Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1414/21.8T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
DOAÇÃO
Nº do Documento: RP202402081414/21.8T8STS-B.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O representante/acompanhante do maior acompanhado não pode dispor, a título gratuito, de bens do representado/acompanhado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1414/21.8STS-B.P1.

João Venade.
Isabel Rebelo Ferreira.
Aristides Rodrigues de Almeida.


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         1). Relatório.

         AA, residente na Rua ..., ..., na qualidade de representante da acompanhada BB, por apenso aos autos de acompanhamento de maior veio requerer

         Autorização para a prática de ato, nos termos dos artigos 26.º, n.º 5, da Lei nº. 49/2018, de 14/08, 141.º e 145.º, n.º 3, 953.º e 2192.º, do C. C. e 1014.º, do C. P. C..

         Alega, em síntese, que:

         - foi nomeada acompanhante de BB por sentença proferida em 03/12/2021 nos autos principais;

         - a beneficiária recebe a título de pensão uma quantia mensal de 532,40 EUR através de vale postal.;

         - foi ainda titular de duas contas bancárias no Banco 1... juntamente com as suas irmãs CC e DD;

         - no inicio da doença, o pagamento das despesas com médicos, alimentação, e medicamentos era efetuado com o dinheiro da reforma da acompanhada e das contas bancárias;

         - com o fim do dinheiro nas contas bancárias mencionadas a situação financeira da beneficiária tornou-se manifestamente insuficiente para prover o seu sustento, tendo sido necessário proceder à venda de parte do património da beneficiária;

          - a acompanhante requereu autorização para celebrar escritura pública de compra e venda ou documento particular autenticado de um pequeno terreno de que era proprietária, o que foi concedido por sentença proferida a 03/12/2021;

         - foi efetuado documento particular autenticado;

          - o quadro clínico da beneficiária agravou-se, estando totalmente dependente de cuidados médicos e de auxílio da acompanhante, para todas as necessidades básicas como alimentar-se, vestir-se, tomar banho, ir ao médico, tomar medicação;

          - o dinheiro resultante da venda do imóvel acabou;

          - a acompanhada é legitima proprietária do seguinte imóvel: Prédio urbano destinado a habitação de 1 só fogo composto de uma casa de cave com 2 divisões para arrumos e um r/c, sito no lugar ..., da União de Freguesias ... (... e ...) ..., não descrito na C. R. P. inscrito na matriz respetiva sob o nº ...98;

         - adquiriu tal imóvel por sucessão;

         - enquanto esteve lúcida, a beneficiária sempre deixou esclarecido o desejo de nunca ir para um lar e passar os últimos dias de vida em casa;

          - requer-se autorização para a realização do contrato de doação com reserva de usufruto vitalício do imóvel acima descrito à aqui, acompanhante sua sobrinha, sempre com o encargo para a donatária de prestar à acompanhada, durante toda a sua vida, cuidados médicos, higiene diária, alimentação bem como quaisquer outros relacionados com o seu bem-estar e da e de noite.

          Pede assim que seja concedida autorização à requerente para celebrar doação com reserva de usufruto do imóvel a favor da mesma nos termos acima referidos.


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         Citado, o M.º P.º contestou, opondo-se ao pedido por:

          - resultar do artigo nº 5, do artigo 26.º, da Lei n.º 49/2018, que pedido que pode ser dirigido ao juiz visa a autorização para a prática de ato pelo próprio acompanhado e que este está impedido de realizar por força da representação geral anteriormente decretada;

          - a requerente pretende a obtenção de autorização para ser ela, em representação da maior acompanhada, a outorgar testamento relativamente a bens/direitos de que este é titular;

          - dos artigos 948.º e 949.º, do C. C. decorre que os representantes legais dos incapazes não podem fazer doações em nome destes;

           - no elenco dos atos relativamente aos quais o acompanhante deve solicitar prévia autorização judicial, em representação do acompanhado, não consta o direito a celebrar doação, como se alcança da leitura conjugada dos artigos 145.º, 1938.º, n.º 1 e 1889.º, n.º 1, do C. C..

            Pede assim a improcedência do pedido.


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         A requerente pronunciou-se no sentido de ser deferido o por si solicitado.

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         Foi proferida decisão julgando manifestamente improcedente o pedido.

