Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11418/23.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: ENTREGA DE IMÓVEL
PROCEDIMENTO CAUTELAR NÃO ESPECIFICADO
ALEGAÇÃO
Nº do Documento: RP2024020811418/23.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não há impedimento legal em se intentar procedimento cautelar não especificado, pedindo-se a entrega de imóvel dado de arrendamento ao requerido, se se alegar que a atuação deste coloca em grave risco a integridade do imóvel e a sua recuperação em termos úteis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:             Processo n.º 11418/23.0T8PRT.P1

            João Venade.

            Isabel Rebelo Ferreira.

            Paulo Duarte Teixeira.


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            1). Relatório.

            AA, residente na Rua ..., ..., Porto, propôs contra

            BB, com domicílio convencionado na Avenida ..., 2.º centro, Porto,

           Providência cautelar não especificada, com pedido de inversão do contencioso, pedindo que se:

           A). Ordene a restituição imediata do locado a si, livre e devoluto de pessoas e bens;

           B). Declare a resolução (provisória) do contrato de arrendamento alegado sob o artigo 1.º e decrete o despejo (provisório) do locado objeto do dito contrato, convertendo-se estas decisões cautelares em decisões definitivas, com todos os seus efeitos, verificada que seja uma das seguintes condições: a sua confirmação em decisão a proferir na ação definitiva ou, conformando-se o requerido com a decisão cautelar, não propuser a ação definitiva no prazo legal.

            Em síntese, o requerente alega que:

           . em 29/04/2023, arrendou ao requerido uma fração autónoma designada pela letra «G», destinada a escritório, no segundo andar centro (2.º C) e uma fração autónoma designada pelas letras «ZD», correspondente a um lugar de estacionamento de veículo, ambas no prédio urbano sito na Avenida ..., Porto;

            . o requerido transmitiu que o arrendamento da identificada fração «G» se destinava a ser ocupada por quadros tecnológicos, altamente qualificados, tendo conseguido que todos os presentes confiassem no seu discurso;

            . o contrato foi celebrado para fim não habitacional, por três anos, pela renda mensal de 1 100 EUR, tendo o requerido de pagar, na data da assinatura do contrato, 2 200 EUR, respeitante às rendas dos meses de maio e junho de 2023, acrescida de 1 100 EUR a título de caução;

            . ficou igualmente convencionado que o requerido só podia usar o locado para prestação de serviços de consultadoria e programação informática nem podia sublocar, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, obrigando-se a manter o arrendado em bom estado de conservação, não podendo fazer quaisquer obras ou benfeitorias no locado sem autorização prévia e por escrito do senhorio;

           . em 29/04/2023 o requerido simulou o pagamento da quantia de 3 300 EUR por transferência bancária, o que efetivamente não fez;

           . em 15/05/2023 constatou-se que o requerido tinha em curso a realização de obras ilegais e estava a adaptar o locado a um fim contrário ao uso a que o mesmo se destina, tudo sem a autorização do requerente;

            . dividiu o locado em pequenos espaços, destinados a oito quartos de dormir, alguns já ocupados com pessoas a quem “subarrendou”, pelo valor de 500 EUR cada quarto;

           . transformou a casa de banho do escritório, que era composta por sanitário e lavatório, estando a instalar um cilindro, uma base de duche e um duche; improvisou uma pequena cozinha;

           . ocupados todos os quartos, o uso que será dado ao locado será de tal modo intenso que, se for prolongado no tempo, votará o locado a um estado de degradação que ainda se poderá evitar;

           . em 31/05/2023, na expectativa que o requerido pudesse restituir o locado, o requerente promoveu a sua notificação judicial avulsa, mas tal não sucedeu;

           . já apresentou queixa-crime pela prática dos factos descritos e informou também a Divisão Municipal de Fiscalização de Obras particulares da Câmara Municipal ..., requerendo uma atuação célere e urgente daqueles serviços com vista a adotarem as medidas de tutela da legalidade que entendam por convenientes;

