Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NUNO PIRES SALPICO | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CONVOLAÇÃO CRIME PARTICULAR QUEIXA ACUSAÇÃO PARTICULAR | ||
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Nº do Documento: | RP2022101219/21.8PFPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Em fase de julgamento, ocorrendo alteração de factos e da qualificação jurídica, convolando-se a imputação ao arguido de crime de natureza pública para particular, a validade do procedimento mantém-se, carecendo de sentido normativo a exigência de queixa ou, muito menos, a dedução de acusação particular. II - Não pode objetar-se com a inexistência de queixa, pela simples razão de que, dada a natureza do crime público na fase de inquérito, nesse período até à fase de julgamento, não existiu o direito a queixa; o mesmo raciocínio se aplica à acusação particular, dado que a dedução da acusação publica permite suprir as condições de procedibilidade mínimas, tornando-se incompreensível o disposto no art.285º do Código de Processo Penal em fase de julgamento; nesta ótica, queixa e acusação particular não são “quids” processuais em fase de julgamento. III - Se a alteração dos factos, assim como a alteração de qualificação jurídica, são processualmente possíveis e admissíveis (e muito comuns) nos termos do art.358.º do Código de Processo Penal, então as possibilidades de sobrevirem convolações de tipicidade com alterações da natureza pública para semi-pública ou privada, são igualmente admissíveis e comuns, pois esse artigo 358.º não exige para a validade da alteração da qualificação jurídica, que o novo delito imputado mantenha a mesma natureza. IV - Num ilícito de natureza pública, por isso indisponível pelo ofendido, depois de acusado, se em fase de julgamento o ilícito se convola em delito com natureza semi-pública ou particular, o grau de disponibilidade sobre o procedimento criminal só pode verificar-se com a compatibilidade dessa fase de julgamento, ou seja, o ofendido poderá desistir da queixa, ou mais precisamente, poderá desistir do procedimento criminal; não existe mais disponibilidade do que esta. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.nº19/21.8PFPRT.P1 X X X Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: No processo comum com intervenção de Tribunal singular do Juízo Local Criminal de Vila do Conde da Comarca do Porto, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, após o que foi proferida sentença decidindo-se nos seguintes termos: “Julgo a acusação pública de 90 e ss. procedente por provada e, em consequência: ABSOLVO O ARGUIDO AA DA PRÁTICA, COMO AUTOR MATERIAL, DO CRIME DE VIOLÊNCIA DEPOIS DA SUBTRAÇÃO, previsto e punido pelos arts.210º, n.º 1 e 211º, e com referência ao art. 203º, do Código Penal, DE QUE VEM ACUSADO. CONDENO O ARGUIDO AA PELA PRÁTICA, COMO AUTOR MATERIAL E NA FORMA CONSUMADA, DE UM CRIME DE FURTO SIMPLES, PREVISTO E PUNIDO PELO ART. 203º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL, NA PENA DE 9 (NOVE) MESES DE PRISÃO, SUSPENSOS NA SUA EXECUÇÃO POR 1 (UM) ANO”. * Não se conformando com o acórdão, o arguido AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação nos termos seguintes: (…) Através da presente motivação ao recurso da citada douta sentença nesta mesma data apresentado, irá (ou pelo menos irá tentar) o ora Recorrente, tendo por base toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento e constante dos autos, demonstrar o acerto das respectivas pretensões recursórias.Senão vejamos: Atenta a factualidade supra referida e atenta a mais recente jurisprudência dos nossos Venerandos Tribunais superiores entende o Recorrente que não poderá o mesmo ser condenado pela prática do crime de furto simples. A tal propósito a própria douta sentença ora em crise refere a controvérsia que a questão em apreço reveste no sentido de que: “Ora, no caso que curamos, o furto foi efetuado apenas pelo arguido, sendo que ocorreu num estabelecimento comercial (M...), durante o seu horário de abertura ao público (pelas 10h30m) e o arguido furtou coisas cujo valor ascendeu a €19,96. Por fim, verifica-se que os bens foram recuperados, sem qualquer dano, no seu estado original, podendo ser expostos novamente à venda. No caso em apreço, não houve constituição como assistente, nem dedução de acusação particular. Quid iuris? Quanto a esta questão em apreciação duas soluções se configuram: - ou considerar “desnecessária” a constituição de assistente e dedução de acusação particular, face à convolução operada (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10/02/2021, disponível em www.dgsi.pt); - ou considerar a necessidade de constituição de assistente e dedução de acusação particular (cfr. Acórdão da Relação do Évora de 25/10/2016, disponível em www.dgsi.pt).“ (sic). A propósito, e em modesta mas convicta opinião do Recorrente, não pode vingar o entendimento do Tribunal recorrido. Com efeito, certo é que no caso dos autos foi o Recorrente condenado pela prática de um crime de natureza particular sem que haja havido constituição de Assistente ao longo do processo por parte da Ofendida. Deverá de tal modo o crime de furto simples, particular por natureza, ceder à míngua do cumprimento de certos e determinados pressupostos processuais para o efeito. É que, como é certo e sabido, o crime pelo qual o Recorrente foi condenado tem natureza particular atendendo ao disposto no artº 203º nº1 do Cód. Penal. E, a natureza do crime em questão faz depender o procedimento criminal da apresentação de queixa e de acusação particular. Tal exercício do direito de queixa deverá ser exercido no prazo de 6 (seis) meses previsto no artº 115º nº 1 do Código Penal. Ora, sendo um dos princípios fundamentais do nosso processo penal o princípio da oficialidade, consagrado no artº 48º do citado diploma legal substantivo, cujo significado é o de que cabe ao Ministério Público a investigação da prática de infrações penais e, finda a investigação, deduzir ou não acusação. Tal mencionado princípio sofre, contudo, algumas restrições, designadamente, em função da natureza dos crimes - semipúblicos (artº 49º do Cód. Penal) ou particulares (artº 50º do Cód. Penal). Quanto aos primeiros, o Ministério Público só pode promover o processo se o "ofendido" ou "outras pessoas" lhe derem conhecimento "do facto". Quanto aos segundos, para que o Ministério Público possa desencadear a investigação é necessário que seja apresentada queixa, o queixoso se constitua assistente e, a seu tempo, deduza acusação particular – o que manifestamente não sucedeu no caso em apreço. Quanto à forma da queixa, ensina Figueiredo Dias in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 675, parágrafo 1086: “tanto o C.P. como C.P.P. são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. (...) Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona.” (sic). No caso dos autos, e como a própria douta sentença ora em crise bem refere, certo é que facilmente se constata inexistir qualquer queixa expressa apresentada pela Ofendida bem como e ainda (consequentemente) qualquer Acusação Particular pela mesma apresentada. Inexistindo e não se verificando o cumprimento de tais formalismos, mostra-se o Ministério Público parte ilegítima para investigar e acusar o Arguido ora Recorrente, o que deve ser declarado e conhecido por este Tribunal superior. De igual modo se mostra caducado o exercício para a Ofendida apresentar queixa pelos factos em apreço. - EM CONCLUSÃO: A) – ATRAVÉS DA APRESENTAÇÃO DA PRESENTE MOTIVAÇÃO AO RECURSO DA CITADA DOUTA SENTENÇA, O ORA RECORRENTE, TENDO POR BASE A CONDENAÇÃO APLICADA AO MESMO NO ÂMBITO DE CRIME PARTICULAR SEM A VERIFICAÇÃO DO EXERCÍCIO DE QUALQUER DIREITO DE QUEIXA POR PARTE DO OFENDIDA E POSTERIOR ACUSAÇÃO PARTICULAR PUGNA PELA RESPECTIVA ABSOLVIÇÃO; B) – ABSOLVIÇÃO AQUELA QUE SE VERIFICA POR INEXISTÊNCIA DE QUALQUER LEGITIMIDADE AD CAUSAM POR PARTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INVESTIGAR E DEDUZIR ACUSAÇÃO CONTRA O RECORRENTE; C) – MOSTRA-SE EXTINTO O DIREITO DE QUEIXA A EXERCER PELA OFENDIDA NO PRAZO DE SEIS MESES – VIDE ARTº 115º E 116º DO CÓD.PENAL; T E R M O S E M Q U E, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS, VENERANDOS SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, DOUTAMENTE SUPRIRÃO, SE DEVE CONCEDER PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E, CONSEQUENTEMENTE, REVOGAR-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ABSOLVENDO-SE O RECORRENTE PELA PRÁTICA DO CRIME DE QUE VEM CONDENADO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, COM O QUE SE FARÁ J U S T I Ç A. * O Ministério Público veio responder nos seguintes termos Por douta sentença proferida nos autos foi o arguido AA absolvido da prática, como autor material, do crime de violência depois da subtração, previsto e punido pelos arts. 210º, n.º 1 e 211º, e com referência ao art. 203º, do Código Penal, de que vem acusado, e condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensos na sua execução por 1 (um) ano. Não se conformando com aquela decisão de condenação veio o arguido interpor recurso em matéria de direito pugnando pela sua absolvição. De acordo com as Conclusões apresentadas que se transcrevem (…)”. Assim reconduz-se a questão a apreciar à legitimidade do M.P por ausência de acusação particular relativamente ao crime pelo qual o arguido foi condenado, ou seja, a saber se o tribunal a quo, ao absolver o arguido do crime de violência depois da subtração, previsto e punido pelos arts. 210º, n.º 1 e 211º, e com referência ao art. 203º, do Código Penal, de que vem acusado, podia condená-lo pelo crime de furto simples, sem a ofendida ter exercido o direito de queixa, ter-se constituído assistente e ter deduzido acusação particular. Entende o Recorrente, em sede de Motivação, que, atenta a factualidade dada como provada e a mais recente jurisprudência dos Tribunais superiores não poderá ser condenado pela prática do crime de furto simples, referindo que “ a própria douta sentença ora em crise refere a controvérsia que a questão em apreço reveste”. Conclui que , no caso dos autos “não pode vingar o entendimento do Tribunal recorrido” uma vez que foi condenado pela prática de um crime de natureza particular sem que tenha havido constituição de Assistente ao longo do processo por parte da Ofendida referindo que a natureza do crime em questão faz depender o procedimento criminal da apresentação de queixa e de acusação particular, direito de queixa a exercer no prazo de 6 (seis) meses previsto no artº 115º nº 1 do Código Penal. Invoca ainda os princípios fundamentais do processo penal vertidos no artº 48º do CPP e as restrições, em função da natureza dos crimes - semipúblicos (artº 49º do Cód. Penal) ou particulares (artº 50º do Cód. Penal) concluindo que : “Quanto aos segundos, para que o Ministério Público possa desencadear a investigação é necessário que seja apresentada queixa, o queixoso se constitua assistente e, a seu tempo, deduza acusação particular – o que manifestamente não sucedeu no caso em apreço.” Mais alega que “No caso dos autos, e como a própria douta sentença ora em crise bem refere, certo é que facilmente se constata inexistir qualquer queixa expressa apresentada pela Ofendida bem como e ainda (consequentemente) qualquer Acusação Particular pela mesma apresentada. Inexistindo e não se verificando o cumprimento de tais formalismos, mostra-se o Ministério Público parte ilegítima para investigar e acusar o Arguido ora Recorrente (…) De igual modo se mostra caducado o exercício para a Ofendida apresentar queixa pelos factos em apreço.” * Vejamos se lhe assiste razão. (…), nem sequer se pode afirmar que os direitos de defesa do arguido ficam comprometidos ou que o mesmo é agora surpreendido pela decisão. Os factos já estão todos contidos na acusação pública deduzida – quer os factos que, em abstrato, poderiam integrar a prática pelo arguido de um crime de violência após a subtração, como os factos que poderiam integrar a prática de um crime de furto. Deste modo, considero não existir qualquer obstáculo processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal do arguido quanto ao crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203º do Código Penal.” Conforme referido pelo tribunal a quo a decisão proferida assenta num dos entendimentos possíveis da questão, fundamentado nos termos constantes do douto Acórdão desse V. Tribunal , de 10/02/2021, Relator: PAULO COSTA com o seguinte sumário: Sumário: I - Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge. II - O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo." No mesmo sentido se pronunciou o TRG no douto Acórdão de 09-12-2019, Relator JORGE BISPO, com o seguinte sumário: “Tendo o processo tido início para investigação de um crime de natureza pública (ofensa à integridade física qualificada) e assim prosseguido até à fase de julgamento, qualificação jurídica essa suportada pelos elementos então disponíveis nos autos, constatando-se, em consequência da prova produzida em audiência, que a conduta do arguido integra antes o crime de ofensa à integridade física simples (de natureza semipública), para o condenar por este crime não é necessário que o ofendido tenha exercido o direito de queixa, por aquela alteração da qualificação jurídica não ter qualquer efeito sobre o procedimento criminal que foi iniciado de forma válida e eficaz.” Quanto ao dever de fundamentação da sentença refere-se no douto Ac STJ de 16/03/2005 - Henriques Gaspar: 5. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório - nº1; fundamentação - nº 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu), indica no nº 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão. As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de processo penal", III, pág. 289). A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua 8 de 10 observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, "Note sulla garanzia costituzionale della motivazione", in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32). A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.” Ora, atentos os fundamentos expendidos na douta sentença a quo relativamente ao sentido com que aplicou o direito afigura-se-nos que o tribunal realizou uma interpretação válida e imparcial das normas de direito aplicáveis. No caso concreto, o Ministério Público deduziu acusação por factos relativamente aos quais detinha legitimidade e os pressupostos processuais relativos a tal acusação estabilizaram-se nesse preciso momento, sendo que a questão de não se terem apurado, em sede de audiência, todos os fundamentos fácticos de tal pretensão não deverá relevar para o preenchimento do pressuposto processual em causa. Inexiste, assim, a invocada ilegitimidade do Ministério Público para investigar e deduzir acusação contra o arguido ora recorrente. CONCLUSÕES: I – É certo que o arguido foi condenado pela prática de um crime de natureza particular – crime de furto (art.º s 203.º e 207.º do C.P.) sem que tenha sido apresentada queixa pela ofendida e sem que a mesma se tenha constituído assistente e deduzido acusação particular nos termos dos art.