equipamento a verificar [artigo 2.º, alíneas g) e f)] e se encontre sujeito a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos para a segurança do trabalhador (artigo 6º, n.º 2).

Pelo somatório das razões atrás apontadas, à particular extensão de que se reveste a descrição da conduta proibida não corresponde uma maior densificação do conteúdo do ilícito.

O tipo legal resultante da conjugação dos artigos 6º, nº 2, e 43º, nº 2, do Decreto-Lei n.º 50/2005, consubstancia uma espécie de antecipação máxima da tutela conferida pelo ordenamento jurídico em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho. Para garantir um melhor nível de proteção da segurança e saúde dos trabalhadores, o legislador onerou o empregador, não apenas com os deveres específicos relativos aos requisitos mínimos de segurança a observar pelos equipamentos de trabalho (artigos 10.º a 29.º) e na sua utilização (artigos 30.º a 42.º), mas também com um conjunto de obrigações de âmbito geral, entre as quais o dever de verificação dos equipamentos de trabalho: o dever genérico previsto no n.º 2 do artigo 6.º e o dever específico a que alude o respetivo n.º 3.

Sucede que, ao invés do que decorre do modo como este último dever foi formulado – trata-se, de acordo com o n.º 3 do artigo 6.º, do dever de o empregador «proceder a verificações extraordinárias dos equipamentos de trabalho quando ocorram acontecimentos excecionais, nomeadamente transformações, acidentes, fenómenos naturais ou períodos prolongados de não utilização, que possam ter consequências gravosas para a sua segurança» –, a norma constante do n.º 2 do não fornece qualquer ponto de referência suficientemente objetivo seguro para que o empregador possa determinar, com o mínimo de infalibilidade, a ação prescrita e a inação proibida.

O principal critério utilizado para delimitar o universo dos equipamentos de trabalho sob verificação periódica obrigatória – «sujeição a influências que possam provocar deteriorações suscetíveis de causar riscos» – não dispõe de precisão e concretude suficientes para permitir ao conjunto, vasto e diversificado, dos potenciais autores da infração a identificação antecipada, nem das máquinas, aparelhos, ferramentas ou instalações abrangidos pelo dever genérico de verificação, nem do momento (ou momentos) em que tal verificação deverá ocorrer. Não contendo qualquer indicação a partir da qual possa ser recortada a espécie de influências, a natureza das deteriorações e o tipo de riscos tipicamente relevantes, o critério constante do segmento final do nº 2 do artigo 6º contempla múltiplas e distintas possibilidades de concretização, assemelhando-se, por isso, a um espaço em branco, que só a subjetividade do empregador poderá vir a preencher. Ora, ao «abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente deixa de poder encontrar no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas». E não poderão ser «as autoridades do trabalho, na sua função sancionadora, ou as autoridades judiciais, na sua função de controlo, quem vão dizer qual é a única solução válida» (Acórdão nº 76/2016), até porque tal equivaleria, em ultima instância, à determinação retrospetiva do conteúdo ilícito e à consequente neutralização da função de garantia cometida ao tipo legal.

A norma do nº 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 50/2005 – que, aliás, apenas complementa o regime que resulta já das alíneas a) e b) do artigo 3º quanto às obrigações de carácter geral a cargo do empregador (supra, o n.º 9) – revela, assim, um grau de indeterminação na definição da conduta contraordenacionalmente relevante incompatível com as exigências de previsibilidade e de confiança jurídica que decorrem do princípio do Estado de direito democrático, pelo que é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição.

Posto isto, vejamos se o tipo contraordenacional que está em causa neste processo é ou não suficientemente determinado.

É verdade que a expressão “manutenção adequada” se revela vaga, o mesmo se podendo dizer das “verificações periódicas”.

Porém, reportando-se o referido DL a uma multiplicidade de equipamentos de trabalho, cuja manutenção varia em função das suas caraterísticas, nunca poderia fazer uma descrição mais pormenorizada da manutenção a observar ou das verificações/ensaios a realizar, havendo que o conjugar com outros elementos, como sejam as recomendações do fabricante/fornecedor do equipamento de trabalho.

