Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
744/22.6T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS PSÍQUICOS
CRIME DE PERSEGUIÇÃO
Nº do Documento: RP20240221744/22.6T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Integra o crime de violência doméstica a conduta do arguido que não se limita a afetar a liberdade pessoal da vítima, mas ofende também a sua saúde psíquica, emocional e moral preenchendo o conceito de mais tratos psíquicos incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 744/22.6T9AVR.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – AA veio interpor recurso do douto acórdão do Juiz 1 do Juízo Central Criminal de Aveiro do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que o condenou, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, com regime de prova e obrigação de afastamento da residência da assistente BB e proibição de contactos, por qualquer meio, com esta, assim como no pagamento a esta, a título de indemnização de danos não patrimoniais, da quantia de dois mil e quinhentos euros, acrescida de juros de mora..

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1 – O ora Recorrente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de prisão de três anos (3) anos e seis (6) meses, suspensa por 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, e na condenação de pagar à assistente a quantia de €2.500 (dois mil e quinhentos euros).
2 - No que tange aos fundamentos do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 410º, nº1, nº2 al. a), b), c) do C.P.P., conjugado com o art.412º nº3 do mesmo diploma legal, versa o recorrente impugnação sobre a matéria de facto e de direito.
3 - O ora recorrente pugna pela correta apreciação da prova produzida e julgamento dos factos, considerando que os provados sob os números 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 20 devem ser considerados não provados, bem como foram dados como não provados os factos 1, 2, 3, e 4 da contestação, que deviam ter sido dados como provados, o que constitui um erro notório na apreciação da prova;
4 - Aliás, o erro notório na apreciação da prova é um vício que se verifica “ quando da factualidade provada se extraiu conclusão ilógica, irracional arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum” BMJ nº 476, pág. 253, ou seja sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal, trata-se de um erro evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, é facilmente detectado pelo homem médio – Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 22/11/89 – BMJJ nº 391, pág. 443 e de 26/09/90 – BMJ nº 399, pág. 432.
5 - Nestes termos, resulta que o Acórdão recorrido violou, entre outros, os artigos 32º, 202 º nº 2, da Constituição da República Portuguesa, 410º nº 2, alínea a) e c), 127º do C. Processo Penal, dado o modo errado e discricionário como apreciou a prova
6 - O princípio da livre apreciação da prova, invocado pelo julgador no douto Acórdão recorrido, a fls. 13, previsto no artigo 127º do Código Processo Penal, está naturalmente sujeito a critérios objetivos, não podendo ser arbitrária, discricionária ou caprichosa, devendo a mesma pugnar pela busca da verdade material.
7 - Com efeito, no douto Acórdão recorrido, a essencialidade da matéria dada como provada, no que concerne aos factos imputados ao ora recorrente pela assistente, resultaram essencialmente das declarações desta, porquanto as demais testemunhas não presenciaram quaisquer factos, e mesmo, a testemunha CC e DD, que referem ter visto o arguido, nada lograram provar quanto à atuação ilícita do arguido, bem diferente do eventual receio (infundado) que a assistente persiste em manifestar relativamente àquele.
8 - Com efeito, o Tribunal recorrido valorizou as declarações da assistente, principal interessada na presente demanda, em detrimento das declarações do arguido, não obstante estas tenham sido credíveis, coerentes e sem contradições, esclarecendo este que não teve nunca qualquer intenção de perturbar, perseguir ou causar medo, não obstante, a assistente possa continuar a manifestar tais sentimentos face arguido, não porque este, no ano de 2021 e 2022, tenha praticado quaisquer factos mas simplesmente porque a assistente, em virtude de anterior processo sob n.º 223/17.3GDAVR, continua a manifestar infundados sentimentos e receios, quanto ao arguido.
9 – O douto Acórdão Recorrido não atentou ao teor da gravação das imagens junta aos autos (pen constante da contracapa com as imagens local de trabalho da assistente), resultando da visualização do mesmo, do minuto 12:41:50 ao minuto 12:43:15, que a Assistente ao ver o carro do arguido, não foge, não mostra qualquer agitação ou inquietação, age natural e tranquilamente, continuando a executar a sua tarefa, não sendo possível percecionar uma pessoa em pânico, perturbada ou receosa.
10 – Pelo que, ante tal falta de prova, os factos 6, 7 e 8 dados como provados, deveriam constar como factos não provados, e bem assim, por referência ao Acórdão recorrido, o ponto 1 da contestação deveria constar dos factos provados.
11 - Quanto aos factos 10, 11, 12 e 13, tal como no episódio anterior, junto ao portão da empresa onde trabalha, a empresa A..., a assistente, não obstante o pudesse ter feito, não acionou o sistema de vigilância eletrónica que possuía, como resulta aliás dos autos a fls. 67 e 69, devendo igualmente ser dados como não provados, bem como, por referência ao Acórdão recorrido, o ponto 2 da contestação, deveria constar dos factos provados.
12 - Quanto aos factos 14, 15 e 16, uma alegada tentativa de atropelamento, constitui a verdadeira efabulação de uma qualquer telenovela melodramática que a ofendida se inspirou, com o devido respeito pelas vítimas de violência doméstica.
Já que, nem a mais fértil imaginação se lembraria de, numa estrada bastante movimentada, pudesse guinar o volante, entrar na berma, sem perder o controlo do veículo com carros a circular em ambos os sentidos, o que contraria a mais elementares regras de experiência. Pelo que, tais factos deveriam ter sido dados como não provados pelo Tribunal recorrido, e igualmente por referência ao Acórdão recorrido, o ponto 3 da contestação ser dado como facto provado.
13 - Quanto aos factos 17, 18, e 20, também devem ser dados como não provados, já que, os encontros foram ocasionais, não tendo o arguido perseguido a ofendida, nem existindo qualquer prova que confirme a versão da assistente, a não ser a própria, com interesse direto na causa, nem podendo esta ser valorizada por si só, desacompanhada de mais prova, nem mesmo o depoimento a sua colega de trabalho DD, que se limitou a cruzar-se com veículo do arguido. Pelo que, consequentemente deveria ser dado como provado o ponto 4 da contestação.
14 - Com efeito, face à prova produzida nesta audiência de julgamento, não poderá este Douto Tribunal dar como provado que o arguido perseguiu, incomodou, constrangeu, molestou psicologicamente a dignidade da assistente, ante os factos imputados ao arguido que não revelam ilicitude, não estando por isso preenchidos os elementos do tipo legal de quaisquer crimes, designadamente o crime de violência doméstica.
15 - O douto Acórdão recorrido deveria ter dado o benefício da dúvida às declarações do arguido, em cumprimento do disposto no princípio in dubio pro reo, o que constituiu uma clara e evidente violação da presunção de inocência prevista no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
16 - Em face do teor dos factos provados e da prova dos autos, entende o ora Recorrente que não estarão preenchidos os pressupostos do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal, porquanto o quadro global da agressão cometida não evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima, ou um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, que permita classificar a situação como de maus-tratos. Com efeito, os factos dados como provados revelam apenas o receio da assistente perante a presença do arguido, contudo a matéria probatória não é suficiente para configurar ou revelar uma conduta por parte daquele, como molestadora, provocatória, humilhante, em relação à pessoa da vítima, de tal modo que, materialmente, se possa considerar a sua actuação como integradora da prática de um crime de violência doméstica, devendo ser absolvido da prática deste tipo legal de crime.