º s 49.º e 50.º do C.P.P. II - Porém, os presentes autos foram iniciados pelo Ministério Público para investigação de um crime de natureza pública (violência depois da subtracção) com a legitimidade inerente, e os pressupostos processuais relativos à Acusação pública estabilizaram-se nesse preciso momento, e assim prosseguiram até à fase de julgamento. III - Tendo sido entendido pelo tribunal, em consequência da prova produzida em audiência, que a conduta do arguido integra antes o crime de furto p. e p. pelos art.º s 203.º e 207.º do C.P., pelo qual veio a ser condenado, tal alteração da qualificação jurídica não deverá ter qualquer efeito sobre o procedimento criminal, iniciado pelo Ministério Público de forma válida e eficaz. IV - A questão de não se terem apurado, em sede de audiência, de acordo com o entendimento adoptado pelo tribunal, todos os fundamentos fácticos de tal pretensão, não deverá relevar para o preenchimento do pressuposto processual em causa. IV- Inexiste, assim, a invocada ilegitimidade do Ministério Público para investigar e deduzir acusação contra o recorrente. V - A douta sentença a quo mostra-se fundamentada de facto e de direito, tendo optado, na interpretação e aplicação das normas, por um dos entendimentos possíveis, realizando, desse modo, uma interpretação válida e imparcial das normas de direito aplicáveis. Nestes termos e nos melhores de Direito deverá o recurso apresentado pelo Arguido ser julgado improcedente, mantendo-se a douta decisão a quo. Porém V. Ex.ªs farão JUSTIÇA. * Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugnou pela improcedência do recurso, sustentando que II) – Consequências a extrair da alteração da natureza de crime público para particular, por força da modificação da matéria de facto imputada, após a produção da prova, em sede de audiência de julgamento. Nos termos do artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal, no caso do artigo 203.º, do mesmo código, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto (cfr. artigo 202º, alínea c): aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto) e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas. Ora, no caso dos autos, o furto foi efetuado apenas pelo arguido, sendo que ocorreu num estabelecimento comercial (M...), durante o seu horário de abertura ao público (pelas 10h30m) e o arguido apropriou-se de bens cujo valor ascendeu a €19,96, sendo tais bens recuperados, sem qualquer dano, no seu estado original, podendo ser expostos novamente à venda. É certo que as consequências a extrair da alteração da natureza do crime de público para semipúblico ou mesmo particular, seja em resultado de alteração legislativa, seja por força da modificação da matéria de facto imputada, após a produção da prova, em sede de audiência de julgamento, não tem merecido resposta unânime da jurisprudência. - Alguma jurisprudência – cfr. Ac. do STJ de 01-07-1998 (proc. n.º 234/98 - 3.ª Secção), in Sumários do STJ, Acs. do mesmo Tribunal de 04-10-1995 e 19-03-97, in Coletânea, tomos III e I, págs. 203 e 292, e Ac. do mesmo Tribunal de 04-10-1995, coletânea, tomo III, pág. 203 – tem entendido que tendo o instituto da queixa natureza mista, processual e substantiva, a lei que passa a fazer depender de queixa o procedimento criminal, no confronto com aquela que conferia ao ilícito natureza pública, é a aplicável, por favorecer inequivocamente o arguido; - Outra corrente, no mesmo circunstancialismo, tem considerado que o ofendido dispõe do prazo de seis meses, contados da data da entrada da lei nova para declarar se deseja procedimento – cfr. os Acórdãos. do STJ de 19-03-1997, coletânea, tomo I, pág. 252, e de 29-01-1997, BMJ 463, pág. 319; - Em posição diversa, sustenta outra jurisprudência, acompanhada por parte da doutrina – cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Editorial Verbo, 1997, pág. 275, e Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis no Tempo, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 385/410, e Acórdãos do STJ de 05-04-2001, Coletânea de Jurisprudência, tomo II, pág. 176/8; da Relação de Guimarães de 09-05-2005, Coletânea, III, pág. 295/6; da Relação de Lisboa de 26-11- 2004, da Relação de Coimbra de 15-05-2013 (proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1) e de 12-03-2014 (proc. n.º 308/12.2T3AND.C1) - aceitando a dupla natureza, material e substancial, das normas relativas ao direito de queixa e, consequentemente, a aplicação retroativa do regime penal mais favorável ao arguido, autonomizam, na vertente em causa, a incidência desta realidade na legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, no entendimento de a condição de procedibilidade que a queixa constitui esgotar os seus efeitos na criação do pressuposto da promoção da ação penal pelo Ministério Público. Desta sorte, há quem - sufragando embora a dupla natureza (material e substancial) das normas relativas ao direito de queixa e, por conseguinte, a aplicação retroativa do regime penal mais favorável ao arguido - considere, neste preciso segmento que, tendo sido já deduzida acusação, em conformidade com a lei vigente e estando, pois, estabelecida a legitimidade do Ministério Público no momento próprio, apenas se consubstancia uma alteração de procedimentos que em nada afeta os direitos do arguido, sendo inaplicável a previsão do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal. Temos entendido, na esteira do decidido no Acórdão desta Relação de 10-02-2021, processo 383/18.6GAVNG.P1, que tendo-se o processo iniciado legitimamente, deve entender-se que assim permanece, sob pena de se surpreender agora a ofendida com uma exigência que não é razoável, ou seja, que prefigurasse e antecipasse a necessidade de satisfação de uma condição de procedibilidade que, ao tempo em que podia ser exigida, enquanto pressuposto para a promoção do processo, não o era. Tudo isto, sem prejuízo, evidentemente, de uma eventual desistência de queixa por parte da ofendida já constituir, ela sim, um obstáculo ao prosseguimento do processo. Em suma, tendo o processo tido início para investigação de um crime de natureza pública (crime de violência depois da subtração) e assim prosseguido até à fase de julgamento, qualificação jurídica essa suportada pelos elementos então disponíveis, constatando-se, em consequência da prova produzida em audiência, que a conduta do arguido integra antes o crime de furto simples (no caso concreto de natureza particular), para o condenar por este crime não é necessário que a ofendida tenha exercido o direito de queixa, se tenha constituído assistente e deduzido acusação particular, por aquela alteração da qualificação jurídica não ter qualquer efeito sobre o procedimento que foi iniciado de forma válida e eficaz (cfr., neste sentido, Acórdão da RG de 09.12.2019; Acórdão da Relação do Porto de 9 de março de 2020 (in C.J. 2020, II, pg. 264); Acórdãos desta Relação de 30 de janeiro de 2013, proc. n.º 1743/11.9TAGDM.P1 e de 27 de abril de 2016, proc. n.º 780/13.3GALSD.P1; Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015, proc. n.