           . após a concretização da notificação judicial avulsa, foi efetuado um depósito na conta do requerente, da quantia de 1 650 EUR;

            . o incumprimento contratual do requerido é tão grave e de consequências tais que torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento pela contraparte, com múltiplos fundamentos de resolução;

           . a instalação elétrica do locado não permite a sobrecarga [cilindro, fogões, …] a que foi sujeita, colocando o locado sob risco grave de incêndio;

            . a sobrecarga nas canalizações de saneamento conduzirá à respetiva falência, pois não se mostram preparadas para tal afluência;

           . o uso intensivo de águas para banhos e o uso intensivo da improvisada cozinha, face à total ausência de ventilação, exaustão e de condutas de ar, provocam condensações que, no curto prazo, irão danificar todas as paredes do locado fazendo surgir eflorescências e bolores;

           . até ao momento, apenas quatro dos oito “quartos” estão ocupados, mas já são visíveis os efeitos nefastos da ocupação;

           . a gravidade da situação alegada ultrapassa largamente o espectro da relação locatícia;

           . é imperioso fazer cessar a exploração e o imoral aproveitamento da situação de especial vulnerabilidade em que se encontram as pessoas a quem o requerido alojou nas condições sobreditas e a quem cobra uma quantia inaceitável.


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            Indeferido o pedido de dispensa de citação prévia, citado o requerido, o mesmo veio juntar requerimento comprovativo de ter pedido apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos e nomeação de patrono.

           Em 18/08/2023 a S. Social informa que o pedido foi deferido nas modalidades requeridas, tendo sido nomeado patrono o Dr. CC.

           Este causídico pediu escusa, tendo sido nomeada em 19/09/2023 a Drª. DD.

           O requerido pediu substituição de tal advogada, sendo que em 06/11/2023, foi nomeado pela Ordem dos Advogados o Dr. EE o qual, em 14/11/2023, pediu escusa (sendo que o requerido também pediu a sua substituição).

            Em 15/11/2023 foi então nomeado patrono o Dr. FF o qual, em 27/11/2023, pediu igualmente escusa.

           Em 27/11/2023 o requerido veio aos autos pedir que se suspendesse o prazo para deduzir oposição em virtude de ter solicitado a substituição do patrono EE.

            Em 27/11/2023, o requerente apresenta requerimento onde pede que:

           A) ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº1, do CPC, se digne promover as diligências necessárias ao imediato decretamento da providência, sem a audição prévia do requerido.

            Subsidiariamente, e caso assim se não entenda,

           B) Requer a V. Exa. se digne ordenar a notificação do arrendatário, ora Requerido para proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento ou ao depósito das rendas vencidas até esta data, no valor de 7.700,00€, acrescidas da indemnização devida, no valor de 1.540,00€, o que perfaz um total em dívida de 9.240,00€ (nove mil duzentos e quarenta euros).

            C) Mais se requer a V. Exa. que, faltando aquele pagamento ou depósito, se decrete o despejo imediato, seguindo-se com as necessárias adaptações, o disposto no n°7 do artigo 15º do NRAU e nos artigos 15-J, 15-K e 15-M a 15-O NRAU.».

           O tribunal, por decisão de 29/11/2023, ora decisão recorrida, decide «tendo em conta o que retro fica exposto, julgar por não verificados os pressupostos a que alude o artigo 362º, do Código de Processo Civil, improcedente o pedido formulado, resultando prejudicada a apreciação o demais (cfr. Antecedente expediente) pedido nos autos.».


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            Em 11/12/2023, é nomeado patrono ao requerido o Dr. GG.

            Inconformado, recorre o requerente daquela decisão de 29/11/2023, formulando as seguintes conclusões:

           «A) Vem o presente recurso interposto do despacho que decidiu ser manifestamente improcedente o pedido formulado de: A) Ordenar a restituição imediata do locado ao Requerente, livre e devoluto de pessoas e bens; B) Declarar a resolução (provisória) do contrato de arrendamento alegado sob o artigo 1º e decretar o despejo (provisório) do locado objeto do dito contrato, convertendo-se estas decisões cautelares em decisões definitivas, com todos os seus efeitos, verificada que seja uma das seguintes condições: a sua confirmação em decisão a proferir na ação definitiva ou, conformando-se o requerido com a decisão cautelar, não propuser a ação definitiva no prazo legal.