17 - As condutas do arguido não revelam qualquer sentimento de superioridade e
de domínio sobre a vítima, com intuito de anular a sua personalidade e dignidade.
Com efeito, a situação retratada na matéria de facto assente como provada até podia estar próxima da fronteira do tipo violência doméstica, mas mesmo assim é insuficiente para configurar o elemento "maus tratos" (físicos e/ou psíquicos), antes podendo, eventualmente, configurar lesão do bem jurídico “perseguição”, tutelado à luz do art.º 154.º A, n.º 1, do Código Penal, o que se coloca por mera hipótese académica, a condenação do arguido apenas poderia ser pelo crime de perseguição, previsto e punido por aquele preceito do Código Penal.
18 - Destarte, o ora Recorrente discorda da condenação proferida no douto Acórdão recorrido no crime de violência doméstica, atento o não preenchimento dos requisitos do tipo legal previsto no artigo 152º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
19 – Quanto à determinação da medida da pena de prisão aplicada, caso se entendesse pela eventual condenação do arguido, pelo crime de violência doméstica, o que apenas por mera hipótese académica se coloca, sempre refira, o Recorrente entende que o douto Acórdão recorrido aplicou pena de prisão – três anos e seis meses - superior à medida da culpa, não valorizando as atenuantes fornecidas pelo caso concreto e tendo em conta a matéria de facto dada como provada, devendo, ponderadas todas as circunstâncias atenuantes, a medida da pena adequada a aplicar ao ora Recorrente, deveria ser mais reduzida.
20 – Á luz do disposto no art.º 71.º e 72º do Código Penal, atendendo à gravidade do ilícito global espelhado no conjunto dos factos e à clara conexão entre eles
existente, todos direcionados à mesma vítima e a um curto período de tempo, bem como à situação de saúde, que mais que tendência criminosa aponta para uma pluriocasionalidade, associada a problemas de natureza psicológica que o obrigam a tratamento médico para depressão, como decorre dos factos provados, afigura-se mais adequado e proporcional à culpa e às exigências de prevenção especial de socialização, fixar numa pena inferior.
21 - Pelo que, o Recorrente entende, por fim, que a pena que lhe foi aplicada é manifestamente excessiva e desproporcional, termos em que, o Recorrente entende que o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 40º, 71° e 72º do Código Penal.
22 - Sem prescindir ou conceder em tudo o que acima se alegou, caso se entenda pela condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, entende ainda o Recorrente que o douto Acórdão recorrido violou o artigo 50.º e do artigo 70.º, ambos do Código Penal, por condenar o arguido num período de suspensão da pena de prisão em medida excessiva – quatro anos e seis meses – superior à medida da pena de prisão – três anos e seis meses.
23 – Com efeito, a justificação dada pelo Tribunal recorrido que o arguido praticou o primeiro dos factos aqui em apreço ainda no decurso do período da suspensão da pena de prisão ali aplicada, contudo ignorou este Tribunal que o arguido não estava proibido de contactar ou aproximar-se da Assistente para tratar de assuntos relacionados com os filhos e património comuns, como resulta aliás do ponto 5 dos factos provados no douto Acórdão recorrido.
24 – Pelo que, dispõe o artigo 50º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”, pelo que, ao suspender, na sua execução, a pena de prisão aplicada ao recorrente, por um período superior ao da medida da pena, violou o douto Acórdão recorrido o disposto no artigo 50.º do Código Penal, uma vez que, verificados os pressupostos objetivos e subjetivos, se impunha ao julgador ad quo a sua aplicabilidade.
25 – Quanto à indemnização fixada, caso se entenda pela eventual condenação do arguido, o que apenas por mera hipótese académica se coloca, sempre refira que, a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, em que foi condenado o ora Recorrente pelo Tribunal recorrido é excessiva, por violação do disposto nos artigos 494º e 496º, nº1, do Código Civil, dado que o montante da indemnização deve ser fixado equitativamente tendo em atenção, o grau de culpa do lesante, a natureza, extensão e localização temporal das lesões sofridas, o grau de ilicitude do comportamento lesivo e ainda a situação económica do lesante e lesado.
26 - Ora, como resulta da matéria provada, os contactos do arguido à assistente não estavam de todo proibidos, sendo o grau de dolo diminuto, atento o teor dos factos provados. Com efeito, não se verificou um elevado e crescente grau de violência do arguido, aqui Recorrente, nas ocorrências dadas como provadas, é residual o perigo de tais condutas se voltarem a repetir, porquanto desde fevereiro 2022 não voltou a existir qualquer contacto entre arguido e assistente.
27 - Ademais, na fixação da indemnização o Tribunal recorrido não teve em consideração, como deveria, a situação económica do arguido, dado que os seus parcos rendimentos são manifestamente insuficientes para o arguido viver condignamente, quanto mais para conseguir pagar uma compensação à assistente de valor tão elevado, como o que foi fixado pelo Tribunal recorrido.
28 - Em consequência, a decisão recorrida deverá ser alterada, impondo-se a redução do valor da indemnização atribuída e que o arguido, ora Recorrente foi condenando a pagar à assistente, a título de danos não patrimoniais, afigurando-se-nos justa a fixação de uma indemnização a esse título que não ultrapasse os €1.000,00 (mil euros).»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

A assistente apresentou resposta a tal motivação. Fê-lo, porém, para além do prazo previsto no artigo 413.º, n.º1, do Código de Processo Penal (considerando que o presente processo reveste natureza urgente), pelo que tal resposta não poderá ser tida em conta.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II –
As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal (ou a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada nesse acórdão, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do mesmo Código) devendo o arguido e recorrente, também à luz do princípio in dubio pro reo, ser absolvido da prática do crime de violência doméstica por que foi condenado;
- saber se a factualidade provada não configura a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal, por que o arguido e recorrente foi condenado;
- saber se a pena em que o arguido e recorrente foi condenado é excessiva e desproporcional, face aos critérios legais;
- saber se o montante da indemnização a cujo pagamento foi o arguido e recorrente condenado é excessivo, face aos critérios legais.

III –
Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 - Fundamentação de facto:
a) Factos provados:
1. O arguido casou com BB em 28 de Abril de 1991.
2. Deste casamento nasceram dois filhos, EE, nascido a ../../1993, e FF, nascida a ../../1999.
3. O arguido e BB fixaram residência na Amadeu ..., em ..., Aveiro e aí viveram em comunhão de leito, mesa e habitação até, pelo menos 8 de Dezembro de 2017.