º 48/13.5PFPDL.L1-3 e o acórdão da Relação de Guimarães de 25 de setembro de 2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, todos acessíveis in www.dgsi.pt). Saliente-se que por força da acusação deduzida, o arguido sabia que o julgamento haveria de tomar em conta os factos por que viria a ser condenado e jamais viu beliscados os seus direitos de defesa; a ofendida, por seu turno, viu defendidos os interesses penais pelos quais demonstrou pretender a condenação do arguido e o sistema penal funcionou de forma eficaz no âmbito de um único procedimento criminal, repondo a paz pública. Nem cremos que a falta de acusação particular seja motivo legal para a inutilização, retroativa, da acusação que foi proferida por quem, à data, detinha exclusiva legitimidade para o efeito – ou seja, sem dependência de qualquer atividade da ofendida. O Ministério Público acusou por factos relativamente aos quais tinha legitimidade e os pressupostos processuais relativos a tal acusação estabilizaram-se, nesse preciso momento. Consequentemente, a promoção do processo iniciou-se e decorreu de forma válida e eficaz, não se podendo apontar qualquer irregularidade ao início e ao desenvolvimento da atividade do Ministério Público, que viu, ab initio, a sua legitimidade assegurada. Como se considerou no Acórdão do STJ de 05-04-2001, «o que já se iniciou legitimamente, iniciado está e permanece». Em suma, nenhum reparo nos merece a douta sentença recorrida, razão pela qual somos de parecer que o recurso do arguido não deverá obter provimento. * Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II. Objeto do recurso e sua apreciação. O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95). São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336). * Deste modo integram o objecto do recurso a pretendida extinção do procedimento criminal por falta de queixa e de acusação particular, sustentando-se carecer o Ministério Público de legitimidade para investigar e deduzir acusação.* Do enquadramento dos factos.São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância: “Para julgamento em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação pública ao abrigo do art. 16º, n.º 3 do CPP, em 20/10/2021, a 90 a 93, contra: BB, solteiro, desempregado, filho de CC e de DD, nascido a .../.../1974, natural de ..., África, residente na Rua ..., Porto, titular do Cartão de Cidadão com o n.º ..., imputando-lhe a prática, em autoria material, de UM CRIME DE VIOLÊNCIA DEPOIS DA SUBTRAÇÃO, previsto e punido pelos arts. 210º, n.º 1 e 211º, e com referência ao art. 203º, do Código Penal. * O arguido prestou TIR a fls. 4 e foi-lhe nomeado como Defensor Oficioso o Dr. EE (nomeação de fls. 36). * Não existe pedido de indemnização civil deduzido nos autos. * A acusação foi recebida por despacho datado de 17/12/2021, tendo sido designado o dia 18/02/2022 para a realização da audiência de discussão e julgamento, ficando a segunda data agendada para o dia 21/02/2022 (fls. 114 e 115). * Por despacho de 11/01/2022 foi o julgamento transferido para os dias 07 e 08/03/2022 (fls. 118). * O arguido apresentou contestação, a fls. 120 e ss., oferecendo o merecimento dos autos e indicando uma testemunha. * No dia 07/03/2022 deu-se início à audiência de discussão e julgamento, que durou apenas uma sessão, com observância das respetivas formalidades legais, conforme se alcança da respetiva ata. * Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância e que presidiram à prolação do despacho que designou dia para julgamento, nada ocorrendo posteriormente que obste ao conhecimento do mérito da causa, dado que não ocorrem quaisquer nulidades, exceções, questões prévias ou incidentes de que cumpra de momento conhecer. * No dia da leitura da sentença (dia 11/02) comunicou-se ao arguido uma alteração da qualificação jurídica, tendo-se dado cumprimento ao preceituado no art. 358º, n.º 3 do CPP, conforme se alcança da ata. *** II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Da prova produzida, resultaram os seguintes: 1. FACTOS PROVADOS: 1) No dia 24 de fevereiro de 2021, cerca das 10h30m, no interior do estabelecimento comercial “M...”, sito na Rua ..., no Porto, o arguido apoderou-se de 4 (quatro) embalagens de gel de banho, da marca “Dark Tempi”, no valor global de €19,96 (dezanove euros e noventa e seis cêntimos) e passou as linhas de caixa na posse daqueles artigos sem efetuar o respetivo pagamento. 2) Ao sair do estabelecimento comercial, o arguido foi intercetado na posse dos aludidos artigos pela funcionária do supermercado, FF, acompanhada de outras funcionárias. 3) O arguido foi agarrado pelas ditas funcionárias, sendo que ao tentar libertar-se atingiu a dita funcionária no lado esquerdo da face com o seu cotovelo. 4) O arguido acabou por ser intercetado, já na via pública, por um transeunte que passava no momento. 5) Logo se seguida, chegou a PSP que deteve o arguido na posse das referida quatro embalagens de gel de banho. 6) O arguido fez daqueles objetos coisa sua, bem sabendo que os mesmos lhes não pertenciam e que agiam contra a vontade do dono e sem que tivessem qualquer direito sobre eles. 7) O arguido agiu do modo descrito com o intuito de colocar aqueles objetos no seu poder e de os fazer seus, apesar de saber que não lhe pertenciam e que estava a agir contra a vontade da sociedade ofendida, sua legítima dona. 8) O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, mais sabendo que a sua conduta era proibida por lei. Mais se provou: 9) Os referidos artigos foram recuperados e sem qualquer dano. Provou-se ainda: 10) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais (cfr. CRC de fls. 132 e ss.): - por sentença datada de 02/10/2001, transitada em julgado em 19/10/2001, proferida no âmbito do Proc. n.º 4/01.6GBPTM, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi o arguido condenado pela prática, em 02/10/2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 2.000$00, o que perfaz a quantia total de 120.000$00; tendo a pena de multa sido extinta pelo seu pagamento efetuado em 20/12/2001; - por acórdão datado de 25/10/2001, transitado em julgado em 09/11/2001, proferido no âmbito do Proc. n.º 257/99.8PALGS, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi o arguido condenado pela prática, em 18/05/1999, de um crime de recetação, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 150$00, no total de 60.000$00; a pena foi extinta pelo seu pagamento efetuado em 18/12/2001; - por sentença datada de 27/11/2001, transitada em julgado em 12/12/2001, proferida no âmbito do Proc. n.º 43/01.7TALGS, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi o arguido condenado pela prática, em 27/01/2000, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 1.000$00, o que perfaz o total de 150.000$00, o que perfaz a quantia total de 120.000$00; tendo a pena de multa sido extinta pelo seu pagamento efetuado em 15/02/2002; - por sentença datada de 01/07/2004, transitada em julgado em 15/09/2004, proferida no âmbito do Proc. n.º 226/02.2GALGS, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi o arguido condenado pela prática, em 02/10/2000, de um crime de desobediência, pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €2, num total de € 200; tendo a pena de multa sido extinta pelo seu pagamento efetuado em 07/05/2007; - por acórdão datado de 06/11/2003, transitado em julgado em 15/11/2004, proferido no âmbito do Proc. n.º 302/01.9TALGS do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi o arguido condenado pela prática, em 03/02/2002, de um crime de tráfico agravado, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão; a pena foi julgada cumprida e extinta a partir de 02/01/2009; - por sentença datada de 15/12/2016, transitada em julgado em 18/12/2017, proferida no âmbito do Proc. n.