           B) No plano do seu conteúdo, entende o apelante que a decisão incorre em erros de direito, na apreciação e concretização dos pressupostos da presente providência cautelar, com relevância para a solução jurídica final.

           C) Os fundamentos invocados pelo ora recorrente nos autos cautelares são os que se reconduzem ao uso do locado para fim diverso do contratado, tipificados no artigo 1083º/2 do CC. Como causa de resolução do contrato a operar judicialmente.

           D) No circunstancialismo em apreciação no caso sub judice o recorrente não tinha ao seu dispor outro mecanismo especial urgente, célere e simplificado, que assegurasse a efetividade do direito ameaçado, designadamente, o procedimento especial de despejo, uma vez que a este apenas podem servir de base as situações em que a resolução do contrato opera por comunicação – artigo 15º/2/e) do NRAU.

            E) É errado afirmar, como o faz a decisão em crise, que o ora recorrente poderia ter recorrido ao procedimento especial de despejo.

           F) E também não ocorre, ao contrário do afirmado na decisão, desrespeito pelo carácter instrumental do procedimento cautelar, importando atentar que a providência cautelar sub judice foi apresentada [e admitida] com pedido de inversão do contencioso.

            G) A reforma processual resultante da aprovação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, alterou a matéria cautelar tendo atenuado substancialmente o princípio segundo o qual as providências cautelares são sempre dependentes da ação principal, justamente, através da criação da figura da inversão do contencioso, instituída no artigo 369º do NCPC.

           H) A inversão do contencioso, requerida pelo ora recorrente, transfere a iniciativa processual de instaurar a ação principal para o demandado na providência, porquanto se pretende que a decisão com inversão do contencioso se convole em tutela definitiva satisfativa, resolvendo o litígio de forma definitiva.

            I) A procedência da providência cautelar com a peticionada inversão do contencioso, visa a condenação do requerido a restituir o imóvel e a declaração da resolução do contrato de arrendamento, com inversão do contencioso, fazendo recair sobre o requerido o ónus de interpor a ação para obviar à definitividade da decisão, nos temos do disposto no artigo 371º/1 do CPC.

           J) A procedência da providência cautelar, com a peticionada inversão do contencioso, visa a condenação do requerido no despejo e restituição do imóvel e a declaração da resolução do contrato de arrendamento, decisões que assumem – podem assumir - carácter definitivo.

           K) Apenas assim não seria se o requerido assumisse o ónus de interpor a ação para obviar à definitividade da decisão – e neste caso, contrariamente, ao caso explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a decisão mostra-se reversível.

           L) A decisão provisória que o recorrente reclama na providência cautelar apresentada não gera efeitos irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal, como sucede na ótica do argumentativo explanado no Acórdão da Relação de Coimbra, uma vez que não existe paralelo entre os dois casos.

           M) Falecem, em suma, todos os fundamentos invocados pela decisão em crise para julgar não verificados os pressupostos a que alude o artigo 362º, do Código de Processo Civil e improcedente o pedido formulado pelo recorrente.

           N) A decisão proferida padece de graves erros de direito, porquanto, assentando na dialética de uma decisão que não tem correspondência com a providência cautelar sub judice, invoca, no plano do seu conteúdo, fundamentos que embora integralmente válidos, são manifestamente inaplicáveis ao caso concreto.

           O) Salvo o devido respeito, ao decidir do modo como decidiu, o despacho violou, entre outras, as normas constantes dos artigos 362º e 371/1 do CPC.

            Pede a revogação da decisão.


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           O requerido contra-alegou, referindo que «Sem mais e salvo o devido respeito por melhor opinião, a Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” não merece qualquer reparo.».

