Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
45/16.9T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: DECLARAÇÕES PERANTE MILITAR DA GNR
ASSISTENTE
PARTE CIVIL
TESTEMUNHA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO
Nº do Documento: RP2018110745/16.9T9AVR.P1
Data do Acordão: 11/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 776, FLS 353-364)
Área Temática: .
Sumário: As declarações prestadas em outro processo, perante um militar da GNR, pelo assistente, parte civil, testemunha ou denunciante, porque não obedecem aos requisitos a que alude o artigo 356º do Código de Processo Penal, não podem ser valoradas em processo em que agora aqueles intervêm na qualidade de arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 45/16.9T9AVR.P1

Tribunal da Relação do Porto
(2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial)

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:

No processo supra identificado, por sentença datada de 23/11/2017, depositada na mesma data, e no que ora importa salientar, decidiu-se julgar a acusação procedente, por provada, e, em consequência:

– condenar a arguida B..., pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, als. d) e e), do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros, num total de setecentos e vinte euros;

– condenar a arguida C...:

• pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, als. d) e e), do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros, num total de setecentos e vinte euros;

• pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nº 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa, à mesma taxa diária, num total de setecentos e vinte euros;

• e, em cúmulo jurídico das duas sobreditas penas, condená-la na pena única de cento e oitenta dias de multa, àquela mesma taxa diária, num total de mil e oitenta euros.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

No que aqui importa reter, a sentença recorrida é do teor seguinte (transcrição):

Factos provados

1 - No dia 23 de janeiro de 2014 a arguida B... compareceu na loja D..., sita em Aveiro, onde preencheu uma participação de sinistro – seguro de equipamento eletrónico, uma vez que tinha aí adquirido um telemóvel.

2 - Em tal participação, referiu que em 21 de janeiro de 2014, por volta das 19h45m, quando se dirigia a uma caixa de multibanco, a fim de realizar um carregamento de telemóvel, foi abordada por um indivíduo de sexo masculino, que lhe puxou a mala, que trazia no antebraço, levando-a consigo contra a sua vontade.

3 - No interior da mala, para além dos documentos, estava ainda um telemóvel da marca Galaxy, para o qual tinha efetuado seguro na D1....

4 - No dia 06 de março de 2014, as arguidas B... e C..., irmãs, combinaram entre si e em conjugação de esforços, participar à entidade seguradora E..., o roubo do telemóvel, tendo a arguida B..., preenchido pela sua mão, nova participação de sinistro da E..., onde preencheu os dados do segurado, os dados do sinistro e a arguida C..., preencheu pela sua mão a informação complementar – testemunhas, como tendo presenciado os factos aí constantes, procedendo à sua assinatura.

5 - No dia 13 de março de 2014, a arguida C..., foi inquirida na GNR da ..., na qualidade de testemunha, no inquérito n.º 51/14.8GBILH, 1.ª secção, DIAP de Aveiro, no qual se investigava a denúncia do crime de roubo do telemóvel.

6 - No decurso dessa inquirição, foi a arguida C... expressa e pessoalmente advertida de que era obrigada a responder com verdade à matéria dos autos.

7 - A arguida C... entendeu o significado, alcance e sentido de tal advertência.

8 - Então de forma livre e voluntária, no dia supra referido, prestou depoimento nos seguintes termos, afirmando, entre outros factos:
No dia 21/01/2014, pelas 19h50m, quando se encontrava no interior do veículo automóvel da sua irmã B..., à espera da mesma, avistou um indivíduo de sexo masculino a aproximar-se da sua irmã, tendo de seguida o referido meliante, com um forte puxão, subtraído à mesma uma bolsa que levava no antebraço direito, colocando-se em fuga.

9 - Sucede que a arguida B... foi acusada e condenada com decisão de trânsito em julgado no âmbito do proc. n.º 51/14.8GBILH, pela prática de um crime de simulação de crime p. e p. pelo art.º 366.º, n.º 1, e um crime de burla, p. e p. art.º 217.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

10 - Assim, o depoimento prestado pela arguida C... não correspondeu à verdade, o que sabia e quis prestá-lo.

11 - A arguida C... agiu deliberadamente, com querendo mentir e faltar à verdade na inquirição que prestou perante órgão de polícia criminal, sabendo que não podia dissimular, omitir, falsear ou mentir sobre a matéria daqueles autos e em relação às perguntas de que era destinatária na qualidade de testemunha.

12 - Sabia que assim alterava a realidade e a verdadeira ocorrência dos factos e que se encontrava obrigada depor com verdade.

13 - A arguida C... entendeu o significado, alcance e sentido da advertência feita, bem como, as consequências que lhe poderiam advir perante uma resposta falsa em relação a tal matéria.

14 - Agiu ainda livre e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

15 - As arguidas B... e C... ao preencherem a declaração de sinistro, à entidade seguradora E..., não só bem sabiam que tais factos eram falsos, como bem sabiam que que não tinha ocorrido qualquer roubo do telemóvel e que para a arguida B... ser ressarcida pela seguradora tinha de declarar a ocorrência do roubo, uma vez que o seguro não cobria a existência de crime de furto, que bem sabiam que não correspondia à verdade.

16 - As arguidas agiram livre, voluntária e conscientemente ao declarar a ocorrência de um roubo, sabendo que o que declaravam e fazia constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade e quiseram fazer constar desse documento esse facto falso.

17 - As arguidas sabiam que, dessa forma, obtinham para si um benefício ilegítimo a que não tinham direito traduzido num facto com relevância jurídica, e inscrito em documento que produziu uma alteração no mundo do Direito, com o objetivo de ser ressarcida patrimonialmente, quando de outra forma não teria direito a tal indemnização pela seguradora E....

18 - As arguidas tinham assim consciência que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, não obstante, agiram livre e conscientemente, tendo a sua vontade determinada para a prossecução da conduta acima descrita.

19 – As arguidas não têm antecedentes criminais.

20 – A arguida B... é lojista, auferindo o vencimento mínimo nacional a que acrescem comissões no valor de 300 a 400 € mensais. Vive com o pai. Tem como encargos um empréstimo mensal de 240 €, contraído para aquisição de veículo

21 – A arguida C... é professora, estando atualmente desempregada. O companheiro aufere cerca de 1000 € por mês como técnico de manutenção. Têm uma filha de 3 anos. Vivem em casa pertencente aos pais da arguida.

Não se provou que:

No decurso da inquirição referida em 5 fosse a arguida C... expressa e pessoalmente advertida de que a falsidade das respostas a faria incorrer em responsabilidade criminal, prestando ainda o oportuno juramento legal.

2. Motivação.

O tribunal fundou a sua convicção:
Nas certidões extraídas do processo 51/14.8GBILH e da qual consta:
a) - Cópia do auto de denúncia apresentado a 21/01/2014, por B..., na qual denunciava ter sido vítima de um crime de roubo, sendo-lhe arrancada uma bolsa que continha um telemóvel – Fls. 4 e 5.
b) – Auto de declarações da mesma no qual confirma o conteúdo do auto de notícia. – Fls. 7.
c) Auto de inquirição de C... que confirmou o depoimento de B..., afirmando ter presenciado os factos. Mais concretamente afirmou que avistou um indivíduo de sexo masculino aproximar-se da irmã, tendo de seguida o referido meliante, com um forte puxão, subtraído à mesma uma bolsa que levava no antebraço direito, colocando-se em fuga – fls. 8 (frente e verso)
d) Documentação relativa ao telemóvel – fls. 9 e 10 (imei, número de telemóvel e faturas).
e) Informação da H..., informando que o Imei do telemóvel retirado à ofendida esteve associado desde 20/12/2013 a 03/02/2014 ao número de telemóvel de F..., residente em Aveiro e desde essa data atá 29 de julho de 2014 esteve associado a um número de telemóvel cuja identidade do utilizador não foi possível apurar, carregado algumas vezes através de multibanco – fls. 12 e 13.
f) Informações bancárias sobre os titulares das contas associados a esses carregamentos e inquirições desses titulares, constatando-se que todos eles são pessoas das relações da referida F... – fls. 15 a 33.
g) No auto de inquirição de B... que, confrontada com o facto de no seu telemóvel ter operado em data anterior à do denunciado roubo, um cartão pertença de F..., admitiu serem falsos os factos por si denunciados. Efetuou essa denúncia a fim de conseguir ser ressarcida pelo seguro que não cobria furtos mas só roubos – fls. 34 e 35.
h) – No auto de interrogatório de arguido (B...), confirmando e concretizando o que já constava do anterior auto de inquirição – fls. 40 a 42.
i) Informação da Companhia de Seguros, dando conhecimento que a arguida acionou o seguro de roubo.
Anexou a participação do roubo, feita por email pela aqui arguida B..., participação do mesmo roubo à loja D... e participação feita também pela arguida B... com indicação de testemunha (C...), cuja depoimento consta dessa participação – fls. 43 a 45 e 48, frente e verso.
Na sequência dessa participação foi a arguida B... ressarcida – fls. 50 e 67.
j) Documentação fornecida pela D1..., relativa ao equipamento fornecido – fls. 51 a 56.
k) No auto de denúncia feita no processo 1884/13.8PBAVR por crime de furto feito a 20/12/2013, no qual é denunciante B... e que se refere ao furto do seu telemóvel no Café G... e desistência de queixa apresentada a 26 de dezembro de 2013 nesses autos, o que deu origem ao seu arquivamento – fls. 59 a 63.
l) Despacho de encerramento de inquérito no qual se mandou extrair a certidão que daria origem aos presentes autos e no qual se deduziu acusação imputando à arguida B... a prática de um crime de simulação de crime e um crime de burla – fls. 70 a 79;
m) Sentença proferida nesse processo constante de fls. 137 a 148, transitada em julgado conforme consta de fls. 196 a 258, conjugada com a informação carreada aos autos pelo Tribunal de Ílhavo no decurso do julgamento.
No CRCs juntos aos autos.
A arguida B... não prestou depoimento.
A arguida C... depôs afirmando que o depoimento por si prestado na GNR a 13 de março de 2014 corresponde ao por si efetivamente visto.
Foi confrontada com as declarações prestadas pela irmã no âmbito do processo 51/14.8GBILG, constantes de fls. 40 e 41 dos autos e com a matéria dada como provada na sentença proferida no âmbito desses autos, mas manteve a sua versão, referindo que elas não são incompatíveis.
Ora, nas declarações então prestadas a arguida B... disse, expressamente, que os factos por si denunciados e que consubstanciariam a prática de um crime de roubo são falsos, pelo que redunda incompreensível esta posição da arguida C... ao afirmar que viu factos que a irmã afirmou não terem existido.
A arguida C... confirmou ainda ter sido ela a elaborar a descrição de acidente que consta do verso do documento cuja cópia consta a fls. 48 (participação de sinistro). Mais disse que esse documento foi elaborado por si e pela irmã, a aqui arguida B....
As arguidas depuseram ainda no que se refere à sua situação pessoal.

(…)

DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

Há que decidir agora qual a pena a aplicar às arguidas pelos crimes que lhes são imputados.
O crime de falsificação de documento é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O limite mínimo da prisão será o mínimo legal de 30 dias e os limites mínimo e máximo da multa serão os limites de 10 dias e 360 dias.
O crime de falsidade de depoimento é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. O limite máximo da multa será o legal de 360 dias.
Segundo o art. 71º nº 1 do CP a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Tenta-se por este meio que a punição assuma uma vertente pessoal ao mesmo tempo que dá resposta a exigências de caráter comunitário e de reintegração do delinquente.
Neste sentido estabelece o art. 40º do CP que “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade”. Ao mesmo tempo o nº 2 do mesmo artigo impõe como limite de qualquer pena a medida da culpa.
Estes vetores da medida da pena são concretizados pelos fatores de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Alguns desses fatores são elencados no art. 71º nº 2 do CP, a título exemplificativo.
Na medida da pena há que ponderar que ambas as arguidas estão bem inseridas socialmente e são primárias, sendo este um ato isolado nas suas vidas.
O prejuízo causado é pequeno.
No entanto, contra as mesmas, milita a forma como os factos foram cometidos, demonstrando uma intensa premeditação.
As arguidas são de condição económica relativamente modesta.
O art. 71º do CP estabelece que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, a pena privativa e não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Ora, perante o caso concreto, atendendo a que ambas as arguidas são primárias, entende-se que a aplicação de uma pena de multa é suficiente para acautelar as finalidades da punição, seja de censura do facto, seja de prevenção geral e especial, no que a ambas respeita.
Assim, entendo adequado condenar, cada uma das arguidas, numa pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6 €, num total de 720 € pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256º, n.º 1, al. d) e e) do Código Penal.
No que se refere ao crime de falsidade de testemunho, entende-se adequado condenar a arguida C..., também na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6 €, num total de 120 €.
Considerando a gravidade dos factos e a personalidade da arguida neles demonstrada, nos termos supra expostos, entende-se adequado condenar a mesma na pena de 180 dias à taxa diária de 6 €, num total de 1080 €.
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b) apreciação do mérito:

Começaremos por recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2], devendo sublinhar-se que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
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Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelas recorrentes, importa saber:

1 – se existe erro de julgamento e se a sentença padece de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tendo sido ainda preterido o princípio “in dubio pro reo”;

2 – se, a manter-se a condenação, a pena aplicada é exagerada, sendo suficiente e proporcional a aplicação, a ambas, de penas de sessenta dias de multa à taxa diária mínima.

Vejamos, pois.

1 – do erro de julgamento e associadas questões.

As recorrentes alegam que a decisão que recaiu sobre a matéria de facto tida como provada nos pontos 10 a 18 está errada em virtude de um erro notório na apreciação da prova e consequente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que procurou depois demonstrar socorrendo-se das declarações da arguida C..., que transcreve, e anotando ainda que a condenação da arguida B... no processo nº 51/14.8 não pode servir como prova para condenar aquela arguida C... no âmbito doutro processo, leia-se, neste processo, convocando depois o princípio “in dubio pro reo”, argumentação que, no essencial, vem vertida nas conclusões supra transcritas[3], concluindo por tudo isso que aqueles factos acima referidos deveriam passar a não provados.
Depois, e num capítulo que intitularam “do direito”, e após terem extratado a motivação que estribou a convicção do tribunal em sede de decisão de facto, vieram invocar a existência dos dois vícios acima referidos nos moldes que, no essencial, vêm igualmente vertidos nas conclusões supra transcritas e, por economia, também aqui se têm como renovados, concluindo que perante a prova produzida em sede de audiência não se compreendia como é que o tribunal “a quo” tinha chegado a uma decisão condenatória, requerendo que, sendo grave e clarividente a violação do princípio “in dubio pro reo”, pelo comando do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, tal inconstitucionalidade fosse devidamente conhecida, apreciada, para e com as necessárias e advindas consequências legais.

Na resposta, o Ministério Público, após explanação da destrinça entre aquilo que denominou de impugnação ampla da matéria de facto, na nossa terminologia, erro de julgamento, e os vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal, procurou depois rebater a argumentação das recorrentes nos moldes que, por economia, aqui temos como renovados, concluindo seguidamente que, não merecendo qualquer censura o julgado quanto à matéria de facto consignada como provada, resultava cristalino que, face aos elementos fornecidos pela imediação e a oralidade, os determinantes para a avaliação da prova, a decisão tomada mostrava-se fundada na livre convicção do tribunal, pelo que, sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum, estando suportada por prova documental, pelas declarações de uma das arguidas e não se verificando, nem emergindo do texto da sentença nenhum dos aludidos vícios decisórios, deveria manter-se nos seus exatos termos, uma vez que, na sua ótica, a convicção estribou-se em prova válida, legalmente admissível e regularmente produzida em julgamento, não tendo ocorrido qualquer violação dos princípios em que se consubstancia o direito probatório, nem quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelas recorrentes, sublinhando ainda que o princípio da presunção da inocência só será desrespeitado quando o tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra um arguido, o que entende não ter sucedido no caso em apreço, pois a motivação de facto evidencia que a Mma. Juiz obteve convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados às arguidas e que motivaram a sua condenação pelos crimes por que vinham acusadas.

Esta tese argumentativa foi integralmente subscrita no anotado parecer, sem outros acrescentos, porque tidos como desnecessários e redundantes.

Apreciando.

Em jeito de nota prévia dir-se-á que se optou por aglutinar num único ponto as várias questões que as recorrentes aqui trouxeram à discussão em sede de impugnação da matéria de facto, já que as mesmas são suportadas por uma motivação ou argumentação que se mostra de algum modo intrinsecamente interligada, cientes de que, por vi disso, essa será a melhor forma de abordar uma tal temática aqui em apreço, o que não significa que desta apreciação conjunta da impugnação da matéria de facto por via da reapreciação da prova e dos alegados vícios formais não se faça sobressair, com alguma autonomia, a apreciação dos aspetos que tal reclamem, se esse for o caso, pelo que nada ficará por tratar, mas com economia de meios.

Adiante.

Por uma questão de precedência (processualmente) lógica, começaremos pela análise dos dois alegados vícios.
Assim sendo, e para nos situarmos em termos legais e interpretativos, cremos imperioso começar por anotar que o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorre “… quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deveriam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão”[4], e que o erro notório na apreciação da prova “ … existirá, assim, sempre que se revelem distorções de ordem entre os factos provados e não provados, ou que estes traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, fora de qualquer contexto racional, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio”[5].
Convirá recordar também que é igualmente pacífico, que os vícios a que aludem as várias alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, hão de resultar apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[6].
De tudo isso cientes, e voltando à argumentação recursiva, as recorrentes entendem que a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada resulta do facto de a arguida B... ter sido condenada pela prática dos crimes de simulação de crime e de burla no âmbito do referenciado processo n° 51/14.8 e com base nesta condenação ter-se extraído a conclusão de que o depoimento prestado pela arguida C... não correspondeu à verdade, ilação que não entendem, uma vez que, produzida a prova, não existe nenhum indício que possa extrair-se que não aconteceu o episódio que a arguida C... relatou no seu depoimento, assentando tal convicção apenas nas certidões extraídas daquele supra mencionado processo, já que não existem testemunhas, e, assim sendo, estes factos nunca poderiam ter sido dados como provados, desde logo porque aquela declarações da arguida B... prestadas no auto de inquirição e do auto de interrogatório naquele outro processo são insuscetíveis de valoração probatória nos presentes autos, por se tratar de declarações prestadas sem assistência de defensor, ocorrendo uma nulidade nos termos do artigo 119°, al. c), do Código de Processo Penal.
Sustentam, pois, que, não podendo ser valoradas as referidas provas, não resulta de forma clara e indubitável que as arguidas cometeram os crimes que aqui lhes são imputados, devendo considerar-se como não provados os correspondentes factos e determinar a sua absolvição.
Disso discordando, o Ministério Público veio anotar na sua resposta, que o parecer seguiu, que não se verificava do texto da sentença nenhum dos aludidos vícios decisórios, pelo que a mesma deveria manter-se nos seus exatos termos, uma vez que, na sua ótica, a convicção estribou-se em prova válida, legalmente admissível e regularmente produzida em julgamento.
Ora bem.
Cremos que a singela leitura da sobredita argumentação de recurso leva a concluir que as recorrentes confundem a inexistência de prova, bastante e válida, na sua tese, com o invocado vício, o qual não se descortina existir aqui, minimamente.
Coisa diversa será a de saber se as declarações prestadas pela arguida B... no âmbito do referenciado processo n° 51/14.8 são insuscetíveis de valoração probatória nos presentes autos, desde logo, por se tratar de declarações prestadas sem assistência de defensor, ocorrendo uma nulidade nos termos do artigo 119°, al. c), do Código de Processo Penal, conforme vinha alegado pelas recorrentes.
Vejamos.
A ora recorrente B... prestou declarações naquele supra referido processo, perante uma militar da GNR, na qualidade de “assistente/partes civis” (cfr. fls. 7 e 7vº).
Posteriormente, foi inquirida pelo Ministério Público na qualidade de “denunciante” (cfr. fls. 34 e 35).
Por último, foi interrogada na qualidade de arguida, sem a presença de defensor, perante a mesma Magistrada do Ministério Público que antes a tinha inquirido enquanto “denunciante” (cfr. fls. 40 a 42).
Estes autos certificados e juntos a este processo foram valorados pelo tribunal recorrido, conforme decorre da respetiva motivação, ali se tendo sublinhado, no que aqui importa, que, confrontada com as declarações prestadas pela irmã no âmbito do processo 51/14.8GBILG, constantes de fls. 40 e 41 dos autos e com a matéria dada como provada na sentença proferida no âmbito desses autos, a ora recorrente C... manteve a sua versão, referindo que elas não são incompatíveis, quando é certo que nas declarações então prestadas, a arguida B... disse, expressamente, que os factos por si denunciados, e que consubstanciariam a prática de um crime de roubo, eram falsos, pelo que redundava incompreensível esta posição da arguida C... ao afirmar que viu factos que a irmã afirmou não terem existido.
Ali se anotou também que a arguida C... confirmou ainda ter sido ela a elaborar a descrição de acidente que consta do verso do documento cuja cópia consta a fls. 48 (participação de sinistro), dizendo ainda que esse documento tinha sido elaborado por si e pela irmã, a aqui arguida B....
Daqui flui, linearmente, que as declarações prestadas pela ora recorrente B... naquele outro processo, na qualidade de arguida, e sem a presença de defensor, foram decisivas para alcançar a condenação das arguidas, notoriamente.
Acresce que consta da ata da audiência realizada neste processo (cfr. fls. 307 a 309) que a arguida C... foi confrontada com as referidas declarações da sua irmã prestadas naqueloutro processo, ali se anotando que tais declarações eram as que constavam apenas de fls. 40 (dá-se de barato que se reportaram a fls. 40 a 42).
Tal confrontação derivou de prévia promoção nesse sentido por parte do Ministério Público, que referenciou tratar-se de interrogatório daquela na presença de defensor, o que, quanto a este último, não corresponde à verdade, e que não mereceu oposição por parte da defesa.
Será isto válido, conforme questionam as recorrentes?
Cremos que não, adiante-se.
Na verdade, e tendo presente aquilo que se mostra estatuído nos artigos 356º e 357º, ambos do Código de Processo Penal, as declarações de um arguido só poderão ser valoradas, verificados que sejam os demais requisitos ali contidos, desde que prestados naquele mesmo processo, requisito que temos como inquestionável em face da própria e inequívoca letra da lei.
Para além disso, e independentemente de quem venha a ser confrontado com tais declarações, estas só poderão ser lidas em audiência se, aquando do interrogatório do arguido em questão, no âmbito do mesmo processo, relembre-se, e perante autoridade judiciária, o mesmo tivesse sido assistido naquele ato por defensor, o que não sucedeu no caso, conforme decorre, linearmente, do estatuído no referido artigo 357º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, e que foi precisamente o normativo que o tribunal recorrido utilizou para admitir a sobredita confrontação e, no caso, de uma outra arguida.
Por outro lado, é por demais pacífico que as declarações contidas em auto de denúncia só poderão ser validadas quanto aos factos objetivamente participados, ou seja, a concreta ocorrência participada, e nada mais, que as declarações prestadas pela ora recorrente B..., perante uma militar da GNR, na qualidade de “assistente/partes civis” (as de fls. 7 e 7vº), além de também valerem apenas para aquele processo, também não obedecem aos requisitos a que alude o citado artigo 356º do Código de Processo Penal, pelo que não pode considerar-se que a mesma confirmou o conteúdo do auto de notícia, o mesmo sucedendo com as declarações ali prestadas, enquanto testemunha, perante a mesma militar da GNR, pela ora recorrente C... (as de fls. 8 e 8vº), bem como a inquirição da recorrente B... pelo Ministério Público na qualidade de “denunciante” (cfr. fls. 34 e 35) e, por maioria de razão, o que consta do auto de notícia referente ao processo 1884/13.8PBAVR.
De resto, e com exceção da leitura das supra referenciadas declarações da recorrente B... que constam de fls. 40 a 42 destes autos, nada mais foi lido em audiência, nem sequer tal se equacionou, o que, só por si, já impossibilitaria a valoração de quaisquer declarações e/ou depoimentos.
Assim sendo, e posto que tal não cabe na alçada daquilo que vem vertido nos dois sobreditos normativos, tal prova não é válida, pelo que, e logicamente, não poderia ter sido atendida para formação da convicção por parte do tribunal recorrido, tal como aqui sucedeu.

Consequências.

Já antes vimos que as declarações prestadas pela ora recorrente B... naquele outro processo, na qualidade de arguida, e sem a presença de defensor, tinham sido decisivas para alcançar a condenação das arguidas, notoriamente.
Se a isto acrescentarmos aquilo que acima se referiu como indevidamente valorado e que contribuiu igualmente para uma tal condenação, resta concluir que, expurgada a motivação inserta na decisão recorrida daquelas pretensas provas ora tidas como não valoráveis, não é possível manter a factualidade fixada como assente pelo tribunal recorrido nos correspondentes pontos 1 a 8 e 10 a 18, por total míngua de prova, válida, como é óbvio, o que, em última análise, nos remeteria sempre para a existência de um claro erro notório na apreciação da prova, tal como vinha invocado pelas recorrentes, pois que nesse caso estaríamos perante um conjunto de factos considerados como provados estribados numa apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, fora de qualquer contexto racional, conforme acima se salientou.
No caso, é notório que o reenvio a que alude o artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal não constituiria remédio bastante para colmatar tais “falências”, pois que a prova validamente adquirida não conseguiria alcançar tais pontos de facto erroneamente fundamentados nos termos acima referidos, e decorrendo de tal normativo que, nesses casos, e essa será, até, a regra, é imperioso decidir nesta instância, resta considerar como não provados os supra assinalados factos, pelas razões antes explanadas, e, por consequência, sem mais delongas, absolver ambas as recorrentes dos crimes pelos quais vinham condenadas, por inverificação, mínima, dos respetivos pressupostos factuais que tal alicerçavam.
Flui do que vai dito que fica prejudicada a apreciação das demais questões supra enunciadas, já que naturalmente prejudicadas.
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Em face do decidido, não há lugar a tributação (cfr. artigos 513º, nº 1, “a contrario”, do Código de Processo Penal).
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam em conceder provimento ao recurso, na parte apreciada, em consequência do que, decidem alterar a matéria de facto nos moldes supra referidos e, por via disso, absolver as recorrentes dos imputados crimes, considerando prejudicada a apreciação do demais que aqui vinha questionado.

Sem tributação (cfr. artigo 513º, nº 1, “a contrario”, do Código de Processo Penal).

Notifique.
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Porto, 07/11/2018[7].
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
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[1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95.
[3] As quais, apesar de não constituírem verdadeiras conclusões, foram transcritas precisamente porque reproduzem uma grande parte da motivação ou argumentação das recorrentes e, por isso, permitimos dispensar-nos de a repetir neste lugar.
[4] Cfr. acórdão do STJ, de 03/07/02, relatado por Armando Leandro, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 914, aqui citado.
[5] Citação do acórdão do STJ, datado de 18/10/06, relatado por Santos Cabral, apud Vinício Ribeiro, Ob. Cit., pág. 917.
[6] Vide, a título meramente ilustrativo, o acórdão do STJ datado de 23/09/2010, proferido por Souto Moura, aqui citado, a consultar in http://www.dgsi.pt.
[7] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo Lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).