º 237/14.5PAPTM, do J2 do Juízo Local Criminal de Portimão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi o arguido condenado pela prática, em 26/01/2014, de um crime de furto simples, na pena de 290 dias de multa, à taxa diária de €6, num total de € 1.740,00; - por sentença datada de 19/02/2015, transitada em julgado em 01/04/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 1679/13.9PAPTM, do J2 do Juízo Local Criminal de Portimão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi o arguido condenado pela prática, em 11/12/2013, de um crime de abuso de confiança, cometido em 11/12/2013, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €7, num total de € 910,00; tendo a pena de multa sido extinta pelo seu pagamento efetuado em 07/05/2007; - por sentença datada de 10/12/2019, transitada em julgado em 25/11/2020, proferida no âmbito do Proc. n.º 1035/17.0PWPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 12/2017, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão efetiva; - por sentença datada de 24/01/2020, transitada em julgado em 24/02/2020, proferida no âmbito do Proc. n.º 142/20.6PAVNG, foi o arguido condenado pela prática, em 23/01/2020, de um crime de furto simples, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. - por sentença datada de 10/12/2019, transitada em julgado em 25/11/2020, proferida no âmbito do Proc. n.º 1035/17.0PWPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 12/2017, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão efetiva; Provou-se igualmente: 11) O arguido nasceu no dia .../.../1974, tendo atualmente 47 anos de idade, é solteiro, encontra-se desempregado, aufere o RSI no valor mensal de €189; reside num quarto em casa de um amigo pagando o montante de €100 por mês; tem o 6º ano de escolaridade. 2. FACTOS NÃO PROVADOS: a) O arguido atuou da forma descrita utilizando violência contra a funcionária do supermercado, causando-lhe um hematoma, para ficar na posse das embalagens de gel de banho a fim de não as restituir e de as fazer coisa sua. b) O arguido agiu com a intenção de molestar fisicamente a funcionária do estabelecimento comercial e de lhe resistir e com a sua atuação provocou-lhe dor física. 3. MOTIVAÇÃO: (…). *** III. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS Cumpre agora subsumir os factos ao Direito e determinar se ao arguido deve ser criminalmente imputada a prática de UM CRIME DE VIOLÊNCIA DEPOIS DA SUBTRAÇÃO, previsto e punido pelos arts. 210º, n.º 1 e 211º, e com referência ao art. 203º, do Código Penal. Debrucemo-nos, assim, sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos assentes. O art. 211º do Código Penal, sob a epígrafe “Violência depois da subtração”, preceitua: “As penas previstas no artigo anterior são, conforme os casos, aplicáveis a quem utilizar os meios previstos no mesmo artigo para, quando encontrado em flagrante delito de furto, conservar ou não restituir as coisas subtraídas.”. Por seu turno, o art. 210º, do Código Penal dispõe que: “1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Com o tipo legal previsto no citado art. 211º protegem-se os mesmos bens jurídicos tutelados no crime de roubo. De facto, entendeu-se que se deviam equiparar as situações em que a violência (em sentido amplo) é meio para subtrair ou constranger à entrega de uma coisa móvel alheia e aquelas em que constitui meio para conservar ou não restituir o objeto. Trata-se, assim, da defesa do bem furtado através dos meios do roubo. O presente tipo legal consome o furto praticado e a coação, unindo o conteúdo do ilícito dos dois crimes; consome ainda as ofensas corporais ínsitas na violência, as ofensas corporais graves e o homicídio negligente, nos mesmos termos que o crime de roubo. Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa que esteja em situação de intervir, sendo vítima da violência (em sentido amplo) praticada pelo agente no intuito de conservar ou não restituir o bem, podendo ser o proprietário do bem, o seu detentor ou mesmo um terceiro. Englobando este tipo legal o furto e a coação, o agente terá de ser o autor (ou coautor) do crime de furto praticado. Assim, o crime de violência depois da subtração, naquilo que aqui releva, consiste no comportamento doloso de quem, tendo sido encontrado em flagrante delito de furto, utilize violência contra uma pessoa, ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física, ou ponha a vítima na impossibilidade de resistir, para conservar ou não restituir coisa móvel alheia subtraída com ilegítima intenção de apropriação. A conduta consiste na utilização de meios de coação (violência, ameaça, colocação na impossibilidade de resistência) para se garantir a detenção (não restituição) de objeto alheio. Assim, pressuposto da prática deste crime é que tenha havido subtração, tendo sido feito o uso de meios violentos para conservar ou não restituir o bem (ou seja, para garantir a sua detenção), a ser levado a cabo quando o agente está a cometer o crime, acabou de cometer o crime ou no momento em que, logo após o crime, o agente é perseguido ou encontrado com objetos que demonstrem que acabou de o cometer (cfr. art. 256º do CPP). Por outro lado, o agente deverá ser surpreendido no local em que se dá a subtração de coisa móvel alheia ou nas suas imediações, podendo, no entanto, usar de violência na fuga (durante a perseguição). Violência física contra uma pessoa é, desde logo, o emprego de força sobre o corpo da vítima, mesmo que sem dano para a integridade corporal. Mas a ameaça de violência é igualmente relevante para efeitos deste artigo. Tem que tratar-se de uma ameaça grave que procura criar no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, capaz de, no caso concreto, paralisar a reação contra o agente. A eficácia da ameaça deve ser aferida tendo-se em conta a psicologia média dos indivíduos da mesma condição do sujeito passivo. Assim, pressuposto da prática deste crime é que tenha havido subtração, pois se a utilização de meios violentos é levada a cabo antes da subtração, no intuito de a conseguir, o que temos é um roubo (consumado ou tentado). Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, trata-se de um tipo legal doloso. O dolo tem de se verificar em relação a todos os elementos do tipo legal, nomeadamente em relação aos meios (violência, ameaça ou colocação na impossibilidade de resistir). Saliente-se ainda que se exige um dolo específico quanto à conservação ou não restituição das coisas, ou seja, o agente terá de usar meios violentos com a finalidade específica de conservar ou não restituir as coisas subtraídas. Vejamos: Resultou provado que no dia 24/02/2021, cerca das 10h30m, no interior do estabelecimento comercial “M...”, sito na Rua ..., no Porto, o arguido apoderou-se de 4 (quatro) embalagens de gel de banho, da marca “Dark Tempi”, no valor global de €19,96 e passou a zona das caixas na posse daqueles artigos sem efetuar o respetivo pagamento e que ao sair do estabelecimento foi intercetado na posse dos aludidos artigos pelas funcionárias do supermercado. Mais se provou que o arguido foi agarrado pelas ditas funcionárias, sendo que ao tentar libertar-se atingiu uma das funcionárias no lado esquerdo da face com o seu cotovelo, não se tendo provado que o arguido tenha utilizado, de forma deliberada, de violência física contra a funcionária do supermercado para se manter na posse dos referidos objetos. Na verdade, ficou demonstrado da prova produzida que o arguido acabou por atingir com o cotovelo na face da funcionária, mas de forma inadvertida, ao tentar libertar-se, não tendo ficado patente que o arguido tenha agredido deliberadamente a funcionária para assim manter-se na posse dos bens. Deste modo, os factos que resultaram provados não integram a prática do crime de que vem acusado, não se verificando os seus elementos objetivos e subjetivos. * Deste