Como refere o MºPº, em resposta ao recurso em 1ª instância, nos vários setores de produção, as verificações dos equipamentos dependem da própria máquina e dos riscos inerentes ao seu funcionamento, podendo culminar numa combinação de verificações, de distinta periodicidade e profundidade e deverão ser realizadas tendo em conta as instruções do fabricante, as características do equipamento e as condições de utilização, o que apenas se pode aferir caso a caso, consoante as especificações dos equipamentos.

Assim, no caso em apreço não se pode considerar que exista uma descrição “demasiado vaga” da conduta, insuficiente para permitir uma determinação minimamente aceitável de uma infração de mera ordenação social, pois o empregador com o manual de fabrico ou de utilização do equipamento facilmente saberá a manutenção adequada ao mesmo.

A este propósito é de ter presente o que referem Fernando A. Cabral e Manuel M. Roxo em nota ao art.º 6º[34], que importa ter em conta as recomendações do fabricante relativas aos requisitos a observar, primeiro na instalação, e depois na manutenção dos equipamentos[35].

Com base nas referidas recomendações, o empregador não terá dificuldade em saber a manutenção adequada e as verificações periódicas/ensaios periódicos que deve observar.

De resto, independentemente dessas recomendações, estando em causa um equipamento (autoclave) que internamente contém, quando em funcionamento, vapor de água a alta temperatura, qualquer empregador medianamente instruído alcança que uma manutenção adequada passa por, depois de um período de paragem de um autoclave, no recomeço da atividade se impor fazer a manutenção do mesmo, fazendo uma verificação, fazendo manutenção.

Em suma, as normas em causa obedecem ao princípio da tipicidade, no sentido de que para uma conduta humana assumir a dignidade de uma infração é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita numa norma legal que preveja, direta ou indiretamente, a aplicação de uma coima, tendo em conta que, porque estamos perante uma contraordenação, há, como acima se expôs, menores exigências quanto à sua tipificação e concretização.

Não se verifica, pois, violação das normas constitucionais invocadas pela Recorrente.

Acresce que a infração imputada se verifica, tanto que o acontecido [ocorrência de acidente] veio pôr a nu que a manutenção não foi adequada.

Com efeito, o Autoclave em causa esteve parado entre fevereiro e setembro de 2021 – ponto 22) dos factos provados –, tendo havido manutenção no mês anterior à paragem [janeiro de 2021 – ponto 11) dos factos provados], voltando a ser utilizado em outubro de 2021 [quando ocorre o acidente – ponto 3) dos factos provados], mas daí não decorre a desnecessidade de fazer a verificação do mesmo, antes pelo contrário, resulta do art.º 6º, nº 2 do referido DL que se impunha, se não nos meses em que esteve parado pelo menos antes do recomeço da atividade [condescende-se que a periocidade poderia aqui sofrer um ajuste à realidade vivida, mas tinha que ser observada], a verificação, quiçá um ensaio, do equipamento (Autoclave), sendo evidente que a arguida podia e devia ter atuado de outra forma [realizando essa manutenção].

E não se argumente, com faz a Recorrente, que a não existência de registo de manutenção não implica que a mesma não tenha sido feita.

É verdade que o meio de prova do facto não se confunde com o facto a provar [os registos provarão a realização da manutenção, interessando a prova desta ter sido ou não realizada], mas, se no rigor é assim, temos que ver o alcance do consignado nos factos provados, e a prova de que o último registo de manutenção data de 11/02/2021 – ponto 11) dos factos provados – só pode ter o sentido de que essa é a data da última manutenção.

Ou seja, a factualidade provada – designadamente pontos 11), 12), 13) dos factos provados – evidenciam a prática da contraordenação, improcedendo, em face do exposto, todos os argumentos da Recorrente.

