Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5948/15.5T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: NOTA DE CULPA
REQUISITOS
DEVER DE LEALDADE
Nº do Documento: RP201703275948/15.5T8OAZ.P1
Data do Acordão: 03/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 254, FLS. 294-311)
Área Temática: .
Sumário: I - Versando o recurso sobre matéria de facto, o recorrente tem o ónus de indicar, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte afectada, não só o início e termo dos registos dos depoimentos e sim, ainda, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
II - Podendo o poder disciplinar ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador nos termos estabelecidos por aquele, caso aquele delegue neste tal poder através de documento em que se atribuam poderes de representação, não vicia o procedimento, salvo se tal resultar de disposição especifica – assim de regulamento interno da empresa por força de IRC –, a não junção desse documento ao processo disciplinar se o trabalhador não suscitar a questão, exigindo a prova dos poderes (art.º 260.º, n.ºs 1 e n.º 2, do CC);
III - A exigência legal de que a nota de culpa contenha uma “descrição circunstanciada dos factos” (n.º 1 do artigo 353.º do CT), radicando nas garantias de defesa do trabalhador – que implica, necessariamente, o direito de audiência e o direito ao exercício do contraditório –, pressupõe que os comportamentos imputados ao trabalhador, susceptíveis de integrar infracção disciplinar, sejam descritos com a narração, tão concreta quanto possível, do circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que ocorreram, de forma a permitir àquele o perfeito conhecimento dos factos que lhe são atribuídos, a fim de poder organizar adequadamente a sua defesa.
IV - Deve considerar-se cumprida tal exigência quando a nota de culpa, apesar de revelar insuficiências quanto ao circunstancialismo da infracção, se apresenta em termos de o visado poder compreender quais os factos nela individualizados, o que pode aferir-se, em primeira linha, pelo modo como é deduzida a defesa, designadamente se na resposta à nota de culpa o trabalhador revelar que compreendeu a acusação, com perfeita noção dos factos que lhe eram imputados, exercitando o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar e opondo argumentos idóneos a contrariando a inculpação;
V - É de afirmar a justa causa para o despedimento – atenta a violação do dever de lealdade, que tem subjacente o valor absoluto da honestidade – quando está demonstrado que o trabalhador, dolosamente, alterou em documento interno os dados relativos ao seu próprio prémio, aumentando o seu valor e recebendo assim mais do que lhe seria devido.
VI - O comportamento do trabalhador é doloso e grave, independentemente do valor do prejuízo para o seu empregador não ser elevado, por não ser exigível a este que mantenha a relação laboral quando a conduta do trabalhador quebrou a confiança que nele pudesse ter.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 5948/15.5T8OAZ.P1
Autor: B…
: C…, SA
________
Relator: Nélson Fernandes
1º adjunto: Des. M. Fernanda Soares
2º adjunto: Des. Domingos José de Morais

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
1. B… apresentou requerimento de impugnação judicial da regularidade e licitude do seu despedimento que lhe foi movido por C…, SA.
1.1. Frustrada a tentativa de conciliação levada a efeito na audiência de partes, a Ré apresentou articulado motivador do despedimento sustentando que despediu o Autor com justa causa para o efeito, sustentando ainda, porque esse não pode deixar de conhecer a falta de fundamentos da pretensão deduzida, que deve ser condenado em multa e indemnização no montante de € 1.500.
1.2. O Autor contestou, por excepção e impugnação, e reconveio, sustentando que devem os argumentos vertidos no articulado da Ré ser julgados improcedentes e a reconvenção considerada procedente e provada, pedindo a condenação da Ré: a reintegrá-lo no seu posto de trabalho; no pagamento de todas as prestações pecuniárias que auferiria até ao trânsito em julgado, bem como da quantia de €344,60 a título de formação não prestada e de €5000 a título de danos não patrimoniais, acrescida da sanção pecuniária compulsória de €100 diários por cada dia de atraso no cumprimento destas obrigações e de juros de mora até ao pagamento; e, por fim, a condenação da ré como litigante de má-fé em multa e indemnização pelas despesas e honorários com o mandatário.
1.3. A Ré veio responder, pugnando pela improcedência das invocadas exceções e do pedido reconvencional deduzido.

2. Saneado que foi o processo, com admissão da reconvenção, veio posteriormente a realizar-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta:
“Pelo exposto, julgo improcedente a ação e a reconvenção e, em consequência, absolvo a ré dos pedidos formulados.
Mais condeno o autor como litigante de má-fé na multa de duas unidades de conta e em indemnização à parte contrária, devendo as partes ser notificadas para, em 10 dias, se pronunciarem nos termos do artigo 543.º, n.º 3, do Código do Processo Civil.
Custas pelo autor sem prejuízo do apoio judiciário que lhe venha a ser concedido.”
2.1. Não se conformando com o assim decidido, apelou o Autor, tendo rematado as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
“1 – Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou a presente acção e a reconvenção improcedente e, em consequência absolve a ré dos pedidos formulados;
E, condena o autor como litigante de má-fé na multa de duas unidades de conta e em indemnização à parte contrária.
2 – Impugna-se ainda a decisão proferida sobre a matéria de facto com reapreciação da prova gravada.
3 – Para o efeito o recorrente dá aqui cumprimento ao disposto no artº 640º do CPC, indicando os concretos pontos de facto que se considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão sobre os pontos da matéria de factos impugnados diversa da recorrida e a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões impugnada.
4 – Considera o recorrente incorretamente julgados a factualidade constantes dos artºs 10º e 13º da petição inicial (articulado da Ré) e nos artºs 49 e 50 da resposta à contestação/reconvenção (articulado da Ré).
5 – Os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo da gravação que impõem decisão diversa, encontram-se na conjugação no depoimento da parte (autor) com os depoimentos das testemunhas D…, E… e F…, conforme remissão para os registos gravados e reprodução de enxertos dos respetivos depoimentos.
6 – A decisão que no entendimento do recorrente deve ser proferida sobre esta factualidade, consiste na sua modificação, passando a constar como não provada.
7 – Para o efeito, deve considera-se que nenhuma prova objetiva foi efetuada pela Ré, uma vez que, as testemunhas não revelaram qualquer conhecimento direto e pessoal sobre a factualidade sob apreciação nestes autos e determinante para que se aprecie a licitude ou ilicitude do despedimento do recorrente.
8 – Tendo em consideração a ausência de produção de prova que permita de forma segura e objetiva imputar ao recorrente os factos que constam da decisão de despedimento, estamos perante uma situação em que é permitido ao Tribunal da Relação modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto objeto de impugnação.
Sendo certo que verificam-se ainda nulidades e irregularidades no procedimento disciplinar que afeta a sua validade de determinam a ilicitude do despedimento.
9 – Não se encontra comprovado no procedimento disciplinar o poder para o efeito ao Diretor de Operações E…. E, não foi reaberto o processo disciplinar para que fossem supridos os apontados vícios.
10 – Também não se encontram devidamente concretizados na nota de culpa e na decisão de despedimento os factos imputados ao recorrente e fundamentaram a decisão de despedimento.
11 – Não se verificam fundamentos para a decisão de despedimento com invocação de justa causa, pelo que a sentença recorrida faz erra aplicação e interpretação do disposto no artº 351º do Código do Trabalho.
12 – Por fim, também não se verificam os pressupostos para a condenação do recorrente como litigante de má-fé. Perante a factualidade em discussão o recorrente revelou sempre uma postura coerente e peremptoria. Não tendo omitido qualquer facto relevante para a descoberta da verdade.
13 – Deve assim a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que o despedimento do recorrente ilícito, com as legais consequências
Termos em que, nos melhores de direito que v.exª.s doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por decisão que julgue a presente ação totalmente procedente por provada, com as demais consequências legais, como é de inteira Justiça!”
2.2. Contra-alegou a Ré, formulando a final as seguintes conclusões:
“1. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo, no que à Recorrente diz respeito, é justa, clara, fundamentada na lei e na prova produzida, pronunciando-se sobre todos os factos invocados e discutidos, não merecendo por isso qualquer reparo.
2. No que à impugnação da resposta dada à matéria de facto, não querendo a Recorrida correr o risco de ser fastidiosa, a verdade é que da Sentença proferida pelo tribunal a quo consta, de forma invulgarmente minuciosa, a escalpelização dos meios de prova que contribuíram de forma firme para a convicção do tribunal.
3. Reduzir esses elementos à prova testemunhal – muito valiosa, sem qualquer dúvida – é apresentar uma análise totalmente inquinada da realidade, apenas e só na tentativa de ludibriar o julgador.
4. Como decorre da fundamentação da Sentença, considerou o tribunal a quo o seguinte:
“Os documentos em causa constam de folhas 25 [frente e verso] e 26 [frente] mas mais importante do que estes documentos em papel foram os documentos informáticos exibidos em julgamento. (…) Foram exibidos igualmente os emails de remessa e devolução dos ficheiros para o autor. (…) O autor negou os factos (…) bem como que tivesse admitido a sua prática perante o seu superior hierárquico imediato, a testemunha D… e a gestora operacional de recursos humanos, a testemunha F…, sendo que confirmou a existência desta conversa onde não se falaram de valores e que o valor que fez constar do cheque para restituição do valor pago em excesso resultou dos documentos que recebeu no processo disciplinar (…)
É certo que o autor afirma que pode ter sido outro funcionário com acesso ao email.
Teoricamente podia ser assim, mas na prática não foi, por que se isso tivesse acontecido existiam dois emails em cada mês, com dois ficheiros enviados (…).
5. A análise crítica que o tribunal a quo fez da prova, traz à evidência não só a coerência dos elementos probatórios que sustentam os factos provados mas, mais do que isso, as flagrantes contradições do Recorrente.
6. Por conseguinte, deve manter-se a matéria provada tal como consta da Sentença, improcedendo a impugnação do Recorrente.
7. Tal improcedência, aliás, estende-se também à questão da formação onde, de uma forma que não podemos deixar de descrever como surpreendente, o Recorrente ignora a declaração certificada junta aos autos e que descrimina todas as formações ministradas ao Recorrente. Consta de fls. 74 a 78 dos autos, tal como a isso faz menção a Sentença proferida.
8. No que à alegada falta de poderes do diretor de operações para assinara nota de culpa e a decisão de despedimento, reconhecendo o recorrente que nunca suscitou tal questão no âmbito do processo disciplinar, bem andou o tribunal a quo ao decidir pela improcedência de tal argumento, fundamentando assim a sua decisão:
“Não existe norma sobre a matéria no Código do Trabalho mas em matéria de representação, o artigo 260.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, (...)
E se assim é, consideramos que a conjugação das normas referidas aponta no sentido de que teria que ser o autor a suscitar a questão e perante a exigência de prova dos poderes do Director de Operações, teriam que ser demonstrados os referidos poderes, como aliás foram assim que o autor colocou a questão (…)”
9. No que alegada falta de circunstanciação dos factos na nota de culpa, é bom notar que para a procedência de tal argumento não basta que a nota de culpa seja, de facto, impercetível ou manifestamente vaga ou genérica, é necessário que essa imprecisão impossibilite o trabalhador de apresentar a sua defesa.
10. Como é manifesto pelo teor da resposta à nota de culpa (anexa ao processo disciplinar junto aos autos), bem como pela Contestação apresentada nos presentes autos, o recorrente entendeu perfeitamente acusação que lhe era imputada e defendeu-se dela.
11. Aliás, podemos até concluir que o recorrente entendeu e percebeu de tal forma os factos que lhe eram imputados, que o seu conhecimento foi muito além do que estava na própria nota de culpa, como demonstra o cheque que enviou à recorrente com o montante dos valores que no total dos três meses – Junho, Julho e Agosto de 2015 – tinha logrado receber em excesso no respetivo prémio, em resultado da sua conduta.
12. Improcedente que deve ser julgada a impugnação dos factos considerados provados, dúvidas não restam que a atitude do recorrente preenche, de forma lata, os requisitos para a verificação de justa causa do despedimento. Como diz o tribunal a quo na Sentença proferida
“Não há dúvida, em nosso entendimento, que o autor praticou atos, dolosamente, que configuram a violação do dever de lealdade, para além de colocarem em causa o dever de obediência, pois estava-lhe vedado alterar, de qualquer forma, os dados relativos ao seu próprio prémio.
Assim, temos um comportamento ilícito, culposo e grave pois implica a adulteração de documentos de gestão importantes ao desempenho da atividade da empresa.
13. Em suma, podemos concluir que a douta sentença é justa e totalmente fundamentada na prova conhecida no processo.
Nestes termos, requer a Vossas Excelências se dignem julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Recorrente.
Assim se fará, JUSTIÇA!”