4. O casamento entre o arguido e BB foi dissolvido por divórcio em 25-03-2019.
5. Por acórdão proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 223/17.3GDAVR, transitado em julgado em 11-07-2018, foi o arguido condenado por:
“- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), e n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão e nas penas acessórias de proibição de contactos com a ofendida BB, incluindo na sua residência e/ou no local de trabalho, bem como por telefone ou outro meio de comunicação à distância (ressalvados os contactos e aproximação relacionados com os filhos e o património comuns ou outros que ela permita), bem como a proibição de uso e porte de armas de qualquer espécie, pelo período infra indicado, e
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.°, n.° 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM - aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, com as alterações das Leis n.ºs 59/2007, de 04-09, 17/2009, de 06-05, 12/2011, de 27-04, e 50/2013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão.
c) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão e nas penas acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, incluindo na sua residência e/ou no local de trabalho, bem como por telefone ou outro meio de comunicação à distância (ressalvados os contactos e aproximação relacionados com os filhos e património comuns ou outros que ela permita), bem como a proibição de uso e porte de armas de qualquer espécie, pelo período de 3 (três) anos e 3 (três) meses, sendo a pena de prisão suspensa na sua execução por igual período…”
6. Sucede, porém, que o arguido, desde agosto de 2021, passou a deslocar-se com frequência aos sítios frequentados pela ofendida BB, na ânsia de a encontrar e para que esta o visse, em ordem a perturbá-la no desempenho profissional, bem como à sua liberdade pessoal e de movimentação.
7. No dia 02-08-2021, cerca das 12h30m, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da ofendida BB – “A... S.A” – sito na Av.ª ..., Quinta ..., e, aí chegado, avistando que esta se encontrava junto ao portão da empresa a varrer a entrada da mesma, parou o veículo automóvel que conduzia (Opel ...) junto a essa entrada e interpelou-a para que fosse ao seu encontro e falasse consigo, o que foi por aquela recusado.
8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, apareceu CC que referiu ao arguido que queria sair, com o veículo que conduzia, do portão da empresa para o exterior, o que levou o arguido a movimentar a sua viatura uns metros para a frente e, assim, permitiu à ofendida que encetasse fuga para o interior da empresa.
9. Apercebendo-se que se tratava do arguido, CC não saiu do local até que este abandonasse as imediações do mesmo, o que veio a acontecer momentos após.
10. No dia 17-01-2022, cerca das 9h30m, a ofendida dirigiu-se ao estabelecimento comercial B... de ... e aí entrou para fazer compras.
11. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, de modo não concretamente apurado, seguiu no encalço da ofendida e entrou no referido estabelecimento comercial.
12. Dentro do mesmo, o arguido seguiu no encalço da ofendida ao longo dos diversos corredores por onde esta se movimentou.
13. O arguido somente abandonou o local quando a ofendida se dirigiu às caixas para pagamento das compras, saindo do mesmo sem qualquer compra.
14. No dia 24-01-2022, cerca das 17h45m, o arguido dirigiu-se, uma vez mais, ao local onde a ofendida desempenha funções, “A... S.A”.
15. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a ofendida BB circulava apeada na berma da estrada na Avenida ..., junto à faixa de rodagem do sentido ...-..., seguindo aquela no sentido ...-....
16. O arguido avistou a ofendida e, imediatamente, imprimiu velocidade à viatura em que circulava (Opel ...), guinou o volante da mesma e animou-a na direção da ofendida, saindo da faixa de rodagem em que circulava e entrando na berma em que aquela circulava apeada, tendo aquela de imediato saltado por cima da vala ali existente para uma zona de relva exterior à berma.
17. No dia 07-02-2022, cerca das 18h05m, o arguido encontrava-se junto ao restaurante C..., sito nesta cidade, no interior do seu veículo Opel ... à
espera que a ofendida ali passasse vinda do seu trabalho.
18. Nessas circunstâncias de tempo e lugar o arguido somente não seguiu no encalço desta, porquanto esta o viu e se refugiou no parque de estacionamento do Centro Comercial ... (D... ...).
19. Em face do descrito em 7. a 18., a ofendida começou a sentir receio de andar
sozinha na rua, o que a levou a pedir boleia a DD.
20. No dia 14-02-2022, a ofendida circulava à boleia de DD e, quando passaram junto ao viaduto que dá acesso ao Centro Comercial ... (D... ...), o arguido encontrava-se dentro do veículo Opel ..., o qual estava estacionado, à espera da ofendida.
21. Ao atuar das formas descritas, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de reiteradamente perseguir a sua ex-cônjuge, de a molestar psiquicamente, de a inibir de agir livremente, de a constranger, de lhe incutir terror permanente, de lhe limitar a sua liberdade pessoal e de movimentos, e de a molestar psicologicamente, bem como com o intuito de levá-la a sentir-se vigiada e perseguida, como pretendia e conseguiu, assim agindo de molde a atingir a dignidade humana e a integridade psíquica, bem como a saúde mental desta, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar.
22. Mais sabia o arguido que devia especial respeito e consideração à ofendida BB por ser sua ex-cônjuge e mãe dos seus filhos, e que tais atuações eram suscetíveis de causar nesta, como causaram, profundo desgosto, mal-estar, tensão, inquietação e pânico, bem como um acentuado desgaste psicológico e emocional, tendo a mesma passado a viver entristecida, humilhada, ansiosa e amedrontada, fragilizando-a psiquicamente e diminuindo-a.
23. O arguido bem conhecia as características do veículo automóvel com que circulava e a sua particular perigosidade, bem como que tal era apto a retirar a vida a uma pessoa e, mesmo assim, animou-o e desviou a sua trajetória para a berma em que a ofendida circula apeada.
(…)
26. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Da contestação
1 – É pessoa de modesta condição social e económica.
2 - É um cidadão honesto e trabalhador.
3 - É uma pessoa respeitada e respeitadora, quer no meio social, quer no meio profissional.
4 - O arguido toma medicação diária para tratamento de estado depressivo, tendo tido acompanhamento médico no Centro Hospitalar ..., Departamento de Psiquiatria com o Dr. GG.
Do pedido de indemnização civil
1 - Em consequência da actuação do Demandado, a Demandante sentiu-se perseguida e vigiada, atemorizada e limitada na sua liberdade de acção e determinação, num pânico total que condiciona a sua vida pessoal, social e profissional;
2 - A Demandante sentiu-se completamente indefesa e desguarida, com um permanente receio de andar na rua, de ir às compras ou simplesmente de passear tranquilamente pela cidade, como receio de se poder cruzar com o Demandado.
3 - Sentiu receio de poder ser colhida pelo veículo que o Demandado lhe arrimou, e poder ficar gravemente ferida ou mesmo até perder a vida.
4 - Em consequência dos vários actos perpetrados pelo Demandado, a Demandante sofreu de insónias e pesadelos, de um extremo cansaço, exaustão, sensação de perigo iminente, desconfiança e perturbações de ansiedade.
5 - A Demandante sentiu-se angustiada, perturbada e com medo, não conseguindo esquecer aquilo que vivenciou e temendo que a qualquer momento possa voltar a ser perseguida, o que a impede de conviver com os seus amigos e familiares e a obriga a estar permanentemente acompanhada.
6 - A Demandante sente que está completamente desprotegida e à mercê da aleatoriedade comportamental do Demandado, na medida em que este nem sequer cumpriu a ordem de afastamento que lhe foi imposta na sentença prolatada no anterior processo de violência doméstica no qual foi condenado, e cujo período de afastamento se lhe impôs até 11-10-2021, sendo que durante o mês de Agosto, concretamente em 02-08-2021, o Demandado abordou e constrangeu a Demandante.
7 - A Demandada é uma pessoa pacata e tranquila, considerada pessoa idónea e respeitável, estando perfeitamente integrada social, familiar e profissionalmente.
8 - Em consequência dos factos em apreço, teve transtornos, incómodos, inquietações e alterações no seu quotidiano, nomeadamente os episódios que envolveram pessoas do seu meio social e profissional, deixou a Demandante envergonhada, nervosa, angustiada e totalmente transtornada.
9 - A Demandante teve que estabelecer ligações telefónicas com a Polícia de Segurança Pública e viu-se mesmo forçada a deslocar-se às instalações desta entidade policial para se proteger e refugiar do Demandado.
Da condição socioeconómica e antecedentes criminais do arguido:
AA efetuou o seu processo de desenvolvimento inserido em agregado familiar composto por si e pelos seus progenitores, família de condição socioeconómica modesta, que subsistia dos proventos auferidos pelo progenitor, operário fabril na “E...”, ocupando-se a mãe nas lides domésticas e na agricultura de subsistência.
O ambiente familiar era positivo e harmonioso, com reciprocidade afetiva, vivência que se faria sem privações ou dificuldades significativas ao nível económico, não obstante a disciplina e rigor na gestão dos recursos económicos pelos pais, como forma de garantir as necessidades básicas do agregado.
Ingressou na escola na idade habitual, vindo a concluir o 6.º ano de escolaridade, explicando o abandono precoce dos estudos como iniciativa própria, devido a desinteresse escolar e vontade em adquirir autonomia financeira.
Assim, aos catorze anos de idade iniciou a vida ativa como aprendiz de cabeleireiro, atividade para a qual revelou aptidão, vindo posteriormente a estabelecer-se por conta própria, profissão que mantém até aos dias de hoje.
Com dezasseis anos de idade, iniciou relação afetiva com BB (ofendida), quando esta contava quinze anos de idade, que culminaria em casamento, aos vinte e um anos do arguido, vindo a nascer desta união dois filhos, atualmente com trinta (o filho) e vinte e quatro anos (a filha).
Após o casamento, o casal passou a residir em ... e o arguido iniciou a atividade de cabeleireiro por conta própria, sustentando por essa via o agregado familiar.
Durante aproximadamente vinte e cinco anos de casamento, a vida familiar foi determinada pelas rotinas do trabalho, na procura de melhorar as condições de vida, e no acompanhamento aos filhos, segundo um modelo onde o cuidar destes e das tarefas doméstica cabia à esposa, ficando o arguido com a responsabilidade de prover pelo rendimento financeiro.
Nos anos mais recentes, a atividade profissional de AA adquiriu contornos de instabilidade e menor rentabilidade, sobretudo devido à concorrência que foi aparecendo, o que comportou dificuldades económicas ao agregado familiar, razão que terá suscitado que a ofendida começasse a trabalhar (2017) na empresa “F...”, como funcionária de limpezas.
A relação conjugal e familiar, ter-se-á deteriorado a partir dessa fase, começando o arguido a desenvolver sentimentos de ciúme, afirmando igualmente sentir-se deprimido, com dificuldade na resolução pragmática dos problemas quotidianos e de autocontrolo, quadro que suscitou os factos que determinaram, num primeiro momento, a sua prisão preventiva (em fevereiro de 2018) e posteriormente a sua condenação (223/17.3GDAVR) por crime de violência doméstica e detenção de arma proibida. Neste período temporal, decorreu o processo de divórcio e a interrupção da relação paterno/filial, afastamento que se mantêm.
Durante a suspensão da pena decorrente de tal processo, o arguido cumpriu formalmente as obrigações de comparecer nesta DGRSP e nas consultas de psiquiatria, ainda que, aparentemente, com baixo impacto ao nível da interiorização do desvalor dos crimes pelos quais foi condenado, dado apresentar um discurso de desvalorização e minimização de tais condutas.
Tendo ocorrido, entretanto, novos contactos entre arguido e ofendida, os mesmos foram interpretados pela mesma como lesivos, dando origem ao presente processo.
Atualmente, AA, com cinquenta e dois anos de idade, reside com os progenitores (ambos septuagenários) na casa paterna, habitação própria, localizada na morada indicada, dispondo de adequada habitabilidade.
O regresso e atual permanência junto do agregado de origem verificou-se numa perspetiva funcional, pela necessidade de alojamento apresentada pelo arguido.
Profissionalmente, refere que nestes últimos anos tem experimentado uma situação difícil, uma vez que a sua prisão, ainda que preventiva, foi do conhecimento local, tendo perdido alguma clientela por esse motivo, contexto que se agravou pelo período pandémico do Covid 19 e de isolamento social inerente, pelo que chegou a trabalhar, durante um curto período, como operário fabril, em ..., após o que retomou o seu trabalho habitual, como cabeleireiro.
No presente, volta a assistir a uma redução significativa dos seus rendimentos, estimando que os mesmos, sendo variáveis, se situem na ordem dos 400/500 euros mensais.
Como encargos, apresenta as despesas do seu trabalho, 60 euros de renda do estabelecimento, 30 euros de água, eletricidade e segurança social variável, consoante os serviços prestados. Adicionalmente, contribui com 100 euros mensais para as despesas domésticas do seu agregado.
O quotidiano do arguido encontra-se estruturado, essencialmente, em função das suas obrigações laborais, e nos seus tempos livres, aos fins-de-semana, procura estabelecimentos de diversão, como danceterias, ainda que com pouca frequência, pelos condicionamentos financeiros que detém.
Afetivamente, faz referência a relacionamentos circunstanciais, ainda que tenha coabitado com uma namorada em Estarreja, relação que terá perdurado pouco tempo e terminou, alegadamente, por sua vontade, por não ter sentido confiança na mesma.
Confrontado com crimes de natureza análoga aos de que se encontra pronunciado, em abstrato, o arguido expressa avaliação crítica relativamente aos mesmos.
AA teve anterior contacto com o sistema de administração da Justiça e também com esta DGRSP, em sede da condenação já mencionada, tendo-se mostrado assíduo e cordato nas entrevistas realizadas, sem que tenha sido colocado em programa específico de violência doméstica, PAVD.
A ameaça a pena de prisão, a que então estava sujeito, serviu o propósito de inibir a sua aproximação à ofendida, sendo que o próprio refere que a procurou naquela fase, por julgar, erroneamente, que o prazo da suspensão da pena já havia terminado.
Afirma estar a vivenciar o presente processo com alguma ansiedade, ainda que se mantenha a realizar medicação antidepressiva.
Reconhece que, porventura, a ofendida se possa ter sentido amedrontada.
Junto das autoridades locais não se encontra referenciado.
O arguido tem averbada no seu certificado de registo criminal a seguinte condenação:
- Por acórdão proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 223/17.3GDAVR, transitado em julgado em 11-07-2018, foi o arguido condenado pela prática de: - um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), e n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão e nas penas acessórias de proibição de contactos com a ofendida BB, incluindo na sua residência e/ou no local de trabalho, bem como por telefone ou outro meio de comunicação à distância (ressalvados os contactos e aproximação relacionados com os filhos e o património comuns ou outros que ela permita), bem como a proibição de uso e porte de armas de qualquer espécie, pelo período infra indicado, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.°, n.° 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM - aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, com as alterações das Leis n.ºs 59/2007, de 04-09, 17/2009, de 06-05, 12/2011, de 27-04, e 50/2013, de 24-07), na pena de 9 (nove) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão e nas penas acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, incluindo na sua residência e/ou no local de trabalho, bem como por telefone ou outro meio de comunicação à distância (ressalvados os contactos e aproximação relacionados com os filhos e património comuns ou outros que ela permita), bem como a proibição de uso e porte de armas de qualquer espécie, pelo período de 3 (três) anos e 3 (três) meses, sendo a pena de prisão suspensa na sua execução por igual período…”
Mais se provou com interesse à boa decisão da causa:
O arguido foi acompanhado em consulta de psiquiatria no Departamento de Psiquiatria/Saúde Mental do Centro Hospitalar ..., E.P.E. - Aveiro desde 29 de Outubro de 2018, até 26 de Outubro de 2021, tendo faltado ao agendamento subsequente marcado para 22 de Abril de 2022. À data da última consulta encontrava-se estável do ponto de vista psicopatológico, a trabalhar na sua área habitual e a viver com o pai.
Foi sugerida a manutenção da medicação em curso.
*
Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação pública ou da contestação, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, sendo a demais matéria alegada, irrelevante, conclusiva ou de direito, designadamente que:
1 - O arguido somente não atingiu a ofendida com a sua viatura automóvel porquanto esta saltou por cima da vala ali existente para uma zona de relva exterior à berma;
2 - que o arguido desviou a trajetória da sua viatura automóvel para a berma em que a ofendida circula apeada, com o intuito de embater na mesma;
3 - bem sabia o arguido que conduzindo o veículo automóvel na direção da ofendida, aliado às suas características de peso e volume, e animando o mesmo contra a ofendida lhe retirava qualquer possibilidade de se defender;
4 - o arguido representou e quis a possibilidade de atingir e retirar a vida a BB, bem sabendo que a sua atuação era apta e adequada a produzir tal resultado, na medida em que poderia atingir órgãos vitais que determinariam a morte do mesmo, o que somente não logrou por motivos alheios à sua vontade.
Da contestação
1 - Por referência ao dia 02.08.2021, a eventual aproximação do arguido à ofendida não teve qualquer intuito de perturbação, intimidação ou provocação de assustar a ofendida;
2 - Por referência ao dia 17.01.2022, o arguido deslocou-se ao estabelecimento comercial B... de ..., sito na sua área de residência, desconhecendo, contudo, que a ofendida aí se encontrava, não tendo efetuado qualquer perseguição à mesma.
3 - Por referência ao dia 24.01.2022, o arguido não conduziu o seu veículo automóvel em direção à ofendida.
4 - por referência aos dias 07.02.2022 e 14.02.2022, o arguido, se passou nos locais indicados, nem sequer viu a ofendida.
*
II.2 - A convicção do tribunal:
A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal.
O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
Tal princípio não é porém, absoluto, e entre as exceções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.
O Tribunal ponderou de forma conjugada os seguintes elementos de prova, analisados de acordo com regras de razoabilidade e experiência comum:
- o teor do aditamento de fls. 4;
- o teor dos assentos de nascimento de fls. 8 e 10 quanto aos factos provados sob os n.ºs 1, 2 e 4;
- o teor da certidão de fls. 15-47;
- o teor dos aditamentos de fls. 67-69;
- a pen constante da contracapa quanto às imagens de videovigilância da empresa onde trabalha a arguida relativamente aos pontos 7 e 8 dos factos provados;
- o teor da informação clínica prestada pelo Departamento de Psiquiatria/Saúde Mental do Centro Hospitalar ..., E.P.E. – Aveiro datada de 16.3.2022.
- o depoimento da assistente BB, que relatou de forma consistente e segura ter sido casada com o aqui arguido e ter saído de casa no dia 08.01.2018.
Indicou que a simples presença do arguido lhe provoca ataques de pânico devido aos factos de que foi vítima no anterior processo em que ele foi condenado por violência doméstica. Disse também que o arguido sabe disso e quis com a sua conduta assustá-la.
Esclareceu que na data dos factos aqui em apreço as partilhas ainda não estavam
concluídas já que só o ficaram em junho de 2023 e que foram tratadas exclusivamente pelos advogados de ambos. Esta partilha decidiu-se por acordo tendo esta ficado com a casa onde vivia o casal mas também assumiu dívidas do arguido para com a Segurança Social tendo este ainda ficado com o carro e com o recheio da casa.
Referiu que todos os episódios ocorreram em segundas-feiras, dias de folga do arguido.
Mais disse que em todas as situações o arguido se encontrava sozinho e que a casa dele e o local de trabalho se situam em ..., não tendo aquele, necessidade de se deslocar para fora daquela localidade.
Acrescentou que o mesmo tinha já o número de telefone dos filhos pelo que não tinha necessidade de lhos pedir.
Em relação a cada um dos episódios descritos na acusação pública descreveu:
- no que se refere ao dia 02.08.2021, estava a varrer junto ao portão de entrada da empresa onde trabalha denominada “A...” e o arguido apareceu, parou o carro e começou a gesticular e a querer falar consigo. Quando se apercebeu que era ele entrou em pânico e afastou-se a passo acelerado para o interior da empresa. O dono da empresa, o Sr. CC, ia a sair neste entretanto e até voltou atrás para lhe perguntar se estava tudo bem já que tinha conhecimento dos factos anteriores relativos ao outro processo de violência doméstica e respondeu-lhe que estava tudo já controlado;
- no que se refere ao dia 17.01.2022, viu o arguido no supermercado B... sendo que ele sabia que ela lá ia todos os dias. Viu-o em frente a uma prateleira e depois mudava de corredor e ele seguia atrás dela o que aconteceu em dois corredores diferentes sem que este lhe dirigisse palavra. Quando estava a pagar as suas compras na caixa ele saiu do supermercado sem que tenha comprado nada;
- no que se refere ao dia 24.01.2022, perto das 18 horas, dirigiu-se ao contentor de lixo que se situa na EN ... perto da empresa onde trabalha. Apercebeu-se então que o arguido vinha no seu carro – Opel ... de cor azul escura - na fila de trânsito (o qual era intenso atenta a hora do dia) e desviou-o para a berma da estrada vindo diretamente na sua direção, sem abrandar a marcha, pelo que, com receio que este viesse para a atingir, saltou a vala existente no local (com cerca de 40 centímetros de profundidade por 40 centímetros de profundidade). Depois continuou o seu caminho a pé de regresso à empresa;
- no que se refere ao dia 07.02.2022, quando chegou à Rotunda ... na sua bicicleta elétrica, o arguido estava dentro do seu carro estacionado e a olhar para a estrada. Um pouco depois apercebeu-se que ele seguia atrás de si, no mesmo sentido de trânsito pelo que ficou em pânico e refugiou-se no estacionamento do D... e dali ligou para a PSP que a acompanhou até casa. A partir desta altura ficou com medo de andar sozinha e pediu a colegas de trabalho para lhe darem boleia de casa para o trabalho e vice-versa;
- no que se refere ao dia 14.02.2022, pouco depois da 18 horas, seguia no carro da sua colega DD e o arguido estava dentro do seu carro estacionado, a olhar para a estrada, junto ao viaduto que dá acesso ao D....
Desde esta última data não mais se repetiram estes episódios.
Como consequências destes episódios, referiu:
- que não conseguiu andar sozinha na rua durante cerca de dois meses e ainda hoje sente receio;
- ter tido dificuldades em dormir por cansaço;
- limitou os contactos sociais com colegas com receio que aquele lhe aparecesse;
- implicou limitações na sua capacidade de trabalho;
- temeu perder a vida atentos os factos do anterior processo, da faca e do rapto e ainda hoje mantem tal receio.
- o depoimento da testemunha DD, amiga da assistente e colega de trabalho da mesma, que relatou que aquela ficava muito nervosa e alterada quando lhe falava do divórcio pois tinha muito medo do arguido, do que este lhe pudesse fazer fisicamente.
Indicou que em fevereiro de 2022 ela pediu-lhe para lhe dar boleia para o trabalho porque não se sentia segura em andar sozinha na sequência das situações anteriores ocorridas, o que passou a fazer durante cerca de um mês indo levá-la e buscá-la a casa. Recorda que isto começou a ocorrer depois do episódio em que ele estaria no C....
Num dos dias em que lhe deu boleia, na rotunda de acesso ao D... estava um Opel ... azul escuro parado junto à estrada com um homem sozinho no seu interior e ela disse-lhe que era o arguido e que queria que a levasse à PSP. Começou a chorar, nervosa e alterada e muito preocupada pois ele podia descobrir onde ela morava.
Como consequência destas situações ocorridas com o arguido que a assistente acabou por lhe contar aquela ficou com receio de sair e passou a ir menos vezes a sua casa. Ela ficava
também muito nervosa com a possibilidade de se poder cruzar com ele.
- o depoimento da testemunha FF, filha do arguido e da assistente, que começou por dizer não contactar com o pai há já uns anos sendo que o seu número de telefone se mantem o mesmo de sempre.
Não presenciou nenhuma das situações ocorridas entre os seus pais e que estão aqui em causa mas a sua mãe contou-lhe o sucedido. A primeira situação ocorreu no Verão de 2021 e as restantes uns meses depois. Como consequência das mesmas, a sua mãe passou a ter pesadelos e insónias e passou a ir de boleia para o trabalho pois tinha receio de andar sozinha.
A sua mãe ficou mesmo com medo de andar sozinha na rua.
Ela tinha medo do que o seu pai lhe pudesse fazer, inclusive que a pudesse matar depois do episódio do carro que direcionou contra ela, receio que ainda hoje mantém;
- HH, indicou ter tido uma relação como se de marido e mulher fossem, com o Sr. AA a partir do Carnaval de 2020 e durante 14 meses – até 15.5.2021. Durante esta relação ele ficou com raiva de ter sido condenado e dizia até que comprava uma arma e matava a ex-mulher e os filhos, o que levou à separação de ambos. Não conhece a ex-mulher nem os filhos dele;
- EE, filho do arguido, indicou que não presenciou os factos. Cortou contactos com ele porque ele abordava-o acerca das partilhas. Não tinha interesse em relacionar-se consigo como pai. O seu pai tem os contactos seu e da sua irmã mas não liga para contactar com ela.
Em agosto de 2021 a sua mãe contou-lhe o que aconteceu e ela estava com muito medo do seu pai porque achou que fosse um ato de vingança. Ela contou que se refugiou dentro da empresa e que apareceu um dos donos da empresa.
Ela tinha medo de ir a locais públicos e a à antiga residência e começou a ir trabalhar tomando boleias de colegas de trabalho por medo do arguido.
Ela contou também que estava no B... e que ele andou a persegui-la pelos corredores.
Ficou em pânico, sem capacidade de reação.
Outra situação ele estava perto do C... para controlar os movimentos dela.
Outra estava de boleia com a DD e o seu pai estava ali parado à espera dela.
A mais grave foi quando ele direcionou o carro para ela e ela teve que saltar a vala.
Nesse dia, antes dela sair ligou-lhe em pânico e foi buscá-la de mota para tentar perceber se o seu pai estava ali no local. Nesse dia ela veio de bicicleta e seguiu de mota junto a ela.
As abordagens foram sempre na via pública e muito rápidas para que não haja provas.
Ainda hoje tem receios e preocupações. Ela só esta bem quando não está no centro de Aveiro, no local de trabalho ou junto à antiga residência.
A última situação ocorreu em fevereiro de 2022, mas como a sua mãe chamou a polícia e fez queixa isso deve ter acalmado o seu pai.
Ela tem medo que ele a mate, que se vingue por causa das partilhas porque ele se sente injustiçado. Até que seja atropelada na via pública.
Acredita que isto é possível por causa dos factos que levaram ao anterior processo.
- CC, administrador da empresa A..., relatou que se encontrava a sair da empresa na sua viatura e estava um carro parado à porta da empresa, um Opel de um modelo mais antigo. Perante a sua presença, aquele carro avançou um pouco mais, mas não saiu dali durante um bocado. Depois viu que a ofendida recolheu a passo apressado para o interior da empresa pelo que foi perguntar o que se estava a passar. Ela estava em choro, ansiosa e incomodada e só conseguiu dizer que era o ex-marido que estava dentro do carro.
- A testemunha arrolada pelo arguido II, sua amiga, referiu que costuma pedir-lhe para ir às compras e numa dessas vezes foi ao supermercado D... com ele e quando passaram junto ao local de trabalho da mulher dele ele disse-lhe “olha vai ali a minha mulher” (Vinham no sentido ... ... e ela no sentido contrário).
Ela nem os terá visto. Recorda que tal aconteceu numa altura de inverno sem conseguir precisar a data.
Conhece o arguido como pessoa prestável, trabalhadora, educada e ninguém tem nada contra ele lá na terra. É pacifico e respeitador.
O arguido AA, confrontado com os factos que lhe são imputados indicou não querer fazer mal à sua ex-muher, ter atualmente uma companheira, que as partilhas estão feitas e quer seguir a sua vida.
Explicou relativamente:
- ao dia 02.08.2021, que ia a passar de carro, viu a sua ex-mulher e parou o carro onde seguia para lhe pedir o telefone da filha de ambos nada mais tendo dito. Ela ignorou-o e continuou a varrer. Entretanto, um carro saiu da empresa e avançou o seu um pouco mais para o deixar sair;
- ao dia 17.01.2022, foi ao B... normalmente para ver uma máquina de corte de cabelo que ali se encontrava em promoção;
- ao dia 24.01.2022, passou simplesmente naquele local e nunca direcionou o carro contra a sua ex-mulher. Nesse dia estava acompanhado com a II e disse-lhe “olha, vai ali a minha ex-esposa”;
- ao dia 07.02.2022, parou o seu carro e estava a atravessar a passadeira para ir para o restaurante, nem sequer estava dentro do carro parado;
- ao dia 14.02.2022, que não estava à espera da sua ex-mulher.
Como vimos, a sua versão dos factos foi contrariada pela restante prova produzida e concatenada entre si pelo que não mereceu acolhimento probatório por banda deste Tribunal.
Em primeiro lugar, a sua própria filha disse que nunca mudou o seu número de telemóvel. Sendo assim, o arguido não necessitava de parar o carro para pedir tal número à sua ex-mulher.
Depois, não se demonstrou que no dia 24.01.2022, estivesse acompanhado com a testemunha II.
Por outro lado, sabendo o arguido que a sua simples presença causa medo e inquietação à ofendida, não nos convencemos que fossem meras coincidências as suas
aparições quer no supermercado B... que ele sabia ser frequentado pela ofendida e ao qual ele não ia quer no trajeto para a casa/localidade onde residia a mesma.
O arguido pretendeu sim, mal achou ter terminado o período de suspensão da pena anterior que lhe foi aplicada e que o proibia de manter contactos com aquela, impor a sua presença molestando-a psiquicamente, inibindo-a de agir livremente, constrangendo-a, limitando a sua liberdade pessoal e de movimentos, bem como com o intuito de levá-la a sentir-se vigiada e perseguida.
Quanto às condições socioeconómicas do arguido, levou-se em conta o teor do seu relatório social junto aos autos a fls. 492 a 494.
No que se refere aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal valorou o teor do seu C. R. Criminal junto aos autos com a ref.ª 14443390.
No que se refere aos factos não provados relativos ao dia 24.01.2022 e à alegada tentativa de homicídio da assistente, ficou este Tribunal convencido que este foi apenas mais um ato por parte do arguido para assustar e perturbar aquela, não se tendo demonstrado a intenção de matar por parte do mesmo.
Os demais factos tidos por não provados resultam da ausência de mobilização probatória suscetível de convencer o Tribunal da sua verificação.
(…)»

IV 1. –
Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que o acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, devendo ele, também à luz do princípio in dubio pro reo, ser absolvido da prática do crime de violência doméstica por que foi condenado. Invoca a circunstância de a decisão sobre prova assentar apenas nas declarações da assistente, que é interessada no desfecho do processo, e alega que tais declarações são contraditórias e incoerentes, ao contrário das suas próprias declarações. Alega que contraria as regras da experiência comum a suposta tentativa de atropelamento da assistente por ele alegadamente praticada numa estrada bastante movimentada, guinando o volante e entrando na berma, sem perder o controlo do veículo com carros a circular em ambos os sentidos. Alega que da gravação de imagens junta aos autos não se vê qualquer atitude de fuga por parte da assistente quando esta se deparou com o veículo por ele conduzido. Alega que os receios da assistente não são justificados e são motivados apenas por uma sua anterior condenação pela prática de crime de violência doméstica.
Vejamos.
Constitui erro notório de apreciação da prova a violação de regras da lógica e da experiência comum que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (ver, neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do S.T.J. de 9 de fevereiro de 2005, proc nº 04P4721, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt).
Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, esse vício há de decorrer do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Parece-nos claro que tal não se verifica no acórdão recorrido.
Não obsta à prova de determinado facto a circunstância de essa prova assentar apenas nas declarações da vítima, interessada no desfecho do processo. Se tal suceder, não estaremos por isso, obviamente, perante erro notório na apreciação da prova. Tal sucede com muita frequência, precisamente, nos crimes de violência doméstica.
Nessas situações, em grande medida a prova dependerá da credibilidade que merecem as declarações da vítima, eventualmente confrontadas com declarações do arguido em sentido contrário.
Da leitura da motivação do recurso resulta que o recorrente não impugna a decisão do acórdão recorrido apenas nos termos do artigo 410..º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal (a chamada revista alargada), não se limita a apontar vícios que decorram do próprio texto desse acórdão, mas também impugna essa decisão nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do mesmo Código (a chamada impugnação ampla), pois alega a desconformidade entre essa decisão e a prova produzida.
A este respeito, há que considerar o seguinte.
Como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 024324, relatado por. Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível in www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
No caso em apreço, a decisão do acórdão recorrida assenta num juízo de credibilidade das declarações da ofendida e assistente no confronto com um juízo de não credibilidade das declarações do arguido e recorrente. Esses juízos dependem de fatores ligados à imediação, de que nesta sede estamos privados.
De qualquer modo, no caso em apreço também há que considerar que na fundamentação do acórdão recorrido são invocadas contradições das declarações do arguido que, para além de fatores ligados à imediação, justificam um juízo de não credibilidade das mesmas.
Também há que reconhecer, por outro lado, que as declarações da assistente são parcialmente corroboradas por depoimentos de outras testemunhas: no que se refere aos factos descritos nos pontos 7 e 8 do elenco do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido, nas declarações da testemunha CC; no que se refere aos factos descritos nos pontos 17, 18 e 19 desse elenco, nas declarações da testemunha DD. As declarações destas testemunhas corroboram os efeitos que, segundo a assistente, nela provocou a conduta do arguido.
Também corroboram esses efeitos, de um modo mais genérico, os depoimentos das testemunhas FF e EE, filhos da assistente e do arguido.
Esses efeitos não revelam um receio injustificado e devido apenas ao comportamento passado do arguido que levou à sua condenação anterior pela prática de crime de violência doméstica. O receio que pudesse resultar dessa condenação anterior foi substancialmente agravado pela conduta do arguido e a descrição dessa conduta pela assistente revela-se credível precisamente por causa desses efeitos facilmente detetados por várias testemunhas. Não é verosímil que tudo decorresse de uma fantasiosa e injustificada “mania de perseguição”. Trata-se de um receio assente em dados objetivos.
As imagens gravadas a que se refere o arguido e recorrente não se afiguram incompatíveis com a versão da assistente, que é parcialmente corroborada pelas declarações da testemunha CC.
A conduta do arguido descrita nos pontos 14 a 16 do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido (sendo certo que não está em causa uma tentativa de homicídio, mas uma conduta destinada a amedrontar a assistente) não é inverosímil se a situarmos no contexto mais amplo da postura que ele tem assumido para com esta (marcada por alguma irracionalidade), que levou à sua condenação anterior e que se revela nos restantes episódios constantes desse elenco.
A decisão do acórdão recorrido quanto à prova dos factos que levaram à condenação do arguido e recorrente não enferma, assim, de erro notório e não é, pois, merecedora de reparo.
Estamos perante uma decisão baseada em juízos de certeza (segunda a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita, ou de maior ou menor probabilidade. Não se verifica, pois, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Deve, assim, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não configura a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal, por que foi condenado. Alega que tal factualidade não evidencia degradação, enfraquecimento ou aviltamento da personalidade da vítima, nem o desejo de prevalência e domínio sobre a mesma, não podendo, por isso, ser qualificada como “maus tratos”. Alega que essa factualidade poderia, eventualmente, configurar a prática de crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º-A do Código Penal.
Vejamos.
Há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, coação ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime.
Esse traço distintivo dependerá da perspetiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço. É à luz dessa perspetiva que deverá ser preenchido o conceito de “maus tratos” a que alude o referido artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), Novembro de 2010, p. 49).
É de salientar que, como refere Nuno Brandão (in «A tutela penal especial da violência doméstica», Julgar, nº 12 (especial), novembro de 2010, p. 17 e 18), estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos.
Precisamente por isso, porque está em causa a “coisificação” da pessoa, e embora tal não constitua elemento do tipo de crime (como alega o recorrente citando o acórdão da Relação de Évora de 26/972017, proc. n.º 518/14.8PCSTB.E1, relatado por António João Latas, acessível in www.dgsi.pt), a violência doméstica supõe normalmente (no plano sociológico e criminológico) uma relação assimétrica, uma “subordinação existencial” da vítima em relação ao agressor.
Na apreciação do alcance e efeitos da conduta do arguido em apreço, há que considerar o contexto em que surge, marcado por uma condenação anterior pela prática de crimes de violência doméstica e detenção de arma proibida em pena de prisão suspensa na sua execução com proibição de contactos com a assistente. Esse contexto torna substancialmente mais grave tal conduta e explica os seus efeitos.