         Inconformada, recorre a requerente, formulando as seguintes conclusões:

         «A) A Recorrente interpõe o presente Recurso de Apelação, pois não se conforma com a decisão proferida na Douta Sentença que julgou “manifestamente improcedente o pedido de autorização judicial para a prática do ato, nos termos requeridos, com as demais consequências legais”.

         B) Entendeu o Tribunal ad quo que o pedido da aqui Recorrente, na qualidade de representante da Acompanhada, BB, de autorização judicial para a prática do ato de doação com reserva de usufruto de um imóvel (propriedade da acompanhada), a favor da acompanhada com o encargo de cuidar da mesma até à morte, carecia de enquadramento legal, apoiando a decisão no disposto nos artigos 948º e 949º nº2 do C.C.

         C) Ora, ainda na mesma Secção do Código Civil que diz respeito à capacidade de fazer ou receber doações veja-se o artigo 953º que refere os casos de indisponibilidade relativa e remete para o artigo 2192º do mesmo diploma.

         D) O artigo 2192º sob a epígrafe “Acompanhante e administrador legal de bens” refere que “1 – É nula a disposição feita por maior acompanhado a favor de acompanhante ou administrador legal de bens do disponente, ainda que estejam aprovadas as respetivas contas. 2 – É, porém, válida a disposição a favor das mesmas pessoas, quando se trate de descendentes, ascendentes, colaterais até ao terceiro grau, cônjuge do testador ou pessoa com quem esta viva em união de facto”.

         E) Assim, tratando-se a Acompanhante de uma descendente colateral até ao terceiro grau de parentesco, é permitido que a Acompanhada possa dispor validamente dos seus bens a favor da sobrinha.

         E) Ou seja, a doação do imóvel à sobrinha encontra enquadramento legal no Código Civil pelo que, mediamente a factualidade provada posteriormente, não há nada que obste ao Tribunal em autorizar a celebração do negócio em causa ao abrigo do disposto no artigo 1014º do CPC.

         F) Ultrapassada a barreira do enquadramento legal do negócio devemos então considerar aos motivos da sua celebração.

         G) Assim, num outro prisma sabemos que o núcleo do Instituto do Maior Acompanhado é o bem-estar e os interesses do beneficiário – artigos 140º e 146º do CC.

         H) O Instituto do Maior Acompanhado teve como base a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência7 que assenta em determinados princípios fundadores entres os quais: o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas; a não discriminação; a participação e inclusão plena e efetiva na sociedade; o respeito pela diferença e aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e humanidade – artigo 3º da Convenção

         I) Sempre foi a vontade da acompanhada beneficiar quem cuidasse dela nos últimos dias e que respeitasse a sua vontade de morrer em casa, ao ponto de hoje o quarto onde passa os dias ser o único espaço que conhece e lembra.

         J) Atendendo à jurisprudência europeia no que toca aos direitos das pessoas idosas um dos casos que têm chegado ao TEDH está intimamente relacionado com as condições de confinamento, como o caso dos Lares, e de que forma estas podem consubstanciar uma violação do direito à vida e a uma proibição de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes – artigos 2º e 3º da CEDH9.

         K) Surge aqui como uma questão liminar as situações em que a pessoa idosa é institucionalizada contra a sua vontade e de que forma isto pode configurar uma privação de liberdade [artigo 5º CEDH]

         L) Entende o TEDH que a vontade da pessoa institucionalizada apenas pode ser suprida mediante casos muito específicos, sendo apenas permitida em último ratio.

         M) Assim, relativamente à acompanhada não é, nem nunca foi sua vontade ser institucionalizada, quis sempre morrer em casa e deixar a casa a quem dela cuidasse.

         N) Perante a dúvida do Tribunal de a Acompanhada não conseguir exprimir atualmente essa vontade, deve pautar a sua convicção para além de critérios objetivos ou formais, pelo que estes devem ser usados em última instância e na impossibilidade de descobrir a sua vontade — o que não é o caso.

         O) A vontade da Acompanhada associada ao esforço acrescido da Sobrinha, aqui recorrente, parece-nos suficiente para que o Tribunal autorize a celebração do negócio em causa.

         P) Para além de ser, com todo o respeito, a decisão mais justa e adequada para salvaguardar os interesses da Acompanha – principal fim do Regime do Maior Acompanhado.