3. Em 29 de Setembro de 2016 foi proferido despacho com o teor seguinte:
“1. Por lapso, na sentença, não se fixou o valor da causa e, por conseguinte, fixa-se agora o valor de € 37.475,60.
2. O autor foi condenado como litigante de má-fé, tendo as partes sido notificadas para se pronunciarem sobre o valor da indemnização.
A ré pronunciou-se no sentido da fixação do valor de € 1500, correspondendo € 500 ao tempo perdido pela sua representante e testemunhas, quadros da empresa, com o processo e € 1000 a honorários de advogado.
O autor não se pronunciou.
Cumpre decidir.
Nos termos do artigo 543.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, a indemnização pode consistir no reembolso das despesas a que a má-fé tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários de advogado e nos restantes prejuízos que daí tenham resultado.
Como o autor não se opôs ao montante indicado pela ré, consideramos que é este que deve ser fixado.
Pelo exposto, fixo em € 1500 a quantia que o autor deve ser condenado a pagar à ré em cumprimento da condenação como litigante de má-fé.
3. Por ser legal, tempestivo e interposto por quem tem legitimidade, admite-se o recurso interposto pelo autor, o qual é de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto, tem efeito meramente devolutivo e sobe imediatamente e nos próprios autos – artigos 80.º, n.º 1 e n.º 3, 83.º, n.º 1 e 83.º-A, n.º 1, do CPT.
Notifique.
Subam os autos ao Tribunal da Relação do Porto.”
3.1. Notificado do aludido despacho, veio o Autor, na parte em que fixa em € 1500 a quantia que é condenado a pagar à ré em cumprimento da condenação como litigante de má-fé, suscitar a nulidade da decisão, nos termos do disposto nos artigos 77.º CPT e 615.º n.º 1 al. d), do CPC.
3.2. Respondeu a Ré, sustentando a inexistência da invocada nulidade.
3.3. Por despacho de 18 de Outubro de 2016, foi proferida decisão com o teor seguinte:
“O autor veio invocar a nulidade da decisão que fixou o valor da indemnização referente à condenação como litigante de má-fé por existir, segundo entendemos, excesso de pronúncia.
Em nosso entendimento, não existe qualquer excesso de pronúncia, pelo contrário, a decisão foi proferida exactamente no estrito cumprimento da lei pois na sentença o tribunal condenou o autor como litigante de má-fé, tendo sido determinada expressamente a notificação das partes para se pronunciarem sobre o valor da indemnização no prazo de 10 dias e, por isso, feita essa pronúncia pela ré e tendo-se esgotado o prazo para o autor se pronunciar, o tribunal proferiu a decisão que já tinha antecipado na sentença.
Esta decisão, como qualquer outra, sendo admissível, é passível de recurso, podendo o autor manifestar livremente a sua discordância por essa via, se esse for o seu entendimento, não se vendo onde é que o tribunal limitou de qualquer forma essa possibilidade pois o artigo 79.º-A, n.º 2, alínea g), do Código do Processo do Trabalho, prevê expressamente a possibilidade de recurso dos despachos proferidos depois da decisão final.
Pelo exposto, indefiro a nulidade invocada.
Notifique.
O prazo para recurso da decisão que fixou o valor da indemnização por litigância de má-fé terminou, em nosso entendimento, no dia 13 de Outubro de 2016 – artigos 79.º-A, n.º 2, alínea g) e 80.º, n.º 2, do CPT –, podendo o ato ser praticado, com multa, até ao dia de hoje.
Por isso, caso não seja deduzido recurso, subam os autos ao Tribunal da Relação do Porto.”
3.3.1. Por despacho de 24 de Novembro de 2016, não foi admitido, porque extemporâneo, o recurso interposto pelo Autor sobre a decisão proferida sobre o valor da indemnização por litigância de má-fé.

4. Nesta Relação, pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, quanto à impugnação da matéria de facto – não se admitindo ainda em parte – e quanto à aplicação do direito.
4.1. Respondeu o Apelante, no sentido de serem desatendidas as posições sufragadas em tal parecer, remetendo para o que, em contrário, consta das suas alegações.
***
Cumpridas as formalidades legais, nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.

II. Questão prévia da rejeição do recurso

1. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta suscita em primeiro lugar a questão da rejeição do recurso sobre reapreciação da matéria de facto, por a Recorrente aludir aos artigos 49º e 50.º da resposta à contestação, o que, para além de se tratar de alegação meramente conclusiva, não consta sequer da decisão proferida, não indicando, quanto a esta decisão, como se lhe impunha, os § 5.º e 6.º da decisão da matéria de facto, que se relaciona com as afirmações constantes dos referidos artigos da contestação.
Sustenta o Recorrente que tal não se verifica, tendo dado adequado cumprimento ao ónus que sobre si impendia.
Apreciando:
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do Código de Processo do Trabalho, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Nestes casos, deve porém o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, no qual se dispõe:
«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Nas palavras de Abrantes Geraldes, “(…) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”[1]. Contudo, como também sublinha o mesmo autor, “(..) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”[2].
Tendo por base os supra citados dispositivos legais, teremos de considerar que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[3] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPCivil[4].
Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspectiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorrectamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”.
Discorrendo sobre a matéria, escreve-se no bem recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2016[5] «(…) Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. (…)».
Observa-se também no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de julho de 2016[6] o seguinte: «(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).»[7].