Em suma, concluímos como a sentença recorrida, quando diz:

Assim, concluímos que a arguida agiu sem a diligência e o cuidado devidos e de que era capaz, não tendo tomado, como lhe era exigível, as medidas necessárias para assegurar a manutenção adequada do autoclave em causa, durante o seu período de utilização, de modo a que o mesmo respeitasse os requisitos mínimos de segurança constantes do Decreto-lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro, e não provocasse riscos para a segurança e saúde dos seus trabalhadores, nomeadamente no que respeita à proteção dos trabalhadores contra os riscos de libertação de gases, líquidos, vapores ou outras substâncias por ele produzidas ou armazenadas, permitindo a utilização do referido equipamento de trabalho com desrespeito das prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho.

Improcede, então, o recurso também nesta parte.

Da (não) responsabilização da Recorrente:

Alega a Recorrente que não pode ser responsabilizada, em face do disposto no art.º 551º, nº 1 do Código do Trabalho, pois resulta dos factos provados que o trabalhador CC, chefe de produção, agiu em transgressão das instruções de trabalho e de segurança em vigor na empresa.

O nº 1 do art.º 551º do Código do Trabalho dispõe ser o empregador o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.

Estará em causa o segmento final deste nº 1.

Ora, embora, recorde-se, não esteja aqui em causa a responsabilidade pela ocorrência do acidente [sobre essa cfr. o art.º 17º da LAT], o certo é que não se alcança a que factos provados se refere a Recorrente pois não encontramos algum que permita afirmar o que diz a Recorrente a propósito do trabalhador CC.

Sendo assim, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso nesta parte.

Da atenuação especial:

Importa, por fim, abordar a questão, posta pela arguida/Recorrente, de saber se devia ter tido lugar a atenuação especial da coima, alegando a Recorrente que existe uma redução acentuada da ilicitude do facto, culpa do agente e da própria necessidade da pena/coima, o que, diz, está patente, no circunstancialismo que envolveu os seguintes factos:

Ora, não podemos olvidar que a Recorrente efetivamente realizava as manutenções que considerava adequadas e cumpria o seu plano de manutenções, não se tendo provado que as mesmas não tivessem sido efetuadas em outubro de 2021. O que se provou foi simplesmente que as manutenções não foram objeto de registo no plano de manutenção, o que é coisa bem diferente.

Conforme resultou provado dos autos e conforme alegou a Recorrente em sede de impugnação judicial, o autoclave em questão tinha uma utilização muito reduzida, face à decisão tomada pela administração de desativar a identificada máquina, uma vez que a gaze era, à data dos factos, adquiria em estado já branqueado. Mais se arguiu e provou que a branqueação durante a qual ocorreu o acidente era a última operação de branqueação que se iria realizar nas instalações da Recorrente, tendo a referida secção sido desmantelada no decurso deste processo.

A Recorrente, como se alegou e provou, delegara os seus poderes diretivos relativamente à secção de branqueação no Eng.º CC, que era o Chefe de Secção e organizava o trabalho e a manutenção do referido equipamento.

A secção laborava de acordo com rigorosas Instruções de Segurança e Instruções de Trabalho (factos provados 17, 18, 19, 20), que não foram cumpridas pelo responsável pela operação que decidiu efetuar a abertura da tampa do autoclave na fase das lavagens a 90 graus (facto nº 19, in fine), correspondente à etapa nº 7, sendo certo que a abertura estava prevista apenas na fase nº 11 e após o arrefecimento da máquina.

Ora, nada do que a Recorrente pudesse ter feito, nenhuma medida que pudesse ter tomado previamente – sendo certo que, como já se alegou, não se pode dar por provado que o dispositivo de segurança não funcionava à data do acidente – permitira evitar o acidente ocorrido, precisamente porque se tratou de uma atuação contrária às regras impostas e levada a cabo pelo Chefe daquela secção.

A Recorrente colaborou desde a primeira hora com a ACT, realizou a peritagem solicitada, entregou-a à autoridade administrativa, permitiu todas as visitas necessárias ao equipamento e vedou o acesso ao equipamento por razões de segurança (factos provados 14, 15).

O equipamento foi desmantelado assim que a Recorrente teve autorização da ACT, sendo que neste momento já não existe nas instalações.