         Q) Caso contrário, a única solução possível será a venda da casa da acompanhada e a sua institucionalização, uma vez que, a acompanhante não tem mais condições para a manter a situação que presentemente se encontra.

         R) Deve, assim, a Douta Decisão proferida ser revogada e em consequência, ordenada a produção de prova no sentido de aferir da admissibilidade da autorização judicial para a prática do ato de doação com reserva de usufruto de um imóvel (propriedade da acompanhada) e encargo de cuidar da mesma até à morte favor da acompanhada.».


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         O M.º P.º contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

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         A questão a decidir é aferir se os presentes autos de autorização judicial para a prática de ato podem prosseguir para se decidir se a requerente/acompanhante pode doar, em nome da acompanhada, um bem a seu favor.

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         2). Fundamentação.

         2.1). De facto.

         Está provado que:

         1). Por decisão de 03/12/2021, proferida no juízo local cível de Santo Tirso, juiz 1, foi decidido:

         1) Decretar as seguintes medidas de acompanhamento da beneficiária BB:

         - Representação geral.

         2) Declarar que a beneficiária não pode exercer livremente os seus direitos pessoais, designadamente, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar;

         3) Declarar que a beneficiária não pode celebrar livremente negócios da vida corrente;

         4) Designar AA a título de acompanhante da beneficiária;

         5) Fixar a periodicidade da revisão das medidas de acompanhamento de cinco em cinco anos

          6) Determinar a publicitação da vertente sentença com a publicação de anúncios no sítio oficial.»

          2). Nessa decisão foram julgados provados os seguintes factos:

         «A Requerida BB nasceu em ../../1935 e é filha de EE e de FF.

         2. A Requerente é sobrinha da Requerida e tem acompanhado a vida diária da mesma.

         3. A Requerida BB apresenta um quadro de cérebro-vascular demência mista, o qual não é passível de melhoras clinicas ou tratamento à situação atual.

         4. A Requerida BB não apresenta capacidades para desempenhar as atividades diárias e pessoais, sendo que precisa de ajuda permanente de terceiros para as mesmas.

         5. A Requerida BB não apresenta capacidade de compreensão e livre autodeterminação do ato de casar, perfilhar, de cuidar e adotar os filhos, nem de exercer plenamente as responsabilidades parentais.

         6. A Requerida BB não possui capacidade de compreensão e livre autodeterminação para testar, nem para administrar total ou parcialmente o seu património.».


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         Tais factos têm por base o teor da mencionada decisão que consta processo a que os presentes autos correm por apenso.

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         2.2). Do mérito do recurso.

         Com se depreende do relatório que antecede, a aqui requerente, acompanhante da beneficiária BB, pretende que o tribunal a autorize a celebrar, em nome da acompanhante, contrato de doação a seu favor de um imóvel.

         E se bem percebemos a sua pretensão, visa que se autorize a celebrar esse contrato de doação, reservando-se o usufruto do imóvel para a beneficiária e com o encargo de a acompanhante/requerente/donatária cuidar daquela acompanhada.

         O tribunal recorrido indeferiu a pretensão da ora recorrente, em síntese, por entender que esse tipo de ato não está legalmente consagrado como um daqueles que o acompanhante pode praticar; e, efetivamente, afigura-se que assim é.

         Nos termos do artigo 949.º, n.º 2, do C. C., os representantes legais dos incapazes não podem fazer doações em nome destes. Como refere Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, IV, 1995, página 129, está em causa o caráter pessoal do animus donandi que seria subvertido caso fosse permitida tal doação.

         Igual proibição resulta do regime da tutela, aplicável ao regime de maior acompanhado por força do disposto no artigo 145.º, n.º 4, do C. C.[1], conforme o disposto no artigo 1937.º, a), do mesmo Código Civil: -É vedado ao tutor dispor a título gratuito dos bens do menor -.

         Assim, existe um impedimento legal em que uma doação[2] seja feita pelo representante legal do doador; a recorrente contrapõe que o artigo 2192.º, do C. C., aplicável por força do artigo 953.º, do mesmo diploma, permite a mencionada doação. Vejamos então.

         O artigo 953.º, do C. C. estatui que nos casos de indisponibilidade relativa, é aplicável às doações, devidamente adaptado, o disposto nos artigos 2192.º a 2198.º.

         O citado artigo 2192.º dispõe o seguinte:

         «1 - É nula a disposição feita por maior acompanhado a favor de acompanhante ou administrador legal de bens do disponente, ainda que estejam aprovadas as respetivas contas.

         2 - É, porém, válida a disposição a favor das mesmas pessoas, quando se trate de descendentes, ascendentes, colaterais até ao terceiro grau, cônjuge do testador ou pessoa com quem este viva em união de facto.».

         A recorrente, sobrinha da beneficiária, menciona que, como nesta disposição legal se prevê que o maior acompanhado pode efetuar disposição testamentária a favor de um colateral até ao terceiro grau, como é o seu caso, sendo aplicável esta regra às doações, então nada impede que ela, acompanhante, em nome da acompanhada, solicite ao tribunal (e obtenha vencimento) autorização judicial para que tal doação possa ser concretizada.

         Ou seja, como representante legal da acompanhada, por força daquele artigo 2192.º, poderia esta doar-lhe um bem/direito, ainda que por seu intermédio, como representante legal. No entanto, salvo o devido respeito, não é esse circunstancialismo que resulta desse mesmo artigo 2192.º. O que este permite é que o acompanhado, por si e sem representação legal, pode efetuar uma disposição testamentária ou, por força da remissão do artigo 953.º, do C. C., pode efetuar uma disposição gratuita a favor de alguma daquelas pessoas.

         Tal sucedia com a redação anterior do artigo 2192.º, do C. C.[3] (redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25/11) que previa que os interditos ou inabilitados podiam fazer disposições testamentárias a favor de descendentes, ascendentes ou colaterais até ao terceiro grau, querendo com isso significar que, naqueles casos em que a interdição residia nalguma circunstância que não os impedia de elaborar um testamento, não poderiam no entanto celebrá-lo com uma disposição a favor do seu tutor, curador ou administrador legal de bens.

         Tais casos seriam os de interdição por causa de surdez-mudez ou cegueira ou nos casos de inabilitação em que tais pessoas eram equiparadas a menores (artigos 139.º e 156.º, do C. C./77), podendo por isso celebrar testamentos (desde que emancipado, pelo casamento, por exemplo – artigo 132.º, do mesmo diploma); nestas situações, o interdito/inabilitado, por si, podia testar mas, por regra, não o podia fazer a favor daquelas pessoas salvo naquelas que a lei fazia escapar à proibição.[4]

         Pensamos que é correto entender que o legislador não podia, coerentemente, proibir que o tutor dispusesse gratuitamente dos bens do interdito e depois permitia que celebrasse em nome do mesmo uma doação a seu favor.

         Com a instituição do regime de acompanhamento, o sempre indicado artigo 2192.º foi adaptado a essa nova figura, proibindo-se então (com a sanção de nulidade) que o acompanhado (que pode, consoante o decidido no respetivo processo, ter capacidade/liberdade de testar, conforme artigo 145.º, n.º 2, do C. C.) celebre testamento ou efetue doação a favor do seu acompanhante; e só poderá fazer, por si, sem representação legal, se o beneficiário da disposição testamentária ou o donatário for alguma das pessoas ali referidas.

         Se a doação (para revertermos ao caso concreto) fosse efetuada pela acompanhante em nome da acompanhada, seria nula, mesmo sendo a donatária sobrinha da doadora pois tal exceção só vigora para os casos em que o acompanhado celebra ele próprio, sem representação, o contrato de doação.

         Note-se que aquele artigo 145.º, do C. C., agora no seu n.º 3, determina que os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica; ora, sabendo-se que o acompanhante não pode dispor gratuitamente de bens do acompanhado, na nossa visão, tal artigo só tem aplicação nos casos em que o acompanhado, por si, quer dispor de bens a favor de terceiro ou quando o acompanhante solicita esse pedido relativo a um ato disposição onerosa (já que está impedido de efetuar qualquer disposição gratuita de bens do acompanhado).[5]

         Por isso, estando vedado ao acompanhante dispor gratuitamente (doar), de forma juridicamente válida, bens do acompanhado, a autorização judicial em que se pede para se ealizar uma doação de um bem do acompanhado a favor de alguém (seja o acompanhante seja outra pessoa) teria de ser rejeitada por não se poder autorizar a prática de um ato que seria nulo (também artigo 1014.º, n.º 1, a contrario, do C. P. C.[6]).

         Recentemente, por Acórdão da R. P. de 27/11/2023, da 3.º secção cível, processo n.º 739/13.0TBVCD-A.P1 (www.dgsi.pt), foi decidido, como sumariado, que «De acordo com o estatuído nos arts. 1937.º a) do CC – por remissão do art. 145.º, n.º 4 - e 949.º, n.º 2 -, encontra-se vedado ao representante do maior acompanhado dispor a título gratuito dos bens do representado.», com o que concordamos.

         A doação, ainda que modal (artigo 963.º, n.º 1, do C. C. - as doações podem ser oneradas com encargos), continua a ser um ato gratuito pois a necessidade de realização de determinada atividade pelo donatário não significa que seja a contraprestação ou correspetivo do ato de doar Como se menciona no Ac. da R. C. de 08/03/2016, processo n.º 955/14.8TBCLD.C1, www.dgsi.pt[7], «vale isto por dizer que restrição à liberalidade em que o encargo praticamente se traduz, não obstante subtrair valor à disposição, não chega a descaracterizá-la como acto fundamentalmente gratuito. É a graciosidade do ato do disponente que justifica e explica que através do valor do encargo, o suposto beneficiário possa aceitar sacrificar-se em mais do que o valor da coisa ou direito transmitidos, mas não que a isso fique vinculado. Por essa razão é que o nº 2 do art.º 963 admite a recusa do donatário em cumprir o encargo quando ele fique onerado em mais do que o valor da coisa ou direito. (…). Enfim, tudo se alinha para a conclusão de que a doação com encargos é um negócio intrinsecamente gratuito, independentemente do desequilíbrio ou desproporção que possa existir entre o valor da disposição e o valor do encargo

         Daí que, a doação em causa – com reserva de usufruto e com obrigação de prática de atos pela donatária -, continua a ser a disposição gratuita de um bem, cuja prática está vedada ao acompanhante.

         Por isso, não é possível autorizar judicialmente tal ato gratuito.

          No que respeita à motivação do pedido de autorização judicial pela recorrente, face à, por nós assim entendida, impossibilidade jurídica de o ato ser praticado, não assume relevo para os presentes autos de recurso a sua análise.

         Conclui-se assim pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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         3). Decisão.

         Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

         Sem custas – artigo 4.º, n.º 2, h), do R. C. P. -.

         Registe e notifique.




Porto, 2024/02/08.
João Venade.
Isabel Rebelo Ferreira.
Aristides Rodrigues de Almeida.
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[1] A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
[2] Doação que é definida como sendo o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente – artigo 940.º, n.º 1, do C. C., com nosso sublinhado para reforçar que está em causa um ato de disposição, ainda que gratuito.
[3] 1. É nula a disposição feita por interdito ou inabilitado a favor do seu tutor, curador ou administrador legal de bens, ainda que estejam aprovadas as respetivas contas.
2. É igualmente nula a disposição a favor do protutor, se este, na data em que o testamento foi feito, substituía qualquer das pessoas designadas no número anterior.
3. É, porém, válida a disposição a favor das mesmas pessoas, quando se trate de descendentes, ascendentes, colaterais até ao terceiro grau ou cônjuge do testador.
[4] Veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, VI, páginas 313 e 314.
[5] Margarida Paz, O Ministério Público e o novo regime do maior acompanhado, O novo regime jurídico do maior acompanhado, página 122, e-book C. E. J. de fevereiro de 2019: Devemos considerar que tal preceito só tem aplicação fora dos casos de representação legal. Para além desta interpretação restritiva, este preceito exige ainda uma interpretação corretiva por força do disposto na alínea a) do artigo 1937.º do CC, no sentido de se entender que a disposição gratuita de bens está subtraída desta autorização judicial, uma vez que ao acompanhante está vedado dispor gratuitamente de bens do acompanhado.
[6] Quando for necessário praticar atos cuja eficácia ou validade dependa de autorização judicial, esta é pedida pelo representante legal do menor, pelo acompanhante do beneficiário ou, na falta deles, pelo Ministério Público.
[7] E também no citado Ac. da R. P.