Voltando ao caso, por referência ao afirmado regime, constata-se, desde logo, que o Recorrente, sua conclusão 4, se limita a referir que considera “incorretamente julgados a factualidade constantes dos artºs 10º e 13º da petição inicial (articulado da Ré) e nos artºs 49 e 50 da resposta à contestação/reconvenção (articulado da Ré)” e que (conclusão 6) a decisão que no seu entendimento deve ser proferida sobre esta factualidade, consiste na sua modificação, passando a constar como não provada.”
Ora, manifestamente que o Recorrente, diversamente do que lhe era pressuposto, não se dirige directamente nas suas conclusões à decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto, limitando-se a remeter para artigos dos articulados apresentados, sendo que, também de modo claro, não ocorre sequer exacta correspondência entre esses artigos e qualquer dos parágrafos integrados naquela factualidade (não numerada).
Não obstante, vista tal factualidade, percebe-se de forma suficiente que os artigos 10.º e 13.º do articulado da ré corresponde, naquela, aos pontos 14 e 15 da numeração dada neste acórdão, assim, respectivamente, (14) Em Outubro de 2015, o autor adulterou o ficheiro originalmente enviado relativo ao seu próprio prémio de Setembro de 2015, fazendo constar uma imagem sobreposta com o valor de € 72,04 sobre a célula do valor final de € 45,02 e (15) Detectada esta situação, a ré procedeu à verificação dos mapas dos meses anteriores, tendo verificado que o autor tinha igualmente alterado o montante do seu próprio prémio relativo aos meses de Julho e Agosto de 2015. Do mesmo modo, quanto aos artigos 49.º e 50.º (na verdade conclusivos mas que remetem para documento que tal concretizam), obtém correspondência no artigo 19 (na nossa numeração) daquela factualidade. Tal conclusão ressalta também, acrescente-se, da sua expressa transcrição no corpo das alegações.
Do exposto resulta, pois, que está esta Relação em condições de perceber qual a intenção do Recorrente, sendo que, na verdade, também a Apelada percebeu exactamente qual a factualidade objecto de pedido de reapreciação.
Porém, já no que se refere à prova que no entender do Recorrente impunha decisão diversa, o mesmo limitou-se nas suas conclusões a referir (conclusão 5) que essa assenta na conjugação no depoimento da parte (autor) com os depoimentos das testemunhas D…, E… e F…, fazendo depois remissão para os registos gravados e reprodução de enxertos dos respetivos depoimentos, feitos no corpo das suas alegações, sendo que aí se limita, e apenas quanto aos factos 14 e 15 antes referidos, a indicar o momento do início e do fim desses depoimentos, efectuando depois apenas algumas transcrições (por vezes extensas), sem referir com exactidão as passagens da gravação em que essas se inserem.
Ora, o recorrente não ignora a obrigatoriedade dessa indicação, limitando-se a referir que se mostra imprescindível, sem sequer o justificar convenientemente, a audição integral dos depoimentos. Porém, afinal, o que de algum modo colide com essa afirmação, inclui depois extractos desses depoimentos, que afinal não localiza exactamente nos registos gravados, como se lhe impunha, face à citada norma legal.
Basta ter presente a decisão recorrida para se perceber a necessidade dessa indicação, face à conjugação e análise crítica da prova que dessa consta, ressaltando com clareza as razões que estiveram na base, por referência à prova produzida, da convicção formada:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na apreciação conjugada dos depoimentos prestados, pelo autor e pelas testemunhas devidamente identificadas nos autos, bem como atendendo aos documentos juntos. (...)
A questão essencial prende-se com saber se o autor praticou os factos que lhe são imputados pela ré, mais concretamente a alteração ou adulteração, por sobreposição de uma imagem com um valor superior na célula onde constava o valor que o autor tinha a receber nos meses de Julho, Agosto e Setembro.
Nesta matéria temos duas posições: por um lado, a posição do autor que nega esta factualidade e, por outro lado, a posição da ré que imputa as alterações ao autor.
Os documentos em causa constam de folhas 25 [frente e verso] e 26 [frente] mas mais importante do que estes documentos em papel foram os documentos informáticos exibidos em julgamento onde se constata claramente, com se pode selecionar em cada um deles, a imagem que consta ou sobre o valor final do prémio [documentos dos meses de Julho e Setembro] ou sobre a percentagem do prémio [documento do mês de Agosto] e desviar uma imagem surgindo por detrás o valor original que constava do documento, sendo que nos meses de Julho e Setembro consta um valor menor do que o constante das referidas imagens e no mês de Agosto está alterada a percentagem do prémio para 100% mas existe por cima desta célula uma imagem que reproduz 70%, sendo certo que o valor final do prémio corresponde a 100% deste e não a 70%.
Foram exibidos igualmente os emails de remessa e devolução dos ficheiros para o autor [mais concretamente para o email do responsável de loja de …] e nessa comparação verificamos os documentos anexos, concluindo-se que os ficheiros remetidos não tinham estas imagens que só surgem nos ficheiros devolvidos.
O autor negou os factos [mais concretamente a alteração daqueles valores], bem como que tivesse admitido a sua prática perante o seu superior hierárquico imediato, a testemunha D… e a gestora operacional de recursos humanos, a testemunha F…, sendo que confirmou a existência desta conversa onde não se falaram de valores e que o valor que fez constar do cheque para restituição do valor pago em excesso resultou dos documentos que recebeu no processo disciplinar mas, questionado sobre se havia alguma justificação para o empregador imputar-lhe esta factualidade, apenas referiu que, em geral, achava que não pois tinha boa relação com os seus superiores e com os colegas de trabalho mas, no âmbito deste processo, verificou que o único superior hierárquico que fez uma apreciação menos positiva da sua prestação foi o atual Director de Operações quando era Coordenador de Vendas e agora, tendo regressado como Director de Operações, aconteceu-lhe isto e, para além disso, o seu computador está disponível para acesso a outros funcionários pois é o único que tem acesso à internet e todos sabem a password do email, pelo que qualquer um poderia ter feito as alterações de modo a prejudica-lo, negando igualmente quaisquer dificuldades económicas apesar da sua companheira ter um problema de saúde e estar de baixa o que implicava uma redução do rendimento de € 200 mensais que conseguia gerir perante as suas despesas.
Contudo, o superior hierárquico em causa, a testemunha E…, afirmou que de facto, acha que em 2010, fez essa observação mas tal não colocou em causa a confiança que depositava no autor e com base nessa observação o autor teve formações com vista a melhorar e melhorou efectivamente, sendo que atualmente estava satisfeito com a sua prestação, considerando-o um trabalhador cumpridor.
Outros elementos apontam em sentido diverso da versão do autor.
Primeiro: a testemunha D… afirmou que foi alertado da situação, marcou uma reunião com o autor, entretanto analisou os ficheiros e viu as alterações e na reunião confrontou o autor, estando igualmente presente a testemunha F…, tendo o autor primeiro negado mas depois admitido que o tinha feito justificando com dificuldades económicas por que estava a passar, referindo ainda que naquela reunião não lhe mostrou os ficheiros nem lhe falou de valores concretos por que ele sabia e, num primeiro momento, ele negou que existissem outras situações mas depois disse-lhe que sabia e ele então admitiu que tinha alterado igualmente nos dois meses anteriores.
Segundo: a testemunha F… corroborou completamente o depoimento da testemunha D….
Foi feita uma acareação entre o autor e a testemunha D… mas cada um manteve a sua posição, não se podendo no entanto deixar de notar que a testemunha D…, que se afirmou traído na confiança que tinha no autor, demonstrou maior emotividade no confronto dos depoimentos, encarando sempre o autor que, por sua vez, se mostrou mais frio e, em determinadas situações, desviou a cara evitando encarar a testemunha, sendo certo que noutras não o fez.
De qualquer forma, quer a testemunha D…, quer a testemunha E…, referiram que não se tratou apenas da admissão do autor pois o circuito do ficheiro em causa não deixa margem para dúvidas de que foi o autor quem fez as alterações na medida em que o ficheiro foi enviado nos termos correctos e foi devolvido com as alterações, sendo certo que só o autor é que devia ter acesso àquele email.
Em nosso entendimento, a posição destas duas testemunhas está em maior correspondência com a lógica da situação pois verificamos o circuito do ficheiro e não há dúvidas que ele foi alterado enquanto estava na custódia do autor.
É certo que o autor afirma que pode ter sido outro funcionário com acesso ao email.
Teoricamente podia ser assim, mas na prática não foi, por que se isso tivesse acontecido existiam dois emails em cada mês, com dois ficheiros enviados, um com as alterações [enviado pelo suposto funcionário] e outro correcto [enviado pelo autor], pois o autor era o responsável de loja, tinha esta tarefa, sempre a cumpriu, então se outro funcionário, por motivos que desconhecemos, quisesse prejudicar o autor e enviasse um ficheiro adulterado, como o autor desconhecia a situação, no cumprimento da sua função, ou seja, naturalmente, tinha enviado outro email com o ficheiro e, assim, os serviços administrativos da ré tinham recebido dois emails por mês, com ficheiros diversos, o que geraria evidentemente perplexidade e tinha sido logo detectado.
Acresce que o depoimento do autor tem outras duas contradições pois, quer o autor, quer a testemunha D…, afirmam que não foram falados em valores concretos, nem foram exibidos os ficheiros na referida reunião, sendo que o autor alegou que enviou um cheque, com o valor exacto, porque verificou nos documentos que lhe foram entregues no procedimento disciplinar mas da nota de culpa não consta quais eram os valores em causa nos meses de Julho e Agosto, só os do mês de Setembro, então pergunta-se como é que o autor teve conhecimento do valor exacto a restituir?
Outra discrepância, de menor importância, está relacionada com as invocadas dificuldades financeiras que o autor, no seu depoimento, afirmou que não existiam mas no artigo 39.º da contestação refere que estava com dificuldades económicas.
Por fim, não se pode deixar de ter em conta que o autor era o único beneficiado com as alterações.
Assim, em nosso entendimento, os depoimentos das testemunhas D… e F…, pela sua coerência e corroboração com outros factores, assumem maior credibilidade do que o depoimento do autor que, aqui e ali, entra em contradição com outros elementos, pelo que consideramos provada a versão dos factos alegada pela ré.”

No entanto, independentemente dessa fundamentação, o que aqui releva é o não cumprimento, quanto aos pontos 14 e 15 da factualidade, do ónus a cargo do Recorrente estabelecido no n.º 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC.
Apreciando precisamente essa questão, refere-se no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2017[8] o seguinte:

“(...) o que o preceito determina, é que o recorrente indique o início e o fim das passagens da gravação ou seja, as passagens do depoimento e não o início e o fim do depoimento. Se bastasse esta indicação do início e do fim do depoimento, a exigência legal careceria totalmente de fundamento, pois que a localização do início e do fim do depoimento não apresenta quaisquer dificuldades, ela consta da ata e é fornecida pelo próprio sistema de gravação.
A indicação precisa do início e termo das concretas (art. 640º, nº 1, al. b) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto.
De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador.
É, assim, claro que a recorrente não cumpriu os ónus impostos pelo art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, pelo que não merece censura a decisão da Relação ao rejeitar, nesta parte, o recurso.”
Pelo exposto, tal como salienta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, impõe-se a rejeição do recurso na vertente da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto nessa parte.
*
III – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do NCPC – aplicável “ex vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) reapreciação da matéria de facto; (2) decisão disciplinar: (2.1) exercício do poder disciplinar - regularidade/suficiência e âmbito do mandato; (2.2) nota de culpa – descrição dos factos integrantes da infracção; (2.3) regularidade do despedimento com justa causa; (3) litigância de má-fé.
*
IV – Fundamentação
A) De facto
O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos[9]:

“1. A ré é uma sociedade comercial que se dedica a todo o comércio retalhista e armazenista, nomeadamente a exploração de centros comerciais e estabelecimentos de electrodomésticos.
2. O autor foi admitido ao serviço da ré em 2 de Janeiro de 1999, reportando-se a sua antiguidade a 29 de Outubro de 1996, detendo a categoria profissional de chefe de secção.
3. Exercia as suas funções no estabelecimento da ré denominado C1…, sito em ….
4. O autor exercia a função de responsável deste estabelecimento. 5. Em 15 de Outubro de 2015, o autor recebeu a carta de folhas 24 verso, assinada pelo Director de Operações, E…, pela qual a ré lhe comunica que comunica a instauração de procedimento disciplinar, a nomeação de dois instrutores e a sua suspensão preventiva da prestação de trabalho.
6. Por carta regista com aviso de recepção, a ré remeteu ao autor os documentos de folhas 26 verso a 28 frente, que se consideram reproduzidos, assinados pelo Director de Operações, E…, consistindo na comunicação da intenção de proceder ao seu despedimento e em nota de culpa.
7. Por carta registada com aviso de recepção, a ré remeteu ao autor a decisão de despedimento que consta a folhas 39 frente, assinada pelo Director de Operações, E…, remetendo a fundamentação da decisão para o relatório que seguiu em anexo e que consta a folhas 39 verso a 41 verso que se considera reproduzido.
8. Com data de 14 de Março de 2012, o administrador da ré, G…, declarou constituir procurador da ré E…, sendo-lhe conferidos poderes, até 31 de Março de 2016, para representar a sociedade no exercício do poder disciplinar, na cessação de contratos de trabalho, designadamente por despedimento.
9. A procuração referida não foi junta ao procedimento disciplinar.
10. No procedimento disciplinar o autor não colocou em causa a identidade do subscritor dos documentos que lhe foram entregues nem os seus poderes para a prática dos atos em causa.
11. Mensalmente e com referência ao mês anterior, os serviços de gestão administrativa da ré enviam aos responsáveis de loja um ficheiro em excel com informação relativa ao valor dos prémios mensais da equipa.
12. O responsável de loja analisa o ficheiro em causa, podendo corrigir a informação relativa ao percentual da sua equipa directa – vendedores – que poderá ser reduzido por falta de cumprimento de objectivos.
13. Do mesmo documento consta ainda informação sobre o próprio prémio do responsável de loja que não pode ser alterada por este.
14. Em Outubro de 2015, o autor adulterou o ficheiro originalmente enviado relativo ao seu próprio prémio de Setembro de 2015, fazendo constar uma imagem sobreposta com o valor de € 72,04 sobre a célula do valor final de € 45,02.
15. Detectada esta situação, a ré procedeu à verificação dos mapas dos meses anteriores, tendo verificado que o autor tinha igualmente alterado o montante do seu próprio prémio relativo aos meses de Julho e Agosto de 2015.
16. Após a recepção da nota de culpa, o autor remeteu à ré um cheque, datado de 18 de Novembro de 2015, do montante de € 64,64, acompanhado de uma carta em que refere que se destina a restituir a importância que lhe foi paga em excesso com os vencimentos.
17. Nas avaliações de desempenho, o autor sempre foi classificado positivamente pelos seus superiores hierárquicos.
18. No ano de 2014 o autor frequentou ações de formação num total de 122 horas e 45 minutos.
19. No ano de 2015 o autor frequentou ações de formação num total de 74 horas e 30 minutos.
20. Desde o procedimento disciplinar que o autor ficou mais reservado, introvertido, nervoso, abatido e preocupado com o futuro.”

Por sua vez, considerou-se como não provado[10]:

“a) Nos anos de 2014 e 215 a ré não concedeu ao autor formação profissional.
b) Em consequência da atuação da ré o autor sentiu-se humilhado e vexado perante os colegas de trabalho.
c) O autor ficou com perturbações do sono, frequentes insónias e pesadelos provocando-lhe pensamentos negativos, persistentes e recorrentes, acompanhados de pensamentos de desânimo.”
*
B) Discussão
1. Reapreciação da matéria de facto.
Nos termos anteriormente afirmados, rejeitado o recurso quanto à demais factualidade (pontos 14 e 15), resta apreciar a decisão quanto ao ponto 19 (de acordo com a numeração introduzida neste acórdão), que tem o teor seguinte: No ano de 2015 o autor frequentou ações de formação num total de 74 horas e 30 minutos.
O requerente, para fundar a sua pretensão de ver esse facto como não provado, limita-se a referir, no corpo das suas alegações, que considera «que esta factualidade também deve ser modificada e considerar-se como não provada, por total ausência de prova, essencialmente documental, uma vez que, dos autos não constam os respetivos certificados de formação.”
Ora, de acordo com a motivação constante da sentença, «a formação profissional resulta dos documentos de folhas 74 a 78», sendo que, por referência a esses mesmos documentos, que sustentam a convicção e prova do facto que se aprecia por parte do Tribunal a quo, facilmente se conclui pelo infundado da pretensão do Recorrente.
Improcede pois, nos termos expostos, o recurso nesta parte.

2.
A factualidade a atender para aplicação do direito é, como resulta do decidido anteriormente, a que foi considerada pelo Tribunal a quo.

2.1. Da regularidade/suficiência/âmbito do mandato/delegação de poderes do empregador.
Tendo então essa por base, importando apreciar as demais questões levantadas pelo Recorrente, o mesmo invoca que não se encontra comprovado no procedimento disciplinar o poder para o efeito ao Diretor de Operações E…, não tendo sido reaberto o processo disciplinar para que fossem supridos os apontados vícios (conclusão 9)
Pronunciando-se, consta a propósito da decisão recorrida o seguinte:

“Nos termos do artigo 329.º, n.º 4, do Código do Trabalho, o poder disciplinar pode ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele.
Não há qualquer dúvida que existiu a instauração de um procedimento disciplinar e que foi nomeado instrutor [aliás, dois instrutores], sendo que o que está em causa são os poderes de quem praticou os atos que culminaram no despedimento do autor.
Os factos deixam claro que estes atos foram praticados pelo Director de Operações, E…, que assinou todos os documentos e que dispunha de uma procuração em que a administração lhe conferia poderes para o efeito.
Logo, a única questão sobrante passa por saber se aquela procuração tinha que ser junta ao procedimento disciplinar obrigatoriamente ou se apenas quando e se fosse colocada a questão, sendo certo que o autor não colocou essa questão no procedimento disciplinar e assim que a colocou nos presentes autos foi junta a procuração devida.
Não existe norma sobre a matéria no Código do Trabalho mas em matéria de representação, o artigo 260.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, estabelecem que «se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos» e «se os poderes de representação constarem de documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele assinada pelo representante». Esta norma aplica-se ao contrato de mandato com representação nos termos do artigo 1.178.º, n.º 1, do Código Civil.
Na falta de outra disposição especifica pois é certo que, nos termos do artigo 99.º, n.º 4, do Código do Trabalho, existem matérias que podem ter que constar obrigatoriamente de regulamento interno da empresa por força de Instrumento de Regulamentação Colectiva mas consultada a Convenção Colectiva do Trabalho do sector não se constatou qualquer referência à obrigatoriedade da delegação genérica do poder disciplinar constar deste tipo de instrumento, pelo que, em nosso entendimento, nada obsta a que seja feita por procuração.
E se assim é, consideramos que a conjugação das normas referidas aponta no sentido de que teria que ser o autor a suscitar a questão e perante a exigência de prova dos poderes do Director de Operações, teriam que ser demonstrados os referidos poderes, como aliás foram assim que o autor colocou a questão [a jurisprudência não é uniforme nesta matéria mas podemos afirmar que existe alguma jurisprudência mais antiga que aponta no sentido da exigência do empregador fazer constar do procedimento disciplinar a prova dos poderes, independentemente do trabalhador suscitar a questão – por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 1999 – Processo n.º 99S137 – mas é afastada noutras decisões, como por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Dezembro de 2000 – Processo n.º 00S2360 –, de 21 de Março de 2012 – Processo n.º 161/09.3TTVLG.P1.S1 – e da Relação do Porto de 19 de Dezembro de 2012 – Processo n.º 477/11.9TTVRL-A.P1 – que apontam exactamente no sentido de que deve ser o trabalhador a exigir que essa prova seja feita e só se não for é que existe um vício do procedimento disciplinar].
Assim, entendemos que não existe, por esta via, qualquer irregularidade.”

Concorda-se com o decidido.
Na verdade, resulta da factualidade provada (e que aliás não foi sequer objecto de reacção em sede de recurso) que, com data de 14 de Março de 2012, o administrador da ré, G…, declarou constituir procurador da ré E…, sendo-lhe conferidos poderes, até 31 de Março de 2016, para representar a sociedade no exercício do poder disciplinar, na cessação de contratos de trabalho, designadamente por despedimento (ponto 8 da factualidade).
E, sendo verdade que a procuração referida não foi junta ao procedimento disciplinar (ponto 9), não o é menos, face a tal factualidade, que no procedimento disciplinar o autor não colocou em causa a identidade do subscritor dos documentos que lhe foram entregues nem os seus poderes para a prática dos atos em causa (ponto 10).
Cita-se o que sobre a questão se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2012[11]’[12]:
“O poder disciplinar pertence ao empregador – como inequivocamente se contém no art. 98.º do Código do Trabalho – que pode, no seu exercício, aplicar, de entre outras eventualmente estabelecidas em IRCT, as sanções elencadas no art. 328.º/1 do Código do Trabalho/2009[13].
Nos termos do n.º 4 do seu art. 329.º ‘[o] poder disciplinar pode ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele’.
Como acima enunciado, uma coisa é, pois, a titularidade do poder disciplinar, (um genuíno poder punitivo privado, nas palavras de J. Leal Amado[14), enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador; outra é a questão do seu exercício.
Sendo um direito potestativo ambivalente (ordenatório ou prescritivo e sancionatório[15]), com reconhecido carácter gravoso nesta sua mais característica manifestação de poder punitivo, importa reconhecer que o seu exercício – conferindo embora ao seu titular uma certa margem de natural elasticidade/discricionariedade – acarreta simultaneamente uma acrescida responsabilidade ante os limites gerais decorrentes da boa fé e do abuso do direito.
É por isso que a titularidade/pessoalidade do seu exercício está legalmente conferida ao empregador.
Podendo ser exercido também por superior hierárquico do trabalhador, por delegação de poderes, sempre tal exercício há-de respeitar os termos estabelecidos por aquele, o empregador.
E ainda que num cenário mais alargado – em que se admita, como naturalmente se admite[16], que possam funcionar mais dilatados poderes de delegação/ representação, nada obstando a que o empregador outorgue poderes a outrem para o exercício do poder disciplinar, como também sustenta Romano Martinez, em nota ao art. 329.º, pg. 881, in fine, ‘Código do Trabalho’, 8.ª edição, 2009 – sempre estes poderes estarão sujeitos, no seu exercício, como convimos, à conformação do legítimo titular desse direito/poder: …’nos termos estabelecidos por aquele’, o empregador, lembrando de novo o n.º 4 do art. 329.º.
Isto posto.
Acrescidas estas considerações – e vindo factualizado que se remeteu à A. uma comunicação contendo a decisão disciplinar, como plasmado no ponto 5. do elenco constante da FF[5], a que já aludiremos mais circunstanciadamente – diremos que o enfoque da questão, e respectiva solução, se centrará antes, (diversamente dos termos em que foi equacionada), no âmbito do falado exercício/vs. titularidade do poder disciplinar, mais concretamente em sede de apreciação e qualificação da regularidade/suficiência/âmbito do mandato/delegação de poderes do empregador no advogado instrutor.
Ora, na sequência dos factos relatados como tendo acontecido no dia 7.3.2009, CC – conforme teor do ponto 29. da FF - actuando na qualidade de legal representante da Ré, nomeou seu procurador o Dr. EE, a quem conferiu ‘os mais altos poderes em direito permitidos, e os especiais de dar sequência a um processo disciplinar contra a sua trabalhadora AA, importando esclarecer factos graves ocorridos no local de trabalho no passado dia 07 de Março de 2009, a partir das 14h00’.
Foi o seu procurador/mandatário, na invocada qualidade de ‘advogado instrutor’, quem, usando o plural majestático (…’estamos a comunicar-lhe’), assumiu – como se vê da carta/documento constante do PD, que é afinal a carta a que se reporta o ponto 5. da selecção da matéria de facto – a decisão e comunicação à A. da rescisão do contrato que a ligava à firma H…, Ld.ª, com justa causa e efeito imediato.
Resta saber se quem o fez estaria para tal legitimado ou, no mínimo, se pode e deve, no contexto, ser havido como tal.
O mandato é, por definição, o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem – art. 1157.º do Cód. Civil.
Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, diz-se que é mandatário com poderes de representação, tendo, neste caso, o dever de agir não só por conta, mas também em nome do mandante – art. 1178.º do mesmo Cód. Civil.
Agindo em nome próprio (mandato sem representação), o mandatário adquire direitos e assume obrigações decorrentes dos actos que celebra, em consequência e execução do mandato, devendo contudo transferir para o mandante, em cumprimento das respectivas obrigações contratuais, os direitos ou obrigações adquiridos/assumidas[17] – arts. 1180.º[7] e 1181.º/1 do mesmo Compêndio.
[De acordo com a lição de Galvão Telles, (‘Contratos Civis’, pg. 71 e seguintes, ibidem - cfr. anterior nota de rodapé), o mandato e a procuração, podendo coexistir, não são necessariamente sinónimos: o mandato é um contrato e a procuração é um acto unilateral, sendo que o primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta doutrem, enquanto o segundo confere o poder de os celebrar em nome doutrem].
Em consonância, nestes casos, em que o mandatário é também procurador (a que chamam de mandato representativo - ainda A. Varela e Pires de Lima, em nota 3. ao art. 1178.º do seu ‘Código Civil Anotado’) são de aplicar, conjuntamente, as normas dos dois institutos, (do mandato e da representação), como aliás decorre expressamente do n.º 1 daquele art. 1178.º, em cujos termos é aplicável ao mandato o disposto nos artigos 258.º e seguintes.
Assim, nas relações mandante-mandatário – e ante a insuficiência ou inexistência[18] do suporte formal respectivo – pontifica a regra constante do art. 1163.º, valendo o silêncio do mandante, nas previstas circunstâncias, como aprovação da conduta do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do mandato ou desrespeitado as instruções do mandante.
Nas relações com terceiros – seja, no caso, na relação do mandatário com a destinatária da veiculada declaração negocial – dispõe o art. 260.º/1 do Cód. Civil, em cujos termos ‘[s]e uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos’.
Assim, se a A. tivesse tido então dúvidas sobre os poderes delegados do/no advogado instrutor, agindo enquanto representante do empregador, (seja aquando da elaboração e envio da nota de culpa com anúncio da intenção de despedimento, seja depois, com a comunicação da rescisão do contrato com justa causa), a única coisa que lhe era lícito seria exigir a justificação dos poderes do representante.
E não se vê que em algum oportuno momento – máxime naqueles em que seria admissível colocar-se a dúvida sobre os poderes da actuação do representante da R./advogado instrutor, nomeadamente quando usou o referido plural majestático na comunicação da decisão sujeita – a A. o tenha interpelado para se justificar, nos sobreditos termos.
Aquela norma – como se expende no Acórdão deste Supremo Tribunal e Secção, proferido em 20.12.2000, in www.dgsi.pt sob proc. n.º 00S2370 –tendo embora sido pensada para a eficácia das declarações de uma vontade negocial dirigidas a terceiro em nome de outrem, contém um princípio geral para a justificação dos poderes do representante, perfeitamente aproveitável para situações como a dos Autos.
Esse entendimento foi posteriormente adoptado e mantido, v.g. no Acórdão tirado em 8.11.2006, também desta Secção, igualmente disponível em www.dgsi.pt, sob proc. n.º 06S2579, cuja bondade subscrevemos e, por isso, reiteramos.
Além disso, o procedimento só é inválido se verificada alguma das omissões elencadas no n.º 2 do art. 382.º do Código do Trabalho.”

Acompanhando-se aqui o entendimento sufragado no citado Acórdão, que dispensa a nosso ver outras considerações, daí resulta, também na nossa óptica, a falta de fundamento desta parte do recurso.

2.2. Da nota de culpa:
Sustenta o Recorrente que não se encontram devidamente concretizados na nota de culpa e na decisão de despedimento os factos que lhe foram imputados e que fundamentaram a decisão de despedimento (conclusão 10).
Da decisão recorrida fez-se constar, apreciando a questão, o seguinte:
“Trata-se de uma invalidade que gera ilicitude do despedimento – artigo 382.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho.
Contudo, em nosso entendimento, os factos constantes da nota de culpa estão suficientemente circunstanciados pois da nota de culpa resulta o tempo em que os factos imputados foram praticados [mês seguinte àquele a que os ficheiros se referem], o modo [adulteração ou alteração dos ficheiros por sobreposição de imagens sobre as células donde resultava o valor do prémio a receber] e de local [embora não conste precisamente nem seja propriamente relevante, está subjacente que terá sido no local de trabalho ou noutro onde o autor o execute].
É certo que se pode dizer que a descrição factual podia ser mais concretizada, dizer todos os valores, aproximar as datas por referência ao período entre o email em que é remetido o ficheiro e aquele em que este é devolvido, mas consideramos que é suficientemente circunstanciado para a finalidade pretendida.
Em suma, não existe irregularidade do procedimento.”

Mais uma vez se acompanha essa decisão, adiante-se desde já.
Vejamos porquê:
Como é consabido, um dos princípios que norteia o poder disciplinar, na sua vertente sancionatória, é o princípio da processualidade, de acordo com o qual a aplicação de uma sanção disciplinar deve ser precedida de um processo próprio, destinado a apurar/averiguar da gravidade dos factos e sua integração em infracção disciplinar, o grau de culpa do trabalhador e, por fim, a decidir qual a sanção a aplicar. O processo disciplinar para aplicação da sanção de despedimento por facto imputável ao trabalhador, regulado nos artigos 353.º e seguintes do Código do Trabalho, evidencia essa intenção, ao prever determinadas exigências formais, entre as quais, no que ao caso importa, tendo por base o objectivo de oferecer efectivas garantias de defesa ao trabalhador, ressalta a necessidade de emissão de uma nota de culpa, sujeita à forma escrita, em que se fundamente a decisão de despedimento – dispõe-se assim no n.º 1 do artigo 353.º, o seguinte: “No caso em que se verifique algum comportamento susceptível de constituir justa causa de despedimento, o empregador comunica, por escrito, ao trabalhador que o tenha praticado a intenção de proceder ao seu despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputados”.
Sobre o que deve entender-se, para efeitos da norma, por descrição circunstanciada dos factos que são imputados ao trabalhador, Bernardo da Gama Lobo Xavier[19] refere que “é o carácter descritivo e factual da nota de culpa que possibilita a defesa do trabalhador. Por outro lado, convém lembrar que só os factos constantes da nota de culpa podem fundamentar a decisão do despedimento (art. 354.º, 4), salvo se atenuarem ou afastarem a responsabilidade do trabalhador. É, pois, uma peça importantíssima no procedimento, que tem de ser elaborada com o maior cuidado.” No mesmo sentido Maria do Rosário Palma Ramalho[20] ao referir-se à “descrição completa e detalhada (i.e., circunstanciada) dos factos concretos que consubstanciam a violação do dever do trabalhador”.
Porém, como tem sido afirmado pela jurisprudência, citando-se a esse respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2008[21]:
“A exigência legal de que a nota de culpa contenha uma “descrição circunstanciada dos factos” que são imputados ao arguido radica nas garantias de defesa – inerentes a qualquer processo sancionatório (3) –, implicando, necessariamente, o direito de audiência e o direito ao exercício do contraditório.
Por isso, na peça fundamental do processo que é a nota de culpa, os comportamentos imputados ao trabalhador, susceptíveis de integrar infracção disciplinar, devem ser descritos com a narração, tão concreta quanto possível, do circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que ocorreram, de forma a permitir ao arguido o perfeito conhecimento dos factos que lhe são atribuídos, a fim de poder organizar adequadamente a sua defesa.
Daí que, se a narração dos factos é incompleta, omitindo o relato de elementos circunstanciais relevantes, de tal modo que não se possibilita ao arguido ter uma percepção adequada do que lhe é imputado, impedindo-o de, convenientemente, contrariar a acusação, resulta ofendida a garantia de defesa.
É o que se passa, designadamente, quando na nota de culpa se fazem imputações genéricas ou abstractas, mediante expressões que não representam mais do que juízos conclusivos, sem suporte em realidades concretas perceptíveis pelos sentidos, situadas no tempo e no espaço.
Para tais casos a lei comina a sanção da nulidade do processo.
Tal não sucede, porém, quando a nota de culpa, apesar de revelar insuficiências quanto ao circunstancialismo da infracção, se apresenta em termos de o visado poder compreender quais os factos nela individualizados, o que pode aferir-se, em primeira linha, pelo modo como é deduzida a defesa.
Assim, se a resposta à nota de culpa revelar que o arguido compreendeu a acusação, teve perfeita noção dos factos que lhe eram imputados, sabia do que estava acusado, e exercitou o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar, opondo argumentos idóneos a contrariar a inculpação, não pode, então falar-se de violação das garantias de defesa, já que a finalidade da referida exigência legal se apresenta cumprida.” (fim de citação)

Ora, no caso, como se refere na sentença recorrida, quanto aos factos descritos na nota de culpa, os mesmos não comportam a descrição de todos os valores, assim quanto aos meses de Julho e Agosto, em que apenas se refere que o arguido também tinha alterado nos ficheiros dos prémios o montante do seu prémio, mas refere-se também, quanto a esses meses, que o arguido quando confrontado, depois de ter assumido primeiro apenas a alteração do mês de Setembro, acabou por confessar depois que tinha adoptado a mesma postura (pontos 10 a 13 da nota de culpa). Por sua vez, sobre o mês de Setembro, consta a descrição expressa dos montantes (ponto 8). Como se descreve também, acrescente-se, o modo de operar (pontos 4 a 10).
Toda a descrição fáctica constante da nota de culpa, como se constata sem dúvidas da resposta a essa do Autor, permitiu sem dúvidas que este percebesse exactamente os factos que lhe eram imputados, tomando posição sobre os mesmos, quer negando-os, quer adiantando razões que na sua óptica aqueles colocariam em causa. E tanto percebeu precisamente o que estava em causa que, como resulta do mesmo processo disciplinar, acabou por remeter cheque à Ré com o montante de € 64,64, “destinado a restituir a importância” que lhe foi paga em excesso com os vencimentos (cópia da sua missiva e do aludido cheque que constam dos autos).
Deste modo, não se vê como possa afirmar-se que a descrição dos factos constantes da nota de culpa não seja suficiente para preencher os requisitos legais de descrição dos factos imputados, suficientemente completa e detalhada, que consubstancia a violação do dever imputado, garantindo-lhe o seu direito legal de defesa, que exerceu efectivamente, sem que se evidenciem nesse âmbito quaisquer restrições.
Porque assim é, teremos de concluir, à semelhança da decisão recorrida, que não ocorre a analisada irregularidade do procedimento, não colhendo assim razão as conclusões do Recorrente em contrário.

2.3. Da justa causa do despedimento:
Sustenta o Recorrente (conclusão 12) que não se verificam fundamentos para a decisão de despedimento com invocação de justa causa, pelo que a sentença recorrida faz erra aplicação e interpretação do disposto no artigo 351.º do Código do Trabalho.
Fez-se constar da sentença recorrida o seguinte:
“O artigo 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho, determina que «constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho». Daí que se entenda que o conceito de justa causa comporta três elementos: “um elemento subjectivo, consistente na conduta culposa do trabalhador, seja ela uma ação ou uma omissão”; “um elemento objectivo, consistente na impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho”; e “o nexo de causalidade entre esses dois elementos, uma vez que o segundo tem que resultar em termos imediatos do primeiro”. Mas a justa causa pode ser definida, de outra forma ou numa outra perspectiva, como “a sanção disciplinar máxima”, assumindo “um carácter de infracção disciplinar, de incumprimento contratual particularmente grave, de tal modo grave que determine uma perturbação relacional insuperável, isto é, insusceptível de ser sanada com recurso a medidas disciplinares não extintivas”. Concretizemos os elementos que integram o conceito de justa causa.
O primeiro elemento tem como referência a violação de um dever do trabalhador emergente do contrato de trabalho pois constitui um comportamento ilícito, grave e culposo.
Desta forma, o artigo 351.º, n.º 2, do Código do Trabalho, elenca um conjunto de comportamentos do trabalhador que, de forma exemplificativa [“nomeadamente”], podem configurar o elemento subjectivo do conceito de justa causa, mas que exigem sempre, de qualquer forma, a sua integração na cláusula geral de justa causa, mais concretamente os seguintes: «a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores; b) Violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa; c) Provocação repetida de conflitos com trabalhadores da empresa; d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto; e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa; f) Falsas declarações relativas à justificação de faltas; g) Faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa, ou cujo número atinja, em cada ano civil, cinco seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco; h) Falta culposa de observância de regras de segurança e saúde no trabalho; i) Prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa, elemento dos corpos sociais ou empregador individual não pertencente a estes, seus delegados ou representantes; j) Sequestro ou em geral crime contra a liberdade das pessoas referidas na alínea anterior; l) Incumprimento ou oposição ao cumprimento de decisão judicial ou administrativa; m) Reduções anormais de produtividade».
Na outra face do espelho destes comportamentos estão, assim, os deveres do trabalhador que emergem da relação laboral. Desde logo, o artigo 126.º, do Código do Trabalho, impõe o respeito pela boa-fé no cumprimento do contrato [n.º 1] e de colaboração na promoção da produtividade [n.º 2]. Mas, mais concretamente, o artigo 128.º, n.º 1, do Código do Trabalho, determina que «sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve: a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade; b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade; c) Realizar o trabalho com zelo e diligência; d) Participar de modo diligente em acções de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador; e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias; f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios; g) Velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador; h) Promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa; i) Cooperar para a melhoria da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim; j) Cumprir as prescrições sobre segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho». Então, é com base no padrão de conduta delimitado pelo conjunto de deveres impostos pela relação laboral ao trabalhador que se afere a existência de um comportamento, ação ou omissão, violador dos correspectivos direitos contratuais do empregador que pode, caso se verifiquem os demais elementos, configurar uma situação de justa causa, sendo que o carácter exemplificativo da enumeração constante do artigo 351.º, n.º 2, do Código do Trabalho, com um âmbito mais reduzido do que o conjunto de deveres contratuais do trabalhador, significa que outros comportamentos podem integrar o conceito de justa causa, desde que assumam as características de ilicitude, gravidade e culpa e sejam integrados na cláusula geral.
O contrato de trabalho tem natureza complexa mas de entre os vários deveres do trabalhador que o integram distingue-se o dever principal de prestar trabalho e outros deveres que podem ser secundários mas meramente acessórios do dever principal ou deveres laterais autónomos relativamente ao dever principal, entre os quais se conta o dever de lealdade pois a relação laboral, integrando uma “associação” entre empregador e trabalhador, importa igualmente uma recíproca cooperação e auxílio mútuo que o impede o trabalhador de abusar da sua posição funcional – artigo 128.º, n.º 1, alínea f), do Código do Trabalho.
O segundo elemento reconduz-se ao conceito de inexigibilidade, ou seja, traduz-se na impossibilidade prática de manutenção do contrato por ter sido perturbada, de forma irremediável, a confiança do empregador na subsistência do vínculo laboral como forma de desenvolvimento do seu escopo. O núcleo essencial do conceito passa assim pela tutela contratual da confiança na contraparte assente sobretudo no princípio da boa-fé, isto é, o que se tem que questionar é se, perante o comportamento culposo do trabalhador, violador de um direito contratual do empregador, é de exigir que este mantenha aquela relação com aquela pessoa que tem que colaborar consigo e com os demais colaboradores no desenvolvimento de uma finalidade que se presume, na essência, comum.
Este requisito está profundamente enraizado na história da cessação do contrato de trabalho, surgindo no artigo 11.º da Lei n.º 1952 [“torne prática e imediatamente impossível a subsistência das relações que o contrato supõe”], nos artigos 95.º, alínea j) e 100.º, alínea i), do Decreto n.º 47032 [“torne praticamente impossível a subsistência das relações que o contrato supõe”], do artigo 101.º, n.º 2, do Decreto n.º 49408 [“torne praticamente impossível a subsistência das relações que o contrato supõe, designadamente a falta de cumprimento dos deveres…”], do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 372-A/75 [“pela sua gravidade e consequências, constitua infracção disciplinar que não comporte a aplicação de outra sanção”] e da mesma norma com a formulação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 841-C/76 [“pela gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”]. Este conjunto normativo historicamente consolidado transportou para o texto constitucional o conceito operativo prático de aferição das consequências da situação que provoca a apreciação da ruptura contratual, podendo dizer-se que o conceito constitucional de justa causa abrange “toda e qualquer situação (de natureza disciplinar ou outra) capaz de, em concreto, suscitar a impossibilidade prática da subsistência das relações que o contrato de trabalho supõe”.
Mas mais importante que o conceito constitucional de justa causa e do papel que a inexigibilidade apresenta na sua formulação, importa olhar para o conceito operativo de inexigibilidade. Na sua configuração surgem vários planos de relevância: por um lado, a ponderação dos dois interesses em presença, ou seja, do interesse do empregador em romper a relação laboral e do interesse do trabalhador em manter o posto de trabalho e; por outro lado, partindo daquela ponderação deve perguntar-se se existem condições práticas para que o contrato se mantenha no futuro, ou seja, se o comportamento do trabalhador colocou o estado de confiança que uma pessoa normal ou média, colocada na posição daquele real empregador, permite a existência de viabilidade de continuação da prestação de trabalho e do recebimento dessa prestação em condições de mínima ou de adequada normalidade. No entanto, esta ponderação assenta sempre em dois pressupostos: primeiro, não pode esquecer-se que todo o regime constitucional e legal das relações laborais assenta na ideia de estabilidade do emprego e essa ideia de manutenção da relação contratual é fundamental, em geral, nos contratos duradouros [pelo menos uma estabilidade mínima relevante] e, em especial e com intensidade, no contrato de trabalho, pautado por uma forte limitação da liberdade de desvinculação do empregador e pela redução das situações em que se permite a contratação por tempo determinado; e segundo, a construção legal da justa causa de despedimento assenta numa cláusula geral e num conjunto exemplificativo de circunstâncias susceptíveis de enquadrar aquele conceito mas estas não operam por si só e imediatamente, carecendo de uma apreciação inclusiva na razão de ser subjacente à cláusula geral, sustentada por todas as circunstâncias susceptíveis de, no caso concreto, permitir ou não aquele enquadramento, ou seja, é necessário enquadrar a organização, os aspectos relacionados com a gestão, a forma como as pessoas se relacionam na organização, seja interna, seja externamente, ou outras circunstâncias relevantes, consoante o dever que o trabalhador tenha infringido. Isto significa que se tem que partir de um pressuposto que a segurança no emprego é um factor determinantemente presente no regime do contrato de trabalho mas, perante as circunstâncias concretas, será necessário apurar, num juízo de prognose se a manutenção do vínculo, atentas toda a factualidade relevante, constitui uma “insuportável e injusta imposição ao empregador”, ou seja, “embora num plano de objectividade, o elemento `impossibilidade prática´ reporta-se a um padrão essencialmente psicológico: o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, implicando mais ou menos frequentes e intensos contactos entre os sujeitos”. Então, na base do conceito está um comportamento culposo do trabalhador violador de um dever laboral mas, partindo deste e do pressuposto de que a regra é a manutenção contratual, passamos para a valoração da “gravidade” e das “consequências” daquele comportamento tendo em conta o quadro de gestão da empresa, do grau de lesão dos interesses do empregador, do carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e outros colaboradores do empregador e de outras circunstâncias que no caso se afigurem relevantes, para avaliarmos, num juízo de prognose, a forma como este comportamento se vai reflectir na relação entre empregador e trabalhador. A justa causa assente na impossibilidade prática de manutenção do contrato parte, assim, de um quadro verbal maleável que tem que ser preenchido concretamente, com apelo aos critérios orientadores coadjuvantes [grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros] e aos exemplos não exaustivos traçados na lei, sendo que o critério operativo se resume numa “situação em que a emergência do despedimento ganha interesse prevalecente sobre as garantias do despedido”.
Em suma, este requisito comporta três aspectos nucleares: primeiro, recondução à ideia de inexigibilidade, para a outra parte, ou seja, na perspectiva do empregador e não apreciada numa visão de impossibilidade objectiva, o que significa que, objectivamente, pode e normalmente é possível a manutenção da relação contratual mas, para o empregador, ou melhor, para uma pessoa média ou normal colocada na posição daquele empregador, tornou-se impossível por ter implicado uma “perda irremediável de confiança do empregador na viabilidade futura do vínculo”; segundo, trata-se de “uma impossibilidade prática, no sentido em que deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto”, podendo determinado comportamento gerar esta impossibilidade numa empresa mas não noutra, dependendo da própria prática habitual em cada uma delas; e terceiro, o carácter imediato da impossibilidade pois se, apesar da verificação do comportamento ilícito, grave e culposo, manteve-se a execução do contrato, então é porque dele não resultou aquela inviabilidade, o que tem que se conjugar com o próprio prazo de exercício da ação disciplinar que é de 60 dias desde o conhecimento pelo empregador – artigo 329.º, n.º 2, do Código do Trabalho.
O terceiro elemento está verdadeiramente subjacente ao segundo pois consiste em estabelecer uma relação imediata entre o comportamento do trabalhador e aquela impossibilidade de manutenção do contrato, servindo apenas para afastar todas as situações em que a impossibilidade da manutenção do contrato não resulta propriamente do comportamento violador daquele quadro referencial mas antes de outra circunstância qualquer que lhe seja contemporânea.
A concatenação entre o elemento objectivo e o elemento relacional exige a definição do quadro que deve presidir à apreciação dos limites entre o comportamento culposo e a impossibilidade de manutenção do contrato. Para o efeito, o artigo 351.º, n.º 3, do Código do Trabalho, impõe a consideração do quadro de gestão da empresa, do grau de lesão dos interesses do empregador, do carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e outros colaboradores do empregador e de outras circunstâncias que no caso se afigurem relevantes, designadamente a reiteração da conduta, ou seja, “há que ponderar factores de natureza vária, levando em conta elementos normativos (usos e costumes, valores morais, a igualdade e a coerência disciplinar), elementos fácticos ambientais (a posição do trabalhador na organização, as circunstâncias temporais e espaciais em que o comportamento teve lugar) e elementos relativos à consequência da decisão (ponderação dos reflexos na disciplina da organização, no nome ou na imagem da empresa)”.
Aqui chegados, importa olhar para o caso concreto e concluirmos sobre a verificação dos requisitos indicados.
Não há dúvida, em nosso entendimento, que o autor praticou actos, dolosamente, que configuram a violação do dever de lealdade, para além de colocarem em causa o dever de obediência, pois estava-lhe vedado alterar, de qualquer forma, os dados relativos ao seu próprio prémio.
Assim, temos um comportamento ilícito, culposo e grave pois implica a adulteração de documentos de gestão importantes ao desempenho da atividade da empresa.
A questão que se coloca é a de saber se os demais elementos do conceito de justa causa estão presentes na situação em apreço, mais concretamente o elemento objectivo e o nexo de causalidade entre o elemento subjectivo e o elemento objectivo.
Então, a empresa em causa é uma grande empresa, com um quadro organizacional complexo e que, por isso, tem que dispor de uma cadeia de delegações de funções, da administração para os dirigentes de topo e destes para os dirigentes regionais e locais estruturada com base numa estreita relação de confiança hierárquica pois só assim é que a organização pode funcionar, ou seja, se esta relação de confiança em cadeia entre as sucessivas estruturas hierárquicas se esbate ou diminui, está criado um panorama que impede a fluidez da comunicação necessária para uma boa gestão, por um lado, e para a liderança pelo exemplo, por outro lado.
O comportamento do autor, em nosso entendimento, independentemente do valor ser relativamente reduzido no âmbito de uma grande organização, mina por completo a relação de confiança que tem que olear a máquina montada numa estrutura hierarquizada desta natureza pois, perante este comportamento, como pode o imediato superior hierárquico do autor confiar que nos relatórios posteriores os dados correspondem à realidade? Terá que efectuar todos os cálculos para verificar se o autor alterou algum dos elementos da equação? E como fica a imagem e a disciplina da organização perante os demais colaboradores da empresa que, face a esta realidade, ficam a saber que os factos em causa, que implicam uma deslocação patrimonial indevida da esfera da empresa para a esfera do autor, permitem que a ré continue a manter o trabalhador ao serviço? Não estará quebrada a disciplina necessária para a gestão de uma organização complexa e com a dimensão da ré? Em nosso entendimento, consideramos que sim pois a posição de chefia que o autor ocupa na organização impõe-lhe um elevado padrão de conduta ética que é inerente aos vínculos de confiança necessários ao estabelecimento de uma relação inerente a um contrato de relação duradouro.
A jurisprudência tem sido bastante rigorosa quando existem comportamentos que colocam em causa o valor da honestidade enquanto factor perturbador da relação de confiança indispensável para a manutenção da relação laboral, sendo que em situações algo semelhantes às dos autos, tem-se pronunciado no sentido da verificação do requisito da inexigibilidade, independentemente do valor em causa [por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Outubro de 2001 – Processo n.º 0047334 – pronunciou-se no sentido da existência de justa causa de despedimento numa situação em que o trabalhador tinha falsificado documentos que titulavam a despesa de dois jantares].
Por isso, consideramos que estão verificados todos os pressupostos da cessação do contrato de trabalho por justa causa subjectiva.”

Ora, por referência ao citado enquadramento da questão realizada pelo Tribunal a quo, temos para nós que a eloquência e adequação da argumentação nessa inserida dispensa outras considerações.
Não obstante, permitimo-nos acrescentar o seguinte:
Em qualquer relação laboral deve estar presente o dever de lealdade do trabalhador bem como a confiança do empregador no trabalhador.
Ora, tendo o dever geral de lealdade uma faceta subjectiva, que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam), torna-se «necessário – quanto a este aspecto do dever de lealdade – que a conduta do trabalhador não seja, em si mesma, susceptível de destruir ou abalar tal confiança, isto é, capaz de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele»[22] – «há violação do dever de lealdade, quando o comportamento do trabalhador, por acção ou omissão, afecta a relação de confiança estabelecida com o empregador, causando, ainda, que potencialmente, uma violação dos interesses da empresa»[23].
Com o referido enquadramento, um funcionário, ocupando aliás uma posição de chefia na organização da loja – o que lhe aumentava mesmo as exigências éticas que são inerentes a esse cargo –, que adultera o ficheiro relativo ao seu próprio prémio, fazendo constar uma imagem sobreposta com o valor superior ao que tinha direito (assim referente ao mês de Setembro, colocando o valor de € 72,04 sobre a célula do valor final de € 45,02, mas com actuação idêntica nos dois meses anteriores), sem dúvidas que viola o dever de lealdade e de honestidade que sobre si impendia – dever este que não está sujeito a qualquer graduação nem depende de eventuais prejuízos concretos causados ao empregador, sendo de considerar essa actuação com gravidade necessária e adequada à afectação, de uma forma irremediável, da confiança da sua entidade patronal, no caso a Ré.
De facto, não é minimamente aceitável que se exija à empregadora que mantenha ao seu serviço um trabalhador que adotou o comportamento descrito, tanto mais que exerce funções que assentam numa confiança que foi quebrada.
Este tem sido aliás o caminho afirmado pela Jurisprudência, ao dar menor relevância inclusivamente ao valor do prejuízo.
Assim, no Acórdão do STJ de 02/12/2013, disponível em www.dgsi.pt:
«III – É de afirmar a justa causa para o despedimento – atenta a violação do dever de lealdade por parte do trabalhador, dever que tem subjacente o valor absoluto da honestidade – quando está demonstrado que o trabalhador furtou duas garrafas de vinho do restaurante do seu empregador, onde prestava serviço, levando-as para casa, e aí as consumindo, não relevando, para o efeito, o seu valor pecuniário.»
Temos pois que o comportamento do Autor/trabalhador supra descrito é doloso e grave, sendo irrelevante o facto de o valor do prejuízo para a sua empregadora não ter sido propriamente elevado, inviabilizando esse comportamento, definitivamente, a continuação da prestação do seu trabalho para a empregadora, na medida em que não é exigível a esta que mantenha a relação laboral quando a conduta do trabalhador quebrou a confiança que nesta pudesse ter – como refere Monteiro Fernandes[24], «a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador».
Deste modo, tratando-se de um comportamento doloso e grave do trabalhador e que tornou impossível a subsistência da relação laboral (artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, a) e d), do C.T.), sem esquecermos que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator (n.º 1, do artigo 330.º, do C.T.), entendemos que, no caso, a sanção de despedimento aplicada ao trabalhador se mostra proporcional à gravidade do seu comportamento.
Pelo exposto, existindo justa causa para o despedimento, não ocorre razão para não concluir, como na decisão recorrida, que o seu despedimento é lícito e regular, sufragando-se pois o julgado também neste segmento decisório.
Improcede, deste modo, nesta parte o recurso.

3. Da litigância de má-fé.
Sustenta o Recorrente, por fim (conclusão 13), que não se verificam os pressupostos para a sua condenação como litigante de má-fé, referindo que, perante a factualidade em discussão, revelou sempre uma postura coerente e peremptória, não tendo omitido qualquer facto relevante para a descoberta da verdade.
A condenação, face à sentença recorrida, decorreu do seguinte (transcrição):
“Nos termos do artigo 542.º, n.º 1 e n.º 2, do Código do Processo Civil, litiga de má-fé, devendo ser condenado em multa e indemnização à contraparte se esta a pedir, quem deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [alínea a] ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a discussão da causa [alínea b].
Em face da posição que assumimos quanto à questão principal, fica desde já afastada a condenação da ré como litigante de má-fé, colocando-se apenas a questão da condenação do autor.
Em causa estão apenas duas situações: a primeira é a própria prática dos factos que o autor nega, negando inclusivamente que tenha admitido a sua prática aos seus superiores hierárquicos e a segunda é a questão da formação profissional.
Perante os factos provados, não podemos deixar de condenar o autor como litigante de má-fé pois não só consideramos provado que praticou os factos como também que teve quase 200 horas de formação profissional quando alegou que não teve nenhuma.
Assim, deve ser condenado em multa correspondente a duas unidades de conta e em indemnização à contraparte que só pode ser fixada após consulta às partes nos termos do artigo 543.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, perante a falta de elementos para a sua fixação.”
Ora, a factualidade provada e o modo como o Autor actuou no processo são de facto reveladores de que, ainda que possa ser aceitável que pudesse deduzir a sua pretensão/posição no sentido de não ser lícito o seu despedimento, negou expressamente factos que não podia deixar de saber que correspondiam à verdade – assim, em particular, no processo, quanto à formação.
Deste modo, não se vê razão para divergir, face ao aqui referido, do decidido.
*
Por decorrência de todo o exposto, decaindo o Autor nas questões que levantou em sede de recurso, não ocorre razão para revogar a decisão recorrida, que por essa razão se confirma.
Decaindo, o Recorrente suporta as custas – artigo 527, do CPC.
***
V - DECISÃO
Acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
1. Em rejeitar parcialmente o recurso na vertente da reapreciação da matéria de facto;
2. Em julgar, no mais, improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo de benefício de apoio judiciário de que possa usufruir.
Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 663.º, n.º 7 do NCPC.

Porto, 27 de Março de 2017
Nelson Fernandes
Fernanda Soares
Domingos Morais
___________
[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222
[2] Op. cit., p. 235/236
[3] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[4] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[5] www.dgsi.pt
[6] processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt
[7] no mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 27 de Outubro de 2016, processo 110/08.6TTGDM.P2.S1, mais uma vez em www.dgsi.pt
[8] Processo 599/15.7T8CLD.C1.S1, in www.dgsi.pt
[9] Incluindo-se neste acórdão a respectiva numeração (porque necessária para uma melhor percepção e análise), que não consta da decisão recorrida.
[10] Neste caso disposta neste acórdão por alíneas.
[11] Disponível em www.dgsi.pt
[12] Incluindo as notas de rodapé, mas com diversa numeração decorrente da inclusão do texto neste acórdão
[13] - Atenta a data dos factos é este o diploma aplicável, ut art. 7.º/1 da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, sem prejuízo do disposto nos seus arts. 12.º/5 e 14.º/1 relativamente às identificadas disposições do Código do Trabalho/2003, que se mantiveram em vigor até ao início de vigência da revisão Código de Processo do Trabalho, ou seja, até 1.1.2010.
[14] - ‘Contrato de Trabalho’, 2.ª Edição, Janeiro de 2010, pg. 219.
[15] – Apud M. Rosário Palma Ramalho, ‘Direito do Trabalho’, Parte II, 3.ª Edição, 2010,
[16] - Vide Nuno Abranches Pinto, ‘Instituto Disciplinar Laboral’, Coimbra Editora, 2009, pg. 26, citando em nota, no mesmo sentido, Pedro de Sousa Macedo, M. Rosário Palma Ramalho, Abílio Neto e outros.
[17] - Cfr. A. Varela/Pires de Lima, ‘Código Civil Anotado’, Vol. II, 4.ª Edição, pg. 787.
[18] - O mandato não representativo é consensual, vigorando por isso o princípio da liberdade de forma, como é jurisprudencialmente pacífico – cfr., v.g., Acórdão deste Supremo Tribunal de 22.6.2004, in CJ/S.T.J., Ano XII, Tomo II, pg. 106-108.
[19] Manual de Direito do Trabalho, 2011, pág. 750
[20] Direito do trabalho, Parte II, Almedina, Coimbra, pág. 827/8
[21] Processo 07S3523, disponível em www.dgsi.pt
[22] cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13.ª edição, Almedina, pág. 236
[23] cfr. Código do Trabalho Anotado, Paula Quintas e Hélder Quintas, 2.ª edição, Almedina, pág. 348
[24] Direito do Trabalho, 13ª ed., Almedina, pág. 561
_____________
Sumário – artigo 663º, nº 7 do NCPC:
I - Versando o recurso sobre matéria de facto, o recorrente tem o ónus de indicar, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte afectada, não só o início e termo dos registos dos depoimentos e sim, ainda, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
II - Podendo o poder disciplinar ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador nos termos estabelecidos por aquele, caso aquele delegue neste tal poder através de documento em que se atribuam poderes de representação, não vicia o procedimento, salvo se tal resultar de disposição especifica – assim de regulamento interno da empresa por força de IRC –, a não junção desse documento ao processo disciplinar se o trabalhador não suscitar a questão, exigindo a prova dos poderes (art.º 260.º, n.ºs 1 e n.º 2, do CC);
III - A exigência legal de que a nota de culpa contenha uma “descrição circunstanciada dos factos” (n.º 1 do artigo 353.º do CT), radicando nas garantias de defesa do trabalhador – que implica, necessariamente, o direito de audiência e o direito ao exercício do contraditório –, pressupõe que os comportamentos imputados ao trabalhador, susceptíveis de integrar infracção disciplinar, sejam descritos com a narração, tão concreta quanto possível, do circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que ocorreram, de forma a permitir àquele o perfeito conhecimento dos factos que lhe são atribuídos, a fim de poder organizar adequadamente a sua defesa.
IV - Deve considerar-se cumprida tal exigência quando a nota de culpa, apesar de revelar insuficiências quanto ao circunstancialismo da infracção, se apresenta em termos de o visado poder compreender quais os factos nela individualizados, o que pode aferir-se, em primeira linha, pelo modo como é deduzida a defesa, designadamente se na resposta à nota de culpa o trabalhador revelar que compreendeu a acusação, com perfeita noção dos factos que lhe eram imputados, exercitando o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar e opondo argumentos idóneos a contrariando a inculpação;
V - É de afirmar a justa causa para o despedimento – atenta a violação do dever de lealdade, que tem subjacente o valor absoluto da honestidade – quando está demonstrado que o trabalhador, dolosamente, alterou em documento interno os dados relativos ao seu próprio prémio, aumentando o seu valor e recebendo assim mais do que lhe seria devido.
VI - O comportamento do trabalhador é doloso e grave, independentemente do valor do prejuízo para o seu empregador não ser elevado, por não ser exigível a este que mantenha a relação laboral quando a conduta do trabalhador quebrou a confiança que nele pudesse ter.

Nelson Fernandes