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            A questão a decidir é aferir se o procedimento em causa já podia ser julgado improcedente, nomeadamente sem ter ocorrido produção de prova.

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            2). Fundamentação.

            2.1). De facto.

            Dá-se por reproduzido o teor do relatório que antecede.


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            2.2). Do mérito do recurso.

           O recorrente intentou o presente procedimento cautelar comum o qual, nos termos do artigo 362.º, nºs. 1 a 3, do C. P. C., estabelece que:

           «1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.

           2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.

           3. Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte.» - nosso sublinhado -.

           Estando em causa a necessidade urgente de tutela de um direito, a fim de se evitar uma lesão grave e dificilmente reparável, em determinadas circunstâncias pode o titular lançar mão de diligências que assegurem a efetividade do seu direito que se mostra ameaçado; para tal, têm de estar preenchidos os requisitos referidos no n.º 1 do citado artigo 362.º:

            . ser titular de um direito;

           . esse direito esteja em risco de sofrer lesão grave e irreparável;

            . inexista outro meio específico de proteger esse direito.

           E, nos termos do artigo 368.º, nºs. 1 e 2, do C. P. C., a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão (n.º 1) mas pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (n.º 2).».

           Uma vez que estamos numa fase quase-inicial dos autos [(a decisão também quase que equivale a um indeferimento liminar não só porque se fez uso do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do C. P. C.[1] como ainda não houve a dedução de contestação (cuja possibilidade de apresentação não é matéria do presente recurso)], há que aferir qual o motivo que sustentou a manifesta improcedência do procedimento cautelar e determinar se é possível concluir, neste momento, desse modo.

           O sustento da improcedência radicou, como mencionado na decisão, em que «pretendendo o requerente a entrega definitiva do imóvel – pedido que formula em A) -, uma vez este entregue por via cautelar estaria criada, com apoio numa prova meramente perfunctória, uma situação irreversível de destruição da relação de arrendamento que eventualmente ainda subsista em termos válidos – limitando-se, se assim fosse, a ação de despejo a chancelar a resolução que o requerente pretendia fosse provisória.».

           Ou seja, a procedência do aqui pedido (em especial o de entrega do imóvel) esvaziaria de conteúdo a futura ação de despejo, fazendo com que num procedimento que visa uma tutela provisória se alcançasse uma tutela definitiva, o que não pode ser obtido através de um procedimento cautelar.

            Vejamos.

           Como acima sublinhamos, um procedimento cautelar comum pode ser intentado com a finalidade de antecipar o direito que eventualmente venha a ser declarado em ação já proposta ou a propor.

           Marco Gonçalves, in Providências Cautelares, 2.ª, página 100, menciona que «as providências cautelares de antecipação provisória são aquelas em que, tal como sucede nos alimentos provisórios e no arbitramento de reparação provisória, se procura antecipar , de forma total ou parcial, a tutela jurisdicional definitiva que se pretende alcançar na ação principal. Assim, estas providências procuram dar resposta a dois tipos de exigências distintas: por um lado, afastar o perigo de que o direito fique prejudicado pelo facto de permanecer em situação de insatisfação durante o período de tempo necessário ao seu reconhecimento judicial; por outro lado, evitar o abuso do direito de defesa e conseguir uma maior economia processual.».

            António Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, III, página 92, também refere que «através das medidas especialmente previstas na lei, atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal» e, na página 93, «não está afastada a possibilidade de através de providências cautelares não especificadas se poder alcançar, também, uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, uma vez que o art.º 381.º[2] prevê expressamente tal possibilidade.». E continua o mesmo autor, «os efeitos produzidos por este género de providências cautelares não deixam de surpreender e de, eventualmente, provocar em quem tem de decidir, algum temor quanto aos riscos derivados de uma decisão cautelar injusta. (…). Apesar disso, o risco foi assumido pelo legislador, depois de ter ponderado os diversos interesse em confronto: por um lado, o interesse da segurança jurídica, que apela a restringir os efeitos das medidas cautelares à função de mera garantia da utilidade da decisão definitiva a através da qual se previnem os prejuízos irrecuperáveis que porventura possam ser provocados na esfera jurídica do requerido; por outro lado, o interesse da celeridade e da eficácia das decisões judiciais a fim de conferir ao interessado, tanto quanto possível, a mesma tutela que conseguiria se não houvesse a necessidade de recorrer aos meios de tutela jurisdicional.».