Nunca houve qualquer acidente naquele equipamento que estava instalado na empresa há cerca de 30 anos (facto provado nº 9), nem nas duas utilizações feitas pelos trabalhadores acidentados dias antes do acidente fatídico.

A coima foi aplicada próximo do limite mínimo da moldura abstrata, e, ainda que o legislador qualifique a contraordenação em causa como muito grave (como se viu supra), temos que atender à gravidade do facto típico e ilícito concreto.

A atenuação especial da coima pode ter lugar, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente, sendo em tais casos os limites máximo e mínimo da coima reduzidos para metade (cfr. art.º 60º do RPCOLSS, artºs 32º e 18º, nº 3 do RGCOC e art.º 72º do Código Penal).

Não se pode esquecer que a culpa do agente decide da medida da sanção[36], e também que só a diminuição da culpa de forma acentuada tem o efeito atenuativo especial[37].

Por outro lado, como referem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral[38], na aplicação da sanção não deixam de estar presentes considerações de natureza preventiva, ou seja, de conservação e reforço da(s) norma(s) violada(s), pelo que subjacente à culpa está a ideia de prevenção geral positiva, de preservar a ideia de reafirmação na comunidade da validade e vigência das normas violadas com a prática da contraordenação.

In casu, embora não seja conhecida a prática pela empresa arguida de infrações anteriormente, a censura a fazer ao desvio da conduta omissiva da empresa arguida em relação à conduta padrão atinge alguma intensidade porquanto o empresário diligente e criterioso não poria em utilização um autoclave, depois de parado por 8 meses [ponto 22) dos factos provados] sem efetuar manutenção.

Dito isto afastada fica a ponderação de atenuação especial da coima, pois pressuporia uma situação especial, isto é, que existissem circunstâncias que diminuíssem por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente, e do que se disse conclui-se não ser este o caso.

Improcede, então, igualmente o recurso nesta parte.

Em suma, concluímos que é de confirmar o decidido em 1ª instância.


***

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, fixando a taxa de justiça no mínimo – 3 UC’s (artos 93º, nº 3, do RGCOC, 513º, nº 1 do Código de Processo Penal, e 8º do RCP e Tabela III anexa a este).

Notifique.

Em 1ª instância será feita a comunicação, oportunamente, à autoridade administrativa.


(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)


Porto, 04 de março de 2024
António Luís Carvalhão [Relator]
Rita Romeira [1ª Adjunta]
Teresa Sá Lopes [2ª Adjunta]
__________________
[1] O valor da UC (unidade de conta) é de € 102,00.
[2] As transcrições efetuadas neste acórdão respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[3] Cfr. art.º 41º do RGCOC (DL nº 433/82, de 27 de outubro, que aprovou o Regime Geral das Contraordenações e da Coima) e art.º 60º do RPCOLSS (Lei nº 109/2009, de 14 de setembro, que aprovou o Regime Processual aplicável às Contra ordenações Laborais e da Segurança Social), sendo tendo os mesmos presentes que na presente decisão se citam normas do Código de Processo Penal.
[4] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 4203/19.6T8MTS.P1.
[5] Vd. também o acórdão desta Secção Social do TRP de 05/06/2023, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1597/22.0T8MTS.P1 [relatado pela aqui 1ª adjunta, e subscrito pelo aqui relator e 2ª adjunta como adjuntos], e o acórdão do TRG de 04/11/2021, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 386/21.3T9VRL.G1.
[6] Sobre a questão, vd. Germano Marques da Silva, “Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança”, Universidade Católica Editora, 1996, pág. 42, e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Regime Geral das Contraordenações – à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2017 (reimpressão), págs. 93-95..
[7] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 156/10.4YFLSB.
[8] Consultável em www.dgsi.pt.
[9] Vd. igualmente os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 01/06/2017, Conflito nº 5/17, de 28/09/2017, Conflito nº 24/17, e de 11/01/2018, Conflito nº 45/17 [todos consultáveis em www.dgsi.pt], todos no sentido de que é a introdução em juízo do feito a julgar, que corresponde à data em que os autos são apresentados no tribunal, que marca o momento em que a competência se fixa, e com a qual concordamos.
[10] O qual dispõe o seguinte: O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
[11] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 17/09.0TELSB.L1.S1.
[12] Prescrições Mínimas de Segurança e de Saúde na Utilização de Equipamentos de Trabalho [Transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho].
[13] O doc. 1 já havia sido junto por email de 03/03/2022.
[14] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 388/14.6GBSXL.L1-9.
[15] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 291/10.9PAVFR.P1.
[16] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1204/19.8T8OAZ.P1 [subscrito pela agora 1ª adjunta, também como adjunta].
[17] In “Contra Ordenações Laborais – Regime Jurídico”, Almedina, 2011 – 3ª edição, pág. 94.
[18] Vd. o acórdão desta Secção Social do TRP de 22/06/2020, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1836/19.4T8OAZ.P1.
[19] Vd. a propósito o acórdão do TRL de 18/07/2013, consultável no sítio da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa em nota ao art.º 410º do Código de Processo Penal.
[20] Vd. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, pág. 325, e o acórdão deste TRP (1ª Secção Criminal) de 24/04/2013, consultável em www.dgsi.pt processo nº 1800/10.9TAVLG.P1.
[21] Importa aferir, recorrendo a um juízo ex ante (ou seja, referido ao momento em que a ação se realiza, mas como se a produção do resultado ainda se não tivesse verificado), se era de esperar de um homem dotado das forças intelectuais do agente, mas com a personalidade ético-juridicamente relevante conformada com o que a ordem jurídica impõe e exige, que tivesse alcançado a devida previsão e atuado conforme.
[22] Pode traduzir-se na violação do dever de preparação e informação prévias, de o agente se esclarecer sobre a proibição legal, quando estava concretamente em condições de conhecer a possibilidade da realização típica e de a evitar.
[23] No art.º 2, al. g) do referido DL, a «verificação» é definida como o exame detalhado feito por pessoa competente destinado a obter uma conclusão fiável no que respeita à segurança de um equipamento de trabalho.
[24] “Manual de Higiene e Segurança do Trabalho”, Porto Editora, 6ª edição (2002), pág. 254.
[25] Vd. Abel Pinto, “Manual de Segurança na Manutenção”, Edições Sílabo, pág. 27.
[26] In “Contra Ordenações – Anotações ao Regime Geral”, 2ª ed., 202, Visilis, pág. 49.
[27] In “Direito das Contra Ordenações”, Almedina, 2019 (reimpressão), pág. 71.
[28] “Contraordenações laborais e da segurança social – inserção no direito penal laboral, questões gerais e tramitação”, in Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, 2021 – I, págs. 138-139.
[29] In “Contra ordenações Laborais – Regime Jurídico Anotado contido no Código do Trabalho”, Almedina, 2ª edição, 2003, pág. 54.
[30] Cita Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, BFDUC, vol. XLIX, 1973, pág. 262 e 274.
[31] Cita Castro e Sousa, As pessoas coletivas em face do Direito Criminal e do Chamado “Direito de Mera Ordenação Social”, Coimbra Editora, Lda., 1985, pág. 137.
[32] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[33] Sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade no domínio contraordenacional, podem também ver-se os acórdãos do TC nº 76/2016, nº 825/2017 e nº 659/2020.
[34] In “Segurança e Saúde do Trabalho – Legislação Anotada”, Almedina, 5ª edição – 2008, pág. 179.
[35] Note-se que em relação às máquinas, estas devem ser acompanhadas de manual de manutenção [cfr. o ponto 1.74 do anexo I ao DL nº 103/2006, de 24 de junho – estabelece s regras relativas à colocação no mercado e entrada em serviço das máquinas e respetivos acessórios].
[36] Vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contraordenações – Anotações ao Regime Geral”, 2ª edição – Dez. 2002, Vislis Editores, págs. 169/170.
[37] Vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contraordenações – Anotações ao Regime Geral”, 2ª edição, VISLIS Editores, dezembro 2002, págs. 172/173 (em anotação ao art.º 18º).
[38] In “Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas”, Almedina, 2003, págs. 58/59, em anotação ao art.º 18º.