Há que atender a esses efeitos, como são descritos no acórdão recorrido:
«1 - Em consequência da actuação do Demandado, a Demandante sentiu-se perseguida e vigiada, atemorizada e limitada na sua liberdade de acção e determinação, num pânico total que condiciona a sua vida pessoal, social e profissional;
2 - A Demandante sentiu-se completamente indefesa e desguarida, com um permanente receio de andar na rua, de ir às compras ou simplesmente de passear tranquilamente pela cidade, como receio de se poder cruzar com o Demandado.
3 - Sentiu receio de poder ser colhida pelo veículo que o Demandado lhe arrimou, e poder ficar gravemente ferida ou mesmo até perder a vida.
4 - Em consequência dos vários actos perpetrados pelo Demandado, a Demandante sofreu de insónias e pesadelos, de um extremo cansaço, exaustão, sensação de perigo iminente, desconfiança e perturbações de ansiedade.
5 - A Demandante sentiu-se angustiada, perturbada e com medo, não conseguindo esquecer aquilo que vivenciou e temendo que a qualquer momento possa voltar a ser perseguida, o que a impede de conviver com os seus amigos e familiares e a obriga a estar permanentemente acompanhada
Estes efeitos permitem qualificar a conduta do arguido e recorrente como a prática de “maus tratos psíquicos”, como ofensa à saúde psíquica, emocional e moral da assistente de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Tal conduta configura, assim, a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, por que o arguido e recorrente foi condenado.
Não se trata apenas, ao contrário do que alega o arguido e recorrente, da prática de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º-A do Código Penal, pois o bem jurídico atingido pela conduta em questão não se limita à liberdade pessoal da vítima (como sucede com este crime, integrado no capítulo do Código Penal relativo aos crimes contra a liberdade pessoal), atinge também a sua saúde e a sua dignidade de pessoa.
Deve, assim, ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto

IV 3. –
Vem o arguido e recorrente alegar que a pena em que foi condenado é excessiva e desproporcional, à luz do disposto nos artigos 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal. Alega que estamos perante condutas pluriocasionais não reveladoras de uma tendência criminosa. Invoca a circunstância de ele não ter sido proibido de quaisquer contactos com a assistente (pois podia contactá-la por motivos relativos aos filhos comuns e ao património comum), pelo que não se justifica que essa proibição seja tida em conta como circunstância agravante. Invoca, como circunstância atenuante, a sua saúde debilitada (sofre de depressão). Alega que não deveria ter sido fixado um período de suspensão de execução da pena de prisão superior ao período desta, com o que foi violado o disposto no artigo 50.º do Código Penal.
Vejamos.
O crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
O arguido e recorrente foi condenado na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, com regime de prova e obrigação de afastamento da residência da assistente BB e proibição de contactos, por qualquer meio, com esta.
Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido e recorrente, há que dar particular relevo, como circunstância agravante, ao facto de a prática do crime em apreço se ter iniciado no período de suspensão da execução de uma pena anterior relativa também à prática de crime de violência doméstica de que também foi vítima a assistente nestes autos (assim como â prática de um crime de detenção de arma proibida)), sendo que a essa pena estava associada a pena acessória de proibição de contactos com a assistente.
Ao contrário do que alega o arguido e recorrente, não assume qualquer relevo o facto de a proibição de contactos com a assistente não ser absoluta. A conduta do arguido ora em apreço não cabia em qualquer das exceções a essa proibição de contactos (não dizia respeito a quaisquer assuntos relativos aos filhos comuns, nem ao património comum, e não eram contactos consentidos pela assistente).
Essa condenação anterior torna até bastante mais difícil aquele juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido que é pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal).
Essa circunstância, por si e também associada aos danos provocados pela conduta do arguido e acima referidos, permite considerar, à luz do que dispõem os artigos 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal, adequada, e não excessiva e desproporcional, a pena em que o arguido e recorrente foi condenado.
Essa circunstância também leva a considerar adequado o período de suspensão da execução da pena em que o arguido e recorrente foi condenado, período que é superior a essa pena (o que é permitido pela atual redação do n.º 5 do referido artigo 50.º do Código Penal, decorrente da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, contrária à redação anterior, decorrente da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro).
Não se nos afigura de particular relevo, como circunstância atenuante (pois tal não se reflete numa alguma diminuição de imputabilidade), que o arguido e recorrente sofra de depressão.
O acórdão recorrido também não é merecedor de reparo quanto a este aspeto.
Deverá ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

IV 4. –
Vem o arguido e recorrente alegar que o montante da indemnização a cujo pagamento foi condenado (dois mil e quinhentos euros) é excessivo, face ao disposto nos artigos 494.º e 496.º, n.º 1, do Código Civil. Invoca as circunstâncias de não estarmos perante condutas com um grau de violência elevado e a sua precária situação económica. Alega que esse montante não deverá ser superior a mil euros.
Vejamos.
Nos termos do artigo 496º, nº 1, do Código Civil, na fixação da indemnização decorrente de responsabilidade civil deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito. E, de acordo com o nº 3 do mesmo artigo, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo diploma (ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso)
Afirma Carlos da Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pgs. 85 e 86):
«Estes danos não patrimoniais - tradicionalmente designados por danos morais – resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação). A sua verificação tem lugar quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de direitos de personalidade. Não sendo estes prejuízos avaliáveis em dinheiro, a atribuição de uma soma pecuniária correspondente legitima-se, não pela ideia de indemnização ou reconstituição, mas pela de compensação.
Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados, mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço da dor” ou um “preço do sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal
Para avaliar a dimensão do dano sofrido pela assistente como consequência do crime, deve ser recordado o que no acórdão recorrido foi, a esse respeito, considerado provado:
«1 - Em consequência da actuação do Demandado, a Demandante sentiu-se perseguida e vigiada, atemorizada e limitada na sua liberdade de acção e determinação, num pânico total que condiciona a sua vida pessoal, social e profissional;
2 - A Demandante sentiu-se completamente indefesa e desguarida, com um permanente receio de andar na rua, de ir às compras ou simplesmente de passear tranquilamente pela cidade, como receio de se poder cruzar com o Demandado.
3 - Sentiu receio de poder ser colhida pelo veículo que o Demandado lhe arrimou, e poder ficar gravemente ferida ou mesmo até perder a vida.
4 - Em consequência dos vários actos perpetrados pelo Demandado, a Demandante sofreu de insónias e pesadelos, de um extremo cansaço, exaustão, sensação de perigo iminente, desconfiança e perturbações de ansiedade.
5 - A Demandante sentiu-se angustiada, perturbada e com medo, não conseguindo esquecer aquilo que vivenciou e temendo que a qualquer momento possa voltar a ser perseguida, o que a impede de conviver com os seus amigos e familiares e a obriga a estar permanentemente acompanhada
Não podem ser ignorados o alcance a dimensão destes danos, ainda que se reconheça que não foi particularmente elevado o grau de violência da atuação do arguido.
Assim, e mesmo considerando a situação económica do arguido e demandado, não se afigura excessivo ou desproporcional o montante da indemnização por ele devida à assistente e demandante.
O acórdão recorrido também não é merecedor de reparo quanto a este aspeto.
Deverá ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a douta sentença recorrida.

Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.Cs de taxa de justiça.

Notifique

Porto, 21 de fevereiro de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Paula Natércia Rocha