           Temos ainda Rui Gonçalves Pinto, na sua tese de doutoramento, A questão de mérito na tutela cautelar (https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/168/1/16452_Microsoft_Word_-_DOUTORAM14OUTsete.pdf) onde há menção este tipo de providências e também se debruça sobre a questão de saber se a ação de despejo é suficiente para acautelar determinados danos na esfera do senhorio, mencionando assim que:

           . páginas 208 e 209: «V. Dúvidas semelhantes surgem quanto à antecipação dos efeitos de ações constitutivas. Na matriz italiana durante as primeiras décadas de uso do art. 700º CPC/It tendia-se a negar aquela antecipação fosse porque a tutela urgente não poderia ser preordenada a uma situação subjetiva ainda não existente na esfera jurídica do autor, fosse por se defender que as obrigações e direitos potestativos não eram suscetíveis de sofrerem prejuízo irreparável, salvo a um mero nível de facto. Identicamente também entre nós o ac. STJ 21/4/1953 declarava que “as providências cautelares não constituem meio adequado para se criarem e definirem direitos” e, por isso, não se pode, por via delas, requerer a constituição de servidão de passagem 977. Atualmente entre nós o art. 381º, nº 2 admite, sem dificuldade, que o direito tutelando tanto pode ser “já existente”, como ser ainda e só “emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor”, enquanto em Itália parte da doutrina passou a defender a possibilidade de tutela cautelar de uma ação constitutiva, sob pena de excessivo formalismo, contrário à efetividade da ação constitutiva. Pois, se é verdade que o tempo até à decisão final não ameaça o direito potestativo em si mesmo, contudo é a utilidade da própria sentença constitutiva que está em periculum, podendo o autor sofrer danos na sua pendência. E, nesse sentido, tem-se defendido que se o efeito constitutivo, modificativo ou extintivo não pode ser antecipado, podem sê-lo os “efeitos práticos” da futura sentença constitutiva, salvo os efeitos registais, mediante:

           — antecipação de efeitos em áreas como direitos de imprensa, direitos difusos, privacidade, associação, concorrência desleal; Exemplo: anulação de despedimento, entrega do locado “se ele necessitar de obras muito urgentes, necessárias à sua segurança e salubridade” (RP 29/1/1998), passagem sobre prédio alheio para acesso a prédio encravado

           . página 262: as condenações in futurum estão previstas no art. 472º[3] e são possíveis quer em caso de perigo que é presumido pelo legislador — “quando se pretenda obter o despejo de um prédio no momento em que findar o arrendamento” e para as prestações vincendas na pendência da ação — quer sempre que a “falta de título executivo na data do vencimento da prestação possa causar grave prejuízo”. Deste modo, em qualquer caso, o perigo de mora processual justifica uma antecipação da própria tutela condenatória que se deveria obter mais tarde, cumprindo os tempos processuais da tutela plena;

            . páginas 473 e 477: «Exemplo, em sede de art. 472º, nº 2: além do perigo de prejuízo que o direito do autor, no quadro em que foi fixado, pode sofrer por falta de produção em tempo útil de título executivo - obrigação que cabe ao Estado - pode, adicionalmente ou independentemente, o autor estar perante um perigo que, por seu turno, configura já outro quadro litigioso: o devedor arrendatário estar já a realizar atividades que deterioram o imóvel. Este apenas colateralmente pode ser afastado pelo despejo, cabendo às providências cautelares darem a resposta adequada.».