modo, a factualidade provada integra a prática, em autoria material e na forma consumada, de UM CRIME DE FURTO SIMPLES, previsto e punido pelo art. 203º, do Código Penal. O art. 203º do Código Penal estabelece o tipo base do crime de furto: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”. Desta disposição legal resultam os elementos constitutivos - objetivo e subjetivo - do crime de furto, que são: -subtração de coisa móvel alheia – elemento material ou objetivo; -intenção de apropriação/dolo – elemento subjetivo. A subtração consiste no facto de o agente violar o direito de detenção de outrem e lograr ou conseguir a transferência da coisa para a sua esfera patrimonial ou para a de terceiros. O conceito de subtração é composto por dois elementos, a quebra de uma detenção originária contra a vontade do detentor e a constituição de uma nova por parte do agente, nesta se traduzindo a apropriação – o ato de fazer sua coisa alheia. De facto, o crime de furto consuma-se quando o agente tira ou subtrai a coisa da posse do seu respetivo dono ou detentor, contra a vontade deste, e a coloca na sua própria posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual ela se encontrava. A coisa é retirada da esfera patrimonial do poder de disposição do dono da coisa. O bem jurídico, tutelado por este tipo de crime, é o interesse do proprietário pleno, bem como o de outros sujeitos que disponham de poderes de gozo, fruição e guarda sobre a coisa furtada, havendo, todavia, por vezes, que operar a distinção entre o sujeito passivo do crime (ofendido) e o sujeito passivo da subtração. No que concerne ao elemento subjetivo do crime de furto, e tratando-se de crime doloso, exige-se que o agente tenha conhecimento e vontade de realização dos elementos objetivos típicos, em qualquer das modalidades, (cfr. art. 14º do Código Penal) e ainda que atue com a intenção concretizada de fazer a coisa sua, desapossando terceiro - ilegítima intenção de apropriação -, ou também chamado dolo específico. Portanto, ao conhecimento, por parte do agente, de que a coisa, objeto do furto, é alheia (elemento intelectual) e à sua vontade de a subtrair (elemento volitivo) – dolo genérico -, acresce a particular intenção do agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, se passar a comportar relativamente a ela animo rem sibi habendi, integrando-a na sua esfera patrimonial ou na de outrem (vide Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 6ª. Ed., pág. 614). Verificados que sejam estes elementos, estamos perante um crime de furto. Vejamos no caso em apreço: Ficou provado que no dia no dia 24/02/2021, cerca das 10h30m, no interior do estabelecimento comercial “M...”, sito na Rua ..., no Porto, o arguido apoderou-se de 4 (quatro) embalagens de gel de banho, da marca “Dark Tempi”, no valor global de €19,96 e passou a zona de caixa na posse daqueles artigos sem efetuar o respetivo pagamento. Mais ficou provado que o arguido fez daqueles objetos coisa sua, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que agia contra a vontade do dono e sem que tivesse qualquer direito sobre eles e que atuou deliberada livre e conscientemente, bem sabendo o caráter proibido e punível da sua conduta. Mais se provou que tais bens são coisa alheia, propriedade da lesada. Face ao que acaba de dizer-se, mostra-se preenchido o tipo objetivo do ilícito do art. 203º, n.º 1, do Código Penal. Provou-se ainda que o arguido quis apropriar-se dos referidos bens e sabia que não podia apoderar-se dos objetos referidos, por tal ir contra a vontade do seu legítimo proprietário. Ainda assim, o arguido previu e quis o resultado da sua conduta, tendo atuado livre e voluntariamente. Agiu, pois, com dolo direto, nos termos do disposto no art. 14º, n.º 1 do Código Penal, pelo que se mostra também preenchido o tipo subjetivo do crime em causa. Assim, verifica-se que o arguido praticou, em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203º, do Código Penal. * Da aplicação do art. 207º do Código Penal: Nos termos do art. 207º, n.º 2, do Código Penal, no caso do art. 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto (art. 202º, alínea c): aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto) e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas. Ora, no caso que curamos, o furto foi efetuado apenas pelo arguido, sendo que ocorreu num estabelecimento comercial (M...), durante o seu horário de abertura ao público (pelas 10h30m) e o arguido furtou coisas cujo valor ascendeu a €19,96. Por fim, verifica-se que os bens foram recuperados, sem qualquer dano, no seu estado original, podendo ser expostos novamente à venda. No caso em apreço, não houve constituição como assistente, nem dedução de acusação particular. Quid iuris? Quanto a esta questão em apreciação duas soluções se configuram: - ou considerar “desnecessária” a constituição de assistente e dedução de acusação particular, face à convolução operada (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10/02/2021, disponível em www.dgsi.pt); - ou considerar a necessidade de constituição de assistente e dedução de acusação particular (cfr. Acórdão da Relação do Évora de 25/10/2016, disponível em www.dgsi.pt). Salvo o devido respeito por opinião contrária, adiro aos argumentos vertidos no Acórdão da Relação do Porto. Na verdade, não se compreende que, estando o processo configurado pelo Ministério Público com uma natureza pública e não se verificando esta, se determine uma inutilidade de todo o procedimento criminal e, em última análise, a não punição do agente, apenas pelo facto de não ter sido deduzida acusação particular – por factos que já estão contidos na acusação pública – sendo que o ofendido nunca foi confrontado com essa possibilidade / necessidade. Conforme salienta o citado Acórdão da Relação do Porto: “A ausência de acusação particular pelo assistente, sobretudo nos casos em que os crimes denunciados e investigados têm natureza pública e os visados não são informados nem instados sobre tal matéria, como aconteceu nos autos, não deve redundar num surpreendente e irrevogável efeito preclusivo, sendo que o assistente demonstrou pelo seu comportamento processual ser o prosseguimento do processo a sua intenção.”. Vejamos: Analisado o processo não temos dúvidas que a sociedade ofendida desejou e pugnou pela existência de um procedimento criminal contra o arguido, facto agora reforçado em julgamento quando o legal representante foi questionado sobre a manutenção do prosseguimento criminal (cfr. fls. 84 e 85 e ata do julgamento). Atenta a qualificação dos factos por parte do Ministério Público, a factualidade foi sempre perspetivada do ponto de vista da eventual prática de um crime de violência depois da subtração, crime público que dispensa a apresentação de queixa e a acusação particular e, por essa razão, nem sequer deu cumprimento ao disposto no art. 285º, n.ºs 1, 2 e 4 do CPP. Compulsados os autos, e como se disse, verifica-se que não existe a constituição de assistente e a dedução de acusação particular, bem como a notificação do Ministério Público para que a ofendida o fizesse. Verifica-se igualmente que o Ministério Público encaminhou toda a investigação para um crime de natureza pública. Como sabemos, o titular da ação penal, nos crimes públicos, é o Ministério Público, não tendo o assistente qualquer função de garante da legalidade penal. A acusação particular tem como fim dar desenvolvimento processual aos processos criminais relativos a crimes que dependem de queixa e de acusação particular, ou seja, a crimes de natureza particular. Sem a queixa e posterior acusação particular não há possibilidade de o Ministério Público acompanhar (ou não) a acusação, nem pode haver julgamento. Como é pacífico na Doutrina e Jurisprudência, o exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semi-pública e particular a que acresce a estes a dedução de uma acusação particular. Se o Ministério Público concluir estar perante um crime de natureza particular, determina a notificação do ofendido / assistente para que deduza, querendo, acusação particular. No caso que curamos, a alteração da qualificação jurídica ocorreu apenas em julgamento, por não te ter efetuado prova da existência do crime público acusado, mas apenas de um crime de furto simples, sendo que se provou igualmente que tal crime foi praticado apenas por um agente, no horário de abertura do estabelecimento, com recuperação sem dano dos objetos e por valor que não excede 1 UC. Caberá ao lesado / ofendido prever a hipótese de o crime vir a ser convolado, deixando de ser público e passando a particular? No caso em apreço, a partir do momento que os factos entram em juízo e dão origem ao processo, toda a investigação foi direcionada para a existência de um crime público – na verdade, todos os indícios carreados para os autos configuravam um delito público, nunca tendo os visados – no caso a sociedade ofendida – sido informados ou instados sobre tal matéria. Ora, não creio que a ofendida possa ser prejudicada, pois a não dedução de acusação particular, não se deveu a qualquer desleixo ou inércia sua, mas pela convicção legitimamente constituída de que se estava perante um crime público. O Ministério Público não previu outra situação, nem preveniu a ofendida para querendo deduzir em alternativa uma acusação particular. Conforme é referido no Acórdão da Relação do Porto citado: “Estando sempre em causa, como está, a protecção do interesse e da vontade da vítima, mal se acolhe a ideia de que, pelo facto de ela não ter proferido, a seu punho, a acusação, se venha a determinar a inutilidade de todo um procedimento criminal e, em última análise, a não punição do agente, quando se comprova que, ainda que por actos distintos, essa vontade de persecução penal foi suficientemente manifestada, se demonstra actual e os factos criminosos foram, efectivamente, cometidos. No caso, a manifestação da vontade actual, por parte da ofendida, de persecução da tutela penal dos direitos violados está suficientemente expressa pela dedução de queixa, (…) e prestação de declarações em sede de audiência. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito (artº 285º/CPP), quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação (sublinhado nosso) seria, quanto a nós, impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão. (…) Tendo-se o processo iniciado legitimamente, deve entender-se que assim permanece, sob pena de se surpreender agora a ofendida com uma exigência que não é razoável, ou seja, que prefigurasse e antecipasse a necessidade de satisfação uma condição de procedibilidade que, ao tempo em que podia ser exigida, enquanto pressuposto para a promoção do processo, não o era.”. Por outro lado, nem sequer se pode afirmar que os direitos de defesa do arguido ficam comprometidos ou que o mesmo é agora surpreendido pela decisão. Os factos já estão todos contidos na acusação pública deduzida – quer os factos que, em abstrato, poderiam integrar a prática pelo arguido de um crime de violência após a subtração, como os factos que poderiam integrar a prática de um crime de furto. Deste modo, considero não existir qualquer obstáculo processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal do arguido quanto ao crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203º do Código Penal. *** IV. ESCOLHA DA PENA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA ESCOLHA DA PENA:(…) *** DISPOSITIVO (…)” ** Cumpre apreciar. Apreciando o recurso interposto pelo arguido, sendo a impugnação centrada na questão de direito, concretamente sobre se o procedimento processual se manteve válido com a alteração de factos e de qualificação jurídica que vieram a conduzir à condenação do recorrente pela prática de um crime de natureza particular. No seio desta discussão debatem-se duas correntes jurisprudências, aderindo o arguido aquela quem tem sido protagonizada por vários arestos, entre os quais, o Ac.RelP de 10/11/2021 que cita outros tantos “Relativamente ao proferimento de palavras ofensivas da honra e consideração da assistente o procedimento criminal dependeria, face à natureza particular do crime de injúrias (cfr. artigos 181º e 188º do Código Penal) de queixa (que foi formulada) e de acusação particular ou, face à transmutação de enquadramento jurídico operada, de acusação pelo assistente relativamente aos mesmos factos acusados pelo MºPº, mesmo limitada a mera adesão (artigo 284º do Código de Processo Penal). Não tendo a assistente exercido tais faculdades, não tem o MºPº legitimidade (cfr. artigo 50º do Código de Processo Penal) para deduzir acusação pública sobre tais factos, determinando-se a extinção do procedimento criminal quanto aos mesmos (cfr. em sentido idêntico e em casos de convolação do crime de violência doméstica em crime de injúrias, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 04-03-2020, processo 351/18.8PBBRG, de 14-10-2020, processo 986/18.9PAVNG.P1, processo 1300/19.1PIPRT.P1 consultáveis em www.dgsi.pt).”. No mesmo sentido o acórdão da RelP de 7/7/2021 escreveu “Quanto ao crime de injúrias a ofendida não se constituiu assistente e por isso não deduziu acusação particular. No crime de injúrias o procedimento criminal depende de acusação particular. Direito de queixa (artºs 113 nº 1 e 117 do CPP), constituição de assistente (artº 68 nº1 alª b) do CP) e acusação particular (artº 50 nº 1 e 285 nº 1 do CPP) são conceitos intimamente ligados com legitimidade e interesses que a lei quis especialmente proteger. A resposta a estes institutos não pode ser dada ao sabor de conveniências ou porque acreditamos que, em determinado contexto, subverter a lei facilita a prática da justiça material. Apreciar o crime de injúrias é hipótese a não considerar por via da natureza particular deste crime que tem como pressupostos a apresentação de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular, nos termos dos artºs 181,188 nº 1 e 113, todos, do CP, bem como o previsto no artº 50 do CPP. (…) A questão para nós é simples: o MP nunca teve legitimidade para o crime em apreço, pela circunstância de a questão de facto colocada não integrar um crime de violência doméstica. As restrições dos artºs 49 e 50 do CPP limitam a legitimidade do MP para promover a acção penal. A escolha do crime público confere uma tutela mais alargada mas, pode não ser a mais adequada…” Em sentido contrário, desfilam vários outros acórdãos: do TRP de 09/03/2020 (processo nº 765/17.0PHMTS.P1) Relator Paulo Costa; TRP de 13/01/2021 (processo nº 799/18.8GBPNF.P1) Relator Pedro Vaz Pato e TRP de 10/02/2021 (processo nº 383/18.6GAVNG.P1) também, do Relator Paulo Costa, bem como de jurisprudência semelhante do TRC – 11/05/2006, in processo nº 771/13.4 GCVIS – Relator Alberto Mira e de 03/02/2021, in processo nº 231/16.1GABBC.C1- Relator João Novais. O mesmo se diga de um Acórdão do TC, nº 523/99, DR nº 55/200, Série II de 2000/03/06. Nesta última corrente é sustentado que iniciando-se o processo e prosseguindo no pressuposto assumido pela autoridade judiciária competente para o efeito, de que os factos integram um crime de natureza pública e por ele vem a ser exercida a devida ação penal, mediante formulação de acusação por esse mesmo crime, se, em fase de julgamento produzindo-se prova, ocorre alteração da qualificação jurídica, com modificação do crime para delito com natureza semipública, entende-se que não há que fazer regressar o processo a fase anterior, nem reverificar os pressupostos legitimadores do procedimento, podendo e devendo o juiz julgar e condenar pelo crime semipúblico que venha a considerar-se provado, sob pena de violação dos princípios da confiança e do processo justo e equitativo, também sob o prisma das vítimas. Concretamente, é sustenta-se no processo nº668/19.4GAFLG.P1 em Acórdão da RelP (relatado pelo Sr Desembargador Paulo Costa) que “A arguida não terá deduzido acusação particular porquanto não foi notificada para tal pelo M.P, que conduzia a investigação apontando baterias para o crime público de violência doméstica e por seu lado a vítima não estava obrigada por lei a acompanhar a acusação pública, na medida em que a lei usa o termo “pode”. Será que podemos ignorar estes factos difamatórios, por ausência da acusação particular. Entendemos que não. Conforme já temos vindo a defender “I - Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge. II - O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo.” in Ac RP383/18.6GAVNG.P1, in DGSI. Afirma-se no acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015:«A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão. Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular» Esta corrente jurisprudencial, parece-nos a mais acertada e coerente com os termos sistemáticos do processo penal e dos seus institutos. Aos argumentos expendidos, cabe sublinhar e acrescentar que, se o objeto de processo integra primeiramente um crime de natureza pública para o qual as condições de procedimento são cumpridas com a dedução da acusação pública dominante, se, em fase de julgamento ocorre a transmutação do perfil do objeto de processo para crime de natureza semipública ou particular (não obstante as exigências do arts.49º, 50º, 285º do CPP, art.115º do CP, apenas processualmente válidas em fase muito a montante da fase do julgamento), cumpridos que estão, máxime, os procedimentos públicos, não pode objetar-se com a inexistência de queixa, pela simples razão de que, dada a natureza do crime público na fase de inquérito, nesse período até à fase de julgamento, não existiu o direito a queixa; e em fase de julgamento não faz sentido, discutir essa exigência (a necessidade de uma queixa cujo direito nunca existiu). O mesmo raciocínio se aplica à acusação particular, dado que a dedução da acusação publica, permite suprir as condições de procedibilidade mínimas, tornando-se incompreensível o disposto no art.285º do CPP em fase de julgamento. A tramitação do processo penal não permite estas distorções. De contrário, ocorrendo a alteração do objeto na fase derradeira do processo, ou seja, em julgamento (onde é suposto as condições de procedibilidade estarem reunidas e estabilizadas, como estão) e aí exigir o que não pode estar, será impor uma absolvição por extinção do procedimento criminal, resultado que a ordem jurídica não pretende. Com efeito, no objeto de processo em discussão, a alteração da qualificação jurídica em causa, assenta sobre os factos descritos numa acusação já deduzida e processualmente válida, não fazendo o menor sentido, conjeturar sobre a inexistência de uma acusação particular, que não é suposto que exista na normal tramitação do processo. Ora, se essa alteração dos factos, assim como de alterações de qualificação jurídica são processualmente possíveis e admissíveis (e muito comuns) nos termos do art.358º do CPP, então as possibilidades de sobrevirem convolações de tipicidade do delito com alterações da natureza pública para semi-pública ou privada, são relativamente comuns. E, se o legislador admite essas alterações, não pode, a seguir pretender-se inviabilizar essas mesmas alterações, com exigências de forma sem sentido, que no fundo, mais não seria que uma descriminalização por razões de ordem procedimental, aliás incoerentes, tanto mais que a instância do julgamento encontra-se validada. Basta ver que a lei, no art.358º do CPP, não exige para a validade da alteração da qualificação jurídica, que o novo delito imputado mantenha a mesma natureza. A fase de julgamento supõe a validade da instância e a acusação pública isso garante. Ultrapassada que está a fase de inquérito, parece evidente já não serem aplicáveis os dispositivos respeitantes ao prazo da dedução da queixa, às notificações para se constituir assistente, ou para deduzir acusação particular (cfr.art.285º do CPP). O processo penal, na fase de julgamento, supõe resolvidas todas essas questões, e estão: quer a necessidade do impulso processual, quer na promoção da acusação, tudo temas, que, por serem próprios da fase de inquérito (somente nesta fase são tramitados), não podem ser retomados na fase de julgamento, por inaplicáveis e insidicáveis. O princípio da estabilidade da instância (transposto do processo civil), isso mesmo impõe, ou seja, que alterações de qualificação jurídica não interfiram com a validade da instância, nem provoquem distorções na tramitação do processo. Num ilícito de natureza pública, por isso indisponível pelo ofendido, depois de acusado, se em fase de julgamento o ilícito se convola em delito com natureza semi-pública ou particular, o grau de disponibilidade sobre o procedimento criminal só se pode verificar com a compatibilidade dessa fase de julgamento, ou seja, o ofendido poderá desistir da queixa, ou mais precisamente, poderá desistir do procedimento criminal (dado que não existe queixa). De essencial deve dizer-se que, em plena fase de julgamento, a disponibilidade do procedimento que é “ex novo” conferida ao ofendido titular do direito, não se pode manifestar nem com a dedução da queixa, muito menos com a dedução de acusação particular. O processo penal na fase de julgamento não comporta a tramitação desses exercícios processuais, por isso não constituem um “quid” processual. Juridicamente, não faz sentido discutir a exigência de uma queixa (cujo direito não existiu até à alteração), nem tão pouco de uma acusação particular, primeiro porque o arguido encontra-se validamento acusado e é sobre essa acusação que incide a alteração de factos (de uma assentada, não podemos dizer que a alteração da qualificação é válida [porque a lei o permite] e logo a seguir sustentar que a mesma é inoperante, conduzindo à extinção do procedimento criminal); depois porque, os termos da acusação particular não têm cabimento em fase de julgamento, onde os respetivos procedimentos somente têm lugar em fase de inquérito, pressupondo a apresentação de queixa e constituição e assistente. Repete-se que, o crime particular emergente da alteração da qualificação jurídica passa a estar disponível pelo ofendido, que poderá, querendo desistir da queixa, embora no caso “sub judice” haja manifestado a intenção de manter o procedimento criminal, em audiência de julgamento. Devem desse modo improceder as conclusões de recurso DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso improcedente e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos deverá manter-se a Douta decisão do Tribunal a quo. Custas do recurso a cargo do arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em três UCs - 513º, n.º 1 do Código Processo Penal). Notifique. Sumário: …………………………….. …………………………….. …………………………….. Porto, 12 de Outubro 2022. (Elaborado e revisto pelo 1º signatário) Nuno Pires SalpicoPaula Natércia Pedro Lucas |