           «Em segundo lugar, poder-se-ia ainda arguir que se, por hipótese académica, o título executivo fosse produzido de imediato, i.e., naquele tempo razoável não conduz a um dano imputável ao Estado, pura e simplesmente, não haveria que falar em providências cautelares. Ou seja: havendo título executivo em tempo, o problema do novo quadro fáctico não se colocaria. Em suma: poderia ainda ser-nos colocada a pergunta inicial de se a tutela cautelar teria de existir mesmo que, por hipótese, não houvesse a insuficiência temporal da tutela plena. A resposta é afirmativa quanto a esta questão: haveria uma violação do art. 20º CRP se o devedor arrendatário estivesse a realizar atividades que deteriorassem o imóvel e o seu dono não pudesse obter dos tribunais resposta adequada contra elas, mesmo depois de já ter uma decisão de despejo a seu favor. E isto estranhamente quando é certo, ainda por cima, que o senhorio poderia, verificados os pressupostos, usar de legítima defesa ou de ação direta. Mas não seria a ação de despejo e a obtenção do respetivo título o meio adequado para por termo à atividade danosa, precisamente, perguntar-se-ia em terceiro lugar? Sabe-se bem que não: o despejo é uma tutela para uma dada necessidade e para o exercício de um dado direito — colocar termo ao contrato e fazer valer o direito à desocupação — cuja execução apenas colateral ou reflexamente pode eventualmente satisfazer uma outra necessidade e correlativo exercício de outro direito — ressarcir o dano já causado e/ou evitar novo dano. Por outras palavras e generalizando: de nada serve condenar o requerido no pedido de fundo de uma ação principal — v.g., pagar ou declarar-se nulo um contrato ou dividir-se um bem comum — pois tal providência não afasta a concreta atuação perigosa.». – nosso realce -.

           Afigura-se-nos que, em determinadas circunstâncias, pode um procedimento cautelar inominado antecipar um efeito de uma ação de despejo, em concreto no que respeita à entrega do imóvel -. Esta entrega será sempre provisória, mesmo que tal não fosse declarado (e/ou pedido) atenta a natureza provisória do procedimento cautelar (artigo 373.º, do C. P. C.). Ponto é que se esteja a acautelar o direito e não a declará-lo antecipadamente.

           O Ac. S. T. J. de 28/10/1993, processo n.º 685/92, sumariado em www.dgsi.pt, refere que as decisões judiciais proferidas em providências cautelares, baseiam-se apenas na probabilidade séria da existência de um direito e não podem constituir uma antecipação das decisões a proferir na ação principal. Em termos imediatos, ao ordenar-se a entrega do imóvel no procedimento cautelar, está a antecipar-se um efeito que advirá da resolução do contrato de arrendamento: a restituição do imóvel ao senhorio (artigo 1081.º, n.º 1, do C. C.); mas, sendo esse o efeito pretendido com uma providência antecipatória, o certo é que não se está a antecipar a decisão de despejo a qual será tomada pela primeira vez na competente ação.

            Se a ação onde se pede o despejo for improcedente, caso tenha sido deferida a providência cautelar, o contrato de arrendamento mantém-se incólume e o senhorio terá de devolver o gozo do imóvel ao arrendatário.

           Como refere o Prof Rui Gonçalves Pinto na obra acima citada, agora página 585, «em consequência, as medidas antecipatórias são excecionais, podendo apenas ser decretadas se forem reversíveis de facto, desde que de modo não difícil.».

            À partida, com o que se dispõe nos autos neste momento, se a providência for deferida quanto à entrega do imóvel e depois se vier a concluir, na competente ação (a ter de ser interposta pois ainda está em cima da mesa a admissibilidade e decretamento de inversão do contencioso, nos termos do artigo 369.º, do C. P. C.), que o contrato de arrendamento se mantém, não se vislumbra uma impossibilidade de entrega do imóvel ao arrendatário.

           E naturalmente que não podem ultrapassar-se os efeitos/vantagens que a ação definitiva poderá vir a produzir (em caso de procedência) pois o que se visa é acautelar a produção útil dos efeitos que advenham da procedência da ação principal.

           No já citado Ac. da R. P. de 29/01/1998, processo n.º 328-A/96, sumariado no mesmo sítio, decidiu-se que:

            I - As providências cautelares antecipam provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que venha a ser favorável ao requerente a decisão a proferir no processo principal.

           II - O objeto da providência há-de ser conjugado com o da causa principal, embora tal dependência não imponha perfeita identidade, mas deve existir coincidência das partes e da causa de pedir.

           III - Na pendência de ação de despejo de prédio urbano, pode pedir-se a entrega do prédio, em providência cautelar não especificada, se ele necessitar de obras muito urgentes, necessárias à sua segurança e salubridade.».[4]

           Assim, não comungamos da ideia de que, à partida, não é possível deferir o pedido de entrega do imóvel ao requerente por se estar a antecipar um dos efeitos da ação de despejo; pensamos que tal efeito pode ser antecipado, tendo por base a análise dos factos em concreto que poderão concluir por essa mesma antecipação (por exemplo, no Ac. da R. C. de 23/10/2023 citado na decisão recorrida, a entrega visava a demolição do imóvel, algo que entraria na irreversibilidade de facto).

           Ora, afigura-se-nos que o pedido de entrega provisória formulado pelo requerente pode obter provimento se se provar alguma da factualidade que o mesmo alega, a saber:

           . ocupados todos os quartos, o uso que será dado ao locado será de tal modo intenso que, se for prolongado no tempo, votará o locado a um estado de degradação que (agora) ainda se poderá evitar – o que dá a entender que mais tarde já não será evitável -;

           . a instalação elétrica do locado não permite a sobrecarga (cilindro, fogões, …) a que foi sujeita, colocando o locado sob risco grave de incêndio;

            . a sobrecarga nas canalizações de saneamento conduzirá à respetiva falência, pois não se mostram preparadas para tal afluência;

           . o uso intensivo de águas para banhos e o uso intensivo da improvisada cozinha, face à total ausência de ventilação, exaustão e de condutas de ar, provocam condensações que, no curto prazo, irão danificar todas as paredes do locado fazendo surgir eflorescências e bolores;

           . até ao momento, apenas quatro dos oito “quartos” estão ocupados, mas já são visíveis os efeitos nefastos da ocupação;

           . ocupação por cidadãos estrangeiros sem autorização legal.

            Ou seja, pode provar-se que o uso que o arrendatário está a fazer do imóvel cria perigo para a integridade do imóvel ou pode criar uma condição em que a sua reparação se torne bem mais complexa se não for evitada a alegada violação do contrato de arrendamento pelo requerido (instalação elétrica, canalizações, condensações).

           Pode ainda estar o imóvel a ser usado para facilitar a permanência de cidadãos de nacionalidade estrangeira que aqui se encontram ilegalmente (pelo menos assim o alega o requerente), o que atenta contra as regras de bons costumes e que por isso é desde logo gravemente atentatório do direito de propriedade do requerente (o imóvel pode ser conotado com a prática de atividades ilegais).

           A ação de despejo não irá acautelar estes danos, apenas determinando a entrega do imóvel. E não vemos que a possibilidade de se intentar uma ação de despejo com base na comunicação extrajudicial afaste a possibilidade de se procurar salvaguardar a entrega do locado nas melhores condições possíveis: bastava que não se conseguisse efetuar a comunicação para que o direito de propriedade continue desprotegido. No caso concreto, é alegado que a comunicação foi efetuada (artigo 41.º, do requerimento inicial) em 31/05/2023. E se é certo que pode criar dúvidas na procedência do pedido já terem decorrido cerca de sete meses desde essa notificação, é preciso atender que os presentes autos foram intentados no mês seguinte à comunicação, no dia 19/06, pelo que não se pode concluir que o pedido seja manifestamente improcedente por o requerente eventualmente já ter podido obter o despejo, nos termos do artigo 15.º, n.ºs. 1 e 2, e), do N. R. A. U..[5]

           Deste modo, para efeitos de entrega do imóvel, apurando-se provisoriamente que o requerido está a violar o contrato de arrendamento e que essa prova, presumivelmente, conduzirá ao seu despejo e ainda que pode o uso prolongado no tempo acarretar danos graves (ou perigo de os mesmos ocorrerem) para o imóvel ou para o tipo de uso que é conotado ao mesmo, pode a providência ser deferida quanto ao pedido de entrega (isto tendo por base só o alegado pelo requerente e não o que eventualmente for alegado pelo requerido).

           O que não se pode declarar (nem é necessário) é que o contrato de arrendamento está resolvido, ainda que provisoriamente; para o procedimento ser procedente só se exige a aparência do direito do requerente, no caso e do que sabemos, a definir em ação de despejo a propor: o direito a ver resolvido o contrato. Concluindo o tribunal que o Autor, presumivelmente, tem esse direito, limita-se a ordenar a entrega do imóvel. A apreciação da efetiva resolução do contrato de arrendamento fica reservada para a ação constitutiva competente.

           Por isso é que o pedido de resolução provisória do contrato de arrendamento não pode efetivamente proceder, mesmo que provada toda a factualidade alegada pelo requerente; como se disse, não compete ao procedimento cautelar declarar antecipadamente o direito, apenas acautelá-lo.

            Se a situação for grave como o requerente alega, o mesmo recebe o imóvel e depois, se proceder o pedido de despejo, esta decisão ainda produz os seus efeitos úteis com efetivo relevo no património do senhorio; poderia assim não ser se, por exemplo, todo o interior estivesse destruído, por causa de um incêndio ou se as obras necessárias para a reparação atingirem valores elevados e/ou foram de grande dimensão, acabando por se receber um bem destruído ou de tal modo danificado que o efeito útil do despejo já se havia diminuído num grau inaceitável.

           Por fim, todas as questões monetárias são irrelevantes para os autos; não se pode atender nestes autos em acautelar qualquer recebimento de quantias pelo requerente pois, quanto a este aspeto, não é alegada qualquer factualidade que demonstre, por um lado, que está prestes a sofrer uma lesão grave e irreparável (seja pela repercussão no património no requerente seja por se desconhecer se o requerido tem ou não património suficiente para pagar coercivamente esses valores) e, por outro lado, esse tipo de salvaguarda encontra arrimo num outro procedimento específico – arresto, por exemplo (artigo 391.º, n.º 1, do C. P. C.) -.

           Deste modo, os autos foram corretamente extintos (ainda que com outra fundamentação) quanto ao pedido em B); deverão no entanto prosseguir para apreciação do pedido em A), nos termos acima referidos, por a matéria de facto estar dependente da produção de prova, sem prejuízo de se poder atentar em outras questões processuais que possam interferir ou no mesmo prosseguimento ou na decisão final a tomar.


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            3). Decisão.

           Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência decide-se:

           . ordenar o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido formulado em A), nos termos acima expostos;

            manter a improcedência do pedido em B).

           Custas do recurso, na proporção de metade das devidas, pelo recorrente (o recorrido está dispensado do pagamento de custas).

           Registe e notifique.

Porto, 2024/02/08.
João Venade
Isabel Ferreira
Paulo Duarte Teixeira
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[1]Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
[2]Atual artigo 362.º, do C. P. C..
[3]Atual artigo 557.º, do C. P. C.; na anotação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre a este artigo pode perceber-se, no caso de o Autor ainda ter o direito, a semelhança com o procedimento cautelar por se ter de alegar e justificar o receio do prejuízo decorrente de, à data da constituição do direito, não ter o título que lhe permite a imediata execução do direito à restituição (Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 3.ª, páginas 512 e 513).
[4]Em igual sentido, Ac. da R. P. de 12/09/2019, desta mesma 2.ª secção cível, processo n.º 1774/19.0T8PRD.P1, www.dgsi.pt: A providência cautelar comum não se esgota na natureza conservatória do direito; pode ter natureza antecipatória, o que acontece quando visa a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.
[5] 1 - O procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes.
2 - Apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo independentemente do fim a que se destina o arrendamento:
e) Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra;