Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
168/21.2JELSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIME DE FRAUDE FISCAL
DIREITO AO SILÊNCIO
PERDA DE PRODUTOS E VANTAGENS
Nº do Documento: RP20240207168/21.2JELSB.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Do legítimo exercício do seu direito ao silêncio, não pode o arguido esperar que o julgador fique inibido de valorar todos os demais elementos de prova carreados para os autos (desde que o faça respeitando as elementares regras de lógica e de experiência comum), concluindo que os factos ocorreram de determinada forma, assim como também não pode esperar que essa valoração se mostre obstaculizada, afinal, por qualquer explicação alternativa (e desde que a mesma revista similar força à luz da mesma lógica e experiência) para os mesmos factos.
II - Para que possa proceder a impugnação ampla da matéria de facto não basta estar demonstrada a possibilidade – que se «viabilize», para usar a expressão do recorrente – de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo, mostrando–se sim necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal.
III - O de regime perda de produtos e vantagens previsto no artigo 110º, nº1, al. b) do Cód. Penal, não impõe qualquer catálogo de crimes, mas apenas o apuramento de uma vantagem de facto ilícito típico, e ali não se exige que haja no processo uma efectiva condenação pela prática do facto típico em causa.
IV - Porém, terá, sempre, de tratar–se de um facto ilícito típico que se mostre previamente configurado e delimitado enquanto tal nos autos, e em sede de matéria de facto imputada desde logo na acusação deduzida.
V - Se o apelo à caracterização de determinado acto patrimonial como contextualizando um acto típico ilícito reportado a crime de natureza tributária – o de fraude fiscal prevista no art. 103º do RGIT, no caso – somente vem a ser suscitado no processo em sede recursória, tal putativo crime, na sua caracterização de tipicidade e ilicitude, além de não haver sido objecto de investigação e muito menos de imputação, não se mostra, de todo, configurado sequer nos seus contornos típicos e ilícitos próprios em sede de acusação.
VI - A proceder a pretensão subsidiária do recorrente Ministério Público de fazer valer a tese deste crime neste momento suscitado ex novo, teríamos configurada uma decisão que se traduziria numa violação dos princípios da legalidade, do acusatório, e dos direitos de defesa do arguido em sede de processo penal – para já não falar dos deveres de lealdade processual de que o próprio princípio da descoberta de verdade material não prescinde.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 168/21.2JELSB.P1

Tribunal de origem: Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Juiz 8 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.          RELATÓRIO

           No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) nº 168/21.2JELSB que corre termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 8, em 03/07/2023 foi proferido Acórdão, cujo dispositivo é do seguinte teor:

«          Decisão:

           Em face do exposto, decidem as juízes que compõem o Tribunal Colectivo julgar a decisão instrutória de pronuncia parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:

1.        Absolver o arguido AA da prática do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artigos 368º- A, nº 1, al. f), nº 2, nº 3 e nº 6 e art. 26º, 11º nº 1, nº 2, al. a), nº 4 e nº 7 do Código Penal, que lhe vinha imputado;

2.        Absolver a sociedade “A... Unipessoal Lda.” da prática do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artigos 11º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 4 e nº 7, 368º- A, nº 1, alínea f), nº 2, nº 3 e nº 6 e art. 26º do Código Penal, que lhe vinha imputado;

3.        Absolver a sociedade “B... Lda.” da prática do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artigos 11º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 4 e nº 7, 368º- A, nº 1, alínea f), nº 2, nº 3 e nº 6 e art. 26º do Código Penal, que lhe vinha imputado;

4.         Consequentemente, julgar improcedente:

4.1.      O pedido de condenação da arguida A... Unipessoal Lda., a pagar ao Estado a quantia de €802.143,15;

4.2.      O pedido de condenação da arguida B... Lda., a pagar ao Estado a quantia de €273.067,57.

4.3.      O pedido de condenação das sociedades A... Unipessoal Lda. e B... Lda. na pena acessória de dissolução de pessoa colectiva, prevista pelo artigo 90º-A do Código Penal;

5.         Sem custas, por não serem devidas.


*

6.        Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 5 (cinco) anos, acompanhada de regime de prova;

7.        Condenar o arguido CC pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

8.         Condenar o arguido AA:

8.1.      Pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão;

8.2.      Ao abrigo do disposto pelo art. 34º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01 e do art. 151º, nº 1, da Lei 23/07, de 4/7, na pena acessória de expulsão pelo período de oito anos, a executar nos termos do disposto no nº 4 do art. 151º da Lei 23/07, de 4/7;

8.3.      Ao abrigo do disposto pelo art. 7º, nº 1 e 2 da Lei 5/02, de 11/01, a pagar ao Estado a quantia de €544541,48 (quinhentos e quarenta e quatro mil quinhentos e quarenta e um euros e quarenta e oito cêntimos), por se tratar de vantagem de actividade criminosa por ele perpetrada;

9.        Condenar o arguido DD pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão;


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10.      Julgar improcedente o pedido formulado pelo Ministério Público de declaração de perda a favor do Estado da quantia de €3.254.335,00 (três milhões, duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros), alvo de despacho judicial de congelamento ao abrigo do artigo 49º, nº 6 da Lei 83/17 de 18/8.

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11.      Condenar cada um dos arguidos BB, CC e EE no pagamento das custas, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça - art. 513º, n.º 1 do CPP e art. 3º, nº 1, 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido aos arguidos BB (fls. 1132) e CC (cf. fls. 1088).

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12.      Declarar, ao abrigo do disposto pelos art. 35º, nº 2 e 62º, nº 6 do DL 15/93 de 22/1, perdidas a favor do Estado as substâncias estupefacientes ainda apreendidas nos autos e ordenar a sua destruição, com a posterior junção do respectivo auto.

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13.      Declarar, ao abrigo do disposto pelo art. 35º, nº 1 do DL 15/93 de 22/1, perdidos a favor do Estado:

13.1. - A mochila preta com o símbolo da marca Ferrari;

13.2. - A balança de precisão;

13.3. - O telemóvel de marca Samsung, modelo ..., de cor preta, com o número de série ..., os IMEIS ... e ... e o cartão SIM da C... com o número ...;

13.4. - O telemóvel da marca Iphone 11, com o IMEI ...;

13.5. - O telemóvel Iphone 12 de cor azul com o IMEI ...;

13.6. - O telemóvel de marca Samsung modelo ... com o IMEI ... (cf. auto de apreensão de fls. 233);


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14. -     Determinar, ao abrigo do disposto pelo ar. 186º do Código Penal, o levantamento da apreensão e a restituição:

14.1. - Ao arguido DD:

14.1.1. - Do telemóvel de marca Apple, modelo ... com o IMEI ..., com cartão SIM da C..., número ...;

14.1.2. - Do telemóvel de marca Alcatel, com o IMEI ... com cartão SIM da NOS, número ......;

14.1.3. - Da quantia monetária de €50 (cinquenta euros);


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14.2. - Ao arguido EE:

14.2.1. - Do Apple Watch Serie 3 (fls. 225);

14.2.2. - Da quantia de €50 (cinquenta euros);


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14.3. - Ao arguido CC da quantia de €290 (duzentos e noventa euros).

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           Cada um dos visados será notificado para proceder ao respectivo levantamento, no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizer, os objectos e valores mencionados serão considerados perdidos a favor do Estado.

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15.       Manter, ao abrigo do disposto pelo art. 12º da Lei 5/2002 de 11/1, o arresto dos seguintes bens e valores do arguido AA:

15.1.     conta de depósito à ordem n.º  ..., por ele titulada junto do Banco 1..., SA;

15.2.     conta de depósito à ordem n.º  ..., co-titulada por ele e pela sua mulher, FF, junto do Banco 1..., SA;

15.3.     conta de depósito à ordem n.º  ..., junto do Banco 1..., SA, titulada por GG, filho menor do arguido AA e em relação à qual dispõe de poderes de movimentação e representação;

15.4.     Quota, no valor nominal de €10.000,00, por ele titulada na sociedade A... Unipessoal, Lda.;

15.5.     Quota, no valor nominal de €160.000,00, por ele titulada na sociedade B..., Lda.;

15.6.     Quota, no valor nominal de €240.000,00, por ele titulada na sociedade B..., Lda.


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16.       Determinar, ao abrigo do disposto pelo art. 11º, nº 3 da Lei 5/2002 de 11/1, o levantamento do arresto dos seguintes bens e valores da sociedade A... Unipessoal, Lda.:

16.1.     Da conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA;

16.2.     Dos valores cativos na conta de depósito à ordem n.º  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA

16.3.     Da conta de depósito à ordem n.º  ..., por ela titulada junto da Banco 2..., SA.;


*

17.       Determinar, ao abrigo do disposto pelo art. 11º, nº 3 da Lei 5/2002 de 11/1, o levantamento do arresto dos seguintes bens e valores da sociedade B..., Lda.:

17.1.     Da conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA;

17.2.     A conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 3..., S.A.;

17.3.     A conta de depósito à ordem nº  ... por ela titulada junto da Banco 2..., SA.


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18.       Manter a medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido EE se encontra sujeito, cujo prazo máximo passa a ser, neste momento, de três anos e quatro meses (art. 215º, nº 1, al. d) e nº 3 do Código de Processo Penal).

*

19.       Manter a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica a que os arguidos CC e DD se encontram sujeitos, cujo prazo máximo passa a ser, neste momento, de três anos e quatro meses (art. 215º, nº 1, al. d) e nº 3 do Código de Processo Penal).

*

20.      Ao abrigo do disposto pelo art. 214º, nº 2 do Código de Processo Penal, declarar extinta a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica a que o arguido BB se encontra sujeito e, consequentemente, determinar que sejam, de imediato, desinstalados os mecanismos de vigilância.

           Comunique a presente decisão à Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais para que dê cumprimento ao ora determinado. »

           Inconformados com o Acórdão proferido, do mesmo vierem a ser apresentados os seguintes recursos :

i.         em 02/08/2023, recorreu o arguido CC, extraindo da motivação as seguintes conclusões :

1 -       O acórdão padece de nulidade por violação das normas conjugadas dos arts 374 nº 1 al d),nº 2 e 379 nº 1 al a) e c) do C.P.P.

2 -       A referida nulidade consubstancia-se na falta de ponderação de documentos juntos pelo arguido em sede de audiência de julgamento, atinentes à sua inserção laboral, designadamente, a falta de concretização da modalidade e período temporal da actividade profissional por si exercida.

3 –      Isto é, o acórdão, eleva à categoria de factos provados os pontos 228, 256, 262 e 263, concluindo que ao longo da sua vida manteve hábitos de trabalho, porém, a concretização de que tal sucedeu durante 19 anos de forma contínua e de acordo com os critérios legais, assume particular relevo no que tange à determinação da medida e espécie de pena aplicar, quando conjugada com a materialidade dada como assente, de que o arguido se restituído à liberdade tem assegurada a sua contratação como distribuidor de produtos de alimentação animal, cfr declaração de fls. 2396 e ponto 229.

4 -       Tal omissão de pronúncia ,"... nos termos das combinadas disposições nos arts 368 nº 2, 374 nº 1 al d), nº 2, 379, al a) e c) do C.P.P, com a consequência expressamente prevista no nº 1 do art.122 do referenciado Diploma Processual Penal..., nos termos dos arts 426 e 436, ainda do C.P.P..."obriga ao reenvio do processo para a realização de novo julgamento, abrangendo esta questão em concreto, a efectuar pelo Tribunal de categoria e composição idênticas ás do Tribunal recorrido.

5 -       Violou-se o disposto nos arts 374 nº 1 al d), nº 2 , 379 nº 1 al a) e c), 97 nª 5, todos do C.P.P e 205 da CRP., 374 nº 1 al d), nº 2 do C.P.P, quando conjugada com o artigo 379 nº 1 al a) e c) e 97 nº 5 do C.P.P, na interpretação que foi acolhida pelo Tribunal, no sentido de omitir na factualidade dada como provada, a modalidade e o período de tempo da actividade profissional desenvolvida pelo arguido, por violação do art 205 da CRP.

7 -       A determinação da medida da pena parte do postulado de que as finalidades de aplicação das penas são, em primeiro lugar, a tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, constituindo a medida da culpa o limite inultrapassável da medida da pena.

8 -        Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art 71 do C.P.), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.

9 -       Ponderada a globalidade da matéria factual provada, a medida da pena encontrada para o arguido é excessiva.

10 -     As razões que fundamentam a posição ora assumida, encontram-se vertidas na motivação do recurso ora interposto, Item B- pontos 5 a 36 que aqui se dão por reproduzidas para os efeitos legais.

11 -     Em súmula enuncia o conjunto de circunstâncias mitigadoras do grau de ilicitude dos factos e da culpa, bem como das exigências da prevenção geral e especial que o caso impõe e que no modesto entendimento do recorrente, o tribunal não valorou suficientemente:

11.1 -   O grau da sua participação circunscrita à proposta do negócio e à angariação de destinatário para o produto estupefaciente.

11.2 -   O arguido CC não tinha acesso ao fornecedor do estupefaciente, não tinha acesso aos valores da transacção e não participou no transporte do referido produto na viagem de Lisboa ao Porto.

11.3 -   A droga foi entregue pelo arguido EE ao arguido BB.

11.4 -   O arguido CC foi detido juntamente com o arguido BB, uma vez que, o destinatário do produto estupefaciente, não se deslocou ao local para onde foi transportado o produto estupefaciente.

11.5 -   Como contrapartida iria obter a quantia de €500,00.

A factualidade supra descrita, está suportada, nas declarações prestadas pelos arguidos pela testemunha Inspector HH, registado na gravação áudio da audiência de julgamento, entre as 14h 38m e as 16h 33m do dia 18-04-2023, no ficheiro áudio – Diligencia_168-21.2JELSB_2023-04-18_14-38-00, do minuto 01:44:50 ao minuto 01:45:07. em resposta à advogada, do minuto 01:41:10 ao minuto 01:41:14.e do minuto 01:45:56 ao minuto 01:46:1,. corroboradas pelo teor das intercepções telefónicas transcritas nos autos- sessões 18632 e 18667, do alvo 120393040 - correspondente ao número de telefone ...- número utilizado pelo arguido CC- cfr auto de apreensão de fls. 224, no documento de fls. 77 e no auto de recolha informação de fls. 81 - ponto 2.2 dos factos provados.

11.6 -   Existia uma relação de subordinação entre o arguido CC e arguido EE, por força da relação de trabalho existente entre ambos.

11.7 -   A droga apreendida não se trata de uma quantidade muita significativa de cocaína, atento ao seu grau de pureza de 17,2% , que possibilitaria a obtenção de 1262 doses.

11.8 -   O produto estupefaciente não foi disseminado, ainda que por força da intervenção policial, e também por via disso, não foi obtida qualquer contrapartida monetária.

11.9 -   A actividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo pelo recorrente, ocorreu num curto período de tempo e nas descritas circunstâncias não assumiu, uma dimensão indiciadora duma actividade de tráfico organizada, sofisticada, cfr factos dados como não provados, als a), b), d) e m), fls 54 do acórdão.

11.10 - O arguido não era o destinatário do produto estupefaciente, não era quem o iria comercializar, nem o beneficiário dos proventos obtidos com a sua comercialização.

11.11 - O arguido CC admitiu a prática dos factos que se vieram a comprovar e declarou-se arrependido por assim ter procedido. Cfr ponto 301 dos factos provados.

As suas declarações contribuíram, de forma relevante, para o esclarecimento dos factos, contribuindo para a condenação dos arguidos EE e DD que se remeteram ao silêncio.

11.12 - O arguido beneficia de enquadramento familiar, tendo mantido ao longo dos anos hábitos de trabalho em diversas actividades, efectuando os respectivos descontos para a segurança social.

11.13- Se restituído à liberdade tem possibilidade de vir a ser contratado como distribuidor de produtos de alimentação animal, conforme declaração de fls. 2396.

11.14 - Não regista antecedentes criminais por crime da mesma natureza.

11.15 - Enquanto detido preventivamente no E.P ... assumiu um comportamento ajustado, sem registo de qualquer punição, comportamento que mantém enquanto sujeito a OPHVE.

11.16 - Beneficia de acompanhamento médico pela especialidade de psiquiatria no Hospital ....

12 -     Pese embora sejam elevadas as necessidades de prevenção geral e especial ínsitas ao crime de tráfico de substâncias estupefacientes, dado o perigo que o mesmo representa para a saúde pública e os efeitos sociais perniciosos que lhe estão associados, acentuados pela quantidade e qualidade de produtos estupefacientes, cuja detenção e transporte se apurou, os factores supra mencionados atenuam tais exigências desde logo, porque as necessidades de prevenção especial, estão atenuadas face à confissão e juízo critico que o arguido apresenta. período de detenção sofrido, enquadramento familiar e laboral que dispõe.

13 -     Na comunidade, inexistem sentimentos de rejeição à sua pessoa, circunstância que permite antecipar que não se verificam constrangimentos ao seu eventual regresso.

14 -     Face aos critérios legais (arts. 40º, 70º e 71º do C.P) o recorrente deveria ser punido atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, em pena não superior a 5 anos de prisão.

15 -      A decisão recorrida violou, nessa parte, os arts. 70º e 71, do C. P.

16 -     Em face do quantum da pena ora sugerida, coloca-se a questão de saber se não deverá a mesma ser suspensa na sua execução.

17 -      Pois que a ser deferida a pretensão do recorrente, no caso dos autos, está verificado o pressuposto formal da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, já que a medida da pena concreta sugerida ao arguido não deverá ser superior a cinco anos.

18 -    O recorrente entende estar também verificado o pressuposto material dessa mesma aplicação, atento ás razões aduzidas nos pontos 3 a 21 do Item-C da motivação de recurso, que aqui se dão por reproduzidos.

19 -      Da análise da matéria de facto, ressalta que a actuação do arguido CC se balizou nos termos descritos no pontos 11.1 a 11.10 das conclusões, não obstante visasse o transação do produto estupefaciente apreendido Pese embora as elevadas exigências de prevenção geral e o grau de culpa do arguido, agiu com dolo directo. Todavia, além de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais por crime de idêntica natureza (na data dos factos contava 38 anos de idade), parece-nos, no caso, ser de valorar positivamente a seu favor a postura de auto-responsabilização perante o tribunal e o seu grupo de pares, que assumiu em audiência, esclarecerendo, de modo livre e espontâneo, os factos por cuja prática assumia a responsabilidade, e que, efectivamente se vieram a comprovar, declarando-se arrependido por assim ter procedido. Além de as suas declarações terem contribuído, de forma decisiva, para a descoberta da verdade material.

20 -      Conjugando o supra descrito, como o seu percurso de vida marcado por hábitos de trabalho, a possibilidade comprovada de ocupação laboral, quando restituído à liberdade e apoio familiar de que dispõe, perfilhamos o entendimento, que pese embora as prementes exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, atenta a natureza do crime, não serão de molde a obstar que a pena imposta ao arguido CC, seja suspensa na sua execução, pois o seu percurso de vida aponta para estarmos perante um episódio isolado, o que aliado à sua postura em audiência permite fazer um juízo de prognose favorável no sentido de que a suspensão da execução da pena será suficiente para o manter afastado da criminalidade, ainda que sujeito ás condições elencadas no ponto 14 do item C- da motivação de recurso, afigurando-se que durante o período probatório e o cumprimento das mesmas irão, de certo, assegurar o necessário acompanhamento a fim de evitar que situações como a presente se repitam.

21 -      A decisão recorrida violou, nessa parte, os arts 50, 51, 52, 53, 54 do C. P.

           Termos em que, pelos fundamentos supra expostos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a decisão recorrida.

ii.       em 05/08/2023, recorreu o arguido DD, extraindo da motivação as seguintes conclusões :

a)       Vem o presente recurso interposto do Acordão proferido pelo J8 do Juízo Central Criminal de Vila do Conde do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que decidiu condenar o arguido DD pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão;

b)       O Recorrente não se pode conformar com o Acórdão recorrido fundamentalmente por não ter praticado os factos que contra ele foram julgados provados;

c)        Entende, ainda, que tais factos não são, de todo o modo, suficientes para a sua Condenação pelo crime em causa ou por qualquer outro crime e que a decisão enferma de vários erros e de diversas nulidades;

d)       A introdução do aqui recorrente no presente processo resulta tão somente porque no dia 02 de Setembro de 2021, foi encontrado dentro das Instalações da fábrica B... Lda, sitas Rua ..., ..., na Zona Industrial ...;

e)        Cumpre, pois apreciar em que termos foi realizada a busca às Instalações da fábrica B... Lda, sitas Rua ..., ..., na Zona Industrial ..., bem como a legalidade da obtenção das provas daí decorrentes;

f)       No caso concreto inexiste despacho a autorizar ou a ordenar busca que consta a fls 226; inexiste consentimento, nem de terceiros, nem do titular do consentimento para o prestar;

g)        A busca, por ausência de legitimação é nula;

h)       Inexiste qualquer fundamento legal, não sendo aplicável, objectivamente, nenhuma das situações previstas no n.º 5 do art.º 174.º do CPP, como se demonstra pela prova produzida durante as sessões de audiência de julgamento;

i)        A busca não foi validada, tal como também não foi consentida, violando o disposto no art.º174.º n.ºs 6 e 7 do CPP;

j)         Impondo-se, desde logo, que seja declarada como nulidade insanável a busca realizada no dia 02 de Setembro de 2021, nas instalações de uma pessoa colectiva, a sociedade “B...”, sitas Zona Industrial ..., Rua ..., ..., ..., o que leva a que, inevitavelmente, a que a apreensão de fls. 226 também esteja ferida de nulidade insanável termos das disposições conjugadas dos artigos 174º, n º 6 do CPP, 18º, n º 1, n.º 8 do art.º 32.º e 34º da CRP e do art, 119º, al.b) do CPP;

k)       O Acordão é nulo por aplicação do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP;

l)        Em consequência terão de ser considerados como não escritos e não valorados todas as provas obtidas em consequência da referida Busca, nomeadamente, os pontos 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49 e 52, bem como todas as referências ás provas obtidas através das buscas realizadas no dia 02 de Setembro de 2021, ás instalações da fábrica da sociedade B...”, sitas Zona Industrial ..., Rua ..., ..., ..., e os factos afirmados através das mesmas do douto Acordão;

m)      Não existe nos autos, nenhuma prova que com toda a certeza e probabilidade possa imputar ao recorrente a prática do crime, do qual foi injustamente condenado;

n)       Resulta do Douto Acordão que o Tribunal “ a quo” que alicerçou a sua convicção nas declarações de dois co-arguidos e declarações do Inspector HH;

o)       Das declarações dos co-arguidos não existem menções que possam, com a mínima segurança, imputar ao recorrente a prática do crime de tráfico “papel” de transportador de cocaína, sem que para tal tenha provas evidentes que o confirmem, pelo contrário, os co-arguidos afastam qualquer envolvimento do Recorrente, apesar do Tribunal “a quo” insistir junto desses arguidos para alvitrarem sobre meras suposições, sem qualquer prova que o sustente;

p)       Os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado, no que ao recorrente DD diz respeito;

q)       É patente, evidente e manifesta a insuficiência de factos, para considerar como provada a matéria constante nos pontos 24 e 25, 31, 34 e 48, e em consequência, tem de ser eliminada a referência ao produto estupefaciente “cocaína” nos pontos 24, 25, 31, 34 e a menção ao nome do recorrente no ponto 48 do Douto Acordão;

r)        De outro modo é por demais evidente existir uma violação do disposto nos art.ºs art.º 32º, 1 e 5 da CRP e art.º 122º 1 do CPP;

s)       O Douto Acordão enferma de nulidade por aplicação acórdão de fixação de jurisprudência 7/95 de 19-10-1995;

t)         Em consequência deverá o arguido ser absolvido por não se verificar preenchido o elemento objetivo do tipo de crime de tráfico de estupefaciente imputado ao ora recorrente;

u)       O Tribunal “a quo” formou a sua convicção nos depoimentos dos co-arguidos, os quais referem que não sabem e nada viram e portanto não permitem de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto(...);

v)      O que consubstancia um erro notório na apreciação da prova art,º 410.º n.º 2 al. c), por manifesta violação do princípio da presunção da inocência plasmado no art.º 32.º n.º 1 da CRP;

w)      De outro passo o Tribunal “ a quo” imputa ao recorrente a responsabilidade para este explicar o porquê da sua deslocação desde Lisboa; ora em Processo Penal o ónus de fazer prova sobre os factos constantes na acusação, por força do principio do acusatório, compete única e exclusivamente ao Ministério Público, e nunca ao arguido, nem prejudicar o arguido, porque este não explicou um facto que constava na acusação, violando o princípio da legalidade, uma vez o Tribunal “ a quo” viola o disposto no art.º 32.º n.º 5 da CRP e, consequentemente, o princípio da presunção da inocência, também plasmado no art.º 32.º n.º 2 da Lei fundamental;

x)       Pelo que, deverá eliminada a alusão ao recorrente DD relativamente aos factos constantes nos pontos 1, 2.4 e 23 a 52 por manifesta violação do princípio da presunção de inocência e por se tratar de um erro notório na apreciação da prova;

E, sem prejuízo tudo consta do recurso,

y)       Sempre deve prevalecer o princípio da presunção da inocência, que tem como consequência, na ausência suficiente de provas, por desmérito da investigação, como sucede no presente caso, impõe que o arguido tem de ser absolvido.

Razões e argumentos pelos quais devem Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, decidir pela procedência do Recurso ora interposto, e em consequência absolver o arguido da prática dos crimes que lhe são imputados.

Termos em que deve ser revogada o douto Acórdão recorrido e o Arguido ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.

iii.      e, em 04/09/2023, recorreu o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões :

1.         Recorre-se do douto Acórdão proferido na parte em que se decidiu absolver os arguidos EE Unipessoal, Lda. e B... Lda. do crime de branqueamento de capitais.

2.        Incide a presente impugnação sobre a decisão proferida em matéri de facto e em matéria de direito, ressaltando do texto da decisão contradições e erros de apreciação que, expurgados da decisão, permitiriam concluir pela prova de factos dados como não provados, que redundaram na absolvição dos arguidos quanto ao crime de branqueamento de capitais.

3.       Qualquer operação de tráfico de cariz internacional pressupõe recursos financeiros preexistentes e a sua movimentação e ocultação não é necessariamente ulterior a uma qualquer operação de tráfico concreta.

4.        Devendo ser suficiente uma prova genérica sobre a relação entre a actividade de tráfico de estupefacientes e a da ocultação/reciclagem dos seus proveitos.

5.        No caso, afirmado o papel de liderança do arguido EE nos factos apurados, assim como a existência de elementos de prova quanto à origem dos avultados recursos financeiros movimentados, o tráfico de estupefacientes apresenta-se como o crime que esteve na origem dos proventos financeiros movimentados pelo arguido.

6.        Na decisão em apreço, denota-se não se ter tido em devida conta um conjunto de factos e elementos de prova documentais, periciais e testemunhais que, conjugados com regras da experiência comum, apontavam de forma segura para a existência de uma relação entre o tráfico de estupefacientes e os actos integradores do crime de branqueamento de capitais apurados.

7.        No que concerne aos factos que mereceriam apreciação diversa, temos desde logo o facto não provado na al. a), na parte em que não se considerou que o arguido EE tinha ligações a rede internacional de tráfico de estupefacientes e os factos não provados nas als. r), s), t), ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww), integradores dos elementos objectivos e subjectivos do crime de branqueamento de capitais acusado.

8.         Mais se pretende impugnar os factos provados 21 a 23, na medida em que na redacção dos mesmos não se verte a realidade claramente apurada nos autos, resultante das intercepções telefónicas e da confissão do arguido CC, no sentido de que a iniciativa da operação e o controlo dos meios, designadamente quanto aos contactos necessários à obtenção da cocaína apreendida, coube ao arguido EE.

9.       Ainda cumprirá alterar o facto provado 79, no sentido de que a operação descrita nos arts. 68 a 78, teve proveniência no tráfico de estupefacientes.

10.     Toda a atuação apurada quanto ao arguido EE e às sociedades por si dominadas, viabiliza a associação das práticas de ocultação financeira demonstradas com a realidade de tráfico de estupefacientes, revelada nos autos em forma de crime consumado em Setembro de 2021.

11.       O elevado número de operações de depósito de numerário associando o arguido EE à posse de avultadas quantias em “dinheiro vivo”, relacionadas com a ausência de actividade remunerada própria compatível, assim como das suas sociedades aqui arguidas, conforme se demonstra nos arts.47. i, 66., 82., 83., 151., 157., 169., 170., 171., 186., 192., 194., 195., 204., 215., 217., sendo que a falta de substracto económico próprio e das sociedades arguidas que justificassem a detenção de avultadas quantias em numerário, resulta dos arts.53. a 61., 76., 158., 160., 168., 177, 178 e 179 a 221 da decisão recorrida.

12.     Os frequentes depósitos de elevadas quantias em numerário, designadamente em moeda metálica, seguidos de transferências para entidades terceiras, sem qualquer justificação económica ou contabilística, revelam afinidade de procedimentos com o branqueamento de proveitos de tráfico de estupefacientes e mostram-se pouco compreensíveis no âmbito de outra criminalidade, considerando o que se apurou sobre o percurso de vida conhecido do arguido EE.

13.      A forma como o arguido lidera e tem o domínio dos meios que levaram à detenção e transporte do quilo e meio de cocaína apreendido nos autos a 2 de Setembro de 2021, não se mostra devidamente reflectida na decisão, pese embora resulte inequivocamente dos factos resultantes à titularidade das sociedades, à relação laboral, assim como de outros meios de prova explanados e escalpelizados na fundamentação do Acórdão.

14.      O carácter não instantâneo da operação que redundou no transporte e detenção do quilo e meio de cocaína resulta das intercepções de conversas telefónicas exaradas nos apensos de escutas.

15.      Ainda que não seja possível relacionar o teor da ocorrência de Maio de 2021 com a operação de Setembro, o certo é que a mesma, vertida nos pontos 4. a 12. da factualidade apurada, na sua aparência, apresenta contornos próprios da actuação da criminalidade organizada.

16.      Já no que concerne aos factos integradores da autoria do crime de branqueamento de capitais, toda a economia da fundamentação de facto da decisão recorrida é no sentido de demonstrar relativamente às operações financeiras descritas nos arts. 65 a 122., 128., 129., 147 e 148. dos factos provados, não apenas a falta de justificação económica ou racional das mesmas, por não lhes subjazerem qualquer prestação de serviço ou negócio mantido com a A..., interveniente primordial naquelas, mas uma verdadeira intenção de ocultação da proveniência ilícita dos fluxos financeiros elencados.

17.     É de notar estar-se perante uma exuberante sucessão de transacções avultadas, mediante o sistemático recurso a uma sociedade que se apurou não desenvolver actividade dentro do seu objecto social ou outro, compatível com a entrada e saída de tamanhas quantias, com indiciária ocultação dos movimentos perante a contabilidade e a administração tributária, sem nenhuma preocupação na produção documental de suporte, com a pedra de toque das pifias tentativas de encobrimento que a apresentação dos estudos de mercado, em sede de julgamento, pelas testemunhas responsáveis pelas entidades terceiras intervenientes, necessariamente revela.

18.     Considerando a quantidade e frequência das operações suspeitas apuradas e a patente incongruência dos elementos, ou puro mutismo, manifestados pelo arguido EE perante as entidades bancárias nos procedimentos de prevenção de branqueamento, assim como a falta de credibilidade judicialmente reconhecida na decisão, sobre as testemunhas associadas às entidades terceiras intervenientes nas operações, apenas se pode concluir que os actos supra apontados revelam uma clara intenção de ocultação da real proveniência e contexto das operações associadas.

19.     Assim, apresenta-se particularmente significativo a multiplicidade de situações economicamente irracionais e estranhas às práticas comerciais inerentes a negócios legítimos, desde a compra e manutenção de uma fábrica de cerveja que não vende cerveja, que acaba por ser utilizada como base para o trafico de droga, às transferências de quantias avultadas de e para sociedades sem actividade real ou para pagamento de serviços fora do objecto social ou em montantes totalmente desproporcionados à faturação das entidades beneficiarias.

20.       Existindo manifesto erro de apreciação e contradição com toda a demais fundamentação apresentada nesta sede, cumprindo corrigir o decidido, levando à matéria de facto provada as alíneas a), r), s), t), ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww), nos termos explanados na motivação.

21.     Revertendo-se a apreciação dos factos apontados, revertida terá igualmente de ser a decisão, quanto à integração das condutas do arguido e das sociedades arguidas por si detidas e dominadas no âmbito do crime de branqueamento de capitais, condenando-se aqueles numa pena situada nunca antes do meio da moldura abstractamente aplicável, considerando a duração da conduta e os valores convertidos e transferidos pelo arguido AA, utilizando as sociedades arguidas, em particular a A....

22.     Com a condenação dos arguidos pelo crime de branqueamento de capitais, deverão igualmente ser condenadas as sociedades arguidas na perda da vantagem da actividade criminosa, consistente no património incongruente apurado, em conformidade com a liquidação efectuada em sede de acusação.

23.      Em função da procedência da alteração da matéria de facto apurada, em conformidade com a impugnação que antecede, importa extrair consequências da clarificação da quantia de €3.254.335,00, enquanto vantagem proveniente de crime de tráfico de estupefacientes e declarar, ao abrigo do disposto no art. 110º, nº2 al. b) do CP, o perdimento de tal quantia, in totum, a favor do Estado.

24.     De forma subsidiária ao pedido principal do presente recurso, entende-se, ainda que não se considere provada a proveniência da quantia e transferência em causa, enquanto vantagem proveniente de crime de tráfico de estupefacientes, que a mesma não pode deixar de ser vantagem proveniente da prática de facto ilícito típico e, enquanto tal, sujeita ao mecanismo de perda previsto nos arts. 110º e 111º do CP.

25.     Apurada a ausência de actividade comercial ou real da A..., resultante quer da perícia financeira constante do Apenso IV, quer das declarações à autoridade tributária (fls.28 e 35 do apenso do GRA), das quais resulta nada ter declarado em sede de IVA ou IRC relativamente ao ano de 2021, assim como do inusitado número de operações de branqueamento apuradas, acima elencadas, a par da falsidade das pífias tentativas de demonstração de justificação económica de algumas operações, demonstra-se o papel da A... como empresa de fachada ou de mera passagem de fluxos financeiros.

26.     A sociedade A..., ao não exercer uma actividade real, ao não declarar as transacções e rendimentos revelados, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC, nem qualquer trabalhador ao seu serviço, está comprometida, para além do que ressalta sobre o crime de branqueamento já supra defendido, com a prática do crime de fraude fiscal p.e.p. pelos arts. 103º e 104º do RGIT.

27.      Os documentos apresentados para justificar a transferência do dia 24/03/21, foram judicialmente considerados inidóneos e mesmo falsos, conforme decorre da fundamentação do Acórdão.

28.     Ora, a ocultação de dados relevantes, constitui, pelo menos, “a ocultação de factos ou valores que deviam ser revelados à administração tributária, conduta tipificada como crime de fraude fiscal no art. 103º nº 1 al. b) do R.G.I.T.

29.      Ademais, a sociedade A... obteve com tal conduta o óbvio benefício de utilizar a conta bancária nº ..., aberta, no dia 13/09/2019, na agência de ..., no Porto, pelo arguido AA, na qualidade de único sócio e gerente daquela sociedade, para viabilizar a transferência de uma elevadíssima quantia monetária de proveniência indiciariamente ilícita para Portugal.

30.     Ao desenvolver a operação do dia 24/03/21 e ao não reflectir a mesma nas suas contas ou em qualquer declaração à AT, a sociedade A... incorreu na prática, para além do crime de branqueamento, de um crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103º do RGIT.

31.     O cerne do mecanismo da perda de vantagens tem como escopo prioritário evitar o enriquecimento patrimonial por via criminosa.

32.     Havendo factualidade que indicie a existência de vantagens geradas pela prática de facto ilícito, há necessidade do seu confisco, independentemente da punição de um qualquer autor por tal facto.

33.     O art. 110º, nº1, al. b) do CP não impõe qualquer catálogo de crimes, mas apenas o apuramento de uma vantagem de facto ilícito típico.

34.     Assim, a falta de elementos quanto ao autor da transferência de 3.254.335,00€não deve obstar, na medida em que o conjunto da factualidade apurada permite concluir tranquilamente a natureza de vantagem proveniente de facto ilícito típico de tal quantia, ao perdimento de tal vantagem ao abrigo do disposto no art. 110º do Código Penal, o que se requer.

35.     Ao fixar os factos provados no sentido que infra se impugna, violou a decisão recorrida o disposto no art.º 127º do CPP, articulado com a mais adequada interpretação da norma incriminadora, prevista no art. 368º-A do CP.

36.      Ao decidir pela improcedência do pedido de perda alargada formulado pelo Ministério Público, quanto às sociedades arguidas B... e A..., violou a decisão recorrida o disposto no artº7º, nºs 1 e 2 da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro.

37.      Ao decidir pela improcedência do pedido de perda clássica formulado, incidente sobre a quantia de 3.254.335,00 (três milhões, duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros), violou a decisão recorrida o disposto no art. 110º do Código Penal.

Assim, deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o Acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, de harmonia com a motivação e conclusões expostas:

a.       Considere provados os factos dados como não provados nas als. r), s), t), ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww), no acórdão;

b.       Altere a redacção dos arts.21, 23 e 79;

c.       Condene os arguidos AA Unipessoal, Lda. e B... Lda., pela prática de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artigos 368º- A, nº 1, al. f), nº 2, nº 3 e nº 6 e art. 26º, 11º nº 1, nº 2, al. a), nº 4 e nº 7 do Código Penal., numa pena concreta adequada e próxima do meio da moldura abstractamente aplicável;

d.       Julgue procedente o pedido de perda alargada a favor do Estado, condenando as sociedades arguidas A... Unipessoal, Lda. e B... Lda. a pagarem ao Estado, respectivamente, as quantias de 802.143,15€e 273.067,57€, indicadas na liquidação subsequente ao despacho de acusação;

e.       Julgue procedente o pedido de perda (clássica) a favor do Estado da quantia de 3.254.335,00 (três milhões, duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros), por se mostrar apurado constituir a mesma vantagem proveniente da prática de facto ilícito típico.

Os recursos foram admitidos.

A estes recursos vieram a ser apresentadas as seguintes respostas :

a.       o Ministério Público respondeu ao recurso do arguido CC, propugnando pela respectiva improcedência, e referenciando essencialmente o seguinte :

Da nulidade do Acórdão

O arguido defende ter existido omissão de pronúncia da decisão, consistente na não concretização do respectivo percurso profissional, conforme descrito na contestação.

É patente não existir qualquer nulidade, uma vez que compete ao julgador apreciar, de todos os factos insertos pelos demais sujeitos processuais nos articulados – acusação e contestação, aqueles que sejam relevantes para a decisão a proferir, sendo certo que o que vem vertido nos factos provados em sede do percurso laboral do arguido, é mais do que suficiente para a aplicação do direito, no caso, em sede de determinação e medida da pena, nada se tendo omitido factualidade que justificasse decisão distinta. Aliás, o recorrente nem sequer especifica em que medida a não inserção de qualquer facto relativo à situação pessoal e profissional do arguido releva para a decisão, tal como veio a ser proferida.

Da medida da pena

Vem ainda o recorrente invocar não ter o tribunal ponderado o diferente nível de atuação dos arguidos comparticipantes, considerando a existência de superioridade hierárquica e no acesso aos recursos necessários ao desenvolvimento da actividade ilícita, por parte do arguido EE, o que não vem reflectido na medida da pena do arguido recorrente.

Mais se faz alusão a considerações ao nível da ilicitude, como seja o grau de pureza do produto apreendido e a circunstância não ter existido disseminação do mesmo pela população.

Finalmente, ao nível da prevenção especial, reclama-se de não ter sido devidamente ponderada a confissão do arguido Contudo, todas as circunstâncias agora alegadas foram devidamente consideradas e reflectidas na decisão quanto à pena do arguido, com a ressalva do papel preponderante do arguido EE, conforme já defendemos em sede de recurso, sendo certo que tal circunstância poderia relevar mais em sede de agravamento da pena do arguido EE do que propriamente na degradação da pena do arguido CC.

Se é verdade ter confessado os factos quanto ao que lhe vinha imputado, entende-se que, para além do facto de existir outra prova evidente da sua participação, a postura em julgamento não foi, no nosso entender, de total colaboração com a descoberta da verdade, designadamente no que concerne à matéria do crime de branqueamento de capitais acusado, em discrepância ao que havia expressado em sede de intercepções telefónicas, articulado com o mais que resulta de prova documental nessa sede.

A motivação meramente económica, para quem vinha a auferir generoso ordenado e aparentemente dotado de qualidades laborais suficientes à adopção de uma vida independente e até equilibrada, revela uma personalidade desvaliosa, em matéria relativamente à qual a reprovação social é consensual.

b.       o Ministério Público respondeu ao recurso do arguido DD, concluindo da seguinte forma :

Da nulidade da busca

Já foi arguida, apreciada e decidida, em sede de instrução, a questão da nulidade da busca, que ora se pretende ver reapreciada em sede de recurso.

Apesar do silêncio, em sede de contestação, vem o arguido reiterar a inexistência de despacho judicial ou de consentimento para a realização de busca nas instalações da sociedade B..., sita na Zona Industrial ..., Rua ..., ....

Remete-se, aqui, na íntegra, para o teor de fls. 3 e 4 do despacho de pronúncia, onde se indeferiu idêntico pedido de nulidade, não tendo sido interposto recurso de tal decisão.

Efectivamente, a busca em apreço mostra-se integralmente justificada à luz do disposto no art. 174º, nº5, als.a) e c) do CPP, pelo que não carece de qualquer validação ulterior.

As apreensões realizadas foram igualmente validadas por despacho da autoridade judiciária competente, nos termos do disposto no art. 178º, nº3 do CPP, conforme ressalta do despacho de 287 e ss. dos autos.

Acresce que, a existir qualquer irregularidade, a mesma mostra-se já sanada pelo decurso do tempo, sendo certo que nenhuma nulidade absoluta ou proibição de prova se revela nos autos.

Da impugnação da matéria de facto

O recorrente confunde os fundamentos da impugnação, aludindo a insuficiência da matéria para a decisão, como fundamento de revista ampliada.

Contudo, nenhum argumento se alinhava nessa sede, passando a comentar, com reprodução parcelar de declarações de arguidos e depoimento de testemunhas, a apreciação da prova feita pelo tribunal.

Com efeito, o arguido não logra efectuar uma apreciação conjugada com todos os elementos de prova atendidos e explanados na decisão, fazendo uma apreciação atomizada e, em muitos casos, invocando elementos e argumentos sem ligação racional à matéria de facto conforme veio a ser fixada.

Não se aponta nenhum segmento de prova testemunhal ou outra que coloque em causa o raciocínio linear e compreensivo efectuado pelo tribunal, no que concerne à participação do arguido no crime de tráfico apurado, apenas se discordando da dedução efectuada pelo Tribunal colectivo.

Do conjunto da prova descrita, com destaque para o declarado pelo arguido CC e pelo inspector HH, resultou ter o arguido transportado, de forma livre, voluntária e consciente, de Lisboa para o Porto, no interior de uma mochila de sua propriedade, cerca de quilo e meio de cocaína que veio a ser apreendida nos autos. Por outro lado, nenhuma prova se produziu que explicasse a presença do arguido naquele local, que não fosse na lógica da consumação do plano criminoso desvendado em flagrante delito, sendo certo que os intervenientes EE e CC asseguraram antecipadamente de que nenhum funcionário ou pessoa alheia ao “esquema” implementado ali se encontrasse, naquele dia e hora (cfr. factos 27. e 28. da matéria de facto provada).

No entanto, depois do transporte o arguido DD ali se manteve, pelo menos meia hora até ao flagrante que justificou a entrada e apreensão subsequentes.

Faltou ainda ao recorrente articular devidamente o teor da prova declarativa com a prova documental, designadamente o teor dos autos de revista e apreensão constantes de fls.221 e ss. e da prova fotográfica de fls.227 e ss.

Por último, é a própria esposa do arguido que confirma que a mochila apreendida, onde se apurou ter sido transportado o produto estupefaciente, pertencia ao arguido e que o mesmo a levou consigo nesse dia.

Em suma, refira-se que a matéria de facto dada como provada no Acórdão reproduz, com fidelidade, o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento, encontrando-se devidamente fundamentada a convicção do julgador, em termos que subscrevemos inteiramente.

Assim, não se vislumbra a existência de qualquer erro lógico-dedutivo na motivação, tendo o tribunal conjugado as provas supra expostas, analisando criticamente toda a prova produzida.

Convirá, a propósito, ter presente o princípio da livre apreciação da prova em processo penal: "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente" - cfr. art. 127º do citado código.

Lendo a decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação de facto e a indicação das provas, não se vislumbra que ao assentar os factos provados o julgador tivesse cometido qualquer erro e muito menos que tivesse errado por forma evidente.

Pelo contrário, verifica-se ter o Acórdão seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Está, assim, perfeitamente justificada a formação da convicção do julgador sobre os elementos da prova em apreço, em termos lógicos e de razoabilidade, em plena consagração do Princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, bem como do princípio da imediação, que encontram a sua plena aplicação aquando da apreciação da prova testemunhal.

Nenhum fundamento se reconhece, por seu turno, na invocação do princípio in dúbio pro reo, sendo certo que o mesmo não caracteriza a operação racional de apreciação e formação de convicção sobre uma determinada realidade histórica, por um tribunal penal.

Tal princípio só opera no momento em que os elementos de prova apreciados em julgamento suscitam uma dúvida no julgador quanto à realidade da factualidade subjacente, o que não ressalta em nenhum momento da fundamentação da decisão.

No caso, nenhuma dúvida (razoável) se suscitou ou poderia ter suscitado no colectivo de juízes, face à força das provas apresentadas e à falta de uma versão alternativa. Note-se que o arguido não prestou declarações, nem se ofereceu qualquer vislumbre de hipótese alternativa para a sua intervenção nos factos conforme vieram a ser dados como apurados.

c.        os arguidos II, “A...,

Unipessoal, Lda.” e “B..., Lda.” responderam ao recurso do Ministério Público, consignando nos seguintes termos :

I.         DO NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO

O MP/recorrente pretende alterar o sentido dos factos provados e não provados.

O art.º 412º, n.º 3 e n.º 4 do CPP permitiria a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto por via do recurso amplo, mas o recorrente não cumpriu as suas obrigações legais.

O recorrente para impugnar a matéria de facto, em sede de erro de julgamento, deve especificar os concretos pontos de facto que considera mal julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do artigo 412, nºs 1 e 2, als. a) e b) do CPP.

Basta atentar ao recurso do MP para se perceber que o recorrente, apesar de se referir aos depoimentos de testemunhas opta por uma impugnação por atacado, misturando elementos externos ao processo sem se perceber muito bem que factos está a impugnar e que elementos de prova que impõem uma decisão diversa da recorrida.

Mas como é bom de ver, no seu recurso, o recorrente faz uso quase em exclusivo de elementos externos ao texto do acórdão o que desde logo permite concluir que a sua pretensão deve naufragar. Pois, sem elementos externos não conseguiria colocar em causa a  matéria de facto não provada.

Mas a valoração de prova, por força do princípio da livre apreciação da prova do artigo 127º do CPP, não é passível de apreciação por via do recurso, fora do âmbito dos erros de julgamento e dos vícios do artigo 412º, n.º 2, do CPP.

Ainda que o recorrente não concorde, não resulta que o acórdão recorrido tenha:

• omitido qualquer facto que tivesse sido alegado ou que tivesse de conhecer;

• dado como provados factos que sejam insuficientes para a decisão proferida;

• incorrido em qualquer contradição que seja insanável com o recurso a toda a decisão;

• retirado uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum.

Como se pode verificar do acórdão recorrido e das várias atas de julgamento, o tribunal não só ouviu todas as testemunhas, como, para além do que é usual, visualizou em audiência de julgamento documentos indicados na acusação, como ainda fez questão de em audiência os

confrontar com as testemunhas dos factos.

A motivação de facto do acórdão recorrido é manifestamente cuidada e lógica como se exige, o que traduz, além do mais, que o julgamento decorreu sempre de modo a garantir-se o contraditório até ao limite por parte da defesa e acusação.

II.       DO RECURSO

O MP rebusca e busca os dados das empresas para trás e para frente esquecendo os factos sujeitos a julgamento e que resultam inequívocos da acusação/pronúncia.

Todos os factos sujeitos a julgamento que relacionavam o recorrido com tráfico são posteriores a Maio de 2021. Todos.

Logo no ponto 1 a 69 se clarifica e imputa ao arguido recorrido uma atividade desde Maio de 2015 até Agosto de 2021 quando foi detido.

O recorrido não vinha acusado de qualquer facto anterior a Maio de 2021 relacionado com a atividade de tráfico de estupefacientes.

E mesmo aquelas imputações relativamente ao período de Maio de 2021 a Agosto de 2021 não lhe vinha imputado qualquer ato de tráfico como resulta muito claro dos factos descritos na acusação: 7 a 20, 21 a 24, e 25 a 30 – os factos 31 a 68 referem-se à situação que levou à sua detenção.

As transações financeiras que o MP no seu recurso tenta em desespero relacionar com o tráfico de estupefacientes são todas anteriores a maio de 2021, como resulta muito claro do descrito na acusação nos pontos 70 a 174 e ponto 195.

E a factualidade provada traduz por um lado a acusação e por outro a verdade.

A única transação de droga que se podia imputar ao recorrido AA é aquela que resulta da detenção em Agosto de 2021 e provada no ponto 1 da matéria de facto provada.

Mesmo entre Maio de 2021 e Agosto de 2021, a justificação da decisão de facto do tribunal é impressiva:

No que respeita aos factos ocorridos no dia 31 de Maio e 1 de Junho de 2021, não obstante a alegação de que o encontro descrito nos artigos 7º a 20º da acusação visaria concretizar uma transacção de cocaína, o certo é que não foi produzida qualquer prova que sustentasse essa afirmação, que, aliás, não se mostra factualmente descrita naquela peça processual”.

Acrescenta o acórdão recorrido, de modo claro e linear:

A participação dos arguidos numa rede internacional dedicada ao tráfico de estupefacientes ficou por demonstrar, por não ter sido produzida qualquer prova que a corroborasse, nem os arguidos a admitiram, nem as testemunhas inquiridas a confirmaram, nem as intercepções telefónicas e demais elementos probatórios recolhidos permitiram dar como assente esse facto. O facto de o arguido AA comunicar com indivíduos em Espanha ou de nacionalidade Brasileira ou a circunstância de, sobre ele impender a suspeita comunicada pelas autoridades norte americanas que deu origem aos presentes autos, é, evidentemente, insuficiente para que se possa considerar que fizesse parte da alegada rede. Note-se que, apesar da investigação ter começado a 31 de Maio de 2021, até ao dia 2 de Setembro de 2021, os arguidos BB e DD eram totalmente desconhecidos dos investigadores, não tendo sido interceptadas conversações em que tivessem participado, o que também não permite sustentar que fizessem parte de uma rede internacional dedicada ao narcotráfico.

O que resulta evidente da prova produzida é que a suspeita comunicada às autoridades portuguesas não foi confirmada e que, além da transacção de estupefaciente comprovadamente ocorrida a 2 de Setembro de 2021, mais nenhuma foi demonstrada.

Não tendo a investigação apurado qualquer facto que permitisse concluir que os arguidos integravam “uma rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha”, toda essa factualidade foi considerada não provada.

Também porque nenhum elemento probatório recolhido permitiu relacionar os montantes em numerário detidos pelos arguidos, com o tráfico de estupefacientes, essa factualidade foi igualmente considerada não provada”.

Isto quanto ao tráfico de estupefacientes, de forma absolutamente clara, seja por ausência de imputação na acusação, seja pela total ausência de prova, demonstrou-se a situação que acabou por culminar na detenção do recorrido a 2 de setembro de 2021.

Já quanto ao crime de branqueamento a questão é, ainda, salvo o devido respeito por posição diversa, ainda mais clara.

O acórdão recorrido diz o seguinte:

Todavia, apesar de não se aceitar que aquela transferência se destinasse a pagar o arroz vendido pela A..., a verdade é que a sua real proveniência ficou por demonstrar, não tendo sido sequer objecto de investigação.

É certo que o Ministério Público alega que esse valor advém da prática do crime de tráfico de estupefacientes, porém, o que resulta evidenciado nos autos é que essa transferência foi ordenada em Março de 2021, altura em que não havia notícia da prática de qualquer acto que configurasse um facto ilícito típico integrante do crime de tráfico de estupefacientes. Efectivamente, até 2 de Setembro de 2021, inexiste comprovação da prática por parte do arguido EE ou de qualquer outra pessoa, de actos de tráfico de estupefacientes geradores de proventos que o arguido estivesse incumbido de integrar na chamada economia legítima.

Não se alcança como seja possível concluir que aquela quantia tivesse como proveniência os lucros obtidos pela prática do crime de tráfico que ainda não havia sido cometido”.

Na verdade, embora nada se tendo provado, porque nada havia a prova, o primeiro facto imputado na acusação ocorre em Março de 2021.

Nada foi investigado, optando o MP por despejar na acusação em vez de porventura, o ter investigado à parte dos factos que motivaram a detenção.

Aliás, todas as sociedades descritas na acusação não foram investigadas e seguramente que anda têm que ver com o tráfico de estupefacientes como alegou o MP.

Como refere o acórdão página 111 recorrido:

Ocorre, porém, que não descortinamos a comprovação no processo de qualquer relação entre estas transferências efectuadas por empresas portuguesas para a A... com o tráfico de estupefacientes.

As contas das entidades pagadoras não foram investigadas, a proveniência do dinheiro também não, e, embora se indicie a existência de pagamentos sem relações comerciais subjacentes, não podemos, de forma alguma, associa-las a uma única situação de tráfico de estupefacientes que ocorreu em momento muito posterior.

O que realmente motivou essas transferências bancárias, que poderia eventualmente configurar a prática de ilícito de natureza fiscal, além de não ter sido alvo de investigação, não consta dos factos elencados na acusação, que entendeu atribuir todas as movimentações bancárias ao narcotráfico internacional, o que, como vimos referindo, não se comprovou”.

Finalmente se dirá que o tribunal discutiu a matéria de facto controversa de forma a tornar compreensível e plausível, a decisão proferida em termos de matéria de facto – no caso, a prova dos factos nucleares da acusação e que determinaram a condenação parcial dos arguidos.

Lendo a decisão recorrida, nomeadamente a matéria de facto e sua fundamentação, logo se percebe que o Tribunal recorrido fez um enorme esforço, no sentido de referir a prova que foi produzida e a forma como a interpretou, para formular a sua convicção.

O Tribunal indicou os meios de prova, referiu-se-lhes detalhadamente e depois explicou, ponto por ponto e numerando até os argumentos, a razão porque entendeu serem os factos provados e não provados.

Não ocorre nenhum erro que imponha diferente decisão da matéria de facto, e não decorre, de modo nenhum, da leitura da decisão recorrida que, não pode deixar de referir-se uma vez mais, foi fundamentada com grande pormenor, clarividência e de forma conforme às regras da experiência comum. O Tribunal “a quo” foi claro e transparente na fundamentação da sua decisão, concretizando os pormenores e referindo o porquê da sua avaliação, o que é de enaltecer dada a já relativa extensão dos autos e documentos de suporte.

O recurso do MP deve assim improceder.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, pronuncia–se quanto a cada um dos recursos interpostos nos termos que assim se resumem :

A-       Do recurso interposto pelo Ministério Público

Concorda-se na íntegra com a motivação de recurso apresentada pelo Ilustre Colega que, aliás, consideramos extremamente bem elaborada, e que aponta todos os elementos fácticos e probatórios a que, no seu entendimento, o tribunal a quo deveria ter atentado, pois que se correlacionados entre si e com as regras de experiência comum, tais elementos teriam seguramente conduzido a um diferente resultado, ou seja, teriam concluído pela existência de crimes de tráfico de estupefaciente e branqueamento de capitais, tráfico que está na origem dos proventos financeiros movimentados pelo arguido e na génese dos 3.254.197,24 euros, que, consequentemente, deveriam ter sido declarados perdidos a favor do Estado.

O recurso interposto pelo Ministério Público merece integral deferimento

B-       Do recurso interposto pelo arguido CC

Em nossa perspectiva os fundamentos aduzidos na decisão quanto ao outro arguido BB, adequam-se ao arguido CC, na medida em que este confirmou as declarações do arguido BB e deu a conhecer todo o processo de preparação do negócio que se iria realizar, assumindo as suas declarações um contributo decisivo para a descoberta da verdade material, o que conjugado com o arrependimento demonstrado e a inserção familiar e podendo iniciar atividade laboral a qualquer momento, caso a sua situação jurídica o venha a permitir, permite-nos afirmar, que também quanto a este arguido a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Ponderada a globalidade da matéria factual provada temos que a medida da pena encontrada para o arguido não avalia suficientemente tais elementos. Reportando-nos aos autos, verifica-se que o arguido não tinha acesso ao fornecedor de estupefaciente e valores de transação e não participou no transporte, limitando-se a acompanhar o BB. A actividade do tráfico foi curta e tendo em consideração que os seus antecedentes criminais respeitam a crime p. no artº 143º do CP, cremos que a sua situação se identifica com a do coarguido BB ventura e que a sua pena poderá ser reduzida para 5 anos de prisão e determinada a suspensão da sua execução com colocação em regime probatório.

Entende-se, pois que o recurso só merece deferimento quanto ao segmento da determinação da medida da pena e sua execução.

C-       Quanto ao recurso do arguido DD

Acompanham-se as considerações tecidas pelo I. Colega magistrado do Ministério Público na 1ª instância quer quanto à questão da alegada nulidade, quer quanto ao raciocínio explanado e referente ao inexistente erro na apreciação da prova e do direito, não podendo nós deixar de referir em termos de prova, que o próprio arguidos, tal como a sua esposa, confirmam a posse da mochila e conteúdo nela existente.

Entendemos, pois, que o recurso interposto por DD, carece de fundadas conclusões e que não merece provimento.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal.

Na sequência, veio o recorrente/arguido DD responder ao aludido parecer, reiterando no essencial, e em síntese, a sua alegação recursória.

Também o recorrente/arguido CC veio responder ao parecer, referindo dever o mesmo ser acolhido na parte que lhe respeita.


*

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


*

II.        APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

 

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão, ordenadas de acordo com um critério de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes –são as de apreciar e decidir sobre :

1.       saber se o acórdão recorrido padece de nulidade por haver sido utilizada prova nula (por referência à busca levada a cabo no dia 02/09/2021 nas instalações da sociedade “B..., Lda.”) ;

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

2.       saber se o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia ;

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]

3.       saber se se verifica no acórdão recorrido algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal ;

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

4.       saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal

4.1.    por referência aos factos típicos do crime de tráfico de estupefacientes imputado ao arguido DD ;

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

4.2.    por referência aos factos típicos do crime de branqueamento imputado aos arguidos EE, Lda.” e “B..., Lda.” ;

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

5.       saber se no acórdão recorrido foi violado o princípio da presunção de inocência.

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

6.       saber se os arguidos EE, Lda.” e “B..., Lda.” devem ser condenados pelo crime de branqueamento de capitais do qual vêm absolvidos ;

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

7.       saber se deve ser julgado procedente o pedido de perda alargada a favor do Estado de valores pertencentes às arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.” ;

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

8.       saber se deve ser julgado procedente o pedido de perda de vantagens (clássica) a favor do Estado da quantia de €3.254.335,00.

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

9.       saber se a medida concreta da pena de prisão aplicada ao arguido CC é excessiva ;

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]

10.     saber se a pena de prisão aplicada ao arguido CC deve ser declarada suspensa na respectiva execução.

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]


*

Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.

 

a.      É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância :

« Factos provados:

Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

(Da acusação/pronuncia)

1 -     Os arguidos AA, CC, BB e DD, em conjugação de esforços e de forma concertada, em data não concretamente apurada do fim do mês de Agosto do ano de 2021, elaboraram um plano em ordem a efectuarem, pelo menos, uma transacção de cocaína.

2 -        Os arguidos utilizavam os seguintes números de telefone:

2.1. - O arguido AA, os números ..., ... e ...;

2.2. -    O arguido CC, o número ...;

2.3. -    O arguido BB, o número ...;

2.4. -   O arguido DD, os números ... e ....

3 - Na execução do apontado plano os arguidos AA, CC e BB usaram esses números telefónicos para contactarem entre si e combinarem encontros.

4 -    No dia 31 de Maio de 2021, pelas 21h20m, o arguido CC conduzia o veículo automóvel matrícula ..-..-RP, marca Mercedes, modelo ..., cor cinza, seguindo ao seu lado, no banco do passageiro, o arguido AA, tendo-se dirigido até à Avenida ..., em Lisboa, onde se situa o Hotel ....

5 - Chegados à porta de entrada do Hotel ... e depois de estacionado o veículo, os arguidos AA e CC encontraram-se com um indivíduo cuja identidade não foi apurada.

6 -      Esse indivíduo esperava-os junto do veículo ..., modelo ... de cor preta e matrícula ..-UR-.., que ali já se encontrava parqueado.

7 - Pelas 21h30m, o mesmo indivíduo dirigiu-se ao veículo de marca Mercedes e, juntamente com o arguido CC, retirou da bagageira duas mochilas de cor escura.

8 -   Após, o mencionado indivíduo dirigiu-se para a entrada do referido hotel, onde entrou juntamente com o arguido AA, a quem entregou uma das mochilas.

9 -   Encaminhando-se ambos para o quarto nº 1703, onde o arguido EE estava hospedado.

10 -  No dia seguinte, 01 de Junho de 2021, pelas 14h16m, os arguidos AA e CC e o passageiro e condutor do veículo Audi, cujas identidades não foram apuradas, saíram do hotel.

11 -   As duas mochilas escuras que CC e o passageiro do veículo Audi tinham retirado do automóvel de marca Mercedes no dia anterior, foram então colocadas, por CC e pelo condutor do veículo Audi ..., dentro da bagageira dessa viatura, na qual os dois indivíduos de identidade não apurada abandonam o local.

12 -    Os arguidos AA e CC abandonaram o hotel pelas 15h04m e seguiram no veículo ... Mercedes, conduzido por CC.

13 -   No dia 23 de Junho de 2021, pelas 17h54m, o arguido AA, utilizando o telefone com o cartão número ..., telefonou ao arguido CC.

14 -    No decurso dessa conversa falam sobre dinheiro, a que se referem como “bacalhau”.

15 -   E combinam deslocar-se a Lisboa para se encontrarem com um terceiro indivíduo, no dia 30.06.2021.

16 -  Dizendo o CC ao AA que o encontro devia ser mantido secreto.

17 - No dia 14 de Julho de 2021, pelas 09h59m, o arguido AA, utilizando o número ..., recebeu uma chamada do número espanhol ... de um indivíduo não identificado que se expressava em português com sotaque brasileiro.

18 - Nesse telefonema esse indivíduo interpela o arguido EE perguntando-lhe se ainda demorava muito, respondendo este último que demoraria cinco minutos.

19 - Decorridos alguns minutos, o indivíduo que utilizava o número espanhol entrou novamente em contacto com o arguido AA e disse-lhe para esperar no local onde estava.

20 -  Pelas 10h50m, o mesmo utilizador do número espanhol contactou outra vez o arguido AA, perguntando-lhe se era “cento e dezassete mesmo”.

21 -  No dia 23 de Agosto de 2021, pelas 21h57m, o arguido CC, utilizando o número de telefone ..., telefonou ao arguido AA, questionando-o sobre a possibilidade de efectuar uma transacção de cocaína, ao que este anuiu.

22 -    Nessa ocasião o arguido CC informou o arguido AA que os interessados na aquisição da cocaína estavam de férias, mas que regressariam no sábado seguinte.

23 -   No dia 02 de Setembro de 2021, os arguidos CC, EE, BB e DD decidiram concretizar essa transacção de cocaína.

24 -    Na execução desse plano o arguido JJ, na manhã desse dia, deslocou-se a Lisboa a fim de, junto do arguido DD, recolher a cocaína.

25 -  O arguido EE deu conhecimento desse facto ao arguido CC, a quem telefonou pelas 09h07m, avisando-o de que já estava a caminho de Lisboa.

26 -   E que, após estar em posse da cocaína, se iria deslocar às instalações da fábrica de cerveja “B... Lda.”, situadas na Rua ..., ..., na Zona Industrial ....

27 - Na sequência dessa comunicação o arguido CC dispensou os funcionários da fábrica de cerveja de comparecerem ao serviço nesse dia à tarde.

28 -     E, pelas 10:24h, telefonou ao arguido EE transmitindo-lhe que já tinha comunicado aos funcionários da fábrica que estavam dispensados de comparecer na parte da tarde.

29 -   Cerca das 10h53m o arguido CC contactou telefonicamente o arguido BB para que este estivesse nas instalações da fábrica de cerveja, pelas 16h30m, e para o avisar quando chegasse, de modo a abrir-lhe o portão, a fim de recolher a cocaína.

30 - Pelas 11h50m, o arguido AA chegou à ..., em Lisboa, conduzindo o veículo Mercedes, modelo ..., de matrícula AC-..-QS, local onde se encontrou com o arguido DD.

31 -   O arguido DD, que trazia consigo uma mochila preta com risca vermelha, com o símbolo e o nome Ferrari, escrito a branco, contendo cocaína, entrou na viatura conduzida pelo arguido EE, ocupando o lugar do passageiro.

32 – Após, ambos rumaram à cidade do Porto, onde almoçaram, no Restaurante D..., sito na Avenida ..., em cujo parque de estacionamento o arguido EE estacionou a viatura.

33 -   Durante a viagem, pelas 12h52m, o arguido EE contactou o arguido CC para se assegurar que já não estariam trabalhadores na fábrica e que este último tinha consigo o comando do portão da entrada, indicando-lhe ainda que chegaria às 16:30 horas.

34 -  No decurso da viagem, e durante o almoço, o arguido DD esteve sempre em posse da mochila que transportou desde Lisboa contendo cocaína.

35 -    Após o almoço, pelas 16h10m, os arguidos DD e EE saíram do restaurante na viatura Mercedes, conduzida pelo arguido AA, e dirigiram-se às instalações da fábrica B... Lda., onde chegam pelas 16h40m e em cujo interior o arguido JJ estacionou a viatura.

36 -  Como o arguido BB ainda não tinha chegado, o arguido CC telefonou-lhe, manifestando o seu dessagrado por ele não ter chegado e perguntando-lhe quanto tempo tardava.

37 -   Pelas 17:00 horas o arguido BB chegou junto às instalações da fábrica B..., conduzindo o veículo de marca Renault, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-XG, que estacionou em frente a essas instalações, do lado oposto da rua, e dirigiu-se para a porta da fábrica.

38 -     Nessa ocasião contactou o arguido CC, dando-lhe conta de que ali se encontrava, altura em que este último lhe abriu a porta, por onde o BB entrou.

39 - No interior da fábrica o arguido EE entregou ao arguido BB uma embalagem contendo cocaína.

40 -     Pelas 17h10m, o arguido CC e o arguido BB saíram das instalações da fábrica e dirigiram-se para o veículo de marca Renault.

41 -     Nessa ocasião o arguido BB tinha na sua posse:

i.      uma embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 490.200 gramas, um grau de pureza de 17,2% e que possibilitaria a obtenção do equivalente a 421 (quatrocentas e vinte e uma) doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3;

ii.       um telemóvel de marca Samsung, modelo ..., de cor preta, com o número de série ..., os IMEIS ... e ..., com cartão SIM da operadora C... com o número ....

42 -   O arguido CC tinha em seu poder um telemóvel Iphone 11, de cor verde, com o IMEI ... (cf. auto de apreensão de fls. 224 e exame de fls. 1034), a quantia monetária de €290 (duzentos e noventa euros) e as chaves da fábrica de cerveja.

43 - No interior das instalações da fábrica, cuja entrada foi efectuada mediante o uso das chaves que estavam na posse do arguido CC, encontravam-se os arguidos AA e DD.

44 -     O arguido DD tinha consigo:

i.                a quantia monetária de €50 (cinquenta euros), fraccionada em duas notas de €20 (vinte euros) e uma nota de €10 (dez euros);

ii.               um telemóvel de marca Apple, modelo ..., IMEI ... e código de desbloqueio ..., contendo no seu interior um cartão SIM da operadora C..., correspondente ao número de telefone ..., com PIN ...;

iii.   um telemóvel de marca Alcatel, IMEI ... e código de desbloqueio ..., contendo no seu interior um cartão SIM da operadora E..., correspondente ao número de telefone .......

45 -      Em poder do arguido AA encontrava-se:

i.              um Iphone 12 de cor azul, com o IMEI ... (cf. auto de apreensão de fls. 225 e exame de fls. 1033);

ii.              Um Apple Watch Serie 3, cor preta.

46 -  No interior das instalações da fábrica da B..., no escritório situado no piso superior, em cima de uma mesa, junto à mochila, que estava aberta, pertencente ao arguido DD e que foi por ele trazida desde Lisboa encontrava-se:

i.         uma balança de precisão;

ii. um pacote contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 978.200 gramas, um grau de pureza de 17,2% e que possibilitaria a obtenção do equivalente a 841 (oitocentas e quarenta e uma) doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3.

47 -  No interior do veículo automóvel Mercedes, modelo ..., de cor cinza e matrícula AC-..-QS, que o arguido EE tinha parqueado no interior das instalações da Fabrica B..., encontrava-se:

i.    um talão de depósito em numerário em nome do arguido JJ, emitido pelo Banco 1..., no montante de €1.000,00 (mil euros);

ii.     um recibo da empresa Brisa, referente à passagem na portagem de Alverca, no dia 02.09.2021, pelas 11h31m12s, no valor de €22, 20 (vinte e dois euros e vinte cêntimos);

iii.   um recibo da B.P. referente a abastecimento de combustível e compra de bebidas do dia 02.09.2021, pelas 10h04m.05s, no valor de €35,64 (trinta e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos);

iv.     um telemóvel de marca Samsung ..., com IMEI ... (cf. auto de apreensão de fls. 233 e exame de fls. 1033);

v.       uma nota de €50 (cinquenta euros).

48 -   Os arguidos AA, CC, BB e DD conheciam a natureza e características estupefacientes da cocaína que transportavam e detinham.

49 - Não obstante actuaram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços, e com o conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

50 -    Agiram da forma descrita com o objectivo de obterem lucros económicos.


*

51 -    Os telemóveis que os arguidos BB, CC e EE detinham no dia 2 de Setembro de 2021, destinavam-se a permitir contactar entre eles e com os destinatários da cocaína.

52 - O recibo da empresa Brisa, referente à passagem na portagem de Alverca, no dia 02.09.2021, pelas 11h31m12s, no valor de €22, 20 (vinte e dois euros e vinte cêntimos) e o recibo da KK referente a abastecimento de combustível e compra de bebidas do dia 02.09.2021, pelas 10h04m.05s, no valor de €35,64 (trinta e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos), encontrados no interior do veículo automóvel Mercedes, modelo ..., foram produzidos na deslocação efectuada pelo arguido EE a Lisboa para recolher o produto estupefaciente.

53      - A sociedade “A... Unipessoal Lda.” é titular do NIPC ..., está sediada na Rua ...., no Porto, e tem por objecto social a compra e venda, importação e exportação de produtos alimentares, derivados dos produtos alimentares e bebidas e, como actividade secundária, o comércio por grosso de bebidas alcoólicas, azeite, óleos e gorduras alimentares.

54      - Foi constituída em 02.03.2018, com o capital social de €10.000,00, pelo arguido AA, seu único socio e gerente.

55      - Tem como contabilista LL e esta sociedade comercial não é titular de bens imóveis e móveis, não apresenta resultados financeiros, participações sociais, nem tem qualquer registo ao nível do VIES (aquisições e transmissões intracomunitárias).

56      - A sociedade “B..., Lda.” é titular do NIPC ..., estando sediada na Rua ..., Zona Industrial ..., na Maia, tem por objecto a fabricação de cerveja, comércio por grosso de bebidas alcoólicas, importação e exportação de cerveja e comércio por grosso, importação e exportação de bebidas não alcoólicas e, como actividade secundária, o engarrafamento de águas minerais naturais e de nascente, fabricação de refrigerantes e outras bebidas não alcoólicas.    

57      - Foi constituída em 17.09.2015, com capital social de €50.000,00, tendo actualmente e, desde 05/11/2017, o capital social de €400.000,00.

58      - O arguido EE adquiriu as quotas da B... no mês de Novembro de 2020 ao anterior sócio, MM, quando a sociedade se denominava “F... Lda.”

59      - EE foi gerente desta sociedade entre 28/11/2020 e 17/10/2022, data em que renunciou à gerência, e detém duas quotas, uma no montante de €240 000,00 e a outra no valor de €160 000,00.

60       - O contabilista da B... é, desde 2021, LL.

61       - Esta sociedade não é titular de bens imóveis ou móveis, não apresenta resultados financeiros, participações sociais, nem tem registo de transmissões intracomunitárias.

62      - O arguido AA é titular e/ou dispõe de poderes de movimentação e representação das seguintes contas bancárias:



63      - A sociedade A... é a titular das seguintes contas bancárias:




64       - A sociedade B... é titular das seguintes contas bancárias:




65 –    O arguido JJ, enquanto legal representante das sociedades A... e B..., através das contas bancárias por elas tituladas e que estava autorizado a movimentar, e bem assim através das contas bancárias de que ele próprio era titular, realizou transferências bancárias, efectuou o depósito de importâncias monetárias e bem assim o pagamento em dinheiro de salários de funcionários da B....

66      - Na mesma qualidade o arguido JJ, através de contas bancárias tituladas pelas mesmas sociedades e bem assim através das contas bancárias de que era titular, recebeu, de pessoas singulares e colectivas, transferências bancárias, tanto nacionais como internacionais, bem como depósitos em numerário, a que se seguiram transferências interbancárias a debitar, através de transferências nacionais e internacionais, também em contas de pessoas singulares e colectivas.

67      - Alguns desses movimentos levaram a que as entidades bancárias respectivas sobrestassem as operações ou que procedessem ao encerramento de contas bancárias.

68      - Tal sucedeu quando, no dia 24/03/2021, o Banco 1... recebeu uma instrução para creditar uma transferência internacional na conta empresarial titulada pela sociedade A... nº ..., aberta, no dia 13/09/2019, na agência de ..., no Porto, pelo arguido AA, na qualidade de único sócio e gerente daquela sociedade, mas suspendeu essa operação.

69      - O montante a creditar era de €3.254.335,00 (três milhões duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros).

70      - E tinha origem no banco Russo Banco 5..., alvo de sanções internacionais.

71       - A entidade que ordenou essa transferência foi a pessoa colectiva G...-INC, registada no Panamá.

72      - O fundamento para a realização dessa transferência monetária foi um contrato de compra e venda de arroz, celebrado em 19/03/2021, entre a sociedade A..., representada pelo arguido AA, na qualidade de vendedora, e a sociedade G... INC, com sede no Panamá, na qualidade de compradora.

73      - Nesse contrato foi acordado o preço de €245,00 (duzentos e quarenta e cinco euros) por tonelada métrica de arroz.

74       - Nos oito meses anteriores à sua celebração, o valor mais baixo de mercado a que a tonelada métrica de arroz havia sido vendida, foi de USD 471 (quatrocentos e setenta e um dólares americanos), conforme documento de fls. 2 do Vol. I do Apenso III.

75      - No contrato de compra e venda de arroz subjacente à transferência da verba de €3.254.335 (três milhões duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros), o preço acordado foi de €3.254.197,24 (três milhões duzentos e cinquenta e quatro mil cento e noventa e sete euros e vinte e quatro cêntimos).

76      - A sociedade A... não produz o bem que, no anexo ao contrato de compra e venda, indicou vender, arroz ....

77      - A venda de arroz por parte da sociedade A... ao preço acordado no contrato (€245,00 por tonelada métrica de arroz), não permite cobrir os custos da sua aquisição (de, pelo menos, USD 471 por tonelada métrica), transporte, armazenamento e as taxas alfandegárias inerentes a uma compra e venda internacional.

78      - A transferência da quantia de €3.254.335,00 (três milhões duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros), não visava a efectiva compra de arroz.

79      - Antes teve proveniência em concreto não apurada e destinava-se a ser reintroduzida na economia por AA, o que não veio a acontecer, por aquela operação bancária ter sido suspensa.

80      - Por decisão judicial, datada de 05/04/2021, foi determinada a suspensão provisória e bloqueio de todos os movimentos a débito dessa conta bancária número ..., conforme despacho de fls. 175 do Apenso III.

81      - Posteriormente, por despacho judicial datado de 29/12/2021, foi ordenado o imediato congelamento dos fundos depositados nessa mesma conta, congelando todos os levantamentos e operações a débito em tal conta, conforme decisão de fls. 970 a 974 dos autos principais.

82      - Já a conta titulada pela sociedade A... com o IBAN  ..., aberta em 13/3/18, no Banco 3..., veio a ser encerrada após terem sido realizados, no período de 13 (treze) dias, entre os dias 1 e 13 de Agosto de 2019, 30 (trinta) depósitos em numerário, perfazendo um montante global de €534.820,00 (quinhentos e trinta e quatro mil oitocentos e vinte euros), seguidos de transferências nacionais e internacionais, conforme comunicação bancaria de transacções suspeitas junta a fls. 37 a 39 do Apenso III.

83       - Na verdade, porque o arguido EE, na qualidade de sócio gerente da A..., não apresentou junto dessa instituição bancária justificação para tais depósitos em numerário, nem para as posteriores ordens de transferência para outras contas bancárias ocorridas no mesmo período temporal, o Banco 3..., a 19/08/2019, procedeu ao encerramento dessa conta, conforme comunicação de transacções suspeitas de fls. 37 a 39 do volume 1º do Apenso III.

84      - Idêntica situação ocorreu relativamente à conta com o IBAN  ..., titulada pela sociedade A... junto da Banco 2..., na qual foi efectuada, em 9/9/2019, uma transferência internacional, no valor de USD 23.000,00 (vinte e três mil dólares americanos), com destino à sociedade “H... Limited”, sediada em Hong Kong.

85      - Para autorizar essa operação a Banco 2... solicitou ao arguido EE, na qualidade de sócio gerente da A..., a remessa de documentação que identificasse a mercadoria transportada e a origem dos fundos, o que este não fez, não remetendo qualquer informação ou documentação que justificasse a realização da transferência, conforme comunicação de transacções suspeitas de fls. 40 e 41 do Apenso III.

86       - Também a conta nº ... titulada pela sociedade A... junto do Banco 1..., regista fluxos de entrada e saída de capitais, tal como referido nos pontos 65) e 66), através de depósitos em numerário, seguidos de transferências interbancárias imediatamente a debitar, através de transferências interbancárias, nacionais e internacionais, para pessoas singulares e colectivas.

87      - Efectivamente, entre 19 e 23 de Novembro de 2020, essa conta n.º ..., recebeu seis transferências da sociedade I..., no montante global de €154.530,00 (cento e cinquenta e quatro mil quinhentos e trinta euros).

88      - A sociedade I... foi constituída em 13 de Agosto de 2020, tem sede no Reino da Bélgica, dedicava-se a limpezas e tem como gerente NN.

89      - NN é residente na cidade de Viseu, tendo declarado junto da Segurança Social como fazendo parte do seu agregado familiar um avô, dois tios e um filho.

90      - Até Novembro de 2019 auferiu rendimentos entre €465 e €988 mensais, conforme extracto de remunerações de fls. 350 a 355 do Apenso III.

91      - NN não exerceu, de facto, a gerência da sociedade I....

92      - Nem ordenou as transferências acima mencionadas para a A....

93      - As transferências monetárias efectuadas pela I... para a A..., não titulavam qualquer serviço prestado por esta última à primeira.

94       - OO, que manteve um relacionamento com NN, apresenta condenações por furto e, junto da Segurança Social, não tem registo de remunerações ou prestações sociais, nem tem declarado qualquer agregado familiar.

95       - Entre Julho de 2020 e Fevereiro de 2021, a sociedade A... recebeu, na mesma conta nº ..., da sociedade J..., Lda. a quantia de €86.100,00 (oitenta e seis mil e cem euros).

96       - E, entre Novembro de 2020 a Janeiro de 2021, recebeu de uma empresa de confecção de roupas sediada em Guimarães, a K... Unipessoal, Lda., dez transferências bancárias no valor total de €437.400,00 (quatrocentos e trinta e sete mil e quatrocentos euros).

97       - O sócio gerente da K... Unipessoal Lda. é PP.

98       - Essa sociedade mantém actividade comercial regular.

99      - As transferências monetárias efectuadas pela K... para a A..., não titulavam serviços prestados por esta última à primeira.

100    - Nem a K... pôs em prática qualquer plano ou negócio elaborado pela A....

101    - Recebeu ainda a sociedade A..., na mesma conta bancária, entre 19 de Janeiro de 2021 e 12 de Fevereiro de 2021, o montante de €70.725,00 (setenta mil setecentos e vinte e cinco euros) da sociedade L..., Lda., sediada em ....

102     - O gerente dessa sociedade é QQ.

103    - A L..., por ter sido vendida a um grupo empresarial dos Países Baixos, cessou a sua actividade.

104    - As transferências monetárias efectuadas pela L... para a A..., não titulavam qualquer serviço prestado por esta última à primeira.

105     - Nem a L... colocou em prática qualquer plano ou negócio elaborado pela A....

106    - Ainda na conta bancária nº ... a sociedade A... recebeu, entre 18 e 27 de Novembro de 2019, da sociedade fabricante de mobiliário, com sede em ..., M... - Unipessoal, Lda., o montante global de €81.000,00 (oitenta e um mil euros).

107     - A sócia gerente de M... - Unipessoal, Lda. é RR.

108    - Essa sociedade cessou a actividade, por falta de mão-de-obra.

109    - As transferências monetárias efectuadas pela M... para aquela conta da A..., não titulavam qualquer serviço prestado por esta última à primeira.

110    - A sociedade M... depois de efectuar as transferências bancárias acima mencionadas, não colocou em prática qualquer plano ou negócio elaborado pela A....

111    - Também através da mesma conta número ... do Banco 1... a A... enviou, entre 8.02.2021 e 12.03.2021, a quantia global de €104.800,00 (cento e quatro mil e oitocentos euros) para a sociedade N... - Unipessoal, Lda.

112    - A N... - Unipessoal Lda. tem sede declarada na ..., 4º andar, sala ..., na Av. ..., em Lisboa.

113    - Todavia, não desenvolve actividade nesse local onde, desde 2013, labora uma outra empresa, a O....

114     - A N... - Unipessoal, Lda. foi constituída em 23 de Janeiro de 2019 e, em 2019 e 2020, não procedeu à publicação de qualquer acto, nomeadamente, à prestação de contas anuais a que está obrigada.

115      O seu sócio gerente é o cidadão brasileiro SS.

116     - Esse indivíduo, entre a data da constituição da sociedade e o dia 24 de Junho de 2021, esteve em Portugal apenas uma vez e pelo período de sete dias, conforme informação de fls. 286 do Apenso III.

117     - A sociedade N... - Unipessoal, Lda. não desenvolve actividade comercial, não fazendo negócios com outras empresa e/ou pessoas singulares, designadamente com a A....

118     - Entre 17/01/2021 e 19/03/2021, a A... transferiu, também através da mesma conta nº ..., o montante global de €11.600,00 (onze mil e seiscentos euros) para a sociedade P..., Unipessoal, Lda.

119     - Essa sociedade comercial não apresenta contas anuais desde a sua constituição.

120     - E, junto do Instituto da Segurança Social, não tem, desde 01 de Janeiro de 2021, inscrito qualquer trabalhador, conforme informação de fls. 343 a 345 do Apenso III.

121    - Pelo menos desde essa data a sociedade P..., Unipessoal, Lda. está inactiva.

122    - O montante transferido pela A... para a P... não titulava serviço prestado por esta última à primeira.

123     - A sociedade Q... Unipessoal Lda. recebeu, entre Fevereiro e Julho de 2020, da sociedade A... o valor global de €119.900,00 (cento e dezanove mil e novecentos euros), transferido através da mesma conta nº ... por ela titulada no Banco 1....

124    - Essa sociedade tem como objecto social o “Comércio, importação e exportação de uma grande variedade de mercadorias, nomeadamente materiais de construção. Investimento imobiliário e turístico. Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Construção e obras públicas. Limpezas domésticas e industriais. Restauração e bebidas. Transporte de mercadorias e passageiros em veículos ligeiros. Aluguer de veículos sem condutor”, conforme certidão permanente de fls. 290 do Apenso III.

125    - Foi constituída em 2 de Janeiro de 2019 e tem sede na Rua ..., em Setúbal.

126     - Desde a sua constituição que não procede à publicação de contas.

127    - Teve apenas uma funcionária, o que sucedeu por um período de 30 dias, entre 1 e 30 de Novembro de 2019, data em que cessou o seu vínculo contratual, conforme informação prestada pelo Instituto da Segurança Social a fls. 340 a 342 do Apenso III.

128     - Ainda através da mesma conta nº ... a A... transferiu para a sociedade R..., S.A. a verba de €90.540,00 (noventa mil quinhentos e quarenta euros).

129     - Essa transferência não teve por base negócio celebrado entre a sociedade A... e a sociedade R..., S.A.

130     - Entre Setembro de 2020 e Março de 2021 a sociedade A... transferiu, da mesma conta bancária, para uma conta titulada por TT, o valor global de €26.342,00 (vinte e seis mil trezentos e quarenta e dois euros).

131     - Em 24 de Julho de 2020 a A..., utilizando a mesma conta nº ..., efectuou duas transferências internacionais, no montante global de €43.320,00 (quarenta e três mil trezentos e vinte euros) para a empresa S..., com sede em Hong Kong.

132     - E, entre 21 de Novembro e 02 de Dezembro de 2020, transferiu, também através da mesma conta bancária, o montante global de €170.199,00 (cento e setenta mil cento e noventa e nove euros) para seis empresas sediadas na República Popular da China, a saber:

i.        Em 24.11.2020, transferiu o montante de €12.873, para T... Limited;

ii.        Em 24.11.2020, €7.010, para U...;

iii.       Em 27.11.2020, €16.220, para V...;

iv.       Em 27.11.2020, €25.297, para W...;

v.        Em 27.11.2020, €42.162, para X...;

vi.       Em 02.12.2020, €66.637, para Y....

133    - Em 27.12.2020 a A..., sempre por via da mesma conta bancária, realizou uma transferência no montante de €19.747,00 (dezanove mil setecentos e quarenta e sete euros) para uma empresa com sede nos Estados Unidos da América, a Z... Llc.

134    - E, no mês de Dezembro de 2020, efectuou duas transferências no montante global de €90.269,00 (noventa mil duzentos e sessenta e nove euros) para Aa... Limited, de Hong Kong, assim discriminadas:

i.         Em 09.12.2020, uma transferência no valor de €60.158;

ii.        Em 18.12.2020, uma transferência no valor de €30.111.

135     - Entre 18 e 19 de Setembro de 2019, utilizando a mesma conta n.º ..., a A... efectuou transferências bancárias para o Chile, com destino à empresa Ab..., no montante de €90.760.

136     - Em 18.09.2019 a A... recebeu, também na mesma conta bancária, a quantia de €150.000 de uma empresa sediada no Porto, a Ac... Lda.

137     - E, em 04 de Março de 2021, a A... recebeu, nessa mesma conta, o montante de €102.000,00 (cento e dois mil euros) de uma consultora financeira alemã Ad....

138    - Em 26 de Fevereiro de 2021, a A... transferiu da mencionada conta a quantia de €20.000 (vinte mil euros), para conta da sociedade B....

139    - Entre 16 e 30 de Setembro de 2019 a A... recebeu, também na conta n.º ..., a quantia global de €151.000,00 (cento e cinquenta e um mil euros) proveniente de transferências bancárias da conta com o IBAN  ..., de que também era titular na Banco 2....

140    - Em 23.09.2019 a A... transferiu da conta número ... domiciliada no Banco 1... SA, por si titulada, para a conta de que também era titular na Banco 2..., com o IBAN  ..., o montante de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros).

141     - Entre os dias 20 e 24 de Setembro de 2019 e bem assim no dia 1 de Outubro de 2019, a Ae... Inc. efectuou quatro transferências bancárias no valor global de €180.840,00 (cento e oitenta mil oitocentos e quarenta euros) para a conta nº ... do Banco 1... SA, titulada pela A....

142     - A sociedade Af... - Unipessoal, Lda. foi constituída em 23 de Agosto de 2018 e tem sede no número 110 da Avenida ..., em Lisboa.

143    - Essa sociedade desde a data da sua constituição nunca procedeu à apresentação de contas.

144     - O local indicado como sendo a sua sede é um edifício de escritórios partilhados explorados pela empresa Ag..., onde a Af... não tem funcionários nem desenvolve actividade empresarial.

145     - O sócio gerente dessa sociedade é UU, cidadão nascido no Brasil e nacional dos Estados Unidos da América.

146    - Entre a data da constituição da Af... e o dia 01.07.2021 esse indivíduo deslocou-se a Portugal por três vezes.

147     - No dia 4 de Fevereiro de 2021, a sociedade A... transferiu, através daquela conta nº ...:

           i.        o montante de €2.080, para conta titulada por VV, conforme documentos de fls. 137 do Anexo III e de fls. 1601 dos autos principais;

           ii.       o montante de €584, para conta co-titulada por WW e XX, conforme documentos de fls. 137 do Anexo III e fls. 1614 dos autos principais;

           iii.      o montante de €1500, para conta titulada por YY, conforme documentos de fls. 137 do Anexo III e fls. 1613 dos autos principais;

            v.       o montante de €2.500, para conta co-titulada por ZZ e AAA, conforme documentos de fls. 137 do Anexo III e de fls. 1618 dos autos principais;

           v.       o montante de €2.000 para conta titulada por Ah... Lda. e BBB, conforme documentos de fls. 137 do Anexo III e de fls. 1615 dos autos principais.

148     - As transferências efectuadas pela sociedade A... para as contas tituladas por VV, WW e YY não titulam negócio que estes tivessem celebrado com essa sociedade.


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149     - No período compreendido entre 16/09/2019 (em que o saldo foi nulo) e 25/03/2021 (em que o saldo foi de €4038,60) aquela conta do Banco 1... nº  ... titulada pela sociedade A... registou movimentos a crédito no montante global de €2.039.017,91, conforme quadros de fls. 7 e 8 ao Apenso IV.

150      - Entre tais movimentos encontram-se os seguintes:

151–   Dos depósitos em numerário no valor global de €252.510,00, o montante de €159.880,00 (63% dos depósitos) foi depositado no período de dois meses, entre Novembro e Dezembro de 2019.

152    - Em Fevereiro de 2021 foi depositado o montante de €30.000,00, em moeda metálica.

153    - No mesmo período temporal e na mesma conta foram efectuados os seguintes movimentos bancários a crédito:

154    - No mesmo período referido no ponto 149), a mesma conta registou movimentos a débito no montante global de €2.034.979,31, conforme quadros de fls. 9 a 16 do Apenso IV.

155     - Entre esses valores encontram-se os seguintes:

156    - Ainda no mesmo período temporal, na referida conta bancária, foram efectuados entre os arguidos, os seguintes movimentos a débito:

157 –   Após os depósitos em numerário efectuados na referida conta, a A... efectuou as seguintes transferências:

158 –  Na análise à demonstração de resultados de 2019 e 2020 da “A..., Lda.”, constante do apenso IV, concluiu-se o seguinte:

a)       Em 2019 a A... não apresentou “vendas/serviços prestados”, apenas se verificando gastos operacionais em “fornecimento e serviços externos”, no valor de €19.743,15;

b)       Em 2020, foram inscritos €334.532,00 em “vendas e serviços prestados”, mas não há registo em “custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas”, o que não é compaginável com a sua actividade comercial, no âmbito do comercio por grosso não especializado de produtos alimentares e bebidas;

c)       Nesse ano de 2019 contabilizam-se gastos em “fornecimento e serviços externos”, no valor de €392.194,00.

d)       No Balanço de 2019 a A... apresentou Capitais Próprios negativos de (-) 17.242,58 €, sendo o passivo superior ao activo nesse montante, evidenciando falência técnica.

e)       As contas de 2019 e 2020 indiciam inexistência, por parte da A..., de uma actividade económica real.


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159    - A B... tem como objecto a produção de cervejas artesanais e uma fábrica devidamente montada e apetrechada.

160     - Em 02 de Setembro de 2021, data da detenção do arguido EE, a fábrica da B... não tinha vendido qualquer garrafa de cerveja.

161    - Nessa ocasião a fábrica da B... tinha capacidade para produzir cerveja.

162     - A B... contratou um mestre cervejeiro, QQQ, que criou e produziu receitas próprias de cerveja para quatro tipos de cerveja.

163    - Além dessas receitas, foram elaborados rótulos e logótipos exclusivos.

164    - A venda da sociedade B... (então denominada F...) concretizou-se por €1 (um euro), assumindo o comprador, o arguido AA, as suas dívidas.

165    - Um dos sócios da F..., RRR, em 20 Junho de 2020 abandonou o projecto de produção de cerveja e transmitiu a sua quota a MM.

166    - A contabilidade das sociedades A... e B... era efectuada por Ap..., Lda.

167     - Os serviços por ela prestados demoravam a ser pagos e o arguido AA incumpria os prazos estipulados para o fazer.

168     - Os documentos necessários para a contabilidade da A... e da B..., bem como os necessários aos seguros respeitantes à B..., que tivessem que ser fornecidos pelo arguido AA, eram de difícil obtenção, e tal sucedia após muita insistência.

169    - O arguido EE, numa ocasião, pagou em numerário os serviços prestados por aquela empresa de contabilidade.

170     - Pelo menos, numa ocasião, a solicitação de AA, o funcionário da B..., SSS, deslocou-se a instituição bancária e procedeu a um depósito no valor €5.000,00 (cinco mil euros), em numerário em conta dessa sociedade.

171    - Também a solicitação do arguido AA, o mesmo funcionário, efectuou um depósito em numerário no valor €20.000, no dia 11 de Fevereiro de 2021 e um depósito no valor de €30.000, no dia 10 de Fevereiro de 2021, na conta nº ... titulada pela A... no Banco 1..., conforme talões de depósito de fls. 1562 e 1565, respectivamente.


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172      - O arguido AA tem nacionalidade brasileira.

173     - No dia 04/01/2021 efectuou registo no Portal ARI, candidatura de autorização de residência para investimento.

174     - Em 5 de Maio de 2021 essa candidatura foi admitida, conforme documento de 954.

175    - A autorização de residência em Portugal não lhe foi concedida, conforme informação prestada pelo SEF a 12/5/23.

176    - Na altura dos factos era casado e residia em Portugal com a mulher, FF e o filho menor de ambos, GG, nascido no Brasil a ../../2014, tudo conforme certidões de casamento e nascimento de fls. 948 e 948.

177    - Actualmente, não tem familiares ou ocupação laboral em Portugal.

178    - Enquanto em Portugal praticou os factos acima descritos.


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            (perda alargada)

179    - O arguido AA foi como tal constituído no dia 02 de Setembro de 2021, conforme documento de fls. 254

180    - Entre 1/1/2020 e 31/12/2021, o arguido EE não declarou, rendimentos, em sede de IRS, à Autoridade Tributária, conforme documento de fls. 21 do Apenso GRA.

181    - Nesse período temporal foram comunicados à Autoridade Tributária os seguintes rendimentos pagos ao arguido EE:

182 –  O arguido AA, nos anos de 2020 e 2021, não possuía património móvel ou imóvel.

183    - Todavia, era, e é, titular das seguintes participações sociais:

184    - É titular, ou está autorizado a movimentar e actua como beneficiário efectivo das contas bancárias enumeradas no ponto 62).

185    - Entre essas contas figura a conta de depósito à ordem n.º  ... domiciliada no Banco 1..., S.A., aberta em 13/09/2019 e titulada por A... Unipessoal, Lda., titular do NIPC ....

186    - E bem assim a conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada no Banco 1..., SA, aberta em 14/09/2020, por si titulada, a qual apresentou, nos anos de 2020 e 2021, os seguintes movimentos:

187    - Dispõe ainda de poderes de movimentação/representação e actua como beneficiário efectivo da conta de depósito à ordem nº  ... sediada no Banco 1... S.A., aberta em 03/12/2020 e titulada por B..., Lda.”.

188    - Já a conta de depósito à ordem nº  ... domiciliada no Banco 3..., SA, também por ele titulada, aberta a 31/01/2018, encontra-se encerrada desde 28/08/2019.

189    - O arguido AA é também beneficiário efectivo da conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada na Banco 2..., SA, aberta em 16/11/2015 e titulada pela B..., Lda.

190 –  E dispõe de poderes de movimentação/representação e actua como beneficiário efectivo da conta de depósitos à ordem nº  ... domiciliada na Banco 2..., SA, aberta em 25/01/2019 e titulada A... Unipessoal, Lda.

191    - A conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada no Banco 1..., SA, aberta em 04/12/2020, tem como primeiro titular FF, titular do NIF ..., cônjuge do arguido AA, o qual figura como seu segundo titular.

192    - Essa conta apresenta os seguintes movimentos bancários:

193    - A conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada no Banco 1..., SA e aberta em 04/12/2020 é titulada pelo filho do arguido AA, GG, titular do NIF ..., dispondo o arguido e sua mulher, FF, de poderes de movimentação e representação da conta.

194    - Essa conta apresenta os seguintes movimentos bancários:

195 –   Na conta  ... titulada pelo arguido EE (referida no ponto 186) foram efectuados depósitos em numerário e transferências bancárias, que constituem rendimento financeiro por si auferido entre 1/1/2020 e 31/12/2021, nos seguintes montantes:

196 –  A situação patrimonial do arguido EE no mesmo período temporal era a seguinte:

197   - No mesmo período, considerando os rendimentos declarados à Autoridade Tributária pela B... como tendo sido pagos ao arguido AA acima referidos e a circunstância de, relativamente ao seu cônjuge não terem sido apurados rendimentos, o rendimento disponível do arguido foi o seguinte:

198 –   O arguido EE obteve da actividade por si desenvolvida e acima descrita, a quantia total de €544 541,48, assim discriminada:

199     - A sociedade A..., Unipessoal, Lda. foi constituída arguida no dia 09.02.2022, conforme documento de fls. 1096.

200     - Nos anos de 2020 e 2021 não possuía património móvel ou imóvel, nem tinha participações sociais.

201    - Declarou, em sede de IRC, os seguintes valores à Autoridade Tributária:

202 –   E, via E-Factura, foram comunicados os seguintes rendimentos respeitantes à mesma arguida:

203     - A sociedade A... é titular das contas bancárias referidas no ponto 63).

204     - A conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada no Banco 1..., SA, aberta em 13/09/2019, e titulada pela A..., apresentou, nos anos de 2020 e 2021, os seguintes movimentos bancários:

205    - As contas de depósito à ordem nº  ... e  ... domiciliadas no Banco 3..., SA, foram encerradas, respectivamente, em 9/9/19 e 20/8/19.

206    - A conta de depósito à ordem nº  ..., aberta a 25/1/2019 junto da Banco 2..., SA. também titulada pela A..., apresentou os seguintes movimentos bancários:

207 –  O rendimento financeiro, nos anos de 2020 e 2021, auferido pela A..., foi o seguinte:

208 –  A situação patrimonial da arguida A..., nos anos de 2020 e 2021, era a seguinte:

209 –  Nesse período temporal a Autoridade Tributária apurou os seguintes valores de rendimento disponível:

210    - A diferença entre o valor do património da A... e o seu rendimento disponível, nos anos de 2020 e 2021, cifrou-se no montante total de €802 143,15, assim descriminado:

211    - A sociedade B..., Lda., foi constituída arguida no dia 09.02.2022, conforme documento de fls. 1099.

212    - Nos anos de 2020 e 2021 não possuía património móvel ou imóvel, nem tinha participações sociais.

213    - Em sede de IRC declarou à Autoridade Tributária os seguintes valores:

214 –   E é titular das contas bancárias mencionadas no ponto 64).

215    - A conta de depósito à ordem nº  ... aberta em 03/12/2020 junto do Banco 1... e titulada pela B... apresentou os seguintes movimentos:

216 –   Já a conta de depósito à ordem nº  ... aberta em 28/04/2016 junto do Banco 3..., SA, de que também é titular, apresentou os seguintes movimentos:

217    - A conta de depósito à ordem nº  ... domiciliada na Banco 2..., SA, aberta em 16/11/2015 e também titulada pela B... apresentou os seguintes movimentos bancários:

218    - O rendimento financeiro registado nas contas de depósito à ordem pela B..., que constitui o rendimento financeiro por si auferido, foi o seguinte:

219 –  A situação patrimonial da B... nos anos de 2020 e 2021 era a seguinte:

220 –   Nesse mesmo período, conforme apurado pela Autoridade Tributária, a B... tinha o seguinte rendimento disponível:

221 –  A diferença entre o valor do património da B... e o seu rendimento disponível, nos anos de 2020 e 2021, cifrou-se no montante total de €273 067, 57, assim descriminado:


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            (Das contestações)

222    - O arguido BB e o arguido CC são vizinhos.

223    - Os arguidos BB e CC não conheciam o arguido DD.

224    - O arguido BB antes da data dos factos não conhecia o arguido EE.

225    - Na data dos factos trabalhava como repositor num supermercado e vivia com a sua família.


*

226     - O arguido CC trabalhava para o arguido EE na empresa B....

227     - O arguido CC deslocou-se a Lisboa no dia 31 de Maio de 2021 a pedido do arguido EE.

228     - O arguido CC manteve, ao longo da sua vida, ocupação laboral regular.

229    - Quando restituído à liberdade tem possibilidade de vir a ser contratado como distribuidor de produtos de alimentação animal, conforme declaração de fls. 2396.

230    - Reside com a mulher, que desenvolve actividade de cabeleireira, e os dois filhos.

231    - Beneficia do apoio dos progenitores e é pessoa considerada no meio social onde habita.

232    - Evidencia sintomatologia depressiva e encetou acompanhamento médico pela especialidade de psiquiatria no Hospital ..., onde lhe foram prescritos fármacos, conforme relatório de fls. 2397 e 2398.


*

233    - O arguido DD é considerado no seu meio familiar, social e profissional como pessoa conscienciosa e trabalhadora.

234    - Trabalha desde 1989, tendo 31 anos de carreira contributiva para a Segurança Social, junto da qual tem a sua situação contributiva regularizada.

235    - É casado, tem duas filhas maiores, uma delas, estudante universitária, ambas ainda residem com os pais, pese embora uma já trabalhe.

236    - Sempre manteve o seu centro de vida no local onde nasceu, no concelho de Almada.

237    - No ano de 2020, com a pandemia da Covid-19, deixou de fazer descontos para a Segurança Social, na qualidade de sócio-gerente da sua empresa.

238    - Actualmente não trabalha e o salário da sua mulher é de cerca de 800€líquidos.

239    - O agregado conta com a ajuda de familiares, nomeadamente, dos pais do arguido, já com mais de 80 anos de idade.

240    - É tido por aqueles que com ele convivem como pessoa honesta e trabalhadora, está social e familiarmente inserido e tem trabalho assegurado.


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            (Dos relatórios sociais)

241    - Na data dos factos o arguido BB integrava o agregado familiar constituído pelo próprio e pela mulher que viviam, como ainda vivem, em habitação adquirida com recurso a crédito bancário, no concelho de Vila Nova de Gaia, com valor de hipoteca de 400€mensais.

242    - O casal contraiu matrimónio em 2018 depois de um período de 5 anos de namoro e desse relacionamento nasceu uma filha, em 2021, actualmente com 2 anos de idade.

243    - Na data dos factos exercia funções numa grande superfície comercial, com vínculo laboral e um salário na ordem dos 800€mensais.

244    - Nessa altura a mulher estava grávida e não apresentava quaisquer rendimentos, sendo a situação do agregado precária e beneficiando do apoio económico e afectivo da sogra do arguido.

245    - Durante este período as rotinas do arguido estavam circunscritas ao convívio com a companheira, alguns amigos e ao exercício da sua actividade profissional ainda que, durante determinado período, tivesse usufruído de licença de paternidade.

246    - O arguido BB não concluiu o 9º ano de escolaridade e apresenta, desde idade precoce, experiências profissionais essencialmente como servente na construção civil, condicionado por problemática de toxicodependência dos progenitores.

247     - É originário do Bairro ..., no Porto, zona conotada com a marginalidade e exclusão social, mas fixou residência na cidade de Vila Nova de Gaia a fim de consolidar o afastamento dos seus familiares, alguns dos quais cumpriram penas efectivas de prisão.

248     - Desde a altura em que passou a residir em Vila Nova de Gaia que o casal tem usufruído do apoio dos sogros e um modo de gestão de vida centrado na convivência com estes familiares.

249    - Tem um irmão mais velho e o seu processo de crescimento decorreu num agregado de condição socioeconómica modesta.

250     - Iniciou uma relação aos 22 anos de idade, que motivou o abandono do agregado de origem, ao qual retornou após o fim da relação.

251    - Abandonou, em definitivo, o agregado de origem quando conheceu e iniciou a relação de namoro com o actual cônjuge.

252    - A mulher, assim como a família dela, continuam a prestar-lhe apoio.

253     - Vem cumprindo as regras e obrigações a que se encontra vinculado por via da medida de coacção a que está sujeito nestes autos.

254     - Dado o confinamento habitacional não tem perspectivas de trabalho a curto prazo, manifestando vontade em prosseguir as funções que vinha exercendo na data dos factos.


*

255     - O arguido CC é casado, reside com o cônjuge e os dois descendentes, actualmente com 12 e 20 anos de idade, em ..., Vila Nova de Gaia.

256    - Trabalhou numa empresa de limpezas técnicas, onde desenvolvia procedimentos e executava tarefas de desinfecção de superfícies, na altura em contexto de combate ao surto pandémico relacionado com a Covid19 e outros protocolos previamente definidos, auferindo cerca de 2000€mensais.

257    - A mulher exerce actividade como auxiliar de cabeleireiro e aufere o salário mínimo nacional, acrescido de bonificações.

258    - Com experiência no sector da confecção de cerveja artesanal, aceitou uma proposta de trabalho nesta área, tendo iniciado funções nessa empresa em 23 de Março de 2021.

259    - Na data dos factos ocupava os seus tempos livres na companhia dos seus familiares e de amigos/conhecidos com quem partilhava interesses comuns, alguns do contexto laboral, outros que conhecia da infância e outros ainda em função de contextos sociais.

260    - Cresceu integrado no agregado familiar de origem, cuja fonte de rendimento provinha da actividade profissional dos pais, o pai proprietário de um restaurante e a mãe funcionária administrativa.

261    - A sua formação académica decorreu até ao 12º ano de escolaridade em contexto de trabalhador estudante.

262    - Após abandonou os estudos e iniciou actividade laboral a tempo integral, com funções numa empresa de componentes eléctricos.

263    - Mais tarde exerceu funções como técnico de comunicações e noutras áreas, até ser admitido na empresa As..., em ....

264     - Encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica à ordem dos presentes autos, cumprindo as regras e obrigações a que se acha sujeito, bem como mantendo uma interacção positiva com os técnicos da Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.

265    - Beneficia do apoio do seu agregado familiar com quem coabita.

266    - Actualmente, a subsistência do agregado é assegurada pelo vencimento da mulher, bem como do apoio dos restantes membros familiares, nomeadamente, a filha de 21 anos que exerce actividade profissional numa grande superfície comercial da zona.

267    - Tem perspectiva de enquadramento laboral numa empresa de distribuição de alimentação animal, podendo iniciar actividade laboral a qualquer momento, caso a sua situação jurídica o venha a permitir.


*

268     - O arguido JJ nasceu em S. Paulo, no Brasil, e cresceu no seio de uma família composta pelos pais e uma irmã mais velha.

269     - O pai, que faleceu em 2007, era empresário e proprietário de uma rede de farmácias, e a mãe era executiva numa empresa estatal.

270    - O arguido é bacharel em Direito tendo trabalhado no Ministério Público, quando acabou a faculdade.

271    - A partir de 2006 direccionou a sua actividade para a área empresarial, adquirindo empresas em dificuldade e com dividas fiscais que depois vendia.

272     - Formou três empresas no Brasil, uma de investimentos e participações, outra de importação/exportação de cervejas e outros géneros alimentícios e outra de publicidade.

273    - A partir de 2020 fixou-se definitivamente no Porto com a esposa e o filho do casal.

274    - À data em que foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva à ordem dos presentes autos encontrava-se a viver no Porto.

275    - No Estabelecimento Prisional ..., onde cumpre a medida de coacção prisão preventiva, foi alvo de três sanções disciplinares por posse de telemóvel.

276     - No Estabelecimento Prisional não recebe visitas.


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277    - À data dos factos o arguido DD, actualmente com 53 anos de idade, vivia com o cônjuge e as duas filhas comuns, numa habitação arrendada na freguesia ..., concelho de Almada.

278     - A empresa de que é proprietário está inactiva desde 2020.

279     - Essa inactividade adveio de prejuízo financeiro decorrente de investimentos em transacções que não deram lucro e das restrições do COVID–19 e originou dívidas, nomeadamente, à Segurança Social, Finanças e entidades bancárias.

 280   - No âmbito da sua actividade profissional efectuava pontualmente viagens para o continente africano.

281    - É filho único de um casal, tendo dois irmãos consanguíneos, actualmente com 59 e 57 anos de idade, fruto do primeiro relacionamento conjugal do progenitor.

282    - Cresceu no actual meio sócio residencial, onde os pais se fixaram há várias décadas, o pai, motorista da At..., e a mãe, camareira no Hotel 1..., asseguravam a satisfação global das necessidades pessoais/familiares.

283     - Em 1996 contraiu casamento com YYY e autonomizou-se do agregado dos pais.

284    - O casal comprou habitação, na mesma zona geográfica, através de empréstimo bancário, e que mais tarde veio a ser vendida pelas dificuldades financeiras que surgiram depois do início da actividade por conta própria por parte do arguido, passando a família a residir em imóvel arrendado.

285    - Do referido relacionamento nasceram duas filhas, actualmente com 26 e 21 anos de idade.

286    - Aos 17 anos, após concluir o 9º ano de escolaridade, abandonou o sistema de ensino e enveredou pela vida laboral.

287    - Posteriormente, desempenhou funções de fiel de armazém e, mais tarde, como vendedor de máquinas de construção civil na empresa “Au..., Lda.”, onde se manteve por cerca de 20 anos.

288    - Após criou a sua própria empresa e tornou-se empresário no mesmo ramo de actividade.

289    - Foi-lhe imposta nestes autos a medida de coacção de prisão preventiva, situação que determinou a quebra de rendimentos familiares e a incapacidade de assegurar a renda da habitação onde residiam.

290    - Por esse motivo o agregado familiar transitou para uma habitação cedida gratuitamente pelo seu proprietário, amigo do arguido.

 291   - Em 12 de Março de 2022, o arguido foi sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica, data em que se juntou ao seu núcleo familiar.

292    - Manteve-se em confinamento habitacional as 24h diárias, tendo sido recentemente autorizado a sair da sua residência por cerca de 3 horas, para prestar apoio à progenitora.

293    - No decurso da execução dessa medida tem revelado satisfatória capacidade para cumprir as regras da medida e manter uma relação cordial com os técnicos da equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.

294    - Não dispõe de rendimentos, sendo a sua subsistência assegurada pelo cônjuge, que exerce funções de técnica administrativa na empresa “Av...” e pelo apoio da filha mais velha que trabalha no banco Banco 6....

295    - O arguido projecta retomar a actividade como empresário, na mesma área.


*

296    - Ao arguido BB não são conhecidos antecedentes criminais.

*

297    - O arguido CC foi condenado nos autos de processo comum singular nº 312/16.1PPPRT do Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 2, por decisão proferida em 26/1/2018 e transitada em julgado em 25/10/18 pela prática, em 27/4/17, de dois crimes de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal na pena única de 160 dias de multa à taxa diária de €7, declarada extinta pelo cumprimento a 01/12/2020.

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298    - Ao arguido EE não são conhecidos antecedentes criminais.

*

299     - Ao arguido DD não são conhecidos antecedentes criminais.

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 300    - O arguido BB admitiu a prática dos factos que se vieram a comprovar e declarou-se arrependido por assim ter procedido.

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301     - O arguido CC admitiu a prática dos factos que se vieram a comprovar e declarou-se arrependido por assim ter procedido.

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            Factos não provados:

          Com interesse para a discussão da causa não se provaram outros factos, designadamente, os seguintes:

a)        Os arguidos EE, CC, BB e DD fazem parte de uma rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha, cujo objectivo é a introdução de produto de natureza estupefaciente em Portugal.

b)        Para esse efeito, desde meados de Maio do ano de 2021, organizaram-se e elaboraram um plano em ordem a garantir a entrada e comercialização, em Portugal, de cocaína.

c)       O arguido DD utilizou os números de telefone mencionados no ponto 2.4.) dos factos provados para combinar encontros com os demais arguidos.

d)       Para além da situação ocorrida no dia 2 de Setembro de 2021 os arguidos combinaram outros encontros onde transaccionaram cocaína, designadamente, nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2021.

e)       O veículo mencionado no ponto 4) dos factos provados tinha a matrícula ..-..-RP.

f)        Nas circunstâncias mencionadas no ponto 7) dos factos provados foi o arguido EE quem retirou as mochilas da mala do carro.

g)       Pelas 21:30 horas, o arguido CC entrou no Hotel ... e dirigiu-se para o quarto onde o arguido EE estava hospedado.

h)       Foi o arguido AA quem, nas circunstâncias mencionadas no ponto 11) dos factos provados, colocou as mochilas no veículo de marca Audi.

i)        Na conversa mencionada no ponto 13) dos factos provados (telefonema de 23/6/21) os arguidos EE e CC falam sobre quantias a entregar para a aquisição de estupefaciente.

j)        No decurso da conversa mencionada no ponto 19) dos factos provados (telefonema de 14/7/21) o individuo que utilizava o número espanhol disse ao arguido EE que eles “já deve estar colando aí”.

k)       Na conversa mencionada no ponto 20) dos factos provados esse mesmo indivíduo perguntou ao arguido AA se a quantia a pagar era de 117 mil euros.

l)        Os telemóveis que o arguido DD detinha no dia 2 de Setembro de 2021 destinava-se a permitir contactar com os demais arguidos e com os destinatários da cocaína.

m)      As quantias monetárias encontradas na posse dos arguidos no dia 2 de Setembro de 2021, eram parte do lucro que obtiveram com a posse, o transporte e a comercialização da cocaína.

n)        O talão de depósito em numerário em nome do arguido JJ, emitido pelo Banco 1..., no montante de €1.000,00 (mil euros) encontrado no interior do veículo automóvel Mercedes, modelo ..., de cor cinza e matrícula AC-..-QS, foi utilizado pelo arguido EE na actividade de tráfico de estupefacientes.


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o)       A sociedade A... tem como registo de exercício de actividade principal o comércio por grosso de tabaco.

p)        Quando a sociedade B... foi constituída o seu capital social era de €400 000,00.

q)       A sociedade B... não tem registo de aquisições intracomunitárias.

r)       O arguido JJ decidiu utilizar estas duas sociedades e receber, através de contas bancárias por elas tituladas, rendimentos provenientes do cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, os quais dissimulou e reintroduziu no circuito económico, através de operações que aparentavam cumprirem as normas legais vigentes.

s)        Na execução dessa tarefa o arguido EE procedeu da forma descrita nos pontos 65) e 66) dos factos provados.

t)        O que fez com vista a dar uma aparência legal a esses valores que sabia terem origem no tráfico de estupefacientes e de modo a encobrir a sua origem.

u)       As sanções internacionais ao banco russo Banco 5... foram decretadas nos anos de 2014 a 2017 e em 2022.

v)        A sociedade I... tem como sócios OO e NN.

w)       Em 13 de Agosto de 2020 NN vivia com OO.

x)       Até Novembro de 2019 NN auferiu rendimentos muito abaixo do salário mínimo nacional.

y)       NN e OO são titulares de quotas da sociedade I....

z)       OO foi condenado pela prática de crimes de roubo e extorsão.

aa)      A sociedade J..., Lda. tem por objecto o fabrico de calçado e tem sede em Guimarães.

bb)      As transferências monetárias efectuadas por J..., Lda. para a sociedade A... não titulavam qualquer serviço prestado por esta última à primeira.

cc)      Nem a J..., Lda. pôs em prática qualquer plano ou negócio elaborado pela A....

dd)      A sociedade Q... Unipessoal Lda. nunca exerceu qualquer actividade na morada da sua sede ou noutra.

ee)     As transferências monetárias recebidas pela Q... Unipessoal Lda., não titulavam qualquer serviço que lhe tivesse sido prestado pela A....

ff)       As transferências bancárias efectuadas pela sociedade A... para TT, S..., T... Limited, U..., V..., W..., X..., Y...., Z... Llc., Aa... Limited, Ab..., Ac... Lda., Ad..., não são compagináveis com o objecto social da A... e não se referem a serviços/negócios prestados à A....

gg)    O montante referido no ponto 139) dos factos provados proveio de uma única transferência efectuada no dia 16/9/2019.

hh)    Foi para a conta número ... do Banco 1... SA que a Ae... Inc. efectuou as transferências mencionadas no ponto 141) dos factos provados.

ii)      As transferências mencionadas no ponto 141) dos factos provados não são compagináveis com o objecto social da A..., não têm justificação e não se referem a serviços/negócios prestados pela A....

jj)      Foi para a conta número ... do Banco 1... SA, titulada pela A..., que foi transferido o montante mencionado no ponto 136) dos factos provados.

kk)    Foi da conta número ... do Banco 1... SA, que a sociedade A..., transferiu o montante global de €90.760,00 (noventa mil setecentos e sessenta euros) para a empresa Ab....

ll)      Os valores transferidos pela sociedade A... para as contas co-tituladas por ZZ Lda. e BBB não titularam qualquer negócio que estes tivessem celebrado com essa sociedade.

mm)   Os montantes depositados em numerário, bem como aqueles que foram transferidos de, ou para, as contas bancárias tituladas pela sociedade A... mencionados nos factos provados tiveram origem na prática do crime de tráfico de estupefacientes, destinando-se as operações bancárias a eles atinentes a encobrir os lucros advindos dessa actividade.


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nn)     A sociedade B... foi usada pelo arguido JJ para encobrir os lucros advindos do tráfico de produtos estupefacientes.

oo)     Até 2 de Setembro de 2021 a fábrica da B... não produziu cerveja.

pp)      Nunca foi intenção do arguido AA e da B... a produção de cerveja.

qq)      As dívidas da sociedade B... quando adquirida pelo arguido JJ obstavam à sua viabilidade económica.

rr)       Para além da ocasião mencionada nos factos provados, existissem outras em que os serviços prestados pela Ap,,, tivessem sido pagos em numerário.

ss)       O arguido AA actuou, por si e em nome, no interesse e em representação das sociedades comerciais “A... Unipessoal Lda.” e “B... Lda.”, em execução de um plano prévio, de modo livre, deliberado e consciente, com o propósito de, através dessas sociedades, dissimular os proveitos económicos obtidos através de actividade, que sabia ser ilícita, resultante da prática de crime de tráfico de estupefacientes.

tt)        Agiu ainda, por si e em nome, no interesse e em representação das sociedades arguidas, sob a mesma resolução, com o propósito de que as quantias em dinheiro e as transferências bancárias não fossem relacionadas com a actividade de tráfico de estupefacientes que desenvolvia.

uu)      De modo a que, como produto dessa actividade, tais quantias não fossem rastreáveis e apreendidas e ainda para evitar que pudesse vir a ser responsabilizado criminalmente.

vv)      O arguido EE, por si e em representação das mencionadas sociedades, acordou levar a cabo as suas condutas, bem sabendo que dificultava a detecção da proveniência do dinheiro e a sua ligação com o seu real destinatário.

ww)     O que fez sabendo que essas condutas eram proibidas e punidas por lei.


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xx)     Na data dos factos o arguido EE não tinha residência em Portugal, nem qualquer familiar ou amigo.

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            (Das contestações)

yy)      A deslocação do arguido BB à fábrica de cerveja, no dia 2 de Setembro de 2021, foi para aceder ao pedido de ajuda, por não ter carro, do seu vizinho.

zz)       O arguido BB ignorava a quantidade e a concreta natureza do produto estupefaciente que lhe foi apreendido.

Aaa)    O arguido BB tem trabalho garantido.

Bbb)    O arguido DD conheceu o arguido EE através de um amigo comum e, de vez em quando, combinavam convívios, nomeadamente, almoços, como sucedeu a 2 de Setembro de 2021.

Ccc)    Nesse dia o arguido DD apenas levava consigo bens pessoais, necessários à pernoita no Norte do país.

Ddd)   E deslocou-se ao Norte do país com o fito de avaliar umas máquinas, razão pela qual teria de pernoitar fora de casa, pois a avaliação ocorreria no dia seguinte.

Eee)    No ano de 2020 o arguido DD trabalhava.

Fff)     A sua actividade profissional é de avaliação e compra e venda de maquinaria pesada.

Ggg)   O único bem que possuía era um armazém onde desenvolvia a sua actividade profissional, o qual se encontra penhorado, por falta de pagamento do mútuo hipotecário.            »

                                                                      

b.        É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância :

«          Fundamentação:

Nos termos do disposto pelo art. 124º, nº 1 do Código de Processo Penal constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.

O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127º, nº 1 do Código de Processo Penal: “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Não se confundindo com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica – Marques Ferreira, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Almedina, 1993, pág. 227 e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, pág. 322.

Existem, no entanto, algumas restrições legais ao regime da livre apreciação da prova, como sucede com o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (169º), o efeito de caso julgado nos Pedidos de Indemnização Cível (84º), a prova pericial (163º) e a confissão integral sem reservas (344º).

Surgem ainda outras condicionantes estruturais à livre apreciação da prova, sendo uma delas o princípio da legalidade da prova (art. 32º, nº 8 da CRP; art. 125º e 126º do CPP) e outra o princípio “in dúbio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência - art. 32º, nº 2 da CRP.

Assentes os princípios que norteiam a apreciação da prova, cumpre salientar dois pontos concretos no que respeita à fixação da matéria de facto:

1º - Que, do elenco dos factos provados e não provados, expurgámos os conceitos conclusivos que provinham da acusação e da própria decisão instrutória que a subscreveu, tal como advém do disposto pelos art. 124º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que impõem apenas a exposição dos factos que foram objecto de prova;

2º - Que as intercepções telefónicas efectuadas nestes autos, como meio de prova que são, servirão para afirmar ou infirmar os factos descritos na acusação e, por esse motivo, expurgámos também da acusação e da decisão instrutória as referências às mesmas e bem assim às conclusões que a elas vinham associadas em tais peças processuais.

Na verdade, temos para nós que, constituindo as escutas telefónicas meios de prova, não revela boa prática a sua transcrição na matéria de facto provada, devendo antes ali se consignar os factos que foram provados pela valoração de tais meios de prova. Será, portanto, o teor das intercepções telefónicas, devidamente transcritas pelo órgão de polícia criminal e sob determinação judicial, atendido na fundamentação de facto que se irá seguir.

No que respeita aos conceitos conclusivos e aos demais elementos de prova abundantemente referidos na acusação, que não foram objecto de pronúncia por parte do tribunal pelos motivos acima referidos, destacamos, ente o mais: “cometimento de factos ilícitos típicos” (art. 80º); “valores de origem ilícita” (art. 82º); “(…) carecia de razoabilidade/viabilidade económica” (art 92º); “(...)movimentos semelhantes aos constantes da conta…” (art. 94º); “o mesmo sucedendo com as contas pessoais de JJ (…)” (art. 95º); “Tal como também acontecia com as contas da B... (…) (art. 96º); “Todas as contas apresentavam o mesmo tipo de movimentação dos espelhados na conta da A... junto do Banco 1.... (art. 97º); “Não merece qualquer credibilidade, por falta de fundamento, dado não ser credível” (art. 159º); “Mesmo a circunstância de o negócio poder ocorrer e assim ser justificado, com a eventual possibilidade de no mercado de transacções ser comum uma empresa vender bens ou serviços que não produz, porquanto tem garantido, à partida, que os conseguirá adquirir a um preço suficientemente abaixo do preço a que contratou a venda, em ordem a que o negócio lhes seja lucrativo (…) (art. 160º); “(...) sustentadas em economia desenvolvida (art. 153º); “i) Os movimentos creditícios e a sua origem e os movimentos a débito e o seu destino estão, pormenorizadamente, descritos em “1.1 - Origem/Destino dos créditos e débitos”; ii) Foram detectados movimentos bancários entre os suspeitos (vide “1.1 - Origem/Destino dos créditos e débitos”); iii) Destacam-se entidades para onde foram feitas transferências em momentos imediatamente subsequentes a depósitos em numerário (vide “1.2 – Débitos após entradas em numerário”) (art. 154.º).


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No mais, porque as pessoas colectivas actuam por intermédio das pessoas físicas que agem em seu nome e no seu interesse, o tribunal não pôde considerar as afirmações relativas ao arguido EE ter actuado “em conjunto com estas duas empresas, de forma concertada”, ou as que referem que as sociedades arguidas actuaram “de forma livre, deliberada e consciente”, “sob a mesma resolução” criminosa “em comunhão de esforços” com o arguido EE, “de acordo com um plano acordado, previamente estabelecido entre EE e aquelas sociedades, em conjugação de esforços e intentos”.

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Das razões quanto à concreta decisão sobre a matéria de facto:

A convicção do tribunal, quanto aos factos que considerou provados e não provados, alicerçou-se na análise conjugada da prova produzida e examinada em audiência, devidamente analisada à luz das regras de experiência comum.

Assim, no que respeita à prova documental, atentou-se ao conjunto dos documentos juntos aos autos, designadamente:

- O auto de diligência de fls. 8 a 11 executado pelos Inspectores ZZZ, AAAA, BBBB, HH e CCCC e por eles confirmado em audiência, bem como a reportagem fotográfica que o acompanha, junta a fls. 12 a 15, reportado a diligência dos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2021, em Lisboa;

-          As informações relativas ao aluguer da viatura Mercedes de matrícula ..- ..-RP (conforme correcção da matrícula a fls. 121) de fls. 16 a 22;

-          As informações de fls. 75 a 80 relativas aos números de telefone do arguido AA, alvo de intercepções telefónicas;

-          O auto de recolha de informação de fls. 81, de onde resulta que o número de telefone ... era utilizado por um funcionário de B..., o arguido CC, facto que o próprio confirmou em audiência;

-          A informação prestada pela Segurança Social a fls. 82 a 86, relativa aos trabalhadores da sociedade B..., um dos quais, o arguido CC (cf. documento de identificação civil de fls. 87), facto também por ele confirmado;

-          Os autos de intercepção de fls. 88 a 93 (comunicações de 17 a 28 de Junho de 2021), de fls. 124 a 127 (comunicações de 29 de Junho de 2021 a 12 de Julho de 2021), de fls. 139 a 144 (comunicações de 13 a 26 de Julho de 2021), de fls. 169 a 172 (comunicações de 27 de Julho a 9 de Agosto de 2021), de fls. 186 a 191 (comunicações de 10 a 18 de Agosto de 2021), de fls. 211 a 216 (comunicações de 19 de Agosto a 1 de Setembro de 2021), de fls. 264 a 266 (comunicações de 2 de Setembro de 2021), de fls. 362 a 365 (comunicações de 3 a 14 de Setembro de 2021), de fls. 421 a 424 (comunicações de 15 a 27 de Setembro de 202), de fls. 494 e 496 (comunicações de 28 de Setembro a 11 de Outubro de 2021) e de fls. 635 a 637 (comunicações de 12 a 21 de Outubro de 2021);

-          O teor das transcrições judicialmente ordenadas das intercepções que foram consideradas com interesse para os autos, constantes dos Apensos I e II (intercepções telefónicas aos números telefónicos utilizados pelos arguidos EE e CC, respectivamente);

-          O auto de diligência de fls. 113 e 114, reportado a diligência executada pelos inspectores HH e DDDD no dia 3 de Julho de 2021 - deslocação às instalações da fábrica B... e à residência dos arguidos EE e CC - e reportagem fotográfica que, a fls. 115 a 119, o acompanha;

-          O auto de diligência de fls. 209 executado pelos inspectores ZZZ e HH no dia 22/8/21, junto à habitação do arguido EE, do qual resulta que, nesse dia, nada presenciaram;

-          O auto de diligência de fls. 218 a 220 executado pelos inspectores AAAA, HH, CCCC e EEEE, no dia 02/09/21, que deu origem à apreensão do produto estupefaciente e cujo teor foi por eles confirmado em audiência;

-          Os autos de revista e apreensão de fls. 221 e 222 (ao arguido BB), de fls. 224 (ao arguido CC), de fls. 225 (ao arguido EE), de fls. 226 (nas instalações/escritório da sociedade B...), de fls. 233 a 236 (ao interior do veículo de matrícula AC-..-QS) e de fls. 237 (ao arguido DD) e os objectos, valores e documentos apreendidos nessa ocasião (cf. fls. 234 a 236);

-          A reportagem fotográfica de fls. 227 a 232, que documenta as instalações da fábrica e a apreensão efectuada no seu interior;

-          Os autos de exame pericial ao estupefaciente apreendido de fls. 632 e 668;

-          As autorizações de acesso aos telemóveis apreendidos juntas a fls. 223, termo de consentimento prestado pelo arguido BB, e a fls. 238 e 239, termos de consentimento prestados pelo arguido DD;

-          O relatório pericial de fls. 1031 a 1038, relativo ao exame efectuado aos aparelhos apreendidos aos arguidos (seis telemóveis e um relógio), do qual se extrai não ter sido possível aceder aos telemóveis Samsung ... e Apple Iphone12 apreendidos ao arguido EE, por terem um código de segurança activo e desconhecido, assim como não ter sido possível aceder ao conteúdo do Apple Watch que também lhe foi apreendido, ou ao telemóvel Apple Iphone 11 apreendido ao arguido CC, por também ter um código de segurança activo e desconhecido.

-          O auto de visionamento de fls. 1040 de onde resulta nada de relevo ter sido descoberto nos telemóveis encontrados na posse dos arguidos DD e BB;

-          Os documentos de fls. 508 a 522 e de fls. 2345 a 2398, juntos pelo arguido CC, entre os quais, as declarações fiscais de fls. 508 a 519, a declaração da empresa Aw..., atestando que ali laborou entre Agosto de 2019 e Abril de 2021 (cf. fls. 520), o contrato de trabalho que celebrou com a B... a 23 de Março de 2021 (cf. fls. 2345) e a adenda ao mesmo (cf. fls. 521), os recibos de vencimento (cf. fls. 2356 a 2360) e ainda os demais documentos, nomeadamente, os referentes a publicidade, marketing e certificação relativos à B...;

-          Os documentos de fls. 581 a 590, juntos pela testemunha FFFF, um dos sócios da Ap..., empresa de contabilidade e seguros;

-          A cópia do contrato de trabalho celebrado a 12 de Março de 2021 entre a testemunha GGGG e a B..., junta a fls. 596 a 605;

-          O assento de nascimento da filha do arguido BB de fls. 674;

-          Os documentos juntos a fls. 860 a 874 pelo arguido DD referentes à sua situação profissional;

-          A cópia da certidão de casamento do arguido EE junta a fls. 948, a cópia do assento nascimento do seu filho de fls. 949, a factura da água de fls. 950 e 951, as informações relativas à candidatura a visto de residência em Portugal por parte do arguido, da mulher e do filho, juntas a fls. 952 a 954 e os documentos fiscais e bancários de fls. 955 a 961;

-          Todas as informações prestadas pelo Banco 1... relativas à conta nº ..., titulada pela A... juntas a fls. 1569, designadamente, a cópia da ficha de assinaturas de fls. 1567, os talões de depósito em numerário de fls. 1553 a 1566 e o CD junto a fls. 1568 contendo a listagem dos movimentos ocorridos nessa conta desde 1/1/2019;

-          O exame pericial efectuado pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária, junto no Apenso IV, que analisou os movimentos da conta nº ... titulada pela A... no Banco 1..., bem como os extractos bancários que o acompanham;

-          As informações juntas pelo Banco de Portugal a fls. 1601 a 1619, relativas a contas bancárias tituladas por pessoas singulares ou colectivas que foram destinatários e/ou remetentes de valores transferidos para essa conta bancária;

-          O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH fls. 1578 relativo à sociedade M..., a certidão de permanente que o acompanha a fls. 1579 e ss e a ficha de identificação civil da sua gerente de fls. 1583;

-          Os autos de diligência de fls. 1629 a 1630, de fls. 1665 e de fls. 1696 datados, respectivamente, de 4, 5 e 7 de Julho de 2022, executados, entre outros, pelo inspector HH, no qual são identificados os responsáveis pelas empresas e/ou as pessoas singulares destinatários e remetentes de transferências bancárias de e para a conta bancária da A...;

-          Os documentos juntos: a fls. 1638 (pela testemunha HHHH); a fls. 1643 e 1644 e a fls. 2451 a 2956 (pela testemunha PP gerente da K...); a fls. 1645 a 1664 (pela contabilista da L...); a fls. 1678 a 1695 (pela testemunha IIII); a fls. 1698 a 1704 e a fls. 2958 a 3096 (pela testemunha RR, gerente da M...); a fls. 1708 a 1763 (pela testemunha JJJJ). Todos eles adiante analisados em conjugação com os depoimentos prestados pelas testemunhas que sobre eles se pronunciaram;

-          O documento de fls. 1878 relativo ao preço médio de diversos tipos de estupefacientes;

-          As certidões permanentes das sociedades arguidas juntas a 17/1/2023;

-          Os documentos relativos à carreira contributiva do arguido DD juntos com a contestação que apresentou a 9/2/23 e bem assim a fotografia junta na audiência do dia 23/5/23;

-          Os documentos juntos pelo arguido CC a fls. 2345 a 2398, na audiência do dia 18/4/23 e, no dia 21/4/23, declaração da sua carreira contributiva, declaração da Aw..., declaração da Ax... e Ay...;

-          O documento de fls. 1504 referente a proposta de trabalho relativa ao arguido BB;

-          O documento junto na audiência do dia 12/5/23, referente à identificação da gerente da sociedade I...;

-          A informação prestada pelo SEF a 12/5/23 relativamente à situação do arguido EE;

-          Os documentos que compõem o 1º e 2º Volume do Apenso III (processo nº 151/21.8TELSB apenso), designadamente:

i.         A comunicação do Banco 1... (Departamento de prevenção e detecção de branqueamento de capitais) de fls. 2, o “contrato para la compraventa Comercial Internacional nº ...” datado de 19/3/21 de fls. 3 a 12, a factura de fls. 13 e a ordem de transferência de fls. 14;

ii.        O documento de fls. 36, referente ao preço da tonelada métrica de arroz;

iii.       As comunicações de transacções suspeitas de fls. 29 a 35 e 37 a 42, efectuadas por diversas entidades bancárias;

iv.       O extracto da conta e listagem de movimentos da conta da nº ... titulada pela A... no Banco 1... de fls. 47 a 150;

v.       A informação de fls. 183 relativa à suspensão de operações bancárias a débito nessa conta e contas a ela associadas;

vi.       Os documentos relativos ao contrato de compra e venda de arroz juntos a fls. 218 a 243 pela sociedade A...;

vii.       A análise dos movimentos bancários da conta nº ... titulada pela A... no Banco 1... de fls. 263 a 273;

viii.     O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH, a certidão permanente, o auto de diligência e a reportagem fotográfica juntos, respectivamente, a fls. 274, 275 a 276, 277, 278 a 280, referentes à sociedade N..., Unipessoal Lda., bem como o auto de recolha de informação relativo ao seu sócio gerente, SS, junto a fls. 285 e ainda o registo de movimentos de fronteira de fls. 286 a 288;

ix.       O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH e a certidão permanente, juntos, respectivamente, fls. 281 e 282 a 284 referentes à sociedade P... Unipessoal Lda., bem como a informação prestada pela Segurança Social a fls. 344 e 345;

x.        O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH e a certidão permanente, juntos, respectivamente, fls. 289 e 290 a 292 referentes à sociedade Q..., Unipessoal Lda., o documento de identificação civil do seu gerente de fls. 293, o auto de diligência fls. 301 e reportagem fotográfica de fls. 303 e 304, que o acompanha, assim como a informação prestada pela Segurança Social a fls. 341 e 342;

xi.       O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH, a certidão permanente, o auto de diligência e a reportagem fotográfica juntos, respectivamente, a fls. 294, 295 a 296, 298 e 299 a 301, referentes à sociedade Af..., Unipessoal, Lda., bem como o auto de recolha de informação relativo ao seu sócio gerente, UU, junto a fls. 356 e ainda o registo de movimentos de fronteira de fls. 357 e 358;

xii.      O auto de recolha de informação elaborado pelo Inspector HH de fls. 305 referente à sociedade I..., o registo de identificação civil de NN e de OO, juntos, respectivamente, a fls. 305 e 306 e as informações prestadas pela segurança social relativamente a estes dois indivíduos a fls. 346 e 350 a 355.

-          As Informações fiscais e bancárias referentes ao arguido CC constantes do Apenso V.

-          Os documentos e investigação patrimonial e financeira para efeitos de perda ampliada do Apenso GRA (Gabinete de Recuperação de Activos), nomeadamente:

i.  As informações prestadas pelo Banco de Portugal de fls. 15 a 19 e de fls. 86 a 88, e pelas finanças a fls. 21 a 24, 26 a 33, 35 a 42, 44 a 61 e 146 a 234, os elementos constantes das bases de dados da Autoridade Tributária de fls. 65 a 67, o relatório do Instituto dos Registos e Notariado de fls. 68 a 70, as certidões permanentes das sociedades arguidas de fls. 71 a 75, as informações de fls. 78 e 81, quanto à titularidade de produtos financeiros e bens penhorados e as informações bancárias de fls. 92 a 100 (juntas nos CD´s anexos);

ii.  A investigação patrimonial e financeira para efeitos de perda ampliada de fls. 101 a 122.


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Da análise critica desses meios de prova foi possível comprovar que os arguidos comparticiparam, de maneiras diferentes, pelo menos, numa transacção de cocaína, que teve lugar no dia 2 de Setembro de 2021.

Para comprovação desses factos foram valoradas as declarações prestadas pelos arguidos BB e CC que, nessa parte, contribuíram, de forma relevante, para o esclarecimento dos factos.

Ao invés, os arguidos EE e DD não prestaram declarações e, por isso, em nada contribuíram para a descoberta da verdade. Não obstante o silêncio destes arguidos, foi possível, com base nas declarações prestadas pelos demais e na análise conjugada da prova documental e testemunhal produzida e examinada em audiência, formar um juízo positivo quanto à factualidade que o tribunal considerou assente. E, por ausência probatória, um juízo negativo quanto àquela que se considerou não provada.

Assim, no que respeita aos números telefónicos utilizados pelos arguidos o tribunal teve em consideração o facto de o arguido CC ter assumido utilizar o número telefónico mencionado na acusação, tendo-o utilizado nos contactos que fez com os arguidos BB e EE. Facto que encontra respaldo no auto de apreensão de fls. 224, no documento de fls. 77 e no auto de recolha informação de fls. 81. Que o arguido BB utilizava o número telefónico mencionado na acusação foi o que também resultou das declarações que o próprio prestou, tendo ainda assumido tê-lo utilizado para contactar o arguido CC, com quem combinou fazer um transporte de estupefaciente. O aparelho onde esse número operava foi-lhe apreendido, conforme resulta do auto de revista e apreensão de fls. 221 e 222, tendo o arguido fornecido o respectivo código de acesso e consentido que fosse efectuada pesquisa nesse aparelho, conforme termo de consentimento de fls. 223.

Que o arguido DD utilizava os números de telefone ... e ... foi o que se comprovou a partir do auto de apreensão de fls. 237, uma vez que lhe foram apreendidos dois telemóveis, um da marca Apple e outro da marca Alcatel, onde operavam os mencionados números telefónicos. Tendo o arguido dado o seu consentimento para acesso ao conteúdo dos mesmos, fornecendo os respectivos códigos de desbloqueio, conforme termos de consentimento de fls. 238 e 239, dúvidas não restaram serem por si utilizados.

No que respeita aos números telefónicos utilizados pelo arguido EE o tribunal considerou-os provados a partir dos depoimentos prestados pelas testemunhas, da informação junta a fls. 6, dos documentos de fls. 77 a 80 e do teor das intercepções telefónicas que constam dos Apensos I e II (que nenhum dos escutados contestou).

Foi, por isso, possível confirmar a utilização dos telefones apreendidos aos arguidos BB, CC e EE para contactarem entre si e para estabelecerem contactos prévios à apreensão do estupefaciente ocorrido no dia 2 de Setembro de 2021.

Quanto aos aparelhos telefónicos encontrados na posse do arguido DD, porque, como resulta do exame pericial efectuado (cf. relatório pericial de fls. 1032 a 1038 e auto de visionamento de fls. 1040) nada foi encontrado nesses aparelhos com relevo para a investigação, nem consta dos Apensos I e II que tenha sido interceptada alguma comunicação telefónica entre ele e qualquer outro dos arguidos, não foi possível considerar que os tivesse contactado ou que usasse esses aparelhos para efectuar tais contactos, facto que, por isso, foi considerado não provado.


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No que respeita aos factos ocorridos no dia 31 de Maio e 1 de Junho de 2021, não obstante a alegação de que o encontro descrito nos artigos 7º a 20º da acusação visaria concretizar uma transacção de cocaína, o certo é que não foi produzida qualquer prova que sustentasse essa afirmação, que, aliás, não se mostra factualmente descrita naquela peça processual.

Vejamos.

A deslocação a Lisboa, mais precisamente ao Hotel ..., foi confirmada não só pelo arguido CC, mas também pelos inspectores da Polícia Judiciária que participaram na vigilância que implementaram nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2021, naquele local.

O arguido CC admitiu conduzir, nessas circunstâncias de tempo e lugar, a viatura Mercedes e ter-se deslocado com o arguido EE, que nela seguia como passageiro à cidade de Lisboa, no dia 31 de Maio de 2021.

Por resultar que essa viatura Mercedes, modelo ..., não tinha matrícula ..-..-RP, mas antes ..-..-RP, conforme documentos de fls. 16 a 22, referentes ao contrato do seu aluguer, foi considerado não provado que tivesse a matrícula indicada na acusação.

Quanto ao que motivou a deslocação à cidade de Lisboa, o arguido CC mencionou que se deveu ao facto de o arguido EE, gerente da fábrica de cerveja onde na altura trabalhava como técnico de máquinas de enchimento, lhe ter solicitado que o acompanhasse por ali ter uma reunião de negócios, cujo teor afirmou desconhecer.

A relação laboral mencionada pelo arguido está comprovada pela cópia do contrato de trabalho que juntou a fls. 2345 e ss, que confirma a celebração do contrato de trabalho, com início a 23/3/21, entre ele e a B..., esta representada pelo arguido EE.

O arguido CC confirmou, genericamente, as “movimentações” descritas na acusação junto ao Hotel ..., embora referisse não se recordar de terem sido retiradas mochilas do interior da viatura que conduzia.

Quanto ao encontro que o arguido EE teve nesse dia com um outro indivíduo, afirmou desconhecer a identidade dessa pessoa ou do motorista que, numa viatura da marca Audi, o conduziu ao local. Referiu que esse indivíduo e o arguido EE pernoitaram no hotel, enquanto ele e o outro motorista passaram a noite no interior do Audi. No dia seguinte regressou com o arguido AA ao Porto.

Estas declarações foram confirmadas pelo Inspector da Polícia Judiciária HH que participou na vigilância aos arguidos efectuada nessa ocasião. Mencionou que essa vigilância ocorreu na sequência de uma comunicação efectuada pela agência de combate ao narcotráfico dos Estados Unidos da América (DEA), dando conta que o arguido EE, cidadão brasileiro, iria transaccionar, em Lisboa, no Hotel ..., produto estupefaciente, a 31 de Maio de 2021 (cf. fls. 6). O que determinou que fosse deslocada para o local uma equipa de inspectores, da qual fez parte, e montado um dispositivo de vigilância. Este facto está corroborado pelo auto de diligência de fls. 8 a 11 e ilustrado na reportagem fotográfica de fls. 12 a 16, cujo teor a testemunha confirmou em audiência.

Detalhou ainda que, num primeiro momento, foi logo possível identificar o arguido AA e depois também o arguido CC, tendo ambos chegado numa viatura da marca Mercedes, conduzida pelo arguido CC. Também referiu que, no local, se encontrava uma outra viatura, da marca Audi, com dois indivíduos, que não foram identificados, tendo um deles, o passageiro, abordado o arguido AA. Disse que do interior do Mercedes foram retiradas duas mochilas e que o arguido AA e o passageiro do Audi se dirigiram ao hotel, enquanto os condutores de cada uma das viaturas, o arguido CC e o individuo que conduzia o Audi, permaneceram no exterior, tendo ambos pernoitado no interior do Audi.

Asseverou ter sido confirmado, junto da recepção do Hotel, que o arguido EE tinha uma reserva efectuada em seu nome e, por isso, ter sido possível apurar o quarto onde estava hospedado.

Detalhou as movimentações subsequentes dos quatro indivíduos, nessa noite e no dia seguinte, mas sem que tivesse presenciado alguma actuação ilícita da parte de qualquer um deles.

O inspector chefe ZZZ, que também participou nessa acção de vigilância, começou por referir que o início da investigação teve por base uma comunicação da entidade americana responsável pelo combate ao tráfico de estupefacientes (a DEA), que visava o arguido EE, pessoa já conhecida da Polícia Judiciária, por, noutras investigações, existirem suspeitas de envolvimento em branqueamento de capitias e tráfico de estupefacientes. Assim, na sequência daquela informação, dirigiu-se ao Hotel ..., em Lisboa, com o Inspector HH, detalhando o que visualizou, em consonância com o que consta do auto de diligência de fls. 8 a 11, da reportagem fotográfica de fls. 13 a 15 e em conformidade com o depoimento do Inspector HH.

Particularizou ainda que passou a noite nas escadas de serviço, junto ao quarto ocupado pelo arguido AA e pelo outro indivíduo (no 17º piso do Hotel ...), deslocando-se, por diversas vezes, ao corredor, a fim de escutar o que diziam pois falavam muito alto (tanto assim que, de madrugada, um hóspede se dirigiu ao quarto pedindo que fizessem silêncio). Foi-lhe, por isso, possível constatar que o individuo não identificado que acompanhava o arguido AA era português e ainda perceber que ambos aguardavam “algum contacto”, que não soube especificar. Mencionou, genericamente, ter escutado o arguido AA referir-se a transferências de dinheiro e a compra e venda de diamantes e terem ambos falado da entrega de algo e de pagamento de dinheiro, sem que, contudo, tenha escutado qualquer concreta referência a algum negócio ou transferência.

Assumiu que, nessa data, não foi presenciada qualquer transacção de estupefaciente, que nenhum dos suspeitos foi abordado e que esta foi a única participação que teve nos factos em investigação.

Estes relatos foram corroborados pelo Inspector BBBB, que também participou na acção de vigilância junto ao Hotel ..., em Lisboa, no dia 31 de Maio de 2021, que descreveu detalhadamente.

O Inspector AAAA, embora tenha confirmado a ocorrência desta vigilância policial, por nela ter participado, explicou que, porque se manteve à distância, nada observou.

Foi, portanto, com base no auto de diligência, reportagem fotográfica e depoimentos prestados pelos inspectores da Polícia Judiciária acima identificados que o tribunal alicerçou a sua convicção quanto aos factos ocorridos nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2021, em Lisboa, e que considerou provados.

A propósito deste episódio, não podemos deixar de expressar a nossa perplexidade por não ter sido efectuada qualquer diligência para apurar a identidade dos ocupantes (um dos quais português) da viatura Audi (cujo proprietário não foi identificado, embora a matrícula fosse conhecida) ou para abordar os suspeitos e assim apurar o que continham as mochilas que se referem na acusação para lançar uma suspeita que não tem suporte factual.

Por fim, ainda quanto a episódio, por não constar do auto de diligência mencionado que tivesse sido o arguido AA quem retirou da mala da viatura Mercedes as duas mochilas, mas sim que foram retiradas pelo passageiro da viatura de marca Audi ..., juntamente com o CC, tendo sido esse individuo não identificado quem entregou uma das mochilas ao arguido AA, após, o que ambos se dirigiram ao quarto de hotel, o tribunal não pôde considerar provado que tivesse sido o arguido AA a retirar as mochilas do interior da viatura.

Pelo mesmo motivo também não se considerou provado que o arguido CC tivesse entrado no hotel na noite do dia 31/5/21, uma vez que consta expressamente do auto de fls. 9 (e foi confirmado pelo Inspector HH em audiência) que os dois condutores permaneceram no interior das viaturas, tendo pernoitado numa delas.

Por também não constar do auto de diligência a que vimos fazendo referência que tivesse sido o arguido AA, quem, no dia seguinte, colocou as mochilas no Audi ..., já que ali se menciona terem sido os condutores das viaturas a fazerem-no, esse facto também não foi considerado provado.


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No que respeita à conversação telefónica datada de 23 de Junho de 2021, o tribunal teve em consideração o auto de transcrição de fls. 3 a 7 do Apenso I (sessão nº 8130), referente a conversa telefónica mantida entre o arguido EE e o arguido CC, na qual o segundo menciona a palavra “bacalhau”. Considerou-se que essa palavra significa dinheiro, porque o arguido CC o confirmou.

Por não resultar dessa conversação qualquer menção à aquisição de estupefacientes e o arguido CC ter explicado que a referência a tinta, estava relacionada com o facto de um dos funcionários da fábrica de cerveja B..., o Sr. KKKK, estar a pintar as paredes, facto corroborado pelo documento que juntou a fls. 2372 (factura da compra de tintas em nome da B... datada de 21/6/21), o tribunal não pôde dar por assente que nessa conversação tivessem falado sobre valores a entregar para a aquisição de estupefacientes.

Já quanto aos factos constantes dos pontos 15) e 16), a deslocação a Lisboa combinada pelos arguidos EE e CC, o tribunal deu-a como comprovada com base na transcrição de fls. 5 e nas declarações prestadas pelo arguido CC. Tendo este último explicado tratar-se de um encontro a realizar com um indivíduo que iria efectuar a publicidade da cerveja a lançar pela B... e que a referência que fez no sentido de que fosse mantido em segredo, se deveu ao facto de não ser bom para o negócio a divulgação antecipada da marca de cerveja que pretendiam lançar, o tribunal não pôde concluir que aquela conversação tivesse alguma relação com o tráfico de estupefacientes. Essa interpretação seria, de entre todas as possíveis, a mais desfavorável aos arguidos e, como tal, por não ter sequer respaldo no teor da conversação, não pode ser consentida.

Aliás, o Inspector HH referiu que, na sequência do acompanhamento daquela intercepção, foi efectuada uma tentativa de localizar os arguidos EE e CC, no dia 30/6/21, em Lisboa, tendo sido montado um dispositivo de vigilância junto ao Hotel ..., que não logrou localizar os arguidos. E, embora tenha sido possível determinar que o telefone (ou telefones) que utilizavam activou uma das antenas de telecomunicações do ..., os elementos policiais que se deslocaram ao local também não lograram encontra-los. Ficou, portanto, por demonstrar a ocorrência do mencionado encontro e a que se destinava.


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A conversação entabulada entre o arguido EE e um indivíduo desconhecido através de um número de telefone espanhol ocorrida no dia 14 de Julho de 2021, considerou-se comprovada a partir do auto de transcrição de fls. 18 e 19 do Apenso II, sessão 52056 do Alvo 120396040 e do depoimento do Inspector HH, que referiu ter “controlado” essa intercepção e escutado a conversa em tempo real.

No que respeita ao conteúdo da segunda chamada telefónica efectuada pelo tal indivíduo não identificado que usava o número de telefone espanhol, o tribunal teve em consideração o auto de transcrição de fls. 35 do Apenso I, sessão 52133 do Alvo 120396040.

Por não resultar dessa transcrição que tenha sido proferida a expressão “já deve estar colando aí”, a mesma não foi considerada provada.

Também no que se reporta à interpretação que o Ministério Público fez da dessa conversa, alegando que esse indivíduo questionou o arguido EE sobre se a quantia a pagar era de 117 mil euros, não encontramos correspondência entre essa alegação e o que consta da intercepção telefónica transcrita.

Na verdade, a conversação em causa está transcrita a fls. 36 e 37 do Apenso I, sessão 52307 do Alvo 120396040, e dela resulta que, quando questionado, em novo contacto entabulado pelo tal indivíduo que usava o número de telefone espanhol, sobre se “era cento e dezassete mesmo”, o arguido AA responde “é, eu contei na hora lá irmão ..., mas acho que foi mais ou menos isso, eu te confirmo certinho… eu contei tudo com ele, falei é isso? E ele “é isso!”, agora já não me lembro se eram cento e dezassete”.

Ou seja, do seu teor literal não resulta demonstrado que os intervenientes se refiram ao valor de cento e dezassete “mil euros”, mencionam apenas cento e dezassete (sem referirem mil ou Euros). Desta forma, por não ter sido recolhida prova segura que sustente que o arguido AA tenha recebido ou pago 117.000€, não pôde o tribunal, com base em meras hipóteses, considerar provado que a referência ao número 117, se refira a cento e dezassete mil euros.

Reportar-se a conversa ao pagamento de cento e dezassete mil euros é uma mera hipótese, que não tem suporte noutros elementos probatórios.

Ora, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/2/13 (proc. nº 425/09.6GEPTM.E1), publicado em www.dgsi.pt, “Em processo penal não basta que a hipótese colocada pela acusação seja provável ou mesmo a mais provável, pois o princípio da culpa e da presunção da inocência exigem que o tribunal de julgamento decida para além de toda dúvida com base em meios de prova efectivamente produzidos (ainda que indirectamente, ou seja, versando sobre factos indiciários ou indirectos), sendo certo que os arguidos têm direito a não colaborar na descoberta da verdade e, portanto, na sua incriminação, cabendo ao tribunal assegurar que a sua decisão sobre a factualidade assenta na certeza processualmente possível e, assim, exigível, escorada em prova efectivamente produzida”.

No caso, porque o recebimento ou o pagamento de €117.000,00 por parte do arguido AA é, entre todas as hipóteses plausíveis, a que lhe é mais prejudicial e porque o exercício do direito do arguido ao silêncio não pode ser valorado contra ele como indício de culpabilidade, permaneceu a dúvida, inultrapassável, quanto ao real significado da mencionada conversação, dúvida essa que foi decidida no sentido mais favorável ao arguido, conforme impõe o princípio “in dúbio pro reo”.


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No que se refere à conversa entabulada entre os arguidos CC e JJ, no dia 23 de Agosto de 2021, transcrita a fls. 13 a 15 do Apenso I, há que referir, antes do mais, que a transcrição do conteúdo da escuta e a interpretação que o Ministério Público dela faz, por não constituir matéria de facto, não foi considerada. Ao invés, o tribunal consignou os factos que foram provados pela valoração desse meio de prova, conjugado com as declarações prestadas pelo arguido CC, que confirmou que esse contacto tinha efectivamente em vista a concretização de uma transacção de estupefaciente, aquela que veio a ocorrer no dia 2 de Setembro, porque os interessados na aquisição da cocaína estavam de férias e regressariam no sábado seguinte.

Expurgámos, por isso, as referências «questiona-o se “aquela cena lá…que tinhas lá em baixo”, isto é, em Lisboa, se se mantinha, se era concretizável. Ao que AA lhe responde afirmativamente, acrescentando que a decisão final só seria no sábado seguinte (dia 28.08.2021), pois os interessados na aquisição (de cocaína) estavam de férias».


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Já quanto aos factos que levaram à detenção dos arguidos e à apreensão de cocaína no dia 2 de Setembro de 2021 nas instalações da fábrica B..., o tribunal teve e consideração as declarações prestadas pelos arguidos CC e BB, conjugadas com os depoimentos prestados pelos elementos policiais que efectuaram a vigilância e a posterior apreensão.

O arguido CC referiu que a transacção de cocaína que se concretizou nesse dia lhe foi proposta pelo arguido EE que, por ter “um contacto” em Lisboa, lhe propôs um negócio de venda de droga, para o qual ele deveria “arranjar” um comprador. Confrontado com as intercepções telefónicas dos dias 23/8/21, 30/8/21 e 2/9/21 transcritas, respectivamente, a fls. 13 a 15 do Apenso I, a fls. 21 a 22 do Apenso II e a fls. 23 a 40 do Apenso II, assumiu que todas se reportam ao negócio de venda de estupefacientes que combinou com os arguidos AA e BB e que se concretizou a 2 de Setembro.

Detalhou que, no final de Agosto de 2021, efectuou contactos e conseguiu encontrar um comprador para o produto estupefaciente que o arguido AA iria buscar a Lisboa, um indivíduo que identificou como LLLL, pessoa que vendia estupefacientes no Bairro ..., no Porto. Explicou que, porque o LLLL não estava disposto a ir sozinho buscar a droga, tanto mais que não tinha carta de condução, contactou o seu amigo de infância e vizinho, o arguido BB, a quem propôs que acompanhasse o LLLL, de quem também era amigo, quando ele fosse buscar o estupefaciente que o arguido AA iria trazer de Lisboa. Tanto ele como o BB iriam ganhar cerca de €500 cada um, se o negócio se concretizasse.

Particularizou que, nesse dia, o arguido EE se deslocou a Lisboa para ir buscar a cocaína e que, durante a viagem, contactaram telefonicamente diversas vezes (como comprovam as intercepções telefónicas acima referidas). Num desses telefonemas informou-o que tinha dispensado os funcionários da fábrica de cerveja nesse dia à tarde, uma vez que o arguido AA contava ali chegar pelas 16:30 horas, e, noutro, contactou o arguido BB dando-lhe a conhecer a hora a que deveria chegar à fábrica e o modo como deveria proceder para ali entrar.

Explicou que o arguido EE chegou à hora combinada, vindo de Lisboa, na companhia do arguido DD, uma vez que foi ele quem os recebeu quando chegaram à fábrica da B.... Depois o AA e o DD dirigiram-se para o escritório, enquanto ele permaneceu na zona da fábrica. Mais referiu que a mochila que veio a ser encontrada pelos agentes policiais nesse escritório não se encontrava na fábrica previamente, assim como também não se encontrava ali qualquer embalagem com estupefaciente.

Mencionou ainda que o arguido BB acabou por ali comparecer, mas, ao contrário do combinado, não veio acompanhado pelo LLLL. Assumiu ter sido ele quem lhe franqueou a entrada e ter sido na sua presença que o arguido AA entregou ao arguido BB meio quilo de cocaína, que se destinava a ser entregue por este último ao LLLL, para a experimentar.

A intercepção telefónica de fls. 23 e ss do Apenso II relativa a conversação mantida entre o arguido CC e o arguido EE no dia 2/9/21 permite corroborar estas afirmações, dela se inferindo que o arguido AA foi informado pelo arguido CC que o comprador do estupefaciente que ele iria buscar queria “levar um bocado” para experimentar e que, se gostasse do produto, “todas as semanas pode rolar” (cf. fls. 24). A circunstância de ambos se assegurarem que não estariam funcionários presentes quando a transacção fosse realizada é também evidente a partir da leitura dessa transcrição.

O arguido CC referiu ainda que saiu das instalações da fábrica juntamente com o arguido BB tendo como destino o Bairro ..., no Porto, onde deveriam entregar o estupefaciente, o que não veio a suceder, por terem sido abordados por agentes da Polícia Judiciária.

Do seu depoimento resultou comprovado que o estupefaciente entrou nas instalações da fábrica com os arguidos AA e DD.

O arguido BB referiu não conhecer previamente qualquer um dos arguidos, à excepção do CC, de quem é amigo de infância e vizinho. Tal como este último, afirmou ter sido contactado pelo arguido CC dando-lhe conta de que o seu patrão (o arguido AA) tinha um negócio de venda de estupefaciente para concretizar e que a ele lhe incumbiria fazer o transporte. Para o efeito deveria deslocar-se com um amigo de ambos, o LLLL, à fábrica de cerveja para este último experimentar e adquirir o estupefaciente. Todavia, porque o LLLL não apareceu, acabou por se deslocar ao local sozinho (na viatura automóvel indicada na acusação), tendo previamente contactado o arguido CC, que lhe franqueou a entrada. Na fábrica foi conduzido ao escritório onde, na presença do arguido CC, o arguido AA lhe entregou meio quilo de cocaína para que a entregasse ao LLLL, que posteriormente deveria efectuar o respectivo pagamento. Explicou que, por esse transporte, ele e o arguido CC iriam receber €500 cada um, o que não se veio a concretizar porque, quando os dois saíram das instalações fabris e se preparavam para se dirigirem ao Bairro ... para fazerem a entrega do estupefaciente, foram abordados por elementos policiais.

Assumiu ter sido encontrada na sua posse a cocaína apreendida, declarou-se arrependido por assim ter procedido, mencionando ser esta uma situação única na sua vida, que foi determinada por questões económicas.

Quanto ao arguido DD disse não o ter visto nessa ocasião, nem em qualquer outra.

Ainda a propósito dos factos ocorridos no dia 2 de Setembro de 2021 o inspector HH referiu que, nesse dia, estava a fazer o controle de escutas quando ouviu o arguido AA dizer que tinha que ir “lá baixo buscar garrafas”, afirmação que, no seu entender, não fazia sentido e que o levou a suspeitar que poderia estar a preparar uma transacção de estupefacientes. Por esse motivo foi montada uma operação de vigilância na zona onde o arguido costumava accionar as antenas celulares (o ..., em Lisboa), que permitiu avista-lo a conduzir uma viatura Mercedes, na qual veio a entrar o arguido DD, pessoa que, até àquele momento, era desconhecida da investigação. Referiu que o arguido DD transportava uma mochila escura da marca Ferrari com a qual entrou no veículo do arguido AA, tendo ambos se dirigido à cidade do Porto onde almoçaram. Asseverou que viu o arguido DD a sair da viatura, quando pararam para almoçar, levando consigo a mochila, que manteve consigo durante o almoço. Após, ele e o arguido AA retornam à viatura conduzida por este último e dirigiram-se à Maia, às instalações da fábrica de cerveja B..., onde o veículo entrou.

Referiu ainda que, porque das intercepções telefónicas se indiciava serem dois os indivíduos que iriam levantar a droga (cf. fls. 33 e 37 do Apenso II), permaneceram no exterior até à chegada do arguido BB, que contactou telefonicamente o arguido CC (cf. intercepção de fls. 39 do apenso II) antes de entrar nas instalações.

Também detalhou que, quando os arguidos BB e CC saíram das instalações, foi encontrado na posse do arguido BB cerca de 500 gramas de cocaína.

Em face dessa apreensão, fazendo uso das chaves encontradas na posse do arguido CC, entrou nas instalações fabris onde encontrou o arguido AA, junto à entrada, e produto estupefaciente, cerca de um quilograma de cocaína e uma balança de precisão, no escritório. Este relato está comprovado pelo auto de diligência de fls. 218 a 220.

No mais confirmou os objectos apreendidos a cada um dos arguidos, tal como descritos nos autos de apreensão, além da cocaína, apreenderam os telemóveis e bem assim dinheiro aos arguidos, tal como comprovam os autos de revista e apreensão de fls. 221 e 222, 224, 225, 226, 233 e 237 e a reportagem fotográfica de fls. 227 a 232.

No que respeita ao arguido DD mencionou desconhecer o local onde se encontrava quando foi efectuada a abordagem policial.

O Inspector AAAA, também presente na acção de vigilância do dia 2 de Setembro de 2021, disse ter visto o veículo Mercedes a entrar no armazém da fábrica de cerveja sita na Maia, ter sido informado pelos colegas da chegada do Renault ... onde seguia o arguido BB, que abordou quando saiu da fábrica acompanhado pelo arguido CC, tendo o primeiro na sua posse cocaína. Também referiu ter entrado no armazém e ter visto, no primeiro andar, num escritório, uma balança e a cocaína, o que sucedeu depois de ter sido avisado por um dos colegas (já que, como referiu, não foi ele quem “encontrou a droga”).

No que respeita às instalações fabris referiu que se destinavam à produção de cerveja, que se tratava de um armazém novo, onde existiam silos de cerveja e garrafas, que dava ideia de se destinarem a testes para produção de cerveja, algumas das quais lhe foram exibidas pelo arguido AA.

Ainda a propósito da abordagem ao arguido BB valorou-se o depoimento da Inspectora EEEE, que, no dia em que ocorreu a detenção, prestou colaboração à brigada responsável pela investigação, tendo integrado o dispositivo de vigilância nas imediações da fábrica. Por isso, viu a viatura Mercedes a entrar na fábrica, a chegada do arguido BB, que parqueou a viatura que conduzia na via pública, e a entrada deste último nas instalações da fábrica. Também confirmou que, à saída, interceptou o arguido BB, que trazia consigo produto estupefaciente. No mais disse que, após a detenção destes indivíduos, fez guarda aos detidos, não tendo conhecimento de outros factos ou participado noutras diligências.

Da conjugação das declarações prestadas pelos arguidos CC e BB com os depoimentos prestados pelos mencionados inspectores da Polícia Judiciária e os elementos documentais juntos aos autos acima referidos, foi possível ao tribunal concluir que o arguido JJ se deslocou a Lisboa, no dia 2 de Setembro de 2021, para recolher cocaína, a qual lhe foi fornecida pelo arguido DD, que a transportou até às instalações da fábrica de cerveja dentro de uma mochila da marca Ferrari (que a sua mulher em audiência confirmou pertencer-lhe).

Efectivamente, tendo em consideração que o arguido AA se deslocou a Lisboa propositadamente para ir buscar cocaína, que a pessoa que ali contactou foi o arguido DD, que o arguido CC referiu que antes da chegada do arguido DD não existia estupefaciente na fábrica, dúvidas não restaram quanto ao facto de ter sido o arguido DD a pessoa que transportou o estupefaciente desde Lisboa, na mochila que foi apreendida no interior da fábrica.

É certo que UUU, cunhado do arguido DD, e o sócio dele, MMMM, afirmaram que a deslocação ao Norte do país no dia em que foi detido se destinava à compra de máquinas usadas. Todavia, nenhum deles soube indicar o local onde as pretensas máquinas iriam ser adquiridas ou a quem, nem concatenar essas afirmações com o facto de o arguido, na data, não exercer qualquer actividade declarada ou com a circunstância de o arguido EE não desenvolver qualquer actividade ligada à compra e venda de máquinas de construção civil.

Aliás, se atentarmos aos documentos juntos pelo próprio arguido DD a fls. 860 a 873, verificamos que suspendeu a actividade da sua empresa a 30/9/2020, que, nos últimos cinco anos, viu instauradas contra a sua empresa quatro acções cíveis (intentadas pelo sector financeiro) para cobrança de mais de €110.417,00 (cf. fls. 861 e 863) e que, em 2018, tinha apenas 2 empregados, o que significa que, ao contrário do que afirmaram as mencionadas testemunhas, não existe qualquer evidência que exercesse alguma actividade comercial, que justificasse aquela deslocação.

Pelos mesmos motivos a afirmação do seu cônjuge, YYY, no sentido de que o marido lhe disse que vinha ao Norte a trabalho e que iria dormir em casa do cunhado, e que, por isso, transportava consigo a mochila com uma muda de roupa, também não mereceu qualquer credibilidade. Na verdade, também ela não soube explicar, de forma minimamente coerente, a que se deveu a deslocação do marido, porque motivo veio com o arguido AA, o que foi fazer à fábrica de cerveja ou que máquinas pretendia adquirir, quando, como demonstram os documentos que o próprio juntou aos autos, na altura não trabalhava e tinha avultadas dívidas.

Por fim, não podemos olvidar que o arguido DD não deu nenhuma explicação para se ter deslocado desde Lisboa na companhia do arguido EE, transportar a mochila e se encontrar na fábrica de cerveja onde veio a ser detido. E, se é certo que o silêncio não o pode prejudicar, também o é que não o pode beneficiar. Perante a evidencia de ter sido transportado pelo arguido AA no dia em que se deslocou a Lisboa precisamente para ir ter com o contacto que lhe forneceria a cocaína, não mereceram qualquer credibilidade as declarações das mencionadas testemunhas, o que levou a que os factos a esse propósito alegados pelo arguido DD na contestação tivessem sido considerados não provados. As declarações prestadas pelos arguidos BB e CC também, conjugadas com as intercepções telefónicas acima mencionadas e com a apreensão no interior da fábrica de cocaína, permitiram comprovar que o arguido AA tinha um contacto em Lisboa que lhe forneceria a cocaína e que combinou com o arguido CC encontrar um comprador para esse produto estupefaciente, o que este fez, contactando um individuo que vendia estupefacientes no Bairro .... Enquanto o arguido BB ficou encarregue de fazer o transporte da droga (e do seu comprador) entre a fábrica de cerveja e o seu destinatário final.

É certo que os arguidos JJ e DD não prestaram declarações, porém, essa circunstância não obsta a que possam ser valoradas as declarações prestadas pelos co-arguidos BB e CC.

A este respeito, e pela sua clareza, permitimo-nos transcrever o que se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/4/15 (Proc. nº 213/05.9TCLSB.L1.S1), publicado em www.dgsi.pt, “O artigo 125.º do CPP estabelece o princípio de que em processo penal são admissíveis quaisquer provas que não sejam proibidas por lei. Por outro lado, do elenco constante do artigo 126º (métodos proibidos de prova), não fazem parte as declarações dos co-arguidos. Não há qualquer impedimento legal a que as declarações dos arguidos ou dos co- arguidos sejam valoradas como meio de prova. Os arguidos podem prestar declarações no exercício do direito que lhes assiste de o fazerem em qualquer altura do processo, podendo as declarações ser prestadas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto de prova, sejam eles factos que só digam directamente respeito ao declarante sejam eles factos que respeitem a outros co-arguidos.

Não há, pois, qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos.

Com uma limitação, porém.

Nos termos do nº 4 do artigo 345º do CPP, não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório.

Como refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010, de 14 de Abril, “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”.

No caso em apreço, não só não se verifica a limitação a que alude o nº 4 do art. 345º do Código de Processo Penal, como as declarações prestadas pelos arguidos BB e CC, como pensamos ter demonstrado, se mostram sustentadas noutros elementos de prova, como sejam as intercepções telefónicas, as apreensões, as diligências policiais e os depoimentos dos elementos policiais que referimos, motivo pelo qual mereceram acolhimento.

No que respeita à qualidade e quantidade do produto estupefaciente apreendido, tanto na posse do arguido BB, como no escritório das instalações fabris, o tribunal atentou aos exames periciais de fls. 668 e 632, respectivamente, que atestam estarmos em presença de cocaína (cloridrato) com o mesmo grau de pureza (17,2%), o que permite também concluir que a cocaína que o arguido BB tinha na sua posse tinha a mesma origem da cocaína que o arguido DD transportou desde Lisboa e que ambas se destinavam à imediata comercialização, dado o seu baixo grau de pureza.

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A participação dos arguidos numa rede internacional dedicada ao tráfico de estupefacientes ficou por demonstrar, por não ter sido produzida qualquer prova que a corroborasse, nem os arguidos a admitiram, nem as testemunhas inquiridas a confirmaram, nem as intercepções telefónicas e demais elementos probatórios recolhidos permitiram dar como assente esse facto. O facto de o arguido AA comunicar com indivíduos em Espanha ou de nacionalidade Brasileira ou a circunstância de, sobre ele impender a suspeita comunicada pelas autoridades norte americanas que deu origem aos presentes autos, é, evidentemente, insuficiente para que se possa considerar que fizesse parte da alegada rede. Note-se que, apesar da investigação ter começado a 31 de Maio de 2021, até ao dia 2 de Setembro de 2021, os arguidos BB e DD eram totalmente desconhecidos dos investigadores, não tendo sido interceptadas conversações em que tivessem participado, o que também não permite sustentar que fizessem parte de uma rede internacional dedicada ao narcotráfico.

O que resulta evidente da prova produzida é que a suspeita comunicada às autoridades portuguesas não foi confirmada e que, além da transacção de estupefaciente comprovadamente ocorrida a 2 de Setembro de 2021, mais nenhuma foi demonstrada. Não tendo a investigação apurado qualquer facto que permitisse concluir que os arguidos integravam “uma rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha”, toda essa factualidade foi considerada não provada.

Também porque nenhum elemento probatório recolhido permitiu relacionar os montantes em numerário detidos pelos arguidos, com o tráfico de estupefacientes, essa factualidade foi igualmente considerada não provada.


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No que respeita aos factos provadas e não provados atinentes ao crime de branqueamento imputado ao arguido EE e às sociedades A... e B..., cumpre salientar, em primeiro lugar, a dificuldade que o tribunal encontrou ao procurar expurgar a acusação dos conceitos conclusivos que a impregnam e “ordenar” os factos, de forma a conferir-lhes uma sequência coerente. E, em segundo, evidenciar a circunstância de todas as operações bancárias enunciadas, actos que, segundo a acusação, visavam “branquear” os lucros obtidos com a prática do crime de tráfico de estupefacientes, serem anteriores à prática desse crime, que, como vimos, comprovadamente, ocorreu no dia 2 de Setembro de 2021.

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Posto isto, vejamos, então, em que elementos probatórios se baseou o tribunal na formação da sua convicção, no que a estes factos diz respeito.

No que respeita à matrícula, objecto, capital social, sócio e gerente da sociedade A..., considerou-se a certidão permanente de fls. 75 do apenso do GRA (Gabinete de Recuperação de Activos), bem como a junta a 17/1/23 (referência 444282346) e ainda a informação que consta de fls. 66 do mencionado apenso GRA, que particulariza a actividade secundária da sociedade (indicando a que corresponde o código de actividade económica mencionado na apontada certidão).

Por não constar de nenhum desses documentos, nem dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, que a sociedade se dedicasse ao comércio de tabaco, esse facto foi considerado não provado.

Quanto à identificação do contabilista da A... o tribunal alicerçou a sua convicção na informação prestada pela Autoridade Tributária (Divisão de Finanças do Porto) de fls. 26 a 33 do apenso do GRA, da qual consta ser seu contabilista, desde 2018, LL e ainda a indicação de que não possui móveis ou imóveis registados em seu nome, ou registo de aquisições e transmissões intracomunitárias, ausência comprovada também pela informação de fls. 146. Aliás, das declarações fiscais reportadas aos anos de 2019 e 2020 juntas, respectivamente, a fls. 28 e 35 do mesmo apenso, resulta que a A..., nesses dois anos, apresentou prejuízos.

No que respeita à matrícula, objecto, capital social, data da constituição, transmissão de quotas a favor do arguido EE e denominação prévia da sociedade B..., o tribunal considerou a certidão permanente de fls. 71 do apenso do GRA e bem assim a certidão permanente junta a 18/04/23 (referência 447593003). A actividade secundária desta sociedade, porque também particularizada a fls. 66 verso do apenso GRA (indicando a que corresponde o código de actividade económica mencionado na apontada certidão), foi igualmente considerada provada.

Por constar desses documentos que o capital social, quando a sociedade foi constituída, era de €50.000,00 e não de €400.000,00 (capital actual), este último facto foi considerado não provado.

A ausência de registo de bens móveis ou imóveis titulados pela sociedade B..., a identidade do seu contabilista, em 2021, e o demais que a propósito resultou provado, adveio da informação prestada pela Autoridade Tributária (Divisão de Finanças do Porto) e das declarações fiscais por ela remetidas aos autos e juntas a fls. 41 a 62 do apenso do GRA.

Resultando expressamente dos elementos juntos pela Autoridade Tributária a fls. 146 a 148 do apenso GRA, que a sociedade B... apresentou registo de aquisições intracomunitárias efectuadas a Espanha, Alemanha e Finlândia (cf. fls. 148), o tribunal não pôde considerar assente que não tivesse registo de tais aquisições. Paralelamente, por não constar da documentação referida que tivesse apresentado registo de transmissões intracomunitárias, esse facto foi julgado provado. A propósito da situação fiscal desta sociedade atentou-se igualmente aos documentos de fls. 149 a 234 do apenso GRA, resultando das declarações fiscais reportadas aos anos de 2019 e 2020 que apresentou prejuízos fiscais.

A testemunha FFFF, contabilista e mediador de seguros, sócio da sociedade de contabilidade Ap,,,, responsável pela contabilidade da B... e da A..., também confirmou que LL, seu sócio, era a pessoa indicada junto da Autoridade Tributária como sendo o contabilista daquelas duas sociedades, embora a contabilidade estivesse a cargo da sociedade de contabilidade de que ambos são sócios.

No que respeita às contas bancárias de que o arguido EE foi/é titular, beneficiário, ou autorizado a movimentar no Banco 1..., Banco 3... e Banco 2..., o tribunal considerou a informação prestada pelo Banco de Portugal a fls. 15 e ss, designadamente, a de fls. 16, do apenso GRA e o teor do relatório de investigação patrimonial e financeira de fls. 101 e ss desse Apenso.

Também com base nesses documentos foi possível dar como assentes as contas tituladas pelas sociedades A... e B... (cf. fls. 17 e 18 e 101 e ss do apenso GRA).

A circunstância de o arguido EE ter efectuado movimentos bancários, transferências e depósitos em numerário, em contas dessas sociedades e para contas de que era titular adveio da análise pericial efectuada no apenso IV e do exame ao extracto da conta e listagem de movimentos da conta da nº ... titulada pela A... no Banco 1... de fls. 47 a 150, facto que também se comprova a partir dos talões de depósito juntos a fls. 1553 a 1566 e do depoimento prestado pela testemunha SSS, que admitiu ter efectuado, a pedido do arguido EE, depósitos nessa conta no montante global de €50.000 e bem assim de €5000 em conta titulada pela B....

Relativamente aos movimentos bancários efectuados nas contas bancárias, designadamente, na conta bancária nº ... do Banco 1... titulada pela sociedade A..., aquela que foi alvo de análise mais detalhada nos autos (veja- se que a perícia do apenso IV só incide sobre ela), o tribunal atentou, acima de tudo, aos elementos documentais juntos ao processo. Quanto à realização de movimentos bancários nas demais contas o tribunal teve em consideração o que consta do relatório da investigação efectuada pelo Gabinete de Recuperação de Activos.

Na verdade, examinados os factos constantes da acusação, verificamos que assentam, fundamentalmente, em quatro tipos de operações bancárias, a maioria das quais efectuadas através daquela conta nº ....

Um deles refere-se a transacções suspeitas comunicadas por entidades bancárias referentes a (esta e outras) contas tituladas pela arguida A....

Outro reporta-se a transferências recebidas na conta nº ... titulada pela A... no Banco 1... (movimentada pelo arguido EE), provenientes das seguintes sociedades: (i) I..., entre 19 e 23 de Novembro de 2019; (ii) J..., entre Julho de 2020 e Fevereiro de 2021; (iii) K..., entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021; (iv) L..., entre 19 de Janeiro e 21 de Fevereiro de 2021; (v) M..., entre 18 e 27 de Novembro de 2019; (vi) Ac..., Lda., em 19 de Setembro de 2019; (vii) Ad..., em 4 de Março de 2021; (viii) A..., em Setembro de 2019, de conta por ela titulada no Banco 2...; (ix) Ae... Inc., entre 20 e 24 de Setembro de 2019 e em 1 de Outubro de 2019;

O terceiro, refere-se a transferências efectuadas pela A... através da mesma conta para: (i) N..., entre 8 de Fevereiro e 12 de Março de 2021; (ii) P..., entre 17 de Janeiro e 19 de Março de 2021; (iv) Q..., entre Fevereiro e Julho de 2020; (v) R..., SA, sem data mencionada; (vi) TT, entre Setembro de 2020 e Março 2021; (vii) S..., em 24 de Julho de 2020; (viii) T... Limited, em 24 de Novembro de 2020; (ix) U..., em 24 de Novembro de 2020; (x) V..., em

27 de Novembro de 2020; (xi) W..., em 27 de Novembro de 2020; (xii) X..., em 27 de Novembro de 2020; (xiii) Y..., em 2 de Dezembro de 2020; (xiv) Z... Llc., em 27 de Dezembro de 2020; (xv) Aa... Limited, em Dezembro de 2020;

(xvi) Ab..., em Setembro de 2019; (xvii) B..., em 26 de Fevereiro de 2021; (xviii) IIII, NNNN, YY, BBB e WW, sem data indicada.

E, por fim, a depósitos em numerário.


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No que respeita às transacções suspeitas comunicadas por entidades bancárias, designadamente, à transferência internacional no valor de €3.254.335,00 efectuada pela sociedade G... INC destinada à conta nº ... titulada pela sociedade A... no Banco 1..., o tribunal alicerçou a sua convicção no teor da comunicação efectuada pelo Departamento de Compliance - Prevenção e Branqueamento de Capitais do Banco 1..., junta a fls. 2 do volume 1º do Apenso III e nos documentos que, a fls. 3 a 14, a acompanham, como sejam o contrato disponibilizado ao banco, denominado “contrato para la compraventa Comercial Internacional nº ...”, datado de 19/3/21, celebrado entre a A... na qualidade de vendedor e a G... Inc. na qualidade de comprador. Dessa comunicação resulta ainda a comprovação de que, no dia 24/03/2021, o Banco 1... recebeu uma instrução para creditar uma transferência internacional na conta titulada pela sociedade A... nº ... (que, como resulta da informação do Banco de Portugal de fls. 17 do Apenso do GRA, se trata de uma conta de depósito à ordem) que é movimentada pelo seu legal representante, o arguido EE (conforme fls. 16 do mesmo apenso), que figura como autorizado a movimenta-la e é seu beneficiário efectivo.

Do documento enviado pelo mencionado departamento do Banco 1... conjugado com a informação prestada pelo Banco de Portugal também mencionada, resultou igualmente a comprovação de que se trata de conta aberta, no dia 13/09/2019, na agência de ..., no Porto, pelo arguido AA, na qualidade de legal representante dessa sociedade (no caso, seu único sócio e gerente, conforme certidão permanente de fls. 75 do apenso GRA).

Que o valor do montante a creditar era de €3.254.335,00 e tinha origem no banco Russo Banco 5... (banco alvo de sanções internacionais) é o que se extrai também do documento bancário de fls. 2 do volume 1º do Apenso III. Todavia, por não constar desse documento, nem de qualquer outro, que essas sanções tivessem sido decretadas nos anos de 2014 a 2017 e também em 2022, esse facto não pôde ser considerado provado.

Que a sociedade que ordenou a transferência, a G... Inc, é uma sociedade de direito panamiano é o que resulta da informação prestada pelo Banco 1... e da cópia da escritura junta a fls. 228 a 238 do 2º volume, do Apenso III, pela arguida A....

Ainda a propósito do fundamento para a realização dessa transferência, o tribunal teve em consideração a documentação apresentada pelo Banco 1..., designadamente, o contrato junto a fls. 3 a 11 e o anexo de fls. 12, do 1º volume do Apenso III, já mencionados.

Analisados estes documentos foi possível constatar que a transferência internacional foi justificada mediante a apresentação de um contrato de compra e venda celebrado, em 19/03/2021, entre a sociedade A..., representada pelo seu gerente, o arguido AA, na qualidade de vendedora, e a sociedade G... INC, com sede no Panamá, na qualidade de compradora. E bem assim que a identificação do produto transaccionado não consta do contrato, mas sim do Anexo A (junto a fls. 12), que o identifica como sendo arroz ..., a vender pela A... ao preço de €245 por tonelada métrica, sendo a quantidade vendida de

13.283 toneladas métricas.

Que o valor acordado nesse contrato para a venda da tonelada métrica do arroz ... era muito inferior ao preço no mercado internacional desse produto foi o que se pôde constatar em fonte aberta online - ...- demercado/?mercadoria=arroz&meses=60 – e bem assim a partir do que consta do documento junto a fls. 36 do 1º volume do Apenso III, sendo possível comprovar que, nos oito meses anteriores à celebração do contrato, o valor mais baixo de mercado a que a tonelada métrica de arroz havia sido vendida, foi de USD 471. Verificando-se ainda que esse valor, em Fevereiro de 2021, foi de USD 557, e, em Março desse ano, de USD 525, portanto, muito superior ao valor contratado.

Ora, a venda do arroz a pouco mais de metade do valor mínimo de mercado da tonelada métrica a que esse produto havia sido vendido nos oito meses anteriores, permite concluir que esse negócio não traria qualquer lucro à A..., carecendo de racionalidade económica e afigurando-se ruinoso. Pela análise do contrato é igualmente possível constatar que o preço a pagar pela compra do arroz (€3.254.197,24) é inferior ao valor da transferência bancária (€3.254.335,00), o que também, segundo as regras de experiência e de normalidade, não tem justificação económica. Mesmo a factura emitida pela A... (cf. fls. 13 do volume 1º do Apenso III) não tem correspondência com o valor contratado (13.283 TM de arroz x

€245 = €3.254.197,24), dela constando um valor superior (€3.254.335,00).

Que a sociedade A... não produz arroz ... é o que se pôde concluir a partir da circunstância de ter como objecto social a compra e venda, importação e exportação de produtos alimentares e bebidas e não a sua produção. O facto de não apresentar fluxos bancários consentâneos com essa actividade, nem declarações fiscais (cf. análise efectuada pela Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária junta a fls. 18 a 28 do 1º Volume do Apenso III), também corrobora essa afirmação.

Acresce que, segundo consta do exame pericial de fls. 2 e ss do Apenso IV, no período compreendido entre 16/9/2019 e 25/03/2021, a mencionada conta evidencia tratar-se de uma “conta de passagem” com depósitos e transferências avultadas seguidas de transferências a debitar noutras contas, tanto nacionais como internacionais. Patenteando ainda esse exame que, as contas de 2019 e de 2020, indiciam inexistência de actividade económica real por parte da A..., não existindo, no ano de 2019, registo de vendas e/ou prestação de serviços. E, embora em 2020, estejam inscritos valores de vendas e prestações de serviços, inexiste registo de custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas, o que não é compaginável com o seu objecto social. Além disso, ainda segundo o mesmo relatório pericial, o balanço já evidenciava falência técnica da A..., com capitais próprios negativos, ou seja, com o passivo a superar o activo (cf. fls. 18 a 21).

Em suma, dos elementos de prova recolhidos foi possível constatar que:

-          O contrato não refere o produto que está subjacente à transacção, constando essa informação de um anexo;

-          Em datas anteriores foram efectuadas diversas comunicações por parte de outros bancos dando conta de movimentação suspeitas em contas tituladas pela sociedade A..., conforme fls. 29 a 35 e 37 a 42 do Apenso III;

-          O banco Russo que enviou os fundos era alvo de sanções internacionais;

-          O preço médio da tonelada métrica do arroz ... nos oito meses anteriores à celebração do contrato (...) era próximo do dobro do valor contratado (€245);

-          A conta titulada pela A... apresentava saldo muito baixo quando recebeu aquela ordem de transferência de mais de três milhões de euros (o saldo era, em 25/3/21, de €4.038,60 e, em 19/3/21, de €711,24 (cf. fls. 73 verso da perícia financeira do Apenso IV e fls. 18 e ss da análise financeira do Apenso III);

-          Essa conta não apresenta movimentos habituais de conta de empresa, com pagamento a funcionários, rendas, contabilista, despesas de funcionamento ou pagamento de impostos;

-          O valor que consta do contrato não coincide com o valor da transferência, é inferior.

Todos estes factos, aliados ao teor das intercepções telefónicas efectuadas, permitiram ao tribunal concluir que o valor a creditar na conta titulada pela A... no Banco 1... não se reportava a qualquer compra e venda de arroz. Efectivamente, em conversa mantida pelo arguido AA com a sua mulher FF aquele diz-lhe que terá que se encontrar com os venezuelanos porque, senão o fizer, “eles também vão achar que eu estou roubando o dinheiro deles, quando na verdade aquele juiz (…) bloqueou essa merda”. E, quando FF o questiona sobre quem é o venezuelano e lhe pergunta se é “aquele lá dos três milhões”, o arguido JJ responde-lhe que sim, acrescentando os “dos três milhões vieram pro Porto, estão aqui. Deve estar achando que eu tou roubando eles…”, conforme auto de transcrição de fls. 25 e 26 do Apenso I, sessão 92251 do Alvo 120 396 040, de 23/8/21, pelas 19:09 horas.

O mesmo sucedendo quando, em conversa telefónica mantida com um indivíduo não identificado, utilizando o número de telefone ..., informa o arguido EE que a confiança das pessoas no seu comportamento, está comprometida: “porque o teu histórico aí já tá cabuloso” - cf. auto de transcrição da sessão 92101 do Alvo 120 396 040, datada de 21 de Agosto de 2021, pelas 23:16 horas, a fls. 20 a 24 do Apenso I.

Conjugando estes elementos probatórios com as regras de normalidade e de experiência comum foi possível ao tribunal considerar assente que aquele valor a creditar na conta bancária da sociedade A... não proveio da alegada compra e venda de arroz, teve antes proveniência em concreto não apurada e que e destinava a ser (re)introduzido na economia por AA, o que não veio a acontecer, por aquela operação bancária ter sido comunicada pelo banco e judicialmente suspensa, tal como se comprova a partir do despacho de fls. 175, do volume 1º do Apenso III. Tendo, posteriormente, também por decisão judicial de 29/12/2021 (cf. fls. 970 a 974 dos autos principais), sido ordenado o congelamento imediato dos fundos depositados nessa conta, bem como os levantamentos e operações a débito.

Todavia, apesar de não se aceitar que aquela transferência se destinasse a pagar o arroz vendido pela A..., a verdade é que a sua real proveniência ficou por demonstrar, não tendo sido sequer objecto de investigação.

É certo que o Ministério Público alega que esse valor advém da prática do crime de tráfico de estupefacientes, porém, o que resulta evidenciado nos autos é que essa transferência foi ordenada em Março de 2021, altura em que não havia notícia da prática de qualquer acto que configurasse um facto ilícito típico integrante do crime de tráfico de estupefacientes. Efectivamente, até 2 de Setembro de 2021, inexiste comprovação da prática por parte do arguido EE ou de qualquer outra pessoa, de actos de tráfico de estupefacientes geradores de proventos que o arguido estivesse incumbido de integrar na chamada economia legítima.

Não se alcança como seja possível concluir que aquela quantia tivesse como proveniência os lucros obtidos pela prática do crime de tráfico que ainda não havia sido cometido.

Por outro lado, também se nos afigura que a quantidade de estupefaciente apreendida a 2 de Setembro de 2021, não é passível de ser relacionada com um valor tão elevado, veja-se que foi apreendido cerca de um quilo e meio de cocaína, com um grau de pureza de apenas 17,2% (que não vale três milhões de euros, nem segundo os elementos juntos aos autos pelo Ministério Público a fls. 1878). Ora, não havendo nos autos notícia de quaisquer outras transacções anteriores de estupefacientes, não é possível correlacionar aquele movimento bancário sequer com o estupefaciente apreendido.

É certo que essa transferência, tal como as que adiante se analisarão, é suspeita, mas não podemos deixar de realçar não ser possível comprovar que se trata de dinheiro proveniente do tráfico de estupefacientes como entendeu o Ministério Público na acusação. Mesmo considerando que o dinheiro provinha efectivamente de indivíduo, ou indivíduos, de nacionalidade venezuelana, esse facto não é, de todo, suficiente para concluir que a quantia em questão seja proveniente do tráfico de estupefacientes.

A acusação limita-se a transcrever a informação apresentada pelo banco que comunicou aquela transacção (meses antes da apreensão de estupefaciente) por a considerar suspeita, o que se aceita, sem, contudo, investigar a proveniência daquele valor. Nenhum elemento de prova foi recolhido quanto à sociedade G... Inc., ou relativamente ao “circuito” do dinheiro e, por isso, não foi possível demonstrar que esse valor tivesse a proveniência que lhe foi atribuída pelo Ministério Público, o tráfico de estupefacientes.

O mesmo sucedendo relativamente aos demais movimentos suspeitos comunicados por outras entidades bancárias.

É verdade que, tendo em consideração as comunicações efectuadas pelos bancos Banco 3... e Banco 2..., de fls. 37 a 41 do volume 1º do Apenso III, o tribunal pôde dar como assente a existência de movimentos em contas tituladas pela sociedade A..., que as respectivas entidades bancárias consideraram suspeitos. Todavia, para além dessas comunicações, reportadas a movimentos ocorridos em 2019, dois anos antes da apreensão da cocaína, também relativamente a eles nenhuma investigação consta dos autos que permita aquilatar da proveniência de tais fundos, designadamente, comprovar que provinham da prática do crime de tráfico de estupefacientes.


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O recebimento das seis transferências por parte da sociedade A... provindas da sociedade I... está comprovado pela análise dos movimentos bancários da já mencionada conta nº ... titulada pela sociedade A... no Banco 1..., junta a fls. 263 a 273 do Apenso III, pela perícia financeira constante do Apenso IV e pelos documentos bancários que a acompanham, designadamente, os movimentos de conta elencados a fls. 59.

No que respeita à sociedade I..., por resultar do documento junto em audiência, a 12 de Maio de 2023, que tem sede na Bélgica, que foi constituída em 13 de Agosto de 2020 e que tem como gerente NN, esses factos foram considerados provados. Por não resultar desse documento, nem de qualquer outro junto ao processo, que NN ou OO fossem seus sócios, o que ambos negaram, esse facto foi julgado não provado.

Efectivamente, tendo sido inquirida NN, resultou do seu depoimento que nunca constituiu ou geriu qualquer sociedade. Embora, actualmente, desempregada, afirmou que até 2019 (e durante 6 ou 7 anos) trabalhou como camareira na empresa Az... (nos barcos) auferindo “pouco mais do que o salário mínimo nacional”, e, não obstante, em 2021, tenha trabalhado na Bélgica, fazendo limpezas, juntamente com OO (pai do seu filho, com quem manteve um relacionamento terminado há dois anos e com quem afirmou ter coabitado durante cerca de dois meses, em casa da mãe dele, em Vila Nova de Gaia) negou ter constituído, ser sócia ou gerente de alguma sociedade ali sediada.

Referiu que chegou à Bélgica a 15 de Junho de 2021, com o OO, e que engravidou em Julho desse ano, tendo regressado a Portugal em Setembro do mesmo ano. Explicou que, no período em que ali trabalharam, abriram uma conta bancária, mas quem tratava das contas era o “patrão”, um individuo inglês, que não soube identificar. Disse que assim que chegou à Bélgica entregou os seus documentos a quem a contratou, que “tratava com três rapazes brasileiros, que trabalhavam em fins de obras”, sendo a sua função, e a do OO, fazer a limpeza após o termo das obras.

Mencionou ainda ter sido uma amiga sua, OOOO, quem os “mandou” para a Bélgica, numa altura em que estava desempregada, era toxicodependente e dormia na rua. Também referiu que, entre 19 e 23 de Novembro de 2020 (data em que foram realizadas as transferências bancárias), não se encontrava naquele país, mas sim na cidade do Porto, nunca tendo saído de Portugal até 15 de Junho de 2021. Disse ainda que iniciou a relação com o OO apenas em Maio de 2021, o que levou a considerar-se não provado que, em 13 de Agosto de 2020, com ele coabitasse. No mais, revelou total desconhecimento no que se reporta à transferência de €154.530,00 para a sociedade A..., declarado desconhecer ter a qualidade de gerente de qualquer sociedade sediada na Bélgica.

Por fim, confirmou que o pai do seu filho, a testemunha OO, sofreu diversas condenações e, quando confrontada em audiência com os arguidos, mencionou não conhecer qualquer um deles, nem, tão pouco, as sociedades arguidas.

Já OO referiu encontrar-se actualmente desempregado, mencionando que a única vez que exerceu funções foi quando trabalhou no Ba... de .... Também afirmou não conhecer a sociedade I..., não ser seu sócio ou gerente, não obstante admitir ter acompanhado a NN quando esta se deslocou à Bélgica e com quem assumiu ter mantido um relacionamento durante 5 ou 6 meses. Mas, ao contrário daquela, situou esses factos no ano de 2019, depois de ter sido libertado, a 13 de Maio de 2019. Mencionou que, nessa data, saiu do Estabelecimento Prisional ... e que, logo depois, conheceu a NN, através das “redes sociais”, sem que, ao contrário do por ela afirmado, alguma vez tivessem coabitado em Portugal.

Assinalou que a proposta para ir para a Bélgica partiu da NN, e que acedeu acompanha-la, tendo permanecido nesse país durante dois ou três meses, mas, ao invés do por ela revelado, situou esses factos no Verão de 2019. Também, em sentido contrário ao afirmado por NN, mencionou que apenas ela trabalhava, fazendo limpezas, e que ele se limitou a acompanha-la. Do seu depoimento resultou não manter qualquer relação com a NN, com quem afirmou ter-se desentendido na Bélgica quando ela lhe comunicou, depois de uma vinda a Portugal, estar grávida. Não acompanhou a gravidez, nem manteve, ou mantém, contacto com o filho, tendo abandonado a Bélgica antes da NN.

Também referiu que a NN fazia “contrabando de dinheiro” porque, naquele período em que coabitaram na Bélgica, ela se deslocou a Portugal e, quando regressou, volvidos 4 dias, trouxe €600 ou €700 em numerário, dinheiro cuja proveniência não soube assinalar.

Por fim, assumiu ter sofrido condenações por furto e ter cumprido pena de prisão (o que se comprova também pela ficha de recluso de fls. 316), facto que, por esse motivo, se considerou provado, embora inócuo, pois não se comprovou que fosse sócio da sociedade em questão. No mais, por não estar junto aos autos nem o certificado do registo criminal, nem qualquer decisão condenatória que comprovasse a condenação desta testemunha pela prática de crimes de roubo ou extorsão, não obstante a ficha biográfica junta a fls. 306, esse facto foi considerado não provado.

Ainda a propósito da sociedade I... e das condições de vida de NN e de OO consideraram-se os registos de identificação civil de cada um deles juntos, respectivamente, a fls. 306 e 307, a informação prestada pela Segurança Social a fls. 346, de onde consta que NN não tem salário declarado desde 11/2019 e que OO não tem salários declarados, nem auferiu qualquer prestação social. Atendeu-se ainda aos extractos das remunerações auferidas por NN de fls. 350 a 355, todos do Apenso III, os quais permitiram comprovar que, ao invés do mencionado na acusação, o seu salário mensal, entre 2015 e 2019, não foi “muito abaixo do salário mínimo nacional”. Em face destes elementos probatórios e pese embora os depoimentos díspares de NN e de OO quanto à data em que estiveram na Bélgica, resultou evidente dos depoimentos por ambos prestados que a sociedade I... não foi, de facto, gerida por NN, tanto mais que foi constituída em 13 de Agosto de 2020 e, nem um nem outro referiram encontrarem- se na Bélgica nessa ocasião. A trajectória de vida de NN, os depoimentos prestados por ela e por OO, permitiram concluir que NN não ordenou a realização de qualquer transferência para a sociedade A..., nem tinha capacidade económica para gerir ou ser titular de qualquer empresa e, menos ainda, transferir, em cinco dias, quase €155.000,00.

Estas circunstâncias associadas ao facto da I... estar sediada na Bélgica e dedicar-se a limpezas de fim de obra, enquanto a A... está sediada em Portugal e se dedica ao comércio de produtos alimentares, leva a concluir, segundo as regras de experiência comum, que aquelas transferências não titulavam serviços prestados pela A....

Não obstante assim seja, esbarramos, uma vez mais, com a afirmação de que essa transferência para a A... tenha sido efectuada com o propósito de dissimular proveitos obtidos através do tráfico de estupefacientes. Será que a sociedade I... se dedicava ao tráfico de droga e, por isso, transferiu aqueles valores para a A... para que esta os reintegrasse no circuito económico? Será que a sua conta era utilizada para a passagem de valores provenientes do tráfico de estupefacientes? Não sabemos.

Não sabemos porque a I... não foi investigada, nada foi apurado relativamente à sua contabilidade, aos movimentos bancários efectuados na sua conta bancária, antecedentes ou posteriores, às mencionadas transferências.


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Quanto às transferências efectuadas pela sociedade J... para a conta do Banco 1... titulada pela sociedade A... o tribunal teve em consideração a análise dos movimentos bancários efectuada pela Polícia Judiciária junta a fls. 263 e ss do Apenso III, o exame de perícia financeira do Anexo IV, os extractos dos movimentos bancários de fls. 49 verso, 53 verso, 59, 70 verso e a análise efectuada pelo Gabinete de Recuperação de Activos (GRA) (cf. fls. 112 verso do respectivo apenso) que as comprovam.

Que essa sociedade se dedica ao comércio de calçado e que tem sede em Guimarães foi facto que o tribunal não pôde dar como assente, porquanto, além de não constar dos autos qualquer documento que indique qual o seu objecto social ou sede, não foi inquirida nenhuma testemunha que revelasse conhecimento de tais factos.

Por esse motivo também não foi possível afirmar que essas transferências não titulassem qualquer serviço prestado por essa sociedade à A.... Dito de outro modo, o que motivou a transferência não foi investigado e, como tal, ficou por apurar se tinha ou não fundamento, se foi produzido algum plano ou celebrado algum negócio entre essa sociedade e a A..., factos que, por isso, foram julgados não provados.


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No que respeita às transferências efectuadas pela sociedade K... para a conta do Banco 1... nº ... titulada pela sociedade A..., o tribunal teve em consideração a análise dos movimentos bancários efectuada pela Polícia Judiciária e junta a fls. 263 e ss do Apenso III, o exame de perícia financeira do Apenso IV e os extractos dos movimentos bancários de fls. 22 a 74 do mesmo apenso, comprovativos desses movimentos bancários.

Que a K... se dedica ao comércio de vestuário e tem sede em Guimarães foi o que resultou do depoimento prestado por PP, seu sócio e gerente, facto também confirmado pela testemunha PPPP, consultor de empresas, que referiu ter sido ele quem indicou a “empresa de estudos de mercado” A... de que o arguido EE (pessoa que conhecia há vários anos) era sócio e gerente aos responsáveis pelas sociedades K... e L..., que procuravam expandir as suas áreas de negócio com vista à exportação internacional dos bens que cada uma deles produzia, a primeira, equipamentos de protecção individual e, a segunda, calçado ortopédico. Estudos esses que, como explicou, visavam a exportação para o Brasil e outros mercados da América do Sul, e cujos orçamentos referiu cifrarem-se entre os

€10.000 e os €12.000, por estudo.

Referiu ainda que esses estudos de mercado são extensos e que viu o estudo elaborado pela A... para a L..., relativo ao mercado Brasileiro.

Vejamos então.

 No que respeita às transferências efectuadas pela sociedade L... para a conta do Banco 1... titulada pela sociedade A..., o tribunal teve em consideração a análise dos movimentos bancários efectuada pela Polícia Judiciária e junta a fls. 263 e ss do Apenso III, o exame de perícia financeira do Apenso IV e os extractos dos movimentos bancários de fls. 22 a 74 do mesmo apenso, que comprovam tais movimentos bancários.

A este respeito considerou-se igualmente o depoimento da testemunha QQ que, até Dezembro de 2021, foi industrial de calçado e proprietário da fábrica L..., com sede em .... Por ele foi referido que a empresa foi constituída em 2010, que assumiu a gerência em 2014, e que tinha por objecto o fabrico de calçado ortopédico. Adiantou ainda que suspendeu a actividade, em Dezembro de 2021, altura em que vendeu o Know-How e as máquinas da L... a uma multinacional Holandesa.

Confrontado com as transferências bancárias efectuadas pela L... à A... prestou um depoimento confuso, disse que se reportavam ao pagamento dos procedimentos necessários à apresentação de candidatura aos fundos Portugal 2020, candidatura essa decidida pelo seu contabilista. Afirmou que, não obstante tivesse dado a ordem de transferência desses valores, quem mantinha a relação com a entidade prestadora de serviços, a A..., era o seu economista, a testemunha PPPP, tendo sido este último quem lhe indicou essa empresa como sendo capaz de elaborar os procedimentos necessários à candidatura por parte da L... aos apontados fundos.

Asseverou que o valor que pagou à A..., mais de €70.000, se destinava ao pagamento do plano de candidatura aos fundos europeus, visando o recebimento de cerca de €300.000 em apoios comunitários. E, embora tenha afirmado que o “serviço” foi realizado, não apresentou qualquer documento comprovativo dessa candidatura, não logrou detalhar quais os serviços alegadamente prestados pela A..., nem celebrou com ela contrato escrito que previsse a prestação desses, ou de outros, serviços. E, quando confrontado com a circunstância de a A... ter como objecto social a importação e exportação de produtos alimentares e bebidas, limitou-se a afirmar desconhecer esse facto.

Cotejando estas declarações com as facturas e documentos bancários juntos pela contabilista da L..., QQQQ (cf. fls. 1645) a fls. 1646 a 1664 resultou evidente que os serviços alegadamente prestados pela A... à L..., ao contrário do que mencionou a testemunha, não foram facturados como reportando-se a qualquer candidatura a fundos europeus, mas como valores devidos pela elaboração de estudos de mercado relativos a diversos países europeus (França, Países Baixos e Áustria) e a um “estudo de comunicação internacional”.

Acresce que a testemunha PPPP, que referiu ter feito a “ponte” entre a L... e a A... (que, segundo, se tratava de uma empresa de estudos de mercado) asseverou que os estudos de mercado realizados para a L... e por ela pagos e aos quais teve acesso, incidiram, entre o mais, sobre o mercado brasileiro e outros países da América do Sul. No entanto, quando confrontado com o teor das facturas juntas a fls. 1647 a 1651, que não se reportam a estudos relativos ao mercado Brasileiro ou qualquer outro sul americano, nada soube esclarecer.

Não obstante, assegurou ter sido ele o responsável pela elaboração do plano de negócios da L..., confirmando a candidatura ao Projecto Portugal 2020, de que a L... veio a desistir, afiançando que, para a elaboração dessa candidatura não eram necessários quaisquer estudos de mercado, nem foram elaborados pela A....

Os depoimentos, muito pouco rigorosos e evidentemente contraditórios, prestados por estas duas testemunhas, uma afirmando que contratou a A... por indicação da outra para concorrer a fundos públicos e a outra referindo que o contrato se destinava à elaboração de estudos de mercado (quando o sócio gerente da L... afirmou que, desde Setembro de 2021, estava a negociar a venda da empresa, o que veio a suceder em Dezembro desse ano), associados à inexistência de qualquer evidencia da candidatura da L... a fundos europeus, à circunstância de o objecto social da A... não se inserir na prestação de serviços da natureza dos alegadamente prestados, levou o tribunal a considerar que as mencionadas transferências não se destinaram a pagar aquela alegada prestação de serviços.

Porém, também relativamente a estes pagamentos, não foi possível correlaciona-los com valores provenientes da prática do crime de tráfico de estupefacientes. A origem destes valores não foi investigada, a conta da L... não foi analisada e o facto de se comprovar que aquelas transferências não tiveram por base serviços prestados, não permite concluir que se tratem de lucros decorrentes do tráfico de estupefacientes (praticado em data posterior), cuja rede, participada pelos arguidos, ficou por demonstrar.

O mesmo sucedendo relativamente à K... que, como vimos, transferiu mais de quatrocentos e trinta mil euros para a A....

Efectivamente, PP, sócio e gerente da K..., referiu ter conhecido o arguido EE e a sociedade por ele detida, a A..., em 2020. Explicou que a sociedade de que é sócio e gerente desenvolve actividade no ramo têxtil mantendo parceria com PPPP (o mesmo indivíduo que intermediou o contacto entre a L... e a A...), pessoa que o ajuda na procura de novos clientes e novos mercados, portanto, na internacionalização da empresa, serviços que eram facturados à sociedade deste último, a Ac....

Também detalhou que, até 2020, a K... se dedicava ao fabrico e exportação de vestuário de marcas internacionais, sendo, até então, como referiu, uma empresa 100% exportadora. Em Março de 2020, na sequência da pandemia de Covid19 e o “desaparecimento” da sua área de negócio, passou a dedicar-se integralmente ao fabrico e venda de equipamentos de protecção individual (EPI´s). Foi a primeira empresa portuguesa a certificar esses equipamentos, que também vendeu à reserva nacional. Explicou que, no pico de produção de EPIs (entre Março e Junho de 2020), teve mais de três mil pessoas a trabalhar para a K..., tendo subcontratado a produção a outras empresas do ramo, cuja actividade têxtil também deixou de existir por causa da pandemia.

Explicou que a fábrica manteve sempre a produção e que, durante a pandemia, a facturação aumentou substancialmente, embora os pagamentos não. Nesse período adquiriram muito know-how na produção de EPI´s, foram feitos muitos investimentos em máquinas, o que lhe permitiu criar uma nova marca dedicada ao fabrico de batas e outros equipamentos hospitalares, a K....

A respeito dos negócios celebrados com a A... referiu ter sido PPPP quem lhe referenciou a A... como sendo empresa sua parceira para a internacionalização, transmitindo-lhe tratar-se de uma empresa dedicada a estudos de mercado. Na sequência dessa indicação, em Junho de 2020, o arguido EE deslocou-se às instalações da K..., em Guimarães, para apresentar os serviços que a A... poderia prestar. Foi nessa reunião que encomendou um estudo de mercado à A... para exportação de EPIs e vestuário, a ser realizado até ao final de 2020.

Confrontado com a mensagem de correio electrónico de fls. 1642 e com os documentos de fls. 1643 e 1644, referiu terem sido por si apresentados, esclarecendo que a factura se reporta a comissão de venda paga à A... a 18/12/20, referente à revenda de produtos fabricados pela K... (EPIs). Acabando por admitir que os valores pagos à A... (€437.340,00, no período de cerca de dois meses) se referiam, não só ao pagamento de estudos de mercado (por cada um dos quais foi cobrado o valor de €15.000 acrescido de IVA), mas também a comissões pagas à A... por intermediar o negócio de venda de produtos da K... na Europa.

Sucede, porém, que analisada a factura junta pela K... a fls. 1643 emitida pela A... verificamos datar de 25 de Janeiro de 2021, referir-se a “comissão de venda de EPI´s” por parte desta última à primeira no valor de €36.900, pago em 18/12/2020, mediante transferência bancária, conforme documento de fls. 1644.

Embora, em abstracto, essa factura pudesse justificar o pagamento de uma ínfima parte do valor global (€437,340,00) transferido pela K... para a conta bancária da A..., a verdade é que serviço supostamente prestado pela A... (comissão de venda de equipamentos de protecção individual) não se insere no seu objecto social (importação e exportação de alimentos), nem o sócio gerente da K... apresentou qualquer documento capaz de justificar que negócios motivaram as transferências bancárias efectuadas, no valor global de €437.400,00.

É certo que fez juntar aos autos, a fls. 2451 a 2956 (cf. referência de 2/6/23), uma serie de documentos (conta corrente, estudos de mercado, facturas e comprovativos de pagamento), referentes a serviços alegadamente prestados pela A... relacionados com comissão de venda de EPIs e com estudos de mercado. Esses documentos referem-se a quatro estudos de mercado efectuados pela arguida A... para a K..., todos em Novembro de 2020, cada um deles no valor de €18.450, visando os mercados dos Países Baixos, da Alemanha, da ... e dos Estados Unidos da América, no valor global de €73.800.

Lidos e analisados esses estudos verificamos que, por exemplo, o estudo de mercado dos Países Baixos, é feito com base em dados referentes até ao ano de 2016, elencando as perspectivas económicas para os anos de 2017 e 2019, sem qualquer menção ao impacto da Covid 19, que, como é facto notório, teve os primeiros casos conhecidos em Portugal, em Março de 2020, sendo certo que, na data do alegado estudo de mercado, em Novembro de 2020, Portugal iniciava novo estado de emergência, anunciado a 20 de Novembro. Ora, dedicando-se a K... nesse período, exclusivamente, à produção de EPIs não se compreende o motivo pelo qual encomenda, e paga, um estudo de mercado que nada refere a esse propósito e tem por base dados anteriores à pandemia.

O estudo do mercado alemão, também efectuado em Novembro de 2020, começa  por  indicar  como  Presidente  da  Alemanha  RRRR,  que, curiosamente, exerceu o cargo até Fevereiro de 2017, tem referências a indicadores de 2011, alude a previsões económicas para os anos de 2012 e 2013 e descreve a evolução da balança comercial entre Portugal e a Alemanha até 2011. Portanto, não só tem por base dados totalmente desactualizados, como também é omisso a qualquer referência aos impactos da pandemia de Covid19, cuja progressão em Portugal e em toda a Europa, especialmente, na Alemanha é um facto notório. Surpreendentemente, o estudo de mercado não reserva uma palavra às possibilidades de negócio da K... no que respeita aos equipamentos de protecção individual (EPI) que produzia e pretendia alegadamente exportar.

O mesmo sucedendo relativamente ao estudo do mercado irlandês, onde são indicados dados temporalmente desactualizados, como sejam quotas de mercado ou a evolução da balança comercial bilateral até 2007, observações sobre o mercado interno em 2015, também sem qualquer referência à pandemia e às possibilidades de negócio da K... nesse domínio.

Idêntica situação verifica-se com o estudo do mercado norte americano onde são referidos dados económicos até 2016, se menciona a balança comercial de 2017 e 2018, análises do mercado até 2015 e exportações de vestuário português até 2016, omitindo-se, tal como nos demais estudos, qualquer referência aos impactos ou potencialidades decorrentes da situação pandémica, na altura (Novembro de 2020), em curso na área de negócio da K..., os equipamentos de protecção individual.

Julgamos, portanto, ser inconciliável com as regras de experiência comum e de normalidade que sejam solicitados, e pagos, estudos de mercado com dados desactualizados, sem menção à catástrofe de saúde pública que, desde o início de 2020, assolou a Europa e os Estados Unidos, o que nos leva a crer que esses estudos não foram, nem podiam ter sido, implementados pela K..., porque alicerçados em informações desactualizadas, vagas, genéricas e sem relevo económico.

A par destes estudos, e respectivas facturas, foram juntas outras três, no valor de €40.000,00 cada uma, respeitantes a estudos de mercado elaborados para o mercado da Argentina e Uruguai, do Panamá e região do Caribe e da Colômbia.

Sucede que nenhum deles foi produzido pela sociedade arguida A..., as facturas referentes a esses serviços foram emitidas em 24, 25 e 28 de Outubro de 2020 pela sociedade A... – EIRELI, com sede em São Paulo, no Brasil, delas constando a menção expressa de que o pagamento seria efectuado à sociedade ora arguida A... para conta com o IBAN  ... domiciliada no Banco 1.... Ou seja, o que se comprova, a partir desses estudos e facturas, é que foram produzidos por uma sociedade com sede no Brasil, inexistindo qualquer fundamento para que tenham sido pagos a uma sociedade sediada em Portugal, que não se dedica a esse ramo de actividade.

Aliás, embora nestes estudos já conste a referência à situação pandémica e à K..., se os analisarmos em detalhe verificamos também tratarem-se de uma compilação de dados desactualizados cujo relevo económico é imperceptível. Por exemplo, no estudo dos mercados argentino e uruguaio, os dados apresentados são anteriores a 2016, são mencionadas previsões económicas para 2017 e referem-se a estratégias para a área da saúde e não para a área de equipamentos de protecção pessoal.

Donde foi possível concluir que parte dos “estudos de mercado” que justificaram aquelas transacções foram produzidos por uma sociedade que não tinha por objecto produzi-los (a A... tinha, e tem, como objecto a importação e exportação de alimentos e bebidas), que não tinha funcionários, nem sequer instalações (a sede era a residência do arguido EE, como referiu a testemunha SSSS) e cujas contas de 2019 e 2020 indiciam a inexistência de actividade económica (conforme perícia de fls. 5 do Apenso IV). Enquanto os restantes foram elaborados e facturados por uma empresa sediada no Brasil, sem actividade conhecida em Portugal, situação que também não se compagina com as regras de experiência comum. Se a estas incongruências associarmos o facto de os apontados estudos se basearem em dados descontextualizados, desactualizados, genéricos e sem relevo para a área de actividade da K..., não resta senão concluir que não foi prestado qualquer serviço que justificasse a cobrança daqueles valores.

Ocorre, porém, que não descortinamos a comprovação no processo de qualquer relação entre estas transferências efectuadas por empresas portuguesas para a A... com o tráfico de estupefacientes.

As contas das entidades pagadoras não foram investigadas, a proveniência do dinheiro também não, e, embora se indicie a existência de pagamentos sem relações comerciais subjacentes, não podemos, de forma alguma, associa-las a uma única situação de tráfico de estupefacientes que ocorreu em momento muito posterior.

O que realmente motivou essas transferências bancárias, que poderia eventualmente configurar a prática de ilícito de natureza fiscal, além de não ter sido alvo de investigação, não consta dos factos elencados na acusação, que entendeu atribuir todas as movimentações bancárias ao narcotráfico internacional, o que, como vimos referindo, não se comprovou.


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Idêntica situação é aquela que se verifica relativamente às transferências efectuadas pela sociedade M... Unipessoal para a mesma conta nº ... titulada pela A..., no Banco 1....

Na comprovação das transferências efectuadas o tribunal considerou, uma vez mais, a análise dos movimentos bancários efectuada pela Polícia Judiciária, junta a fls. 263 e ss do Apenso III, conjugada com o exame de perícia financeira do Apenso IV, os extractos dos movimentos bancários de fls. 22 a 74 do mesmo apenso, em especial, o extracto de fls. 28 e os extractos de conta remetidos pelo Banco 1..., juntos a fls. 48 a 150 do Apenso III e a fls. 1567 a 1569 dos autos principais.

No que respeita à gerência, sede e outras vicissitudes relativas à sociedade M... teve-se em consideração a certidão permanente junta a fls. 1579 a 1582, que atesta ser gerida por RR (cuja identificação civil consta do documento de fls. 1583) e ter como objecto a fabricação e design de mobiliário de madeira.

Quanto ao que fundamentou as dez transferências no montante global de €81.000,00, efectuadas entre os dias 18 e 27 de Novembro de 2019, a sócia gerente da mencionada sociedade, a testemunha RR (actualmente, a exercer a actividade como formadora na área da carpintaria, na Misericórdia ...), começou por indicar que a M... era uma empresa de fabrico de móveis, que constituiu em 2015, com instalações próprias em ..., Valongo (num terreno contiguo à sua residência), uma oficina de fabrico de móveis que, em 2020, tinha, para além dela própria, três funcionários. Nesse ano, em consequência da pandemia, registou uma quebra acentuada das encomendas e da facturação, que se cifrava em €200.000,00 anuais. Sendo certo que, no ano em que registou facturação mais elevada, não foi além de €300.000,00.

Admitiu conhecer o arguido EE, com quem travou conhecimento numa ocasião em que montava móveis num restaurante que ele frequentava, altura em que lhe apresentou a sua empresa de estudos de mercado, a A..., cujos serviços contratou com vista à expansão da actividade da M... para mercados da América do Sul. Disse que começaram a trabalhar em conjunto em 2019, tendo os estudos de mercado sido elaborados em 2020, referindo que o valor de €81.0000,00 que transferiu para a conta da A... se reportava ao pagamento dos estudos de mercado por ela efectuados, apesar de nunca os ter colocado em prática.

Confrontada com a pequena dimensão do seu negócio, a reduzida facturação e o valor que pagou pelos apontados estudos de mercado, disse que utilizou as suas economias para liquidar aquele valor (afirmando que a TTTT emprestou o dinheiro à M... Unipessoal). Indicou que os estudos foram pagos em 2020, que teve reuniões com o arguido EE no restaurante onde o conheceu e que, em 2020, suspendeu a actividade e dispensou os funcionários, não a tendo ainda retomado, agora, por falta de mão-de-obra (embora, posteriormente, tenha afirmado não laborar desde Dezembro de 2021).

Exibidas que foram as facturas de fls. 1700 a 1703, confirmou reportarem-se ao pagamento dos estudos de mercado, mas, além de não lograr explicar porque motivo foram emitidas por uma sociedade com sede no Brasil, a A..., quando confrontada com a circunstância de perfazem o valor total de €54.500,00, inferior ao valor das transferências que a sociedade M... efectuou para a conta da sociedade arguida A... Unipessoal, disse que, além desses estudos, foram pagos outros dois, em 2019, assim justificando a diferença nos valores indicados.

Ora, analisadas as facturas juntas a fls. 1700 a 1703 verificamos terem sido emitidas em 5/10/20, 8/11/20, 21/11/20 e 5/12/20, pela sociedade A... – EIRELI, com sede em São Paulo, no Brasil (a mesma que também emitiu facturas à K...), no valor global de €54.500,00, delas constando a menção expressa de que o pagamento seria efectuado à sociedade ora arguida A... para conta com o IBAN  ... domiciliada no Banco 1....

Considerando que o valor de €81.0000,00 foi transferido para a conta nº  ... e não para a conta nº  ..., como se comprova a partir dos extractos bancários mencionados, não encontramos qualquer correlação entre essas facturas e o valor de €81.0000,00 transferido por M....

Na realidade, apesar da conta nº  ... não ter sido alvo de analise pericial nestes autos, podemos, a partir da análise aos movimentos bancários da conta nº ..., acima enunciados concluir que foi para esta conta que M... Unipessoal efectuou as dez transferências bancárias no valor global de €81.000,00. O que sucedeu no mês de Novembro de 2019 (nos dias 18, 19 e 20 fez duas transferências, cada uma no montante de €10.000, transferindo, em três dias, €60.000,00; no dia 22 transferiu mais €6000; no dia 26 fez uma transferência de €10.000 e, no dia 27, duas transferências no montante de

€2.500 cada uma).

Portanto, nenhuma dessas transferências tem correspondência com os valores ou datas das facturas juntas pela gerente da M... a fls. 1700 a 1703 para as justificar, nem a conta bancária indicada para fazer o pagamento coincide com a conta onde foram depositados aqueles €81.000 em Novembro de 2019. O que significa que, ao contrário do afirmado pela testemunha RR, o depósito dos €81.000 na conta nº ..., nada tem a ver com as facturas de fls. 1700 a 1703.

Além disso, analisados os documentos por ela apresentados para justificar o pagamento desses valores, juntos a fls. 2958 a 3096 (cf. referência de 5/6/23), no decurso da audiência, verificamos que também eles não permitem comprovar a efectiva prestação de qualquer serviço por parte da A... capaz de sustentar os pagamentos que lhe foram efectuados.

Um exame mais atento a esses estudos permite constatar reportarem-se aos mesmos mercados (Brasil, Colômbia, Argentina e Panamá) a que se referem as quatro facturas que haviam sido juntas a fls. 1700 a 1703, cujo valor de €54.500, é inferior aos €81.000 depositados por M... na conta nº .... Além disso, tal como os estudos apresentados pela K..., têm por base dados desactualizados e descontextualizados, sendo em todos eles analisados dados que não vão além do ano 2017 e sem qualquer referência à situação pandémica (quando as facturas referentes ao seu pagamento datam de Outubro, Novembro e Dezembro 2020, em plena crise pandémica).

No estudo do mercado argentino constam dados contraditórios quanto, por exemplo, à identificação do Presidente da República (inicialmente, indica-se que ser UUUU, mais adiante diz-se que é VVVV, aludindo-se ainda a uma eleição presidencial que iria ocorrer em 2019, portanto, em data anterior à elaboração do estudo), dele constando uma amálgama de informações descontextualizadas, aludindo-se a exportações até 2016, a índices referentes aos anos de 2013 e 2014. O mesmo sucedendo relativamente aos estudos do mercado da Colômbia ou do Panamá, nenhum deles mencionando o ano de 2019. Veja-se, por exemplo, que, em relação à Colômbia, se indica ser Presidente da República Juan Manuel Santos, que não exerce o cargo desde 2018 (cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_presidentes_da_Col%C3%B4mbia), e que todos esses estudos versam maioritariamente sobre aspectos históricos, climatéricos, culturais, étnicos, sem referências a dados económicos actualizados, a concretas possibilidades de exportação ou a estratégias de negócio.

Julgamos, assim, ser inconciliável com as regras de experiência comum e de normalidade que as transferências bancárias efectuadas por M... se destinassem a pagar estudos de mercado com dados desactualizados e sem estratégias delineadas. Donde se conclui que as transferências bancárias por ela realizadas, em Novembro de 2019, no valor total de €81.000, não se mostram documentalmente justificadas e que a justificação adiantada pela sua gerente não tem suporte nos documentos que a própria fez juntar aos autos, os quatro estudos de mercado efectuados pela sociedade A... com sede no Brasil e facturados no final de 2020.

Da análise conjugada destes elementos documentais resulta que essa sociedade teria pago não menos de €81.000, em Novembro de 2019, por estudos de mercado que não implementou, a uma sociedade que não tinha por objecto social a realização de estudos de mercado, o que aliado ao facto de a sociedade M... ter um volume de facturação anual reduzido, levou a considerar que aqueles depósitos no valor de €81.000 não titulam qualquer serviço prestado pela A... a M....

Aliás, que a fábrica não se encontra em laboração e que evidenciava sinais de abandono é o que se constata ainda a partir do auto de diligência de 4/7/2022, junto a fls. 1629 e elaborado pelo Inspector HH, o que também não suporta as declarações de RR ao afirmar que está a fazer uma “pausa” na produção e que os alegados estudos de mercado podem ser utilizados em qualquer momento.

Esta conclusão é também sustentada pela perícia financeira junta no Apenso IV da qual resulta que, da análise à demonstração de resultados da A... nos anos de 2019 e 2020 foi possível constatar que, em 2019 não existem “vendas/serviços prestados” apenas se verificando gastos operacionais em “fornecimento e serviços externos”, no valor de €19.743,15. E que, em 2020, inscrevem-se €334.532,00 em “vendas e serviços prestados”, sem que haja registo em “custos das mercadorias vendidas e das matérias consumidas”, facto não compaginável com operação no “âmbito de Comércio por grosso não especializado de produtos alimentares, bebidas e tabaco”. Contabilizando-se gastos em “fornecimento e serviços externos” (objectivando justificar saídas de “caixa”/“bancos”), no valor de €392.194,00. Evidenciando o balanço de 2019 falência técnica, pois o passivo superava o activo – cf. fls. 5 do Anexo IV. Concluindo-se que as contas de 2019 e 2020 indiciam a inexistência de actividade económica da A....

Da conjugação de todos estes elementos resultou para o tribunal a inequívoca convicção de que as transferências bancárias de que a A... foi beneficiária não titulavam serviços por ela prestados.

Todavia, tal como já evidenciamos relativamente às demais sociedades que efectuaram transferências bancárias para a conta da A..., não se comprovou que esses valores fossem provenientes do tráfico de estupefacientes, inexistindo qualquer elemento probatório nos autos que permita relacionar estas transferências para a conta da A... com essa actividade.

Veja-se que nem as contas bancárias ou a contabilidade das entidades pagadoras foram investigadas e que, embora se indicie a existência de pagamentos sem relação comercial subjacente, não podemos atribui-los ao narcotráfico, até porque a detenção de estupefacientes ocorre quase um ano após estas transferências, em 2 de Setembro de 2021.


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Relativamente aos movimentos a débito, valores transferidos da conta número ... titulada pela A... junto do Banco 1..., S.A., o tribunal teve em consideração os documentos e elementos probatórios que seguidamente se elencam.

No que respeita às transferências bancárias efectuadas para a sociedade N... - Unipessoal, Lda. considerou-se a análise aos movimentos da conta titulada pela A... junto do Banco 1... de fls. 263 a 273 e o que consta dos extractos bancários de fls. 137, 143 e 144 e 149, todos do Apenso III, que comprovam a realização, entre 4 de Fevereiro e 12 de Março de 2021, de 10 transferências no montante global de €104.800.

Que essa sociedade foi constituída a 23 de Janeiro de 2019, tem sede declarada na morada indicada na acusação e como sócio gerente SS e bem assim que, até 23/6/21, não havia procedido à publicação da prestação anual de contas referentes aos anos de 2019 e 2020, é o que se comprova a partir da certidão permanente junta a fls. 275 e 276 do Apenso III (2º volume) e do auto de recolha de informação de fls. 274 do mesmo apenso.

A nacionalidade do sócio gerente está comprovada através da informação prestada pelo SEF a fls. 286 do mesmo Apenso, da qual consta a cópia do seu passaporte, a confirmação de que não possui autorização de residência em Portugal, e o registo de entradas em no território nacional. Desse documento é possível constatar que, no ano de 2019, o sócio gerente da N... entrou em território nacional a 14 de Janeiro e saiu a 26 de Janeiro 2019, período durante o qual constituiu a N..., em 23 de Janeiro. Tendo, nesse ano de 2019, regressado a Portugal em Abril, apenas pelo período de 7 dias, entre os dias 4 e 9, facto também confirmado em audiência pelo Inspector HH, responsável pelo auto de recolha de informação de fls. 285 do Apenso III.

Que a N... não exerce actividade no local indicado na certidão permanente foi o que resultou do depoimento prestado pelo Inspector HH, que se deslocou a esse local e confirmou esse facto, conjugado com o auto de diligência de fls. 277 do Apenso III, por ele elaborado e a reportagem fotográfica que, a fls. 278 a 280, o acompanha.

A circunstância de a N... não ter instalações, de não ter sido recolhido qualquer documento que justificasse as 10 transacções de que foi beneficiária, permitiram concluir, em face das regras de experiência comum, que, na realidade, não exercia qualquer actividade.

Tendo em conta que as mencionadas transferências foram efectuadas entre 4 de Fevereiro e 12 de Março de 2021, portanto, muito antes da prática dos factos ilícitos consubstanciadores do crime de tráfico de estupefacientes e que, além do facto objectivo de a transferência ter sido realizada, nada mais foi investigado, não pôde o tribunal concluir que se relacionasse com proventos decorrentes do crime de tráfico internacional de estupefacientes.


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No que respeita à sociedade P... o tribunal atentou, quanto às transferências bancárias que recebeu da A..., à análise aos movimentos da conta titulada por esta última junto do Banco 1... de fls. 263 a 273 e aos extractos bancários de fls. 137, 144 e 149, todos do Apenso III, que comprovam a realização, entre 17 de Janeiro e 19 de Março de 2021, de 5 transferências no montante global de €11.600 para a P....

Que essa sociedade foi constituída a 1 de Julho de 2019, tem sede declarada em ..., Gondomar, e objecto social a construção civil, sendo sua sócia e gerente WWWW, é o que resulta da análise à certidão permanente de fls. 282 do Apenso III, comprovando a mesma que, até 23/6/21 (data em que foi consultada a certidão) não havia procedido à publicação da prestação anual de contas referentes aos anos de 2019 e 2020. O auto de recolha de informação de fls. 281 do mesmo apenso elaborado pelo Inspector HH e por ele confirmado em audiência, também comprova esses factos.

Que a mencionada sociedade, desde 1 de Janeiro de 2021, não tem qualquer trabalhador declarado junto da Segurança Social é o que se constata a partir da informação do Instituto da Segurança Social de fls. 343 a 345 do Apenso III, pois, nessa data, consta o registo de procedimento de despedimento colectivo desencadeado pela entidade empregadora, o que, conjugado com as regras de experiência comum, permitiu concluir pela inactividade da sociedade.

Todavia, também a proveniência do valor transferido para esta empresa ficou por demonstrar, por ser desconhecida, sendo certo que não se demonstrou que se destinasse a introduzir na economia valores provenientes do tráfico de estupefacientes.


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No que respeita aos factos provados relativamente à sociedade Q... o tribunal atendeu, quanto às transferências bancárias efectuadas pela A... para essa sociedade, à análise aos movimentos da conta titulada pela A... junto do Banco 1... de fls. 263 a 273 e aos extractos bancários de fls. 71,

96 e 101, todos do Apenso III, que comprovam a realização de um total de 8 transferências, três das quais no dia 5 de Fevereiro de 2020, no montante global de

€40.000,00, e cinco, entre os dias 2 e 7 de Julho do mesmo ano, no montante global de €79.900,00.

Que essa sociedade tem sede declarada em Setúbal e objecto social o que resultou demonstrado é o que resulta da análise à certidão permanente de fls. 290 do Apenso III, comprovando-se ainda a partir desse documento que a mesma, entre a data da sua constituição e 24/6/21 (data em que foi consultada a certidão), não havia procedido à publicação da prestação anual de contas referentes aos anos de 2019 e 2020. O auto de recolha de informação de fls. 289 do mesmo apenso elaborado pelo Inspector HH e por ele confirmado em audiência, também comprova esse facto.

Que a mencionada sociedade teve apenas uma funcionária, pelo período de 30 dias, entre 1 e 30 de Novembro de 2019, é o que resulta da informação prestada pelo Instituto da Segurança Social a fls. 340 a 342 do Apenso III.

Por fim, e no que respeita ao facto de essa sociedade não laborar na morada da sede valorou-se o auto de diligência de fls. 302 e a reportagem fotográfica de fls. 303 e 304, todos do Apenso III, que comprovam que nesse local, no dia 28 de Junho de 2021, funcionavam os serviços do Gabinete de Inserção Profissional de Setúbal.

Porque desse auto de diligência resulta que a demais informação recolhida a propósito da ausência de actividade daquela sociedade adveio unicamente do que o Inspector HH ouviu dizer a pessoa (não identificada) que exercia funções naquele local, os factos por ela relatados não puderam ser considerados provados, atento o disposto pelo art. 129º do Código de Processo Penal.

No que respeita à proveniência dos montantes transferidos pela A... para essa sociedade nada se apurou.


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Relativamente às transferências efectuadas a partir da conta nº ... sediada no Banco 1... pela sociedade A... para a sociedade R... o tribunal atentou à análise aos movimentos de conta de fls. 263 a 273 e aos extractos bancários de fls. 58, todos do Apenso III, que comprovam a realização de um total de 7 transferências, todas em Novembro de 2019, entre os dias 11 e 19, no montante global de €90.540,00.

A este propósito teve-se também em consideração o depoimento de JJJJ, empresário e titular da sociedade R..., que mencionou conhecer o arguido EE por ter prestado serviços a uma empresa sua, a Bb... SA., dado o arguido AA ter uma “empresa de carnes” (de desmanche e abate).

Quanto às transferências monetárias que a sociedade que gere recebeu da A... referiu relacionarem-se com a celebração de um contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma sita no Montijo, cuja documentação juntou a fls. 1708 a 1763.

Explicou que, em 2020, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma entre a sociedade R..., de que é titular, na qualidade de promitente vendedora, e um cidadão brasileiro, na qualidade de promitente comprador, tendo as transferências bancárias em questão sido efectuadas para pagamento do sinal, que foi pago por mais do que uma entidade, através de múltiplas transferências, por o comprador ter dito que não podia pagar tudo de uma vez.

Mencionou que esse valor, que correspondia a 30% do valor da venda (345 mil euros), era de €145.000,00, parte do qual foi efectuado por XXXX (cf. fls. 1752 a 1756) e também pela sociedade arguida A... (cf. fls. 1751 a 1762), não obstante, nem um nem outro, figurassem como parte no contrato. Também referiu que o contrato definitivo veio a ser realizado, mas o comprador vendeu a casa menos de um ano depois da compra da casa, tendo a imobiliária revendido o imóvel.

A justificação que apresentou para o pagamento de parte do sinal ter sido pago por aquela XXXX (que, conforme consta dos autos - cf. fls. 948 -, é mãe do arguido AA) ou pela A..., empresa com quem nunca trabalhou, foi a indisponibilidade manifestada pelo comprador para pagar integralmente o sinal. Todavia, não conseguiu explicar, de forma minimamente coerente, porque motivo a sua empresa aceitou transferências de pessoas singulares e sociedades que não eram parte do mencionado contrato.

Assim, não obstante tivesse sido demonstrada a celebração de um contrato promessa de compra e venda de um imóvel e o pagamento de parte do sinal efectuado por quem nele não figurava como parte, a sociedade A... ora arguida, procedimento para o qual não foi apresentada qualquer justificação plausível, o certo é que, não tendo sido objecto de investigação o comprador, que relação (ou se alguma relação teria) com a A..., ou qualquer outro facto relativo a esse negócio, não foi possível concluir que esse montante pago pela A... proveio do tráfico de estupefacientes.

Aliás, não podemos deixar de referir que o enquadramento agora exposto, fornecido pela testemunha e comprovado pelos documentos, não foi sequer levado à acusação, que se refere a esta sociedade apenas nos seus art. 114º, 172º e 173º.

Por fim, porque essas transferências ocorreram em 2019 e a detenção por tráfico de estupefacientes ocorre em 2021, não resta senão concluir que foram efectuadas antes da prática do crime que alegadamente gerou os lucros a branquear, o que também carece de lógica.


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No que respeita às demais transferências bancárias efectuadas pela A... através da conta nº ... de que é titular no Banco 1... o tribunal considerou:

- quanto ao montante de €26.342,00, transferido para conta titulada por TT, a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 267), os extractos bancários de fls. 109, 115, 120, 129 e 244, todos do Apenso III e a informação prestada pelo Banco de Portugal a fls. 1608;

- quanto ao montante de €43.320,00 transferido para a conta de S..., a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 269) e os extractos bancários de fls. 101, do Apenso III;

- quanto ao montante global de €170.199,00 transferido para as empresas T... Limited, U..., V..., W..., X..., Y..., a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 270) e os extractos bancários de fls. 120 e 121 todos do Apenso III;

- quanto ao montante de €19.747,00 transferido para a Z... Llc. a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 270) e o extracto bancário de fls. 121 ambos do Apenso III;

- quanto ao montante de €90.269,00 transferido para Aa... Limited, a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 270) e o extracto bancário de fls. 129, ambos do Apenso III;

- quanto ao montante global de €90.760 transferido para Ab..., a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 272) e o extracto bancário de fls. 49, ambos do Apenso III; e

- quanto ao montante de €20.000,00 transferido para a sociedade B... a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 271) e o extracto bancário de fls. 144, ambos do Apenso III, conjugada com a informação prestada pelo Banco de Portugal junta a fls. 18 do Apenso GRA.


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Paralelamente, o recebimento nas contas tituladas pela A... de transferências bancárias provindas das sociedades que a seguir se mencionam resultou comprovado a partir dos elementos probatórios que se passam a enunciar:

- Quanto ao recebimento da quantia de €150.000,00 da sociedade Ac... Lda., a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 273) e o extracto bancário de fls. 44, ambos do Apenso III;

- Quanto ao recebimento da quantia de €102.000,00 da sociedade Ad...., a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 271) e o extracto bancário de fls. 144, ambos do Apenso III;

- Quanto às transferências do valor global de €151.000,00 da conta titulada pela A... na Banco 2... (IBAN  ...), para a conta nº ... do Banco 1... S.A., também por ela titulada, a análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 273) e os extractos bancários de fls. 49, 50 e 51, ambos do Apenso III e as informações prestadas pelo Banco de Portugal a fls. 17 do Apenso GRA.

Por resultar desses extractos bancários que as transferências foram efectuadas para a conta nº ... do Banco 1... S.A., em diversos dias do mês de Setembro - no dia 16/9/2019 (duas transferências, uma no valor de €15.000 e outra no valor de €50.000), no dia 19/9/2019 (duas transferências, uma no valor de €8.000 e outra no valor de €24.000) e, no dia 30/9/2019 (uma transferência no valor de €54.000) - o tribunal não deu como assente que se tratasse de uma única transferência efectuada no dia 16/9/19.

A transferência de €24.000 no dia 23/9/19 comprova-se também pelo extracto bancário de fls. 49 e ss.

As quatro transferências recebidas pela A... oriundas da Ae... Inc, entre os dias 20 a 24 de Setembro e a 1 de Outubro de 20219, comprovam-se pela análise aos movimentos bancários de fls. 263 (cf. fls. 271) e aos extractos bancários de fls. 49 e ss, ambos do Apenso III. Por resultar desses elementos documentais que as transferências foram efectuadas para a conta nº ... do Banco 1... e não para a conta nº ... também domiciliada nesse banco, esse facto foi julgado não provado.

Ainda a este propósito o tribunal não considerou provado que a transferência no valor de €150.000 efectuada pela Ac..., Lda., a 18/9/19 e as transferências no valor de €90.760 efectuadas por Ab... tivessem como destino a conta nº ... domiciliada no Banco 1... SA, uma vez que resulta do extracto de movimentos de fls. 49 do Apenso III que teve como destino a conta nº ... do mesmo banco, como, aliás, vinha indicado nos art. 121º e 120º da acusação (facto que contraria o que se fez constar dos art. 128º e 127º da mesma peça processual).

Afirmar-se, genericamente, que “todas as verbas monetárias recebidas e transferidas, por via das contas bancárias tituladas pela empresa A..., não têm justificação razoável” (cf. art. 129º da acusação), é uma conclusão que compete ao tribunal retirar da matéria de facto alegada e provada.

Sucede, porém, que nenhum facto foi alegado na acusação relativamente às sociedades e pessoas individuais J..., TT, S..., T... Limited, U..., V..., W..., X..., Y...., Z..., Aa..., Ab..., Ac..., Lda. (sociedade que se indicia pertencer à testemunha PPPP, que reconheceu ali exercer actividade como consultor de empresas, mas que não foi alvo de investigação nestes autos), Ad... e Ae... Inc.

Veja-se que, para além das transferências bancárias evidenciadas pela análise aos extractos da conta nº ... titulada pela A... junto do Banco 1..., não foi recolhido qualquer elemento contabilístico ou sequer bancário relativo às empresas mencionadas, sendo totalmente desconhecido a que actividade se dedicam, porque motivo não existe negócio subjacente a essas transferências, que elementos existem na contabilidade de cada uma delas para justificar as mencionadas transacções. Factos que, como tal, ficaram por demonstrar.

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No que respeita aos factos que foram julgados provados a propósito da sociedade Af... - Unipessoal, Lda. o tribunal considerou o auto de recolha de informação de fls. 294 do Apenso III, elaborado pelo Inspector HH e por ele confirmado em audiência, a certidão permanente de fls. 295 e 296, que permite concluir que essa sociedade foi constituída em 23/8/18, tem como único sócio e gerente UU e como objecto a actividade de consultoria e que nunca apresentou contas. Foi igualmente valorado o auto de diligência de fls. 298 do mesmo apenso, reportado a diligência efectuadas pelos Inspectores HH e CCCC, da qual resulta que, em visita ao local indicado como sede dessa sociedade, a 25 de Junho de 2021, foi possível constatar a inexistência de quaisquer funcionários ou actividade da mesma, tratando-se o local de um edifício de escritórios, explorado pela empresa Ag.... A este propósito considerou-se igualmente a reportagem fotográfica de fls. 299 a 300 do mencionado apenso III, que ilustra essa diligência. E, no que se reporta ao sócio gerente desta sociedade, valorou-se o auto de recolha de informação de fls. 356 e a informação prestada pelo SEF a fls. 357 a 359 do mesmo apenso.

Cumpre, no entanto, referir que, embora na acusação se mencione esta sociedade (cf. art. 139º e 140º), não foram alegados quaisquer movimentos bancários que tenha feito para contas tituladas pela Wdelar ou quaisquer valores que tenha dela recebido, pelo que a referência à mesma se mostra inócua.


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No que respeita aos movimentos a crédito e a débito efectuados na conta do Banco 1... nº  ... titulada pela A... no período compreendido entre 16/09/2019 e 25/03/2021 o tribunal considerou o exame pericial efectuado pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária do Apenso IV, bem como as conclusões que dele constam a partir da análise à demonstração de resultados e balanços dos anos de 2019 e 2020.

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E, quanto aos titulares das contas que receberam transferências da conta nº ... titulada pela A... no Banco 1..., IIII, NNNN, YY, BBB e WW, considerou- se, no que à prova documental concerne:

- as informações prestadas pelo Banco de Portugal a fls. 1601 a 1619 dos autos principais, designadamente, no que respeita à conta titulada por IIII, o documento de fls. 1601, quanto à conta titulada por YY, o documento de fls. 1613, quanto à conta titulada por WW e XX, o documento de fls. 1614, quanto à conta titulada por BBB e Ah... Lda., o documento de fls. 1615 e, no que respeita à conta titulada por NNNN, YYYY, ZZZZ e ... AAAAA, o documento de fls. 1618;

- a perícia financeira do apenso IV e os extractos dos movimentos bancários enviados pelo Banco 1..., também juntos a esse anexo e bem assim os de fls. 137 do Anexo III.

 Da conjugação destes elementos documentais foi possível comprovar a titularidade das contas bancárias dos beneficiários das apontadas transferências bancárias.

Esses elementos, conjugados com os depoimentos prestados por IIII, NNNN, YY e WW permitiram concluir que a sociedade A... transferiu, no dia 4 de Fevereiro de 2021, através da conta nº ... de que é titular no Banco 1...:

- O montante de €2.080, para conta titulada por VV – cf. fls. 137 do Anexo III;

- O montante de €584, para conta co-titulada por WW e XX – cf. fls. 137 do Anexo III;

- O montante de €1500, para conta titulada por YY – cf. fls. 137 do Anexo III;

- O montante de €2.500, para conta co-titulada por ZZ e AAA – cf. fls. 137 do Anexo III;

- O montante de €2.000 para conta titulada por Ah... Lda. e BBB – cf. fls. 137 do Anexo III.

Quanto ao fundamento destas transferências valoraram-se os depoimentos prestados pelas testemunhas que a esse propósito foram inquiridas.

IIII, referiu que o marido se dedica à venda de aves e que foi contactado por um individuo chamado BBBBB com vista a adquirir-lhe aves e que, não obstante, não tivesse intervenção nesse negócio, o preço (€2800) foi depositado na sua conta bancária, após o que procederam ao envio das aves. Confrontada com os documentos de 1678 a 1695, explicou comprovarem a legalidade dos animais exportados e que, embora dali resulte que a cedência foi gratuita, tratou-se de uma venda não facturada.

Confrontada com o facto de o preço ter sido pago pela A..., não o soube explicar. Por fim, referiu que, após a conclusão do negócio, foi depositado na sua conta bancária o valor de €3700 (cf. documento de fls. 1685), que o BBBBB referiu ter sido transferido por erro e que se destinava a um outro criador, CCCCC. Por isso, conforme foi solicitado transferiu essa verba para a conta indicada pelo tal BBBBB, cujo primeiro titular é DDDDD (cf. fls. 1684), circunstância que também não soube explicar.

Porque o mencionado negócio foi efectivamente realizado pelo marido da testemunha IIII, EEEEE, foi o mesmo inquirido tendo resultado do seu depoimento dedicar-se à criação de aves, que anuncia através de publicações na rede social Facebook. Na sequência dessas publicações foi contactado por um individuo brasileiro, chamado BBBBB, para lhe ceder aves o que veio a acontecer, embora não se tratasse de uma cedência, mas antes de uma compra e venda pelo preço de €2080. Assegurou que os animais foram efectivamente vendidos e exportados, conforme certificados de exportação fls. 1691, 1692, 1693 e 1694, explicando ter entregue as aves ao FFFFF, que é responsável pela logística e pela quarentena (que precede a exportação) efectuada pela sociedade Bc..., Lda. (cf. fls. 1688). Quanto à inexistência de factura justificou-a com o facto de constar da documentação tratar-se de uma cedência gratuita.

Também confirmou o depósito posterior de €3700 na conta da mulher, valor esse que devolveu, conforme indicações dadas pelo BBBBB, para conta titulada por CCCCC, pessoa que não conhece pessoalmente, acabando por referir não saber se a conta que lhe foi indicada pertence à pessoa que conhece como CCCCC e que também é criador de aves, tanto mais que, do documento de fls. 1784, consta como primeira titular DDDDD.

NNNN confirmou ser irmã de YYYY, falecido em Junho de 2021, sendo titular com ele e os demais irmãos de uma conta bancária. Mencionou ser aposentada, mas, até 2010, ter residência no Brasil, onde tinha uma padaria no Rio de Janeiro, país para onde se desloca a cada dois anos e onde ainda tem familiares.

Quanto à transferência bancária no montante de €2500, ocorrida em Fevereiro de 2021, disse ter sido remetida para uma “conta antiga”, que estava em nome dos quatro irmãos, mas que, na realidade, era administrada pelo irmão, YYYY, falecido em Junho de 2021, e que tinha uma pastelaria em Portugal. Referiu, por isso, nada saber quanto àquele depósito efectuado pela A... nessa conta bancária, que era apenas movimentava pelo irmão YYYY. Motivo pelo qual nada se apurou, que pudesse comprovar ou infirmar a celebração de algum negócio entre ZZ e a A..., que justificasse aquela transferência.

YY, proprietário de um hotel em S. Paulo, no Brasil, disse passar três meses por ano em Portugal, entre Junho e Setembro, onde tem casa. Confirmou ter recebido €1500 da A... na conta de que é titular no Banco 7..., conta que provisiona através de uma casa de câmbio sita em São Paulo, Brasil, a .... Disse que se deslocou a essa casa de câmbio onde entregou uma quantia em Reais (ou em cheque ou em numerário) que pretendia fazer chegar à filha residente em Portugal, valor que essa casa de câmbio transferiu, em Euros, para a sua conta bancária domiciliada em Portugal. Afirmou que, em Fevereiro de 2021, se encontrava no Brasil e que a transferência foi feita a pedido da filha, residente em Portugal. Não soube explicar porque motivo a A... foi a sociedade ordenante da transferência, mas assegurou que esta foi uma situação única e excepcional.

WW, advogado, explicou que a conta bancária onde a A... depositou os €584 é titulada por ele e pelo colega de escritório GGGGG, tratando-se de conta profissional do escritório. Referiu não conhecer a sociedade A..., nem o arguido EE e que o valor em questão se destinava a pagar a taxa de justiça e os honorários devidos por um cliente, HHHHH, primo do seu colega de escritório, para obter, em Portugal, a revisão de sentença de divórcio decretado no Brasil.

 Referiu ter “achado estranho” que o titular da transferência não fosse o cliente, por não ser habitual, mas disse que, por vezes, são familiares de clientes que pagam, por causa das taxas e dos câmbios. Assegurou que o processo de reconhecimento foi concretizado e que correu os seus termos na comarca de Lisboa. Destes depoimentos foi possível comprovar que nem IIIII, nem YY, nem WW tiveram qualquer negócio com a A... que justificasse as transferências monetárias que dela receberam nas suas contas bancárias, todas elas relativas a serviços prestados por outras empresas ou pessoas singulares.

O mesmo não sucedendo quanto à transferência para a Ah..., uma vez que, BBB, seu representante, não foi inquirido e nenhuma das testemunhas inquiridas se pronunciou sobre esse movimento bancário, ficando também por demonstrar a que se dedica essa sociedade.

Ainda a propósito das transferências efectuadas pela A... através da conta sediada no Banco 1... a que vimos aludindo foi inquirido o militar da GNR HHHH, embora a factualidade por ele relatada não tenha sido levada à acusação (o seu nome surge apenas no quadro do art. 152º como um débito, sem qualquer enquadramento). Por ele foi mencionado ter colocado à venda, em Fevereiro de 2021, uma viatura automóvel da marca Seat, modelo ..., o que fez colocando um papel no carro com um número de telefone. Explicou que, na sequência desse anúncio, foi contactado telefonicamente por um individuo português, tendo acordado os termos da compra e venda, designadamente, o pagamento, a ser efectuado por transferência bancária e sem que o comprador visse previamente a viatura. Na sequência desse negócio recebeu na sua conta bancária uma transferência de €5.825 de uma sociedade, a A... - facto comprovado pelo extracto de movimentos de conta de fls. 137 do Apenso III (transferência a 5/2/21 para FFF no valor de €5.825). Todavia, por ter “achado estranho” o pagamento do preço provir de uma sociedade quando o comprador era um particular, acabou por não concretizar o negócio, devolvendo, em numerário, o montante que tinha sido depositado na sua conta, no parque ..., em Santo Tirso, à pessoa a quem era suposto entregar a viatura nesse dia e cuja identidade afirmou desconhecer, mas assegurando não se tratar de qualquer um dos arguidos. Por fim, mencionou que todo este negócio foi verbal e que nem sequer pediu recibo de quitação dos €5825 que entregou em numerário a um desconhecido. Não obstante, o documento de fls. 1638 que a testemunha fez juntar aos autos, comprova o recebimento na sua conta bancária da transferência efectuada pela A... no montante de €5.825 e o subsequente levantamento dessa importância, o que corrobora o seu depoimento. Perante estes elementos documentais podemos concluir que a A... pagou uma viatura automóvel que não lhe seria destinada.

Aliás, quanto às viaturas utilizadas pelo arguido EE, pela mulher e pelas sociedades, pronunciou-se detalhadamente a testemunha JJJJJ, empresário em nome individual que exerce a actividade de aluguer de automóveis através da sociedade Ao... (apenas referida no quadro do art. 152º como um débito, sem qualquer outro enquadramento), e que mencionou conhecer o arguido EE precisamente por lhe alugar viaturas.

Explicou que a Ao... existiu entre 2018 e 2022 e que, em 2019, iniciou a relação comercial com o arguido AA, com um aluguer esporádico, quando iniciou a actividade com a A.... Alugou-lhe um Mercedes, durante o período de um mês, em 2019, aluguer pago por transferência bancária pela A..., através de conta sediada no Banco 1....

Mais referiu que, em 2020, o arguido EE contratou um aluguer mensal de uma viatura, inicialmente, para ser usada por ele, um Mercedes Classe A. E, em 2021, alugou uma viatura para a sua mulher, primeiro um Smart e depois um Mini eléctrico, e bem assim uma carrinha de 9 lugares para uma equipa de futebol de praia ..., todos estes alugados pela B..., que era o locatário destas viaturas.

 Quanto ao valor do aluguer mensal do Mercedes disse ser de €1200, o do Smart de €500 e a carrinha entre €1200 a €1400, enquanto o Mini era de cerca de

€800, excedendo o valor do aluguer dos três veículos €3000 mensais.

Esses pagamentos eram efectuados inicialmente por transferência bancária de contas tituladas pelas sociedades B... e A... no Banco 1..., passando depois a serem pagos em numerário, o que foi justificado pelo arguido EE por ter a conta bloqueada. Tendo sido a partir dessa altura que teve dificuldade em receber os pagamentos.

Explicou que a viatura de 9 lugares estava entregue à Associação ... cujo responsável era um ex-jogador de futebol, KKKKK, e que foi alugada  pelo arguido AA para fazer publicidade à cerveja, tendo, inclusivamente, pedido autorização para nela colocar publicidade de vinil com o objectivo de vender as cervejas na praia.                     

Estas afirmações mostram-se corroboradas pelos documentos juntos a fls. 2390 a 2395 pelo arguido CC. Também confirmou os números telefónicos utilizados pelo arguido EE, através dos quais o contactava. E, no que respeita aos documentos de fls. 16 e ss, explicou que se trata de viatura da marca Mercedes, que alugou à Bd... e que o condutor ali indicado, LLLLL, era o director da Bd.... Viatura que foi entregue à Ao..., cujo objecto era o subaluguer de viaturas, por não ter viaturas próprias. Por subalugar as viaturas, cobrava um valor mensal superior àquele que a Bd... lhe cobrava a ele, valores que, no entanto, considerou ajustados dentro da média do mercado, por se tratarem de carros de marcas premium, todo o custo operacional correr por conta da Ao..., não ter limitação de quilómetros, nem exigência de caução, circunstâncias que fazem aumentar o preço do aluguer mensal.

Por fim, referiu que a relação comercial teve início em 2020 e decorreu até à data da detenção do arguido EE, tendo todos os alugueres sido facturados.

A transferência para a Ao..., em 11/2/21, no valor de €750 está documentada no extracto de movimentos bancários da conta da A... no Banco 1... junto a fls. 143 do Apenso III sendo a única indicada na acusação (cf. quadro do art. 152º, de 1933 verso), e que, como vimos, tem justificação.

Não obstante tivesse sido possível concluir que os montantes acima referidos transferidos pela A... ou recebidos na conta titulada pela A... não se inseriam no seu objecto social, não foi possível concluir que tivessem como proveniência rendimentos obtidos com a prática do crime de tráfico de estupefacientes e que se destinassem a encobrir os lucros provenientes dessa actividade (único fundamento enunciado na acusação para os justificar conforme resulta expressamente dos seus artigos 70º, 71º, 174º, 194º, 195º e 196º).

O caminho trilhado pela investigação e pela acusação, correlacionando os valores movimentados com a prática de factos ilícitos típicos integrantes do crime de tráfico de estupefacientes, ficou, claramente, por demonstrar.

E estando os factos sob julgamento, de acordo com o princípio do acusatório, delimitados pela acusação, que fixa o objecto do processo, arredada está da alçada do tribunal de julgamento a investigação da eventual prática de outros factos ilícitos típicos, que pudessem explicar os movimentos bancários efectuados.

Elencar transferências bancárias anteriores, a crédito e a débito, que não têm correlação com o objecto social da A..., sem que resulte comprovada a prática do crime precedente, no caso, o crime de tráfico de estupefacientes (veja-se que, até dia 2 de Setembro de 2021, não existe qualquer elemento probatório objectivo que permita correlacionar o arguido EE com o tráfico de droga), é quanto basta para o tribunal ter considerado como não provada a indicada proveniência desses valores.

Aliás, o produto estupefaciente apreendido, cocaína, com peso líquido de 1.468,57 gramas e o grau de pureza de 17,2%, que possibilitaria a obtenção de cerca de 1262 doses, também não permite, de forma alguma, concluir que os movimentos bancários anteriores (insista-se) mencionados na acusação fossem provenientes dos lucros obtidos por uma rede internacional dedicada ao narcotráfico. O mesmo sucedendo relativamente à actividade desenvolvida pela sociedade

B... pois resultou dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas que, não obstante, não tivesse ainda iniciado a venda de cerveja, já a tinha em produção, havia adquirido garrafas e caricas, desenhado os rótulos da marca e efectuado acções de publicidade, o que levou a que não se pudesse considerar que a fábrica não laborasse ou que tivesse sido adquirida pelo arguido EE para dissimular lucros obtidos com o tráfico de estupefacientes, facto que não tem qualquer sustentação na prova produzida.

Vejamos.

MMMMM, empresário na área da restauração, referiu residir em Portugal há 20 anos explorando dois restaurantes, mencionou ainda, tal como se constata a partir da certidão permanente de fls. 71 do Apenso do GRA, ter sido sócio e gerente da sociedade F... (que precedeu a B...) juntamente com RRR, sociedade que ambos constituíram mediante subsídio de um milhão e quinhentos mil euros concedido no âmbito do projecto de incentivos Portugal 2020, intermediado pelo IAPMEI. Detalhou que 70% desse subsídio seria a fundo perdido e os restantes 30% pagos a partir de 2023. Isto se os objectivos do projecto fossem cumpridos, caso não fossem, aqueles 70% teriam que ser reembolsados.

Indicou ter sido PPPP (o mesmo que, como vimos, intermediou os contactos do arguido AA com a L... e a K...), quem elaborou o projecto para candidatura aos fundos Portugal 2020, o que sucedeu em 2016, e que também foi consultado na venda da sociedade ao arguido EE.

Deu início ao projecto, mas tardou um ano a colocar a fábrica em funcionamento, produziu cerveja, com marca própria, que tinha como destino a exportação (os mercados francês, israelita, americano e da ... latina), dado o consumo interno de cerveja em Portugal ser muito residual.

Todavia, esse projecto não veio a ser concretizado porque, quando tinha a fábrica pronta a funcionar, surgiu a pandemia de Covid19, vendo-se na impossibilidade de cumprir os objectivos impostos para beneficiar do subsídio Portugal 2020 a fundo perdido, que implicava, entre o mais, a produção de determinada quantidade de cerveja e o emprego de um certo número de trabalhadores. Assim, porque não tinha clientes, nem marca consolidada ou perspectivas de cumprir os mencionados objectivos, decidiu vender sociedade. Para tanto começou por adquirir as quotas ao seu sócio RRR (o que sucedeu, de acordo com a certidão permanente, em 20/6/20) e, em Setembro desse ano, iniciou negociações com o arguido EE, que conheceu em 2016, por ser cliente de um dos seus restaurantes. Negociações que se concretizaram em Novembro desse ano, altura em que se consumou a transmissão de quotas (em 28/11/2020) e em que o arguido AA se torna gerente da sociedade, cujo nome alterou para B... (cf. certidão de fls. 71 e ss do apenso do GRA).

Quanto ao valor da venda, por apenas €1, explicou que se deveu ao facto de o arguido AA ter assumido a dívida de €1.530.000,00, que teria que renegociar junto do IAPMEI, além de ter de pagar, a partir de 2023, em tranches de €60.000 mensais, os restantes 30% do subsídio concedido.

Também detalhou que, na altura da venda, a fábrica estava sem manutenção há um ano e, embora em condições de produzir cerveja, havia que realizar uma higienização profunda das cubas, depois de retirar a cerveja ali armazenada, adiantando que seria necessário um período de 6 meses para fazer essa higienização e dar início ao processo de produção.

Após a venda fez três visitas à fábrica, a primeira para ver as máquinas, a segunda quando fizeram a cerveja experimental e, por fim, quando iam começar a produção. Afirmou ainda que, poucos dias antes de ter sido detido, o arguido EE já tinha a cerveja pronta para venda.

No que respeita ao arguido CC referiu conhece-lo por ter sido ele quem afinou a linha de enchimento da F..., por ser “o melhor do país” nessa área.

Do seu depoimento resultou, portanto, comprovado não só o valor da venda da sociedade, como o que a motivou. Quanto ao abandono da empresa por parte do seu sócio e a transmissão de quotas também o confirmou, embora não com o alcance referido na acusação.

Que a fábrica laborava e tinha funcionários foi também o que resultou provado a partir dos depoimentos prestados pelos funcionários que ali laboraram.

GGGG que exerceu, em 2021, e durante 8 meses, funções de chefe de manutenção do equipamento na B... disse ter sido contratado através do fundo de desemprego, tendo sido os arguidos EE e CC quem o entrevistaram. Foi contratado inicialmente à experiência e, depois, como efectivo, estando inscrito na segurança social desde Março de 2021, facto que a informação de fls. 86 comprova. A cópia do contrato de trabalho junta a fls. 596 a 605, também atesta ter sido contratado em Março de 2021 pelo arguido EE.

Quanto ao modo de pagamento do salário, que referiu superar €1000 mensais ilíquidos, asseverou ser pago por cheque do Banco 1... entregue pelo arguido EE, embora, uma ou duas vezes, tivesse sido pago em dinheiro, o que sucedeu em data próxima àquela em que deixou de ali laborar, o que sucedeu quando não recebeu o salário do mês de Agosto, nem o subsídio de férias em Agosto de 2021.

Explicou que, enquanto ali laborou, a empresa não efectuou vendas de cerveja, porque, quando foi contratado, as instalações não estavam aptas a produzir. A fábrica tinha como funcionários o arguido CC, encarregado da produção de cerveja, o NNNNN, que era seu colaborador na área da manutenção e a SSSS, empregada de escritório. E a produção de cerveja começou um mês depois de ter iniciado funções, tendo sido elaborados quatro tipos de cerveja, que chegou a provar.

No mais, declarou desconhecer outros negócios que o arguido AA pudesse ter, afirmando ainda que se encontrava todos os dias na fábrica. Mencionou ter escutado, por uma vez, o arguido AA falar do comércio de ouro e diamantes, mas não soube contextualizar essa conversa.

Quanto ao dia em que ocorreu a detenção afirmou não se encontrar nas instalações, por ter sido dispensado pelo arguido CC, facto que este havia confirmado.

Não resultou, portanto, do seu depoimento que não tivesse sido produzida cerveja, facto que a testemunha NNNNN também atestou. Mencionou ter trabalhado na B... desde Março ou Abril de 2021 (facto comprovado pela informação de fls. 86 de onde resulta registar descontos desde Abril desse ano), tendo sido contratado pelo arguido AA (anteriormente estava inscrito no fundo de desemprego). Quando foi contratado a fábrica ainda não estava operacional, mas o objectivo real era a produção de cerveja, o que veio a suceder, um mês ou dois depois. Só não venderam cerveja porque a estavam a “afinar”.

Quanto ao seu salário disse ser pago, sempre pelo arguido AA, em dinheiro e, uma vez, por transferência bancária (através de conta aberta pelo arguido AA em nome da empresa no Banco 1... para pagar os salários aos trabalhadores, o que, no entanto, só se verificou nessa única vez, já que a conta “estava sempre a zero”). Mencionou que o arguido EE chamava os funcionários ao escritório da fábrica e entregava os envelopes com o dinheiro e o recibo.

No mais, disse trabalhar na fábrica, só raramente se deslocar ao escritório, nunca se tendo apercebido que ali fossem guardadas quantias avultadas. Identificou, além do arguido CC, o JJJJ, o PP (mestre cervejeiro) e a SSSS (funcionária administrativa), como outros trabalhadores da B.... Confirmou atrasos no pagamento dos salários, de poucos dias, no segundo ou terceiro mês em que ali trabalhou, assim como a presença do arguido AA na empresa e, embora mencionasse que ele tinha outras empresas, não soube detalhar a que se dedicavam.

Quanto ao dia em que ocorreu a detenção dos arguidos disse encontrar-se na fábrica, porque iria, juntamente com o arguido CC, fazer a manutenção/limpeza das máquinas (local onde também se encontravam os filhos deste último), embora nada tivesse presenciado.

Por fim, mencionou que o arguido CC estava a ensina-lo a trabalhar na produção de cerveja (cujo processo de afinação foi moroso), para que pudesse trabalhar com ele nessa área, e que, tal como ele, o arguido CC trabalhava todos os dias na fábrica.

Quanto ao arguido AA disse que, na altura, vivia com a mulher e o filho, de 7 ou 8 anos de idade.

Do seu depoimento também não resultou que a B... não tivesse produzido cerveja.

QQQ, criador cervejeiro, disse ter trabalhado na B..., tendo sido contactado pelo arguido AA para lhe prestar serviços num projecto de produção de cerveja artesanal. Descreveu as instalações da B..., onde existiam 3 cubas com cerveja deteriorada, que havia sido fabricada pela anterior sociedade, que lhe foi dito que o objectivo era revitalizar a fábrica e que, em deslocação ao local, verificou não ter electricidade e existir equipamento que não estava a funcionar correctamente. Concordou participar no projecto, tendo sido acordado um vencimento mensal de €800 ou €900, só para trabalhar aos fins de semana. Explicou que, para colocar a fábrica a funcionar novamente foi necessário fazer um investimento substancial, uma vez que os equipamentos consumiam muita electricidade e gás, as cubas continham cerveja estragada da anterior empresa, que tiveram que retirar com autorização da alfandega, após o que foi necessário higienizar as cubas. Confirmou ainda a realização de obras de relevo na fábrica (nas casas de banho, no melhoramento dos escritórios ou o derrube de paredes), as dificuldades que encontraram, afinações que tiveram que fazer, equipamentos que avariaram, que superaram, sempre com o objectivo de colocar a fábrica a funcionar.

Referiu que chegou a trabalhar como prestador de serviços, com uma presença mais regular na fábrica, estando acordado assinar contrato em Setembro (o que não veio a suceder devido à detenção do arguido AA), o valor pago pelos seus serviços era de cerca de €2500 mensais, mas não declarado. A propósito do pagamento dos salários referiu que foram inicialmente pagos, mas, “por causa da transferência de três milhões que estava bloqueada”, deixaram de o ser. Recebia por transferência bancária e uma vez recebeu do arguido EE os €2500 em numerário.

Afiançou ter sido ele quem elaborou as receitas da cerveja, criando quatro tipos de cerveja, a primeira receita foi produzida em Março de 2021 (altura em que detectaram problemas com a produção) e a última (que correu bem) um mês, ou um mês e meio antes da detenção, em Julho de 2021, data em que, na sua perspectiva, a fábrica estaria em condições de iniciar a produção de cerveja.

Referiu ainda que tinham entre 3 a 5 mil garrafas cheias e prontas para serem comercializadas, o que era muito pouco, uma vez que a capacidade de enchimento era de 800 a 1200 garrafas por hora, o que, em turnos de 8 horas, permitiria produzir, no mínimo, 6 mil garrafas por dia. Fizeram quatro produções de 6 mil litros de cerveja, que permaneceu nas cubas (tinham entre 12 e 15 cubas), por se conservar melhor ali do que na garrafa.

Asseverou ter sido efectuada uma grande encomenda de garrafas a uma empresa alemã, pela qual foi pago o valor de 10 a 12 mil euros, mas não ter conhecimento de qualquer venda de cerveja, nem da celebração de contratos de fornecimento, essenciais para a comercialização, não obstante o arguido AA lhe transmitisse ter encomendas de contentores de cerveja destinados a Espanha, Venezuela e China.

A cerveja seria comercializada sob a marca ... e, em Julho de 2021, já havia clientes, no Porto, a receberem amostras. Foi feita publicidade, num jogo de futebol de praia na ... e elaborou um plano do número de funcionários necessários, em consonância com o número de garrafas vendidas, tendo sido efectuadas pesquisas para a aquisição de um robot para a fábrica.

Quanto ao arguido AA afirmou demonstrar estar interessado na produção de cerveja, arte que foi aprendendo, embora lhe tivesse transmitido que trabalhava “com câmbio”. Todavia, reconheceu não existir da parte deste último verdadeiro planeamento na gestão da fábrica, que apelidou como sendo “um improviso diário”. Por isso, depois de terem tudo a funcionar e não ver saída de cerveja, achou que o projecto não iria funcionar.

Tal como algumas das demais testemunhas inquiridas referiu-se à necessidade do pagamento do imposto sobre o álcool explicando que, na cerveja, é calculado tendo em conta a quantidade de cerveja produzida por dia (tratando-se de uma microcervejeira) e sobre a percentagem de açúcar antes de fermentar. Também explicou que esse imposto só é devido quando a cerveja sai das instalações da fábrica e que, em caso de exportação, é pago no país de destino, mas, nesse caso, é necessário apresentar uma garantia junto da AT.

No que respeita ao arguido CC disse ter sido funcionário da As... e da Be..., tendo a sua vida profissional ligada à produção de cerveja. Reconheceu ter sido ele quem aliciou o arguido CC a entrar no projecto da B..., numa altura que trabalhava na Aw..., empresa de controle de pragas, isto porque tinha anteriormente trabalhado consigo tendo-o despedido “injustamente”. Explicou que o arguido CC acreditou no projecto e que o seu salário foi acordado de modo a equipará-lo com o que, na data, auferia na Aw..., onde trabalhava a fazer limpezas em bancos na altura do COVID, actividade bem remunerada, por não haver muita gente disposta a executa-la.

Deste depoimento também não resultou comprovado que não tivesse sido produzida cerveja pela B....

SSS, designer gráfico, disse ter efectuado apenas um serviço, enquanto freelancer, para a sociedade A..., o seu site na internet, embora sem conseguir detalhar a que se dedicava, acabando por referir genericamente que seriam “investimentos”, o que sucedeu antes de trabalhar para a B....

Em 2021 teve o primeiro contacto com o arguido EE, o que sucedeu por intermédio de PPPP, individuo ligado a candidaturas a fundos estatais, economista, cuja actividade era a implementação projectos nas empresas. Foi contratado pela B... como designer gráfico, numa altura em que estava inscrito no fundo de desemprego, tendo como função criar a marca de cerveja, os rótulos e a publicidade. Assinou um contrato de trabalho com um vencimento mensal de €1000 e trabalhou até Abril de 2021, mas até esse momento a empresa não vendeu cerveja, embora existisse cerveja nas cubas, mas não engarrafada.

Do seu depoimento resultou ainda a confirmação de que procedeu a depósito em numerário, no valor de cinco mil euros, em conta titulada pela B..., o que levou o tribunal a considerar esse facto como provado.

Quanto aos demais depósitos que constam dos talões de fls. 1553 a 1566, admitiu igualmente ter sido ele quem efectuou o depósito em numerário no valor €20.000, no dia 11 de Fevereiro de 2021, conforme talão de fls. 1562, e o de €30.000, no dia 10 de Fevereiro de 2021, conforme talão de fls. 1565, mencionando tratarem-se de valores que se destinavam ao reforço da B... e cuja proveniência afirmou desconhecer. Sucede, porém, que analisados esses talões de depósito, a informação prestada pelo Banco 1... a fls. 1569 e os documentos que, a fls. 1567, 1568 e 1553 a 1566, a acompanham e bem assim os extractos integrados de fls. 143 do Apenso III, foi possível constatar que tais valores não foram depositados em conta da B..., mas sim na conta nº ... titulada pela A... no Banco 1....

O mesmo acontecendo relativamente aos restantes depósitos mencionados naqueles talões: de €4.000, efectuado a 18/2/21 (cf. talão de depósito de fls. 1553 e extracto de fls. 143 do Apenso III); de €4000, efectuado a 18/12/20 (cf. talão de depósito de fls. 1554 e extracto de fls. 129 do Apenso III); no valor de €4940 e €4950, ambos efectuados a 18/1/19 (cf. talões de depósito de fls. 1555 e 1556 e extracto de fls. 58 do Apenso III); de €4990 efectuado a 12/11/19 (cf. talão de depósito de fls. 1557 e extracto de fls. 48 do Apenso III); de €12.000 efectuado a 22/9/20 (cf. talão de depósito de fls. 1558 e extracto de fls. 110 do Apenso III); €

14.000 efectuado a 05/02/21 (cf. talão de depósito de fls. 1559 e extracto de fls. 137 do Apenso III); de €15.000 efectuado a 6/10/20 (cf. talão de depósito de fls. 1560 e extracto de fls. 115 do Apenso III); de €20.000 efectuado a 04/02/21 (cf. talão de depósito de fls. 1561 e extracto de fls. 137 do Apenso III); de €20.000 efectuado a 11/11/19 (cf. talão de depósito de fls. 1563 e extracto de fls. 58 do Apenso III); de €

25.000 efectuado a 11/12/19 (cf. talão de depósito de fls. 1564 e extracto de fls. 66 do Apenso III); de €100.000 efectuado a 20/11/19 (cf. talão de depósito de fls. 1566 e extracto de fls. 58 do Apenso III).

Todos estes documentos conjugados com o depoimento da testemunha mencionada permitiram concluir pela realização de depósitos em numerário naquelas contas, em especial na conta do Banco 1... da A..., que foi a analisada no Apenso IV.

A testemunha SSSS, funcionária administrativa da B..., entre 8 de Maio e 3 de Setembro de 2021, explicou que tinha como funções tratar dos documentos da empresa, da conta de fornecedores, da carteira de clientes, da gestão de email e das chamadas telefónicas. Disse que o gerente era o arguido EE, enquanto o arguido CC era empregado de armazém e encarregado da fábrica.

Quanto ao projecto descreveu-o como uma indústria de cerveja artesanal, com intuito de exportação, afirmando que a empresa “estava a começar” não estando em condições de produzir, já que faltava a certificação da empresa, a limpeza das cubas, retirando a cerveja antiga das cubas, que afirmou nunca ter chegado a suceder, por não lhe serem entregues os contentores.

Tal como as demais testemunhas, referiu que embora a produção de cerveja tivesse sido efectuada, a empresa nunca chegou a vende-la, por faltar o pagamento do imposto sobre o álcool, sendo ainda necessário verificar a qualidade da produção, disse que havia fornecedores, mas não clientes. Havia malte, mas a cerveja não chegou a sair, tinham 4 tipos de cerveja e logótipo, cerveja nas cubas, garrafas e caricas, mas não pagaram a taxa de álcool, essencial para comercializar, uma vez que essa taxa só foi pedida perto da data da detenção.

Afirmou ser confrontada com contas a pagar, mas a “gestão ser muito complicada” tendo abordado várias vezes, sem sucesso, o arguido AA para pagamento de importâncias devidas ao Estado, compensação dos fundos de trabalho ou montantes devidos à segurança social. De todos os fornecedores, só um foi pago, o fornecedor alemão das garrafas que exigiu pré-pagamento para as fornecer. Os demais não eram pagos, tal como sucedeu com as obras efectuadas nas instalações fabris, que avaliou em cerca de €20.000.

Quanto à sociedade A... mencionou desconhecer a que se dedicava, embora, segundo o que lhe foi transmitido pelo arguido AA, se dedicasse a “fazer câmbios”. Referindo ainda ser uma empresa que o arguido AA usava para colocar dinheiro na B..., emprestava dinheiro à B.... Também adiantou ter visto facturas de estudos de mercado efectuados pela A... para entidades terceiras.

No que respeita ao seu salário (€745 brutos) afirmou que o primeiro foi pago mediante transferência bancária e os restantes em dinheiro, procedimento igual para todos os funcionários, tendo sido apenas nessas alturas que viu quantias em dinheiro. Disse ainda que existiu atraso no pagamento do mês de Julho e que o mês de Agosto não foi pago, assim como não o foi o subsídio de férias.

A propósito do trabalho com a empresa de contabilidade qualificou-o como “muito difícil”, porque não conseguia relacionar despesas com as facturas e os meios de pagamento, sendo muitas delas a título pessoal. Além de ter muita dificuldade em apresentar os documentos que lhe eram solicitados.

Também referiu que a A... transferia dinheiro para a B... e, quando a contabilidade lhe pedia a documentação justificativa dessas transferências, nunca a conseguiu fornecer.

No mais afirmou que o arguido AA não tinha a situação de permanência no país regularizada, que a sede da A... (cuja área de negócio disse desconhecer) correspondia à da sua residência, no Porto, onde vivia com a mulher, FF, e o filho menor de ambos.

FFFF, sócio da sociedade Ap..., que fazia a contabilidade da B... e da A..., confirmou solicitar os documentos à funcionária administrativa, mas, ao contrário do que ela mencionou, disse que os documentos eram remetidos pela empresa atempadamente e que, quando eram pedidas facturas, eles faziam chegar os documentos. Afirmando não se recordar de ter tido dificuldades em elaborar a contabilidade da empresa e que, mesmo quando não fossem remetidos atempadamente os documentos solicitados pela contabilidade, essa situação não seria excepcional, mas antes algo “normal” no meio empresarial e não particular da B.... Quando tal sucedia, contactava o AA, por telemóvel, para que lhe remetesse os documentos em falta. Não obstante, afirmou não se recordar de ter recebido balanço ou os movimentos financeiros da empresa, necessários para efectuar o fecho.

Explicou que tinha uma avença de €600 mensais com a B... e que apenas por uma vez lhe foi pago em numerário o valor de €1500, o que sucedeu à porta da fábrica, tendo sido o arguido AA quem lhe entregou um envelope. Dessa avença ficaram por pagar mais de €2000, relativos a meses que não soube precisar.

Disse que a A... não tinha funcionários, ao contrário da B..., uma vez que foi ele quem fez as apólices de seguro multirriscos para os funcionários desta última, tal como consta de fls. 581 a 591.

Para além disso, referiu que as obrigações fiscais da B... não foram cumpridas, tendo dívidas fiscais e à segurança social, factos de que revelou conhecimento por existirem interessados na compra da fábrica.

Com base nos depoimentos desta testemunha e da testemunha SSSS foi possível comprovar que o prazo de pagamento dos serviços prestados pela Ap... não era cumprido e que havia documentos que eram entregues após insistência e outros que nunca chegaram a ser entregues ao contabilista. O pagamento em numerário dos serviços de contabilidade prestados deu-se como comprovado, mas apenas numa única ocasião, por ter sido a única confirmada pelo contabilista.

KKKK, gerente de empresas, disse que trabalhou na B... durante um mês, em 2021, dava opiniões verbais, como consultor ocasional, sem contrapartida certa, tendo auxiliado na contratação dos funcionários: a empresa contactava o centro de emprego e depois escolhia os funcionários. Disse ainda ter participado em reuniões sobre os recursos humanos e a rotulagem. Exerceu funções durante um mês, à experiência, pelas quais recebeu o valor global de €1000.

De resto, mencionou nunca ter viu um plano de negócios da B... e nada saber relativamente à A....

OOOOO, gestor de empresas, disse ter sido contactado pelo arguido EE, numa altura em que este último estava a pensar montar uma loja na Baixa do Porto para venda de produtos alimentares, isto no final de 2020, início de 2021. Encontraram-se num hotel durante a pandemia e o AA, já depois de ter adquirido a fábrica de cerveja, voltou a marcar outra reunião. Porque ele próprio estava a negociar a aquisição do mercado PPPPP, retomou os contactos com o arguido AA para fornecimento de cerveja para o Bf.... Na sequência dessas conversações visitou a fábrica, por duas ou três vezes, numa das quais o arguido AA o abordou para ser director financeiro da B..., tendo sido elaborado o respectivo contrato em Junho ou Julho de 2021. Todavia, porque nunca conseguiu falar com o AA, contactou a funcionária administrativa, SSSS, a quem pediu diversos elementos, como os dados dos últimos anos, as declarações fiscais, o último balancete analítico e a documentação relativa ao apoio do IAPMAI. Porém, porque estes elementos nunca lhe foram entregues, não chegou a exercer, de facto, as funções de director financeiro da B....

No que respeita à produção de cerveja referiu que, em Junho ou Julho de 2021, quando esteve na fábrica, até provou a cerveja, disse ainda que já saía cerveja, mas não em produção em massa.

Quanto a outras actividades exercidas pelo arguido AA afirmou que este lhe transmitiu exercer a actividade de trading alimentar, e que tinha uma verba bloqueada no banco.

Não resultou, portanto, do depoimento prestado por nenhuma destas testemunhas que a fábrica da B... não tivesse produzido cerveja, mas antes que não a comercializou, embora estivesse pronta a faze-lo por altura da detenção do arguido. Por esse motivo não foi possível dar como assente que a fábrica não se destinasse efectivamente à produção e venda de cerveja artesanal.

É certo que existe uma intercepção telefónica mencionada na acusação (cf. art. 181º e 182º) de uma conversa mantida entre o arguido CC e a testemunha SSS, datada de 7 de Agosto de 2021, transcrita a fls. 3 e ss do Apenso II (em que ambos reconheceram terem participado), onde o arguido CC diz que o arguido AA “queria aquilo pra fazer…coisa…que a gente sabe” ao que o segundo responde, “pois é, nós sabemos o que é que ele queria, não é?”. Rematando o arguido CC “pra fazer de máquina de lavar e fodeu-se…”. Todavia, esta intercepção desacompanhada de outros meios de prova revelou-se, de todo, insuficiente para concluir que a B... fosse usada para o branqueamento de capitais.

Veja-se que, em relação a essa sociedade, não foi realizada qualquer análise à sua contabilidade, não se mostram descritos quaisquer factos relativos a movimentos efectuados nas suas contas bancárias (cf. art. 96º da acusação), a perícia financeira constante do Apenso IV apenas analisa uma das contas titulada pela outra sociedade arguida, a A..., e a investigação do GRA também nada esclarece quanto à proveniência dos valores recebidos em contas da B..., o que significa que inexiste prova que permita concluir que fosse usada pelo arguido para encobrir os lucros advindos do tráfico de estupefacientes.

A circunstância de a fábrica não ter vendido cerveja até Setembro de 2021, não permite concluir que não viesse a vende-la, veja-se que tinha funcionários, tinha rótulos desenhados (cf. fls. 2382 e ss), foram adquiridas garrafas e contratado um mestre cervejeiro.


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No que se refere aos factos atinentes à liquidação do património o tribunal alicerçou a sua convicção nos valores encontrados na investigação financeira e patrimonial efectuada pelo Gabinete de Recuperação de Activos de fls. 101 a 122 do Apenso GRA, conjugada com os elementos documentais também juntos a esse apenso, designadamente, as informações do Banco de Portugal de fls. 15 a 19 e 85 a 88, as informações fiscais de fls. 21 a 24, 26 a 33, 35 a 42, 44 a 61, 146 a 234, as informações recolhidas junto das bases de dados da Autoridade Tributária e relatório do Instituto de Registos e Notariado de fls. 65 a 70, a certidão permanente de fls. 71 a 75, as informações financeiras de fls. 78 e 81, as informações bancárias de fls. 92, 94, 95, 100 e os suportes informáticos juntos.

Todavia, cumpre salientar que, uma leitura atenta do relatório da investigação financeira do GRA, permite concluir que nem todas as contas bancárias indicadas na acusação foram tidas em consideração para determinar o património incongruente do arguido AA. O que sucede relativamente a contas encerradas, à conta titulada pelo seu cônjuge FF - cf. fls. 108 e 108 verso, in fine, do relatório, onde se refere “não se registaram movimentos de relevo na conta bancária analisada, pelo que a mesma não será incluída no património/rendimento financeiro auferido pelo arguido para efeitos de cálculo de vantagem da actividade criminosa” – e à conta de que é titular o filho de ambos, GG que, segundo o mesmo relatório, por não registar movimentos de relevo, não foi incluída no rendimento financeiro auferido pelo arguido para aqueles efeitos – cf. fls. 109 do relatório.

O mesmo sucedendo quanto a rendimentos auferidos pelo cônjuge do arguido que, segundo o mesmo relatório, não foram apurados – cf. fls. 104 verso – contrariando o mencionado na acusação.


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Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas dos arguidos o tribunal teve em consideração os relatórios sociais juntos aos autos a 26/4/23 (ref. 35472369 - arguido BB), (ref. 35470191 - arguido CC), a 17/4/23 (ref. 35379006 - arguido EE) e a 19/4/23 (ref. 35417096, arguido QQQQQ), conjugados com as declarações que os arguidos BB, CC e EE prestaram a propósito.

Foi com base no declarado pelo arguido EE, na cópia do seu assento de casamento junta a fls. 948, na cópia do assento nascimento do seu filho de fls. 949, na factura de fls. 950 e 951, nas informações relativas à candidatura a visto de residência em Portugal por parte do arguido, da mulher e do filho, juntas a fls. 952 a 954, nos documentos fiscais e bancários de fls. 955 a 961 e na informação prestada pelo SEF a 12/5/23, que o tribunal considerou assente que, na data dos factos, o arguido havia solicitado visto de residência, e bem assim para reagrupamento familiar, e que aqui residia juntamente com a mulher e o filho menor, daí que os factos que, em contrário constavam da acusação, fossem considerados não provados.

No que respeita ao arguido BB valorou-se o assento de nascimento da filha que juntou a fls. 674.

Não se considerou, todavia, que o arguido BB tenha trabalho garantido, porque esse facto não se mostra corroborado por qualquer elemento probatório e é expressamente contrariado no relatório social.

Foram igualmente valorados os documentos de fls. 508 a 522 juntos pelo arguido CC, relativos à sua situação contributiva e profissional e bem assim os de fls. 2345 a 2398 e ainda a declaração da sua carreira contributiva, a declaração da Aw..., a declaração da Ax... e o Ay..., todos juntos a 21/4/23.

Os documentos juntos a fls. 860 a 874 pelo arguido DD referentes à sua actividade profissional e, bem assim, os que juntou a 9/2/23, relativos à sua carreira contributiva.

No que respeita à prova testemunhal o tribunal valorou os depoimentos prestados por RRRRR, que foi supervisor do arguido CC na empresa Aw... onde aquele trabalhou por um período entre um ano e meio e dois anos. Mencionou que, porque exerciam funções na altura da pandemia, fazendo desinfecções, a remuneração mensal era de cerca de €2000, por não haver muita gente disposta a desempenhar essas funções. Referiu ainda que o arguido CC deixou essa empresa para “ganhar mais” e por a sua área profissional estar ligada à indústria cervejeira, tendo já trabalhado em duas empresas de cerveja a As... e a Be.... No que respeita à situação familiar disse que o arguido CC é casado, vive com a mulher os filhos.

SSSSS, aposentada da função pública e amiga da mãe do arguido CC, que conhece desde criança e com conviveu regularmente, descreveu-o como uma pessoa prestável e trabalhadora, que reside com a mulher e os filhos beneficiando ainda do apoio dos pais, do irmão e dela própria.

TTTTT, empresário na área da distribuição de alimentação animal, referiu conhecer o arguido CC como cliente há 15 anos, descrevendo-o como pessoa trabalhadora, também confirmou ser o subscritor da declaração de fls. 2396 na qual manifesta disponibilidade para o empregar.

UUUUU, picheleiro aposentado, mencionou conhecer o arguido CC há mais de 20 anos, por ser amigo dos pais, descreveu-o como trabalhador, indicando que, na altura da pandemia de Covid19 trabalhava de noite em desinfestações. Confirmou ainda que trabalhou na cervejeira As... (onde também ele trabalhou) e na Be.... Quanto à sua situação familiar afirmou ser casado, a mulher exercer a actividade de cabeleireira, e o casal ter dois filhos. No mais, referiu ter-se deslocado, em quatro ocasiões, à fábrica de cerveja B..., onde procedeu a algumas reparações no sistema de ar condicionado e bem assim a ajustes na linha de produção, estas por indicação do mestre cervejeiro, confirmando que, na altura, estavam a testar a cerveja. Nessas ocasiões confirmou a presença no local do arguido AA, chegando a falar com ele sobre o trabalho, tendo o AA lhe transmitido que a cerveja era para ir para contentores.

Todos abonaram o comportamento do arguido CC.

A propósito das condições de vida do arguido DD o tribunal teve em consideração, além dos elementos documentais já referidos, o depoimento da testemunha JJJJ, Sargento Chefe da GNR, amigo de infância do arguido, de quem foi colega de escola, tendo ambos sido criados no mesmo bairro e cuja família, pais, irmãos, cônjuge, também conhece. Referiu que o arguido DD é casado e tem duas filhas, nunca lhe detectou sinais exteriores de riqueza e a sua actividade profissional estava relacionada com o comercio e aluguer de máquinas. No mais abonou o seu comportamento.

A testemunha MMMM, amigo do arguido DD desde criança, e também residente na ..., afirmou que o arguido DD é casado e tem duas filhas, teve uma empresa que vendia máquinas e também trabalhou com pneus, mas, devido às dificuldades económicas o agregado teve que abandonar a casa de morada de família, residindo actualmente num apartamento emprestado por ele.

Quanto à actividade profissional do arguido DD disse desconhecer se o arguido trabalhou em 2020 ou em 2021, porque na altura da pandemia não teve contacto com ninguém, já que era cuidador de uma pessoa vulnerável. Também ele abonou o comportamento do arguido DD.

UUU, empresário de importação e venda de máquinas de construção civil e cunhado do arguido, pessoa que conhece há 44 anos, referiu que o arguido começou a trabalhar aos 19/20, na mesma empresa onde ele trabalhava, a “Au..., Lda.”, inicialmente como fiel de armazém e, mais tarde, como vendedor de máquinas de construção civil e onde se manteve por cerca de 20 anos.

Após criou a sua própria empresa de compra e venda de máquinas usadas e de reparações ligadas à construção civil e que descreveu como pequenas máquinas de construção civil, tais como pequenas escavadoras. Posteriormente essa empresa deixou de ter actividade.

Quanto ao seu agregado familiar mencionou que o arguido tem duas filhas, uma trabalha a outra está a estudar nos Açores, disse que na altura dos factos o agregado vivia em casa arrendada e que, actualmente, vive em casa cedida por um amigo.

A actividade comercial desempenhada pelo arguido DD foi confirmada também por MMMM, que o conhece há 16 por via de actividade profissional, já que é sócio da testemunha QQ, e chefe de vendas na mesma empresa.

YYY, cônjuge do arguido DD, disse que o marido se dedica ao aluguer e reparação de máquinas, há mais de 20 anos, tendo uma carreira contributiva de 31 anos, entre 1989 e 2020 (facto que se comprova pelo documento junto a 9/2/23).

Mencionou que incide uma penhora sobre o seu ordenado, decorrente de uma dívida de cerca de €100.000,00 de que é devedora a empresa do marido. Todavia, não admitiu ter vendido a habitação própria que o casal adquiriu, através de empréstimo bancário, por dificuldades financeiras que surgiram depois do início da actividade por conta própria por parte do arguido (tal como consta do relatório social). Ao invés, afirmou que não foram dificuldades económicas que motivaram a venda, mas sim, a circunstância de a casa ser grande. Essas afirmações afiguraram- se muito pouco credíveis.


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No que respeita à ausência de antecedentes criminais por parte dos arguidos BB, EE, DD e das sociedades arguidas A... e B..., o tribunal atentou ao teor dos certificados de registo criminal juntos, respectivamente, a 10/4/23 (ref. nº 35314350), 12/4/23 (ref. nº 447384237), 10/4/23 (ref. nº 35314351), 10/4/23 (ref. nº 35314353) e 10/4/23 (ref. nº 35314352).

E, quanto aos antecedentes criminais do arguido CC, ao certificado de registo criminal junto a 10/4/23 (ref. nº 35314349).


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Os demais factos não provados assim se consideraram por não ter sido produzida prova que os corroborasse, na verdade, o arguido BB admitiu a deslocação à fábrica de cerveja, no dia 2 de Setembro de 2021, para fazer o transporte do estupefaciente, tendo sido acordado receber uma quantia monetária por esse serviço, motivo pelo qual não se considerou que o tivesse feito para “aceder ao pedido de ajuda, por não ter carro, do seu vizinho” ou que ignorasse a quantidade e a concreta natureza do produto estupefaciente que lhe foi apreendido.

Por os arguidos BB e CC terem mencionado não conhecerem o arguido DD, antes da ocorrência do dia 2 de Setembro de 2021, e não existir evidência nos autos que aponte em sentido inverso, esse facto foi considerado provado. Pelos mesmos motivos, considerou-se comprovado que, antes daquela data, o arguido BB não conhecia o arguido EE, pois o que os autos evidenciam é que foi o arguido CC que combinou com ele a deslocação à fábrica para ir buscar a cocaína.

Por o arguido DD não se ter pronunciado a esse respeito, não foi possível dar como assentes as circunstâncias em que conheceu o arguido EE. E, por se ter demonstrado que na mochila trazia cocaína, não se deu como assente que ali transportasse bens pessoais, necessários à pernoita no Norte do país.

Por se ter demonstrado que a sua deslocação ao Norte do país nada teve a ver com a avaliação de máquinas, esse facto foi julgado não provado.

Também por não existir nos autos qualquer evidência que o arguido DD, no ano de 2020, trabalhasse (veja-se que nem a mulher soube explicar que funções exercia ou por conta de quem, que a sua empresa cessou actividade nesse ano), esse facto não se considerou provado.

Porque as testemunhas arroladas pelo arguido DD terem mencionado que a sua actividade profissional não estava relacionada com maquinaria pesada, mas sim com pequenas máquinas de construção civil, esse facto também foi julgado não provado.

Inexistindo qualquer documento que ateste que “o único bem que possuía era um armazém onde desenvolvia a sua actividade profissional, que se encontra penhorado, por falta de pagamento do mútuo hipotecário”, também esse facto foi considerado não provado. »

c.        É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância :

«          Enquadramento jurídico:

Assentes que estão os factos, debrucemo-nos sobre o seu enquadramento jurídico.

Aos arguidos BB, CC, EE e DD vem imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B a ele anexa.

Ao arguido AA vem ainda imputada, bem como às sociedades co-arguidas A... e B..., por ele representadas, a prática de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artigos 11º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 4 e nº 7, 368º- A, nº 1, alínea f), nº 2, nº 3 e nº 6 e art. 26º, todos do Código Penal.


*

I.          O crime de tráfico de estupefacientes:

O crime de tráfico de estupefacientes acha-se previsto pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01, nos seguintes moldes: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Com esta incriminação, conforme se deduz do preâmbulo do diploma citado, visa-se evitar a degradação e destruição dos seres humanos provocada pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes e, demais, afecta a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos.

Pode qualificar-se, pois, o tráfico de estupefacientes, em todas as modalidades de cometimento descritas, como um crime de perigo uma vez que o legislador não exige, para a respectiva consumação, a efectiva lesão dos bens jurídicos tutelados. E trata-se, outrossim, de um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública.

Estamos em presença de um crime de perigo abstracto, porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos. Tendo em conta a inerente vocação da droga para ser traficada, o legislador entendeu que todas as actividades com ela relacionadas, desde a produção à distribuição, representam um perigo para o bem comum, nomeadamente a saúde e a tranquilidade públicas, e daí que todas as condutas descritas no tipo sejam punidas como tráfico independentemente da prova de que os estupefacientes se destinam a ser transaccionados.

Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (processo nº 249/11.0PECBR.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt) o “crime de tráfico de estupefacientes (…) integra como conduta típica uma série muito diferenciada de acções — cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver produtos estupefacientes.

Dada a amplitude das condutas abrangidas, percebemos que, por exemplo, antes do acto de vender o estupefaciente há que cultivar, ou fabricar, ou simplesmente transportar da origem para o local de venda. Isto é, actos que em outras situações poderiam integrar apenas a simples tentativa, são agora punidos autonomamente como crime, estabelecendo-se como que uma equiparação entre os actos de consumação e os actos de tentativa, o que permite que se classifique o crime, quanto aos tipos de tipicidade, como um crime de empreendimento.

Nestes crimes de empreendimento pressupõe-se a verificação de um resultado que transcende a factualidade típica e consumando-se com a simples tentativa, entende-se que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação, o que tem como consequência que para estes crimes não se aplica a atenuação decorrente da prática de um ilícito tentado, dado que a forma tentada é punida do mesmo modo que a forma consumada (admitindo-se, porém, que ainda no âmbito destes crimes seja punível a tentativa impossível. (…)» - no mesmo sentido cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Março de 2010, proc. nº 1058/08.0TACBR.C1, publicado no mesmo local.

Consagra-se, portanto, um tipo com uma base de enorme abrangência, onde, além de não se exigir que a detenção se destine à venda, bastando a simples detenção ilícita ou proporcioná-la a outrem, ainda que a título gratuito, também a própria intenção de traficar, conforme se decidiu no Ac. STJ de 13 de Março de 1991, BMJ 405, pág. 201, não é elemento do tipo legal de crime. E para que o arguido possa ser condenado como traficante de estupefacientes não é sequer necessário que a droga lhe tenha sido apreendida ou identificada através de exame laboratorial, pois não se exige do agente o contacto físico directo com a droga.

Subjectivamente estamos em presença de um crime doloso – art. 14º do Código Penal.

De entre as substâncias previstas nas tabelas mencionadas no art. 21º do DL 15/93 de 22/1, inclui-se, no que aqui importa considerar, na Tabela I-B, a cocaína.


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No caso, atenta a matéria de facto provada, verificamos que se provou a prática pelos arguidos de factos integrantes dos elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico de estupefacientes, que lhes vem imputado.

Na verdade (entre o mais que não releva para integrar a prática de qualquer ilícito) provou-se que os arguidos EE, CC, BB e DD, em conjugação de esforços e de forma concertada, em data não concretamente apurada, situada no final de Agosto do ano de 2021, elaboraram um plano em ordem a efectuarem, pelo menos, uma transacção de cocaína.

Assim, no dia 23 de Agosto de 2021, pelas 21h57m, o arguido CC, utilizando o número de telefone ..., telefonou ao arguido AA, questionando-o sobre a possibilidade de efectuar uma transacção de cocaína, ao que este anuiu. Tendo, nessa ocasião, o arguido CC informado o arguido EE que os interessados na aquisição de cocaína estavam de férias e que regressariam no sábado seguinte.

Demonstrou-se igualmente que, no dia 2 de Setembro de 2021, os arguidos EE, CC, BB e DD, decidiram concretizar essa transacção de cocaína e que, na execução desse plano, o arguido JJ, na manhã desse dia, se deslocou a Lisboa a fim de, junto do arguido DD, recolher a cocaína. Facto que deu a conhecer ao arguido CC, a quem telefonou pelas 09h07m, avisando-o de que já estava a caminho de Lisboa e que, depois de estar em posse da cocaína, se iria deslocar às instalações da fábrica de cerveja B... sitas na Zona Industrial ..., o que levou o arguido CC a dispensar os funcionários da fábrica de comparecerem ao serviço nesse dia à tarde.

Assim, e em execução do plano previamente delineado, o arguido CC contactou telefonicamente o arguido BB para que este estivesse nas instalações da B... pelas 16h30m, para recolher a cocaína que o arguido AA tinha ido buscar a Lisboa.

Resultou igualmente demonstrado que, pelas 11h50m, desse dia, o arguido EE chegou à ..., em Lisboa, local onde se encontrou com o arguido DD, que transportava consigo uma mochila contendo cocaína, na posse da qual entrou na viatura conduzida pelo arguido EE, ocupando o lugar do passageiro, após o que ambos rumaram à cidade do Porto, onde almoçaram, tendo o arguido DD estado sempre em posse da mochila.

Da factualidade apurada verifica-se igualmente que, durante a viagem, pelas 12h52m, o arguido EE contactou o arguido CC para se assegurar que já não estariam trabalhadores na fábrica e que tinha consigo o comando do portão da entrada, indicando-lhe ainda que chegaria às 16:30 horas. Assim, pelas 16:40 horas, os arguidos DD e EE chegaram às instalações da fábrica B..., em cujo interior o arguido JJ estacionou a viatura.

Todavia, porque ao contrário do que haviam previamente combinado, o arguido BB a essa hora ainda não se encontrava nas instalações fabris, o arguido CC telefonou-lhe, manifestando-lhe o seu desagrado pelo atraso e perguntando-lhe quanto tempo tardaria.

Então, pelas 17:00 horas, o arguido BB compareceu no local, conduzindo um veículo Renault ... com matrícula ..-..-XG, que estacionou do lado oposto da rua, após o que se dirigiu àquelas instalações, onde entrou, depois de ter contactado o arguido CC, que lhe abriu a porta da fábrica.

Ficou também demonstrado que, no interior dessa fábrica, o arguido EE entregou ao arguido BB uma embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 490.200 gramas, um grau de pureza de 17,2%, que possibilitaria a obtenção do equivalente a 421 (quatrocentas e vinte e uma) doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3 e que foi encontrada na sua posse quando saiu da fábrica.

Por fim, provou-se que, no interior das instalações da fábrica da B..., no escritório situado no piso superior, em cima de uma mesa, junto à mochila, que estava aberta, pertencente ao arguido DD e que foi por ele trazida desde Lisboa, encontrava-se uma balança de precisão e um pacote contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 978.200 gramas, um grau de pureza de 17,2%, que possibilitaria a obtenção do equivalente a 841 (oitocentas e quarenta e uma) doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3.

Atento este conjunto factual e tendo em consideração que a cocaína é substância estupefaciente, de acordo com o disposto pela Tabela I-B anexa ao DL 15/93 de 22/1, dúvidas não restam quanto à prática, por parte de todos os arguidos, de factos que integram o tipo legal de crime previsto pelo art. 21º do DL 15/93 de 22/1, pois provou-se que os arguidos receberam, transportaram e ilicitamente detiveram cocaína, numa actividade concertada entre eles e na execução de um plano comum, integrando a sua actuação o conceito de co-autoria, tal como previsto pelo art. 26º do Código Penal.

Paralelamente, também não oferece contestação a natureza e quantidade do produto apreendido e, nesse pressuposto, que os arguidos se encontravam na posse de um total de 1468,4 gramas de cocaína (sendo apreendidos ao arguido BB 490,200 gramas e o remanescente, 978,200 gramas, no interior da fábrica de cerveja), que permitiam a obtenção do correspondente a um total de 1262 doses (421 + 841), conforme o descrito nos factos provados encontrando-se, pois, manifestamente ultrapassada a quantidade aceitável como necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Dúvidas também não há que os arguidos conheciam as características estupefacientes dessa substância, como, aliás, foi reconhecido pelos arguidos BB e CC.

Os arguidos não se encontravam autorizados a receberem, proporcionaram a outrem, transportarem ou deterem aquele produto e, sendo destino desse estupefaciente, um fim que vai para além do consumo (destinava-se a ser transaccionado), encontra-se preenchido o elemento típico objectivo do crime de tráfico.

E, porque se provou que os arguidos, não obstante conhecessem a natureza e características estupefacientes da cocaína que transportavam e detinham, actuaram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e com o conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, também os elementos subjectivos do tipo se mostram preenchidos. Ao actuarem da forma descrita fizeram-no com dolo, na modalidade de dolo directo, atento o disposto pelo art. 14º, nº 1 do Código Penal.

Incorreram, por isso, na prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL 15/93 de 22/1.


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II -       O crime de branqueamento

Ao arguido EE e às sociedades A... e B... vem imputada a prática de um crime de branqueamento p. e p. pelo art 368º-A, nº 1, alínea f), nº 2, nº 3 e nº 6 e artigo 11º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 4 e nº 7, todos do Código Penal.

Antes de mais, atento o disposto pelo art. 2º, nº 1 do Código Penal, segundo o qual as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática dos factos, e tendo presente que a norma em questão foi sucessivamente alterada pelas Leis nº 83/2017, de 18/08, nº 58/2020, de 31/08, nº 79/2021, de 24/11 e nº 2/2023, de 16/01, cumpre aquilatar qual a lei vigente na data da prática dos factos.

Segundo constava da acusação e resultou provado, o período temporal a considerar, no que ao crime de branqueamento concerne, é anterior à data da detenção dos arguidos, a 2 de Setembro de 2021, situando-se entre o ano de 2019 e 24/3/2021 sendo, portanto, esta última data a que releva para efeitos de aplicação da lei no tempo.

Deste modo, tendo em consideração que as Leis nº 79/2021, de 24/11 e nº 2/2023, de 16/01, que alteraram a redacção do crime de branqueamento, entraram em vigor após essa data, a conduta terá que ser apreciada à luz da redacção que lhe foi dada pela Lei nº 58/2020, de 31/08.

Assim, nessa ocasião dispunha o art. 368º-A:

1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:

(…)

f)          Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas; (…)

2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior.

3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.

4 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.

5 - Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade.

6 - A punição pelos crimes previstos nos nº 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º

7 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada.

8 - A pena prevista nos nº 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, e a infracção tiver sido cometida no exercício das suas actividades profissionais.

9 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.

10 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.

11 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.

12 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.

Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/10/2019, proferido no proc. nº 405/14.0TELSB.L1-3, e publicado em www.dgsi.pt, “Em termos gerais, poderá definir-se o crime de branqueamento de capitais, como «o processo através do qual os bens de origem delituosa se integram no sistema económico legal, com a aparência de terem sido obtidos de forma lícita» (Juana Del Carpio Delgado, El Delito de Blanqueo de Capitales, citada por Jorge Manuel Dias Duarte, in Branqueamento de Capitais, o Regime do DL 15/93 de 22.01, p. 34), ou, ainda, como «o procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações» (Lourenço Martins, Branqueamento de Capitais: Contra-Medidas a Nível Internacional e Nacional, RPCC, Ano IX, Fasc. 3º, p. 450).

Na ordem jurídica portuguesa, o branqueamento tem tipificação expressa no art. 368º-A do Código Penal e constitui-se como um tipo de crime derivado ou de segundo grau, uma vez que pressupõe a prévia concretização de um facto típico ilícito (Eduardo Paz Ferreira, “O Branqueamento de Capitais”, in Estudos de Direito Bancário, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 1999, pág. 306).

O bem jurídico protegido com a incriminação é a administração da justiça, o que resulta, não apenas da sua inserção sistemática no Código Penal, mas também na razão de ser da incriminação, partindo da constatação de que se trata de um tipo de crime que dificulta a acção da justiça, na investigação dos factos integradores dos crimes precedentes e na responsabilização dos respectivos autores, potencialmente obstaculizador da apreensão e perda dos bens e vantagens de origem ilícita, precisamente, porque em todas as modalidades típicas de actuação, o fim visado com a prática do crime de branqueamento é sempre a dissimulação da origem ilícita dos bens a branquear, ou evitar que os autores ou participantes dos crimes-base sejam criminalmente perseguidos e submetidos a uma sanção penal (Faria Costa, O branqueamento de capitais: algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal. p. 308-309 e Jorge Fernandes Godinho Do crime de «Branqueamento» de Capitais: Introdução e Tipicidade. p. 140-148 e Pedro Caeiro, A Decisão-Quadro do Conselho, de 26 de Junho de 2001..., no “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, p. 1106).”

O nº 1 do art. 368º-A do Código Penal conjuga um catálogo de crimes e uma cláusula geral.

Do catálogo de crimes subjacentes ao crime de branqueamento constam os factos ilícitos típicos de: (a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores; (b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de crédito, contrafacção de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados; (c) Falsidade informática, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, intercepção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido; (d) Associação criminosa; (e) Terrorismo; (f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas; (g) Tráfico de armas; (h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos; (i) Danos contra a natureza, poluição, actividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais; (j) Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social; (k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do sector público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no sector privado; (l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado; (m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafacção, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.

Para além deste catálogo o nº 1 estabelece a aludida cláusula geral, de acordo com a qual são susceptíveis de configurar factos subjacentes todos os factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos.

Comete o crime de branqueamento quem:

- Converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a reacção criminal (cf. nº 3 do art. 368º-A);

- Ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos (cf. nº 4 do art. 368º-A);

- Quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade. (cf. nº 5 do art. 368º-A).

« De referir que qualquer destas operações pode ser realizada de forma directa ou indirecta, sendo que não integra o tipo a intenção de lucro por parte do agente. (…) que a lei não impõe que o “reciclador” branqueie a totalidade das vantagens “sujas”, bastando que este o faça relativamente a parte destas. Deve considerar-se que a “conversão”, para efeitos do tipo em questão, engloba todas as operações de alteração da natureza e de transferência dos bens gerados directamente pelo crime-base ou adquiridos em resultado da respectiva prática em bens de outra natureza ou tipo. Por seu lado, a “transformação”, referida no tipo, compreende todas as operações destinadas ou aptas a mudar fisicamente (no sentido de mudança geográfica) esses bens, mas também todas as operações através das quais é alterada a titularidade dos direitos sobre os bens, ou esses direitos são transmitidos a outrem que não o agente do crime precedente.» (Margarida Mateus de Carvalho, Branqueamento de Capitais, Dissertação de Mestrado, Escola de Direito de Lisboa da Universidade Católica, Março de 2016, p. 26).

O auxílio ou facilitação de operações de conversão ou transferência de vantagens, visa integrar no âmbito do tipo todas as formas de comparticipação criminosa, consoante os actos de auxílio ou de facilitação sejam ou não causais (autoria ou cumplicidade) e consubstanciem, actos de execução do crime (auxílio ou facilitação materiais) ou de instigação (auxílio ou facilitação morais).

Quanto às acções de ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos, estão incluídos todos os actos de adquirir, receber, usar, deter, guardar, seja a que título, os bens e/ou produtos em questão, desde que aptos a tornar menos perceptível ou mesmo a impossibilitar totalmente que se torne visível ou apreensível um conjunto de atributos e qualidades dos bens em causa, no que concerne à sua verdadeira origem, ou quanto à sua real localização, ou no que se refere à sua verdadeira disposição, movimentação ou titularidade.

O legislador considera vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos, no caso, do crime de tráfico de estupefacientes, que é aquele que foi considerado na acusação e na decisão instrutória.

Efectivamente, “ao branqueamento está sempre associado a prática anterior de um dos factos catalogados e é um processo que tem por objectivo a ocultação de bens, capitais ou produtos com a finalidade de lhes dar uma aparência final de legitimidade, procurando, assim, dissimular a origem criminosa das vantagens.

Pressupõe sempre uma transformação ou falsificação das vantagens obtidas com o crime precedente, sendo a sua função tornar lícitos objectos que, na realidade, têm origem ilícita” (“A problemática do ilícito precedente no crime de branqueamento de capitais” - Mestrado Forense - Fevereiro de 2022 - João Francisco Portas Neves Fontes, pág. 15, 17 e 18, consultável em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/40119/1/203200357.pdf).

Assim, tendo presente as condutas passiveis de integrarem a prática do crime de branqueamento, distinguem-se normalmente três fases do branqueamento: a colocação; a circulação e, por fim, a integração.

No dizer de João Francisco Portas Neves Fontes (obra citada, pág. 19) a primeira fase (placement) consiste na colocação das vantagens ilícitas no sistema financeiro. Muitas vezes, este processo é feito reduzindo as quantias monetárias em montantes mais pequenos que depois são depositados numa conta bancária. A fase seguinte é o layering (circulação) em que o branqueador executa uma série de movimentos com os fundos para os distanciar da sua fonte com o objectivo de dificultar a reconstrução dos movimentos financeiros efectuados. Alguns exemplos de movimentos feitos com os fundos são a sua canalização através da compra e venda de instrumentos de investimento ou, simplesmente, o envio dos fundos para uma série de contas bancárias diferentes em vários pontos do mundo. Uma vez processados os fundos ilegais nas fases anteriores, o agente passa a integrá-los (fase da integração) reintroduzindo-os na economia por forma a aparentar plena legalidade, por exemplo, comprando imóveis, produtos de luxo ou empreendimentos financeiros”.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-03- 2022 (proc. nº 109/19.7TELSB-G.P1), publicado em www.dgsi.pt, “o crime de branqueamento de capitais consiste essencialmente na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade vantagens de crimes. Há nesta figura jurídico-penal uma relação umbilical, inextricável, obrigatória, entre a acção de ocultar ou dissimular a origem ou propriedade de determinados bens e a proveniência desses bens, pois devem forçosamente ser produto directo ou indirecto de um crime anterior”.

           Assim, apesar de não haver necessidade de condenação prévia pelo crime precedente, há que se demonstrar a criminalidade subjacente ao crime de branqueamento, cf. neste sentido Ac. TRP de 21/6/17, proc. nº 131/12.4TELSB – D.P1.

Além dos elementos objectivos é necessário ainda que o agente tenha actuado com o fim de dissimular a origem ilícita dos valores patrimoniais obtidos ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções fosse criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, pelo que, além do elemento subjectivo típico correspondente ao conhecimento e vontade de converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, ilicitamente obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, necessária será ainda a existência fáctica concreta de um elemento subjectivo típico adicional, incongruente com o tipo objectivo acima descrito, qual seja o de o autor ter agido com a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens concretamente obtidas (cf. Ac. do TRP de 28/04/2021, proc. nº 358/15.7PCLSB.P1, publicado em www.dgsi.pt).


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Sucede, porém, que, analisada a matéria de facto provada não temos demonstrado o crime base, o crime precedente, que é pressuposto da condenação pelo crime de branqueamento. Na verdade, analisados os factos alegados na acusação e provados, verificamos que o Ministério Público alicerçou a acusação na prática, pelo arguido EE, do crime de tráfico de estupefacientes, alegando que fazia parte de uma rede internacional de narcotráfico e que, através das movimentações bancárias que descreveu e que se comprovaram, pretendeu e conseguiu dissimular lucros advindos dessa actividade, para o que utilizou as sociedades que representava, a A... e a B....

Acontece que, não só não resultava da factualidade apurada no inquérito, como não resultou da materialidade apurada em sede de julgamento, que o arguido integrasse essa rede internacional de narcotráfico ou que os valores que movimentou procedessem da prática de factos ilícitos integrantes do crime de tráfico de estupefacientes.

Na verdade, imputa-se ao arguido (e através da sua actuação, às sociedades por si representadas) a prática de actos de branqueamento anteriores à prática do crime de tráfico de estupefacientes, que seria o crime precedente, aquele que originou as vantagens a branquear.

No caso em apreço, os actos de branqueamento estão temporalmente delimitados até ao dia 24 de Março de 2021, mas até essa data (aliás, até ao dia 2 de Setembro de 2021), não existe comprovação de que o arguido (ou algum terceiro) tivesse praticado actos típicos integrantes do crime de tráfico de estupefacientes, dos quais adviriam os proventos a branquear.

O processo de branqueamento tem que se iniciar pela prática de um facto ilícito típico precedente, não podendo haver lugar à punição sem a comprovação inequívoca da prática de factos ilícitos típicos de crime anterior.

Como refere João Francisco Portas Neves Fontes, obra citada, pág. 33, “aquela que parece ser a solução mais de acordo com o espírito do sistema é a de que no processo de branqueamento se há-de decidir se foi ou não praticado crime, e, evidentemente, qual o crime, demonstrando os seus elementos essenciais. Esta decisão não corresponderá a uma condenação, mas tão só à comprovação dos elementos constituintes do crime pretérito”.

Aliás, a posição maioritária da jurisprudência é no sentido da exigência de prova no processo de branqueamento dos elementos constitutivos do crime precedente – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.10.2019, proc. 405/14.0TELSB.L1-3, da Relação do Porto, de 21.03.2013, proc. 127/06.5IDBRG.P1 e da Relação de Évora, de 13/112012, proc. 43/10.6GASTC.E1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Ora, como julgamos ter logrado explicitar, no caso em apreço, o crime precedente indicado na acusação como gerador de lucros ilegais é o tráfico de estupefacientes. Sucede que esse crime foi praticado meses depois da prática dos alegados actos de branqueamento, motivo pelo qual não podemos, de forma alguma, concluir que os valores transferidos e depositados, se tratassem de proventos de um crime ainda não praticado.

E, porque sem crime precedente não há branqueamento, não resta senão concluir pela absolvição do arguido AA e das sociedades arguidas A... e B... da prática do crime de branqueamento p. e p. pelo art 368º-A, nº 1, alínea f), nº 2, nº 3 e nº 6 e artigo 11º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 4 e nº 7, todos do Código Penal, que lhes vinha imputado.


*

Esta decisão absolutória conduz necessariamente à improcedência da imposição às sociedades co-arguidas da pena acessória de dissolução peticionada pelo Ministério Público ao abrigo do disposto pelo art. 90º-A do Código Penal.  »

d.        É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso – e na parte que releva para a presente decisão :

«          Medida das penas:

Assente que está a prática pelos arguidos BB, CC, EE e DD, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL 15/93 de 22/1, por referência à Tabela I-B Anexa, cumpre, determinar a pena concreta a impor a cada um deles.

O crime de tráfico de estupefacientes é punido com pena de prisão de quatro a doze anos - atingindo assim uma elevada dimensão da ilicitude que abrangerá as várias modalidades de tráfico - grave, média e de rua.

Nos termos do disposto pelo art. 40º do Código Penal a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nº 1), em caso algum podendo a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2).

A determinação da medida concreta da pena terá que ser feita, nos termos do art. 71º, n.º 1 e 2 do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, servindo como factores de doseamento da pena as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham contra ou a seu favor considerando, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto.

Estas circunstâncias e critérios, como se refere no Acórdão do STJ de 26/10/11 (proc. 62/10.2PEBRR.S1), publicado em www.dgsi.pt, “devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano. Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados”.

Na determinação da medida concreta de cada uma das penas importa, portanto, considerar, no que respeita a todos os arguidos, a muito elevada ilicitude dos factos, tendo em conta que a conduta concertada entre todos se destinou ao transporte de quantidade muito significativa de cocaína com vista à sua comercialização, tendo dividido tarefas entre si, para melhor alcançarem o seu propósito.

O arguido CC combinou com o arguido EE efectuar essa transacção de cocaína, encontrando um comprador para o produto, enquanto o arguido AA encontrou o fornecedor, o arguido DD, ficando o arguido BB encarregue de assegurar o transporte de parte do produto, o que só não veio a suceder porque foi detido à saída da fábrica.

Também não podemos descurar a perseverança demonstrada pelos arguidos EE e DD, o primeiro fazendo a viagem entre Porto e Lisboa para ir buscar a droga e o segundo, acompanhando-o desde Lisboa até às instalações da fábrica de cerveja sitas na Maia, trazendo consigo uma mochila com cerca de um quilo e meio de cocaína.

Os preparativos prévios que envolveram esta transacção, de modo a que não viesse a ser descoberta, a cargo do arguido CC, que em articulação com o arguido EE, garantiu que não estariam funcionários na empresa.

A intensidade do dolo, todos agiram com dolo directo.

A motivação que presidiu à actuação de todos, a obtenção de proventos económicos, confessada pelos arguidos BB e CC.

A qualidade da substância transportada e detida, cocaína, considerada “droga dura” com elevado grau de perigosidade social e para a saúde. Trata-se de um produto com muito elevado poder aditivo, que induz, pela premência em angariar meios para a sua aquisição, à prática de outros tipos de crimes.

O seu grau de pureza, 17,2%, claramente indiciador de se tratar de produto pronto a ser vendido (facto confirmado pelos arguidos BB e CC).

A quantidade da substância estupefaciente, aquela que foi encontrada na posse do arguido BB tinha o peso líquido de 480,200 gramas e possibilitaria a obtenção de cerca de 421 doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3. Enquanto a restante, encontrada nas instalações da fábrica, tinha o peso líquido de 978.200 gramas e permitiria a obtenção do equivalente a 841 das mesmas doses, o que significa que o estupefaciente que o arguido DD tinha na sua posse e que ele e o arguido EE transportaram desde Lisboa tinha o peso líquido global de 1.458,40 gramas e permitiria a obtenção de um total 1262 doses de cocaína.

Teremos ainda que atender, ao nível das consequências das suas condutas, ao impacto que, se todo esse estupefaciente fosse entregue e, posteriormente, comercializado teria, não só em termos de consumo, mas também ao nível dos proventos económicos decorrentes dessa actividade.

Não podemos igualmente descurar as muitíssimo elevadas exigências de prevenção geral que neste tipo de crime se fazem sentir, atento o perigo que o consumo de estupefacientes representa para a saúde pública e para a vida das pessoas, mas também o alarme social e a insegurança que gera, por o consumo e a dependência de estupefacientes estarem normalmente associados à prática de outros ilícitos, assim como o sentimento de repulsa que a sua prática gera na comunidade, que anseia pela sua erradicação.

Por fim, também há que atentar às exigências de prevenção especial que são muito acentuadas (não obstante não sejam conhecidos antecedentes criminais aos arguidos BB, EE e DD e o arguido CC tenha sofrido uma condenação anterior em pena de multa, por crime diverso), atendendo ao tipo de crime em causa e à natureza da personalidade dos arguidos, que se predispuseram a correr os riscos inerentes ao transporte de cocaína, com vista à sua comercialização assim demonstrando que todos eles aderiram, de forma consciente e segura, à prática de uma conduta antijurídica.

Cumpre ainda salientar que os arguidos EE e DD não demonstraram qualquer arrependimento pela prática dos factos.

Enquanto os arguidos CC e VVVVV, não só confessaram os factos relativos à transacção que veio a ser comprovada, declarando arrependimento por os terem cometido, como contribuíram para o apuramento da participação dos arguidos EE e DD, pelo menos, em parte, dos factos.

Por fim, há que ter em consideração a situação pessoal de cada um dos arguidos constante da matéria de facto provada.

(…)

O arguido CC é casado, reside com o cônjuge e os dois descendentes, actualmente com 12 e 20 anos de idade, em ..., Vila Nova de Gaia. Trabalhou numa empresa de limpezas técnicas, onde desenvolvia procedimentos e executava tarefas de desinfecção de superfícies, na altura em contexto de combate ao surto pandémico relacionado com a Covid19, auferindo cerca de 2000€mensais.

A mulher exerce actividade como auxiliar de cabeleireiro e aufere o salário mínimo nacional, acrescido de bonificações.

Na data dos factos ocupava os seus tempos livres na companhia dos seus familiares e de amigos/conhecidos com quem partilhava interesses comuns, alguns do contexto laboral, outros que conhecia da infância e outros ainda em função de contextos sociais.

Cresceu integrado no agregado familiar de origem, cuja fonte de rendimento provinha da actividade profissional dos pais, o pai proprietário de um restaurante e a mãe funcionária administrativa.

A sua formação académica decorreu até ao 12º ano de escolaridade em contexto de trabalhador estudante. Após, abandonou os estudos e iniciou actividade laboral a tempo integral, com funções numa empresa de componentes eléctricos. Mais tarde exerceu funções como técnico de comunicações e noutras áreas, até ser admitido na empresa As..., em ....

           Encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica à ordem dos presentes autos, cumprindo as regras e obrigações a que se acha sujeito, bem como mantendo uma interacção positiva com os técnicos da Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.

Beneficia do apoio do seu agregado familiar com quem coabita e bem assim dos progenitores, sendo pessoa considerada no meio social onde habita.

Evidencia sintomatologia depressiva e encetou acompanhamento médico pela especialidade de psiquiatria no Hospital ..., onde lhe foram prescritos fármacos, conforme relatório de fls. 2397 e 2398.

Actualmente, a subsistência do agregado é assegurada pelo vencimento da mulher, bem como do apoio dos restantes membros familiares, nomeadamente, a filha de 21 anos que exerce actividade profissional numa grande superfície comercial da zona.

Tem perspectiva de enquadramento laboral numa empresa de distribuição de alimentação animal, podendo iniciar actividade laboral a qualquer momento, caso a sua situação jurídica o venha a permitir.

(…)


*

Ponderando todos estes factores, e realçando positivamente a postura dos arguidos BB e CC, que, como referimos, confessaram parte dos factos que vieram a ser comprovados, declararam-se arrependidos e contribuíram para a descoberta da verdade.

E bem assim o grau de participação de cada um dos arguidos na actuação que conjugadamente desenvolveram:

-          Os arguidos CC e EE foram os mentores do plano, combinaram realizar o negócio, o primeiro encontrou um comprador e o segundo um fornecedor, o arguido DD;

-           O arguido CC efectuou os preparativos com vista a garantir o sucesso da transacção, contactou o arguido BB para fazer o transporte do estupefaciente;

-           O arguido EE deslocou-se a Lisboa para fazer o transporte do fornecedor da cocaína;

-           O arguido DD forneceu quase um quilo e meio de cocaína, que transportou consigo desde Lisboa para ser transaccionado na Maia;

-          O arguido BB estava encarregue de transportar parte da cocaína até ao seu destinatário final.

Assim, afigura-se adequado impor a cada um dos arguidos, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos art. 21º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/1, as seguintes penas:

-          Ao arguido BB a pena de 5 (cinco) anos de prisão;

-          Ao arguido CC a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

-          Ao arguido EE a pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses;

-          Ao arguido DD a pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão.


*

Suspensão da execução da pena:

Atenta a pena imposta ao arguido BB cumpre aquilatar da susceptibilidade da sua suspensão, dado não exceder os 5 anos de prisão.

O art. 50º, n.º 1 do Código Penal determina que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos – art. 50º, nº 5.

Quanto a esta matéria pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão datado de 06/07/06, (Proc. nº 2038/06 - 5ª Secção, Costa Mortágua (relator), nos seguintes moldes:

I          - Pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhada ou não da imposição de deveres ou regras de conduta - “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”.

II         - Para a formulação de tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o Tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto, prognóstico esse reportado ao momento da decisão e não ao da prática do facto.

III        - Não assume, aqui, qualquer relevância o princípio in dúbio pro reo pois o que está em causa não é qualquer “certeza”, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda: o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade.

IV       - Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.

V         - Mas, apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização -, a suspensão da execução da pena de prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, já que estão em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico."

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão (Ac. STJ 8/2012, DR I, de 24/10/2012). Todavia, também tem entendido que, no quadro do tráfico de estupefacientes, atendendo ao bem jurídico em presença, ao modo como ele é atingido pela conduta ilícita e, essencialmente, o alarme social causado por tal ilícito, as razões de prevenção geral, em regra, desaconselham a suspensão da execução da pena de prisão (em sentido similar, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2012, Colectânea de Jurisprudência, III 194).

Todavia, há situações excepcionais onde a suspensão vem sendo admitida. Como  se  escreveu  no  Acórdão do Supremo Tribunal  de Justiça de 10/10/2018, proferido no âmbito do processo nº 5/16.0GAAMT.S1, publicado em www.dgsi.pt, “relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes, por força das prementes necessidades de prevenção, as decisões dos tribunais superiores, quer do STJ, quer das Relações, têm-se mostrado particularmente exigentes no que concerne à questão da eventual suspensão da execução da pena de prisão.

É já longo, neste aspecto, o caminho percorrido por este Supremo Tribunal. Refere-se no Ac. STJ de 5/11/2008, Proc.08P3172, Rel. Maia Costa, que «Importa, para começar, afirmar com clareza que não é de afastar “liminarmente” a suspensão da execução da pena de prisão nos crimes de tráfico de estupefacientes, embora seja incontestável que se trata de uma infracção em que os interesses da prevenção geral se fazem especialmente sentir.

Por isso, a par do juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente, cumpre indagar se a suspensão satisfaz “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art. 50º, nº 1 do CP), ou seja, a finalidade da prevenção geral.

No caso do transporte intercontinental de drogas por meio de “correios”, comportamento assaz comum e veículo essencial de difusão dos estupefacientes, da sua circulação entre os países produtores e os consumidores, é evidente que os interesses da prevenção geral são fortíssimos.

Por isso, só havendo um quadro circunstancial particularmente favorável ao agente, fundamentando uma prognose especialmente consistente, se justificará a suspensão da pena, pois só então é exigível impor a esses interesses uma compressão proporcional à salvaguarda de outras finalidades das penas, como a prevenção especial, na vertente ressocializadora.».

«I- O STJ, na consciencialização da gravidade das consequências tanto individuais, como familiares e colectivas, a que o tráfico de estupefacientes conduz, tem afirmado que a imposição de pena suspensa na sua execução é, salvo em condições especiais, manifestamente desaconselhável, por não se mostrar conforme à finalidade das penas expressas no art. 40.º do CP.» (Ac. STJ 5/7/2012, Proc. 171/10.8JALRA-A.C1, Rel. Armindo Monteiro).

Deve ser-se exigente nos crimes de tráfico de estupefacientes, onde o bem jurídico protegido é múltiplo e relevantes o alarme social e as consequências, normalmente, devastadoras. E relativamente a este tipo de crime, por força das prementes necessidades de prevenção, as decisões dos tribunais superiores, quer do STJ, quer das Relações, têm-se mostrado particularmente exigentes no que concerne à questão da eventual suspensão da execução da pena de prisão.

Todavia, devem evitar-se posições apriorísticas, no sentido do afastamento suspensão da execução da pena de prisão. Nem sempre, nem nunca. Fundamental, como regra, é a cuidadosa análise do caso concreto.

E este Supremo Tribunal, sempre que a especificidade do caso concreto o reclama, tem aplicado a suspensão da execução da pena de prisão ao crime de tráfico de estupefacientes (art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93). São disso exemplo os Acs. do STJ de 8/5/2008, Proc.08P1134, Rel. António Colaço, de 13/8/2008, CJACSTJ XVI, T. I, pág. 264, de 18/6/2015, Proc. 270/09.9GBVVD.S1, Rel. Souto de Moura, e, muito recentemente, o Ac. de 30/11/2017, Proc. 3466/11.0TALRA.C1.S3, Rel. Lopes da Mota, onde o ora Relator é adjunto e o Ac. de 12/7/2018, Proc. 116/15.9JACBR.C1.S1, Rel. Raul Borges.

Atentos os vectores essenciais do pentagrama que norteia o instituto da suspensão da execução da pena de prisão (n.º 1 do art. 50.º CP), quais sejam a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta antes e após o crime, as circunstâncias deste e o prognóstico favorável (realização, de forma adequada e suficiente, das finalidades da punição com a ameaça da prisão), há que escrutinar a matéria de facto e a sua fundamentação jurídica em ordem a apurar se a pena aplicada à arguida deve, ou não, ser suspensa na sua execução.

Vejamos, então, se será de suspender a execução da pena de prisão.

Da análise da matéria de facto, ressalta que a actuação do arguido BB se circunscreveu a uma única actuação, não obstante visasse o transporte de 490,200 gramas de cocaína. Ressaltam igualmente as elevadas exigências de prevenção geral e o grau de culpa do arguido, agiu com dolo directo.

Todavia, além de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais (na data dos factos contava 36 anos de idade), parece-nos, no caso, ser de valorar positivamente a seu favor a postura de auto-responsabilização perante o tribunal e o seu grupo de pares, que assumiu em audiência, o que fez antes de produzida qualquer prova. Esclareceu, de modo livre e espontâneo, os factos por cuja prática assumia a responsabilidade, e que, efectivamente se vieram a comprovar, declarando-se arrependido por assim ter procedido. Além de as suas declarações terem contribuído, de forma decisiva, para a descoberta da verdade, na medida em que identificou o arguido AA como sendo a pessoa que lhe entregou o estupefaciente.

Por outro lado, o seu percurso de vida, espelhado nos factos provados, revela integração laboral regular, integração familiar, estrutura familiar de apoio composta pela mulher e pelos familiares dela, e modo de vida centrado na convivência com estes familiares.

Não olvidando as prementes exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, atenta a natureza do crime, parece-nos que não serão de molde a obstar que a pena imposta ao arguido BB seja suspensa na sua execução, pois o seu percurso de vida aponta para estarmos perante um episódio isolado, não se apurou que fosse o mentor do plano que todos executaram ou que tivesse sequer um papel preponderante no desenrolar dos eventos, o que aliado à sua postura em audiência permite fazer um juízo de prognose favorável no sentido de que a suspensão da execução da pena será suficiente para o manter afastado da criminalidade.

No que respeita ao período de suspensão da execução da pena, parece-nos inexistirem razões para que se imponha período mais curto do que a medida da pena, afigurando-se que esse período probatório irá, de certo, assegurar o necessário acompanhamento a fim de evitar que situações como a presente se repitam. Por isso se decide suspender a execução da pena pelo período de cinco anos, ao abrigo do disposto pelo art. 50º, nº 5 do Código Penal.

O art. 53º do Código Penal estabelece que o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade – cf. nº 1. O regime de prova visa facilitar a reintegração do condenado na sociedade, assentando numa ideia de assistência e vigilância, especialmente necessária após a prática do crime e da manifestação da incapacidade de vida regular e será assente, nos termos do disposto pelos art. 53º, n.º 1 e 2 e 54º do Código Penal, num plano de reinserção  social  a definir pelos serviços de reinserção  social  (mediante homologação do tribunal), a quem cabe também apoiar e vigiar a sua execução, e a cumprir pelo condenado.

No caso, tendo em consideração as fragilidades que levaram o arguido a praticar os factos, a necessidade de interiorizar a obrigação de manutenção de uma conduta em conformidade ao direito, entendemos que virá a beneficiar do acompanhamento e supervisão dos serviços de reinserção social, motivo pelo qual se decide subordinar a suspensão da execução da pena ao cumprimento de regime de prova.

Assim, e pelos fundamentos expostos, decide-se suspender na sua execução a pena de cinco anos de prisão imposta ao arguido BB pelo período de 5 (cinco) anos, acompanhada de regime de prova.

(…)


*

            Perda alargada:

            O Ministério Público requereu ainda, ao abrigo do disposto pelo art. 7º, nº 1 e 2 da Lei 5/02, de 11/01, que fossem condenados a pagar ao Estado os arguidos:

-           JJ, a quantia de €544.541,48;

-           A... Unipessoal Lda., a quantia de €802.143,15.

-          B... Lda., a quantia de €273.067,57, valores correspondentes à vantagem por cada um deles auferida em virtude da de actividade criminosa perpetrada.

            A Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro, que estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, consagrou, no art. 1º, um regime especial de perda de bens a favor do Estado, relativamente a vários crimes, entre os quais, o de (alínea a) tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21º a 23º e 28º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

           Assim, conforme estatui o nº 1 do art. 7º do mesmo diploma, em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

           Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens: (a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; (b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; (c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino – cf. nº 2 do art. 7º.

Nos termos do nº3 do mesmo art. 7º, consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111º do Código Penal.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/09/2014, proc. nº 1653/12.2JAPRT.P1I, publicado em www.dgsi.pt, “são pressupostos da aplicação da perda alargada:

-          A condenação por um dos crimes do catálogo (art. 1º, al. a) da Lei 5/02);

-           A existência de um património que esteja na titularidade ou mero domínio e beneficio do condenado, património esse em desacordo com aquele que seria possível obter face aos seus rendimentos lícitos;

-          A demonstração de que o património do condenado é desproporcional em relação aos seus rendimentos lícitos.

           A noção ampla de património ali prevista abrange tudo o que estiver ao dispor do condenado ou conjuntamente ao seu dispor e de terceiros em especial com quem coabite ou viva em economia comum ainda que na titularidade destas, e abrange as vantagens que auferiu no período em que vigora a presunção independentemente do destino que tenham tido”.

            A presunção estabelecida no nº 2 do artigo 7º é ilidida se se provar a origem lícita dos bens nos termos do artigo 9º, nº 1. Enquanto a presunção estabelecida no nº 1 do artigo 7º é ilidida (cf. art. 9º, nº 3) se se provar que os bens: (a) Resultam de rendimentos de actividade lícita; (b) Estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido; (c) Foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido na alínea anterior.

           Em suma, aprecia-se a congruência, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, vindo a ser declarado perdido a favor do Estado o valor do património do arguido que seja remanescente em relação a esses rendimentos.


*

           No caso em apreço verificamos, desde logo, que, em relação às sociedades A... e B... não se provou o cometimento de qualquer um dos crimes enunciados no nº 1 do art. 1º, designadamente, o indicado na sua alínea i), o crime de branqueamento de capitais cuja prática lhes vinha imputada, o que significa que, quanto a elas, falece um dos pressupostos para que a perda possa operar. Improcedendo, nessa medida, o peticionado pelo Ministério Público.

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           No que respeita ao arguido EE verificamos que foi condenado pela prática de um dos crimes catalogados no nº 1 do art. 7º da Lei 5/02, o crime de tráfico de estupefacientes. Para além disso, comprovou-se a existência de um património na sua titularidade, em desacordo com aquele que seria possível obter face aos seus rendimentos lícitos.

            No caso, demonstrou-se que AA foi constituído arguido no dia 02 de Setembro de 2021, conforme documento de fls. 254, e que fixou residência em Portugal em Janeiro de 2021. Por esse motivo, o período considerado para efeitos de investigação patrimonial não abrangeu os cinco anos anteriores à constituição como arguido, mas antes o período compreendido entre 01.01.20 e 31.12.21 (data considerada na investigação patrimonial e financeira, por ser a do termo do ano fiscal).

           Ora, nesse período, conforme resulta da matéria de facto provada, o arguido não declarou rendimentos em sede de IRS à Autoridade Tributária, nem possuía património móvel ou imóvel.

Todavia, recebeu os seguintes rendimentos, que lhe foram pagos por B..., Lda. :

Sendo ainda titular das seguintes participações sociais:

Também se comprovou que o arguido EE é titular, ou está autorizado a movimentar e actua como beneficiário efectivo das contas bancárias enumeradas no ponto 62). Porém, segundo o que consta do relatório de investigação patrimonial efectuado pelo GRA, não foram incluídas no património do arguido a conta do seu cônjuge FF (embora o Ministério Público a mencione na acusação) – cf. fls. 108 e 108 verso, in fine, do apenso GRA, onde se refere não se registaram movimentos de relevo na conta bancária analisada, pelo que a mesma não será incluída no património do arguido para efeitos de cálculo de vantagem da actividade criminosa – nem a conta de que é titular o seu filho GG – cf. fls. 109.

Entre as demais contas, provou-se que o arguido é titular da conta de depósito à ordem nº  ..., domiciliada no Banco 1..., SA, aberta em 14/09/2020, a qual apresentou, os seguintes movimentos:


Portanto, nessa conta titulada pelo arguido foram efectuados depósitos em numerário e transferências bancárias, que constituem o rendimento financeiro que auferiu nos anos de 2020 e 2021, e que se cifra, respectivamente, em €33 145,00 e

€138 910,80, perfazendo o valor global de €172.055,80.

Já os activos adquiridos, conforme consta também da matéria de facto provada, ascenderam ao montante global de €400.000,00, correspondente à soma do valor das quotas detidas na B... (no valor de €240.000,00 e de €160.000,00).

Assim, o valor total do seu património, no mesmo período temporal ascendeu a €572 055,80, conforme demonstrado no seguinte quadro:

No mesmo período, considerando os rendimentos declarados à Autoridade Tributária pela B... como tendo sido pagos ao arguido AA, acima referidos, e a circunstância de, relativamente ao seu cônjuge não terem sido apurados rendimentos, apurou-se que o rendimento disponível do arguido EE foi o seguinte:

Deste modo, há que concluir que o arguido obteve da actividade por si desenvolvida e acima descrita, a quantia global de €544 541,48 (quinhentos e quarenta e quatro mil quinhentos e quarenta e um euros e quarenta e oito cêntimos), obtida pela diferença entre o valor dos incrementos patrimoniais, que ascenderam, no ano de 2020, a €433,145,00 e, no ano de 2021, a €138 910,80 e o valor do rendimento líquido disponível no valor de €3 481,87, em 2020, e de €24 032,45, em 2021, tal como ilustra o seguinte quadro:

Em face do exposto, e ao abrigo do disposto pelo art. 7º, nº 1 e 2 da Lei 5/02, de 11/01, cumpre proceder à declaração de perda a favor do Estado do valor do património incongruente com o rendimento lícito do arguido JJ, e, consequentemente, condena-lo a pagar ao Estado a quantia de €544 541,48 (quinhentos e quarenta e quatro mil quinhentos e quarenta e um euros e quarenta e oito cêntimos).


*

            Perda de vantagens:

O Ministério Público requer ainda que seja declarada, ao abrigo do disposto pelo art. 110º do Código Penal, perdida a favor do Estado a quantia de €3.254.335,00 (três milhões, duzentos e cinquenta e quatro mil trezentos e trinta e cinco euros) por se ter apurado tratar-se de valor resultante da prática dos crimes imputados aos arguidos JJ e A... Lda.

Esta declaração de perda, ao contrário da precedente, não se reporta ao crime de tráfico de estupefacientes, mas sim ao crime de branqueamento e, como tal, não está abrangida pelo regime especial dos art. 35º a 39º do DL 15/93 de 22/1, mas sim pelo art. 110º do Código Penal.

Segundo dispõe este preceito, no seu nº 1, são declarados perdidos a favor do Estado:

a)        Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b)        As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

Abrangendo as vantagens, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

Sendo que, segundo o nº 3, a perda dos produtos e das vantagens tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objecto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado. E, se os produtos ou vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A (cf. nº 4 do art. 110º).

A perda tem lugar, nos termos no nº 5, ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

Estas disposições, como emerge do disposto pelo nº 6 do art. 110º, não prejudicam os direitos do ofendido.

Com este regime de perda das vantagens do crime, visa-se materializar na prática a ideia de que "o crime não compensa", reafirmando-se o propósito de prevenção da criminalidade mediante uma actuação que, ao mesmo tempo que sanciona o concreto agente do facto ilícito típico (assim satisfazendo escopos de prevenção especial), combata a estabilização de situações contrárias à ordem jurídica, transmitindo a toda a comunidade uma clara mensagem sobre a validade e eficácia do sistema (cumprindo deste modo importantes desígnios de prevenção geral). Por isso, como diz o professor Jorge de Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora [2013], pg. 638), a perda de produtos e vantagens “… deve ser considerada não uma pena acessória, mas uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa".

No caso, e independentemente da apreciação das diversas questões suscitadas pela norma em análise, o certo é que não resultou demonstrado que o arguido EE ou a sociedade A..., por ele representada, tivessem praticado factos ilícitos típicos constitutivos do crime de branqueamento ou que tivessem obtido da prática desse crime vantagem patrimonial.

Assim, e conforme resulta das disposições legais citadas, não resta senão concluir não estarem reunidos os pressupostos para que possa ser deferida a peticionada declaração de perda que, como tal, vai indeferida.


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Arresto:

Por decisão proferida a 9/8/2022, a fls. 1989 e ss, foi decretado, ao abrigo do disposto pelo 10º, nº 1 e 3 da Lei 5/02 de 11/1, o arresto preventivo de bens como meio de garantir uma eventual decisão de confisco de produtos e vantagens da actividade criminosa, decretada ao abrigo da mesma lei e peticionada pelo Ministério Público na acusação.

Foram, assim, preventivamente arrestados os seguintes bens e valores:

A.         Do arguido AA:

1.        A conta de depósito à ordem n.º  ..., por ele titulada junto do Banco 1..., SA;

2.        A conta de depósito à ordem n.º  ..., co- titulada por ele e pela sua mulher, FF, junto do Banco 1..., SA;

3.        A conta de depósito à ordem n.º  ..., junto do Banco 1..., SA, titulada por GG, filho menor do arguido AA e em relação à qual dispõe de poderes de movimentação e representação;

4.        A quota, no valor nominal de €10.000,00, por ele titulada na sociedade A... Unipessoal, Lda.;

5.        A quota, no valor nominal de €160.000,00, por ele titulada na sociedade B..., Lda.;

6.        A quota, no valor nominal de €240.000,00, por ele titulada na sociedade B..., Lda.;


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B.         De A... Unipessoal, Lda.:

1.        A Conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA;

2.        Os valores cativos na conta de depósito à ordem n.º  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA

3.        A conta de depósito à ordem n.º  ..., por ela titulada junto da Banco 2..., SA.;


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C.        De B...,

1.         A conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 1..., SA;

2.         A conta de depósito à ordem nº  ..., por ela titulada junto do Banco 3..., S.A.;

3.         A conta de depósito à ordem nº  ... por ela titulada junto da Banco 2..., SA.


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Segundo dispõe o art. 10º da Lei 5/02 de 11/1 :

1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.

2 - A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.

3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.

4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.

Nos termos do art. 11º, nº 3 do mesmo diploma legal, o arresto ou a caução económica extinguem-se com a decisão final absolutória.

Enquanto, segundo estatui o artigo 12º, o valor que deve ser perdido a favor do Estado, nos termos do art. 7º, é declarado pelo tribunal na sentença condenatória (cf. nº 1).

Mas, se esse valor for inferior ao dos bens arrestados ou à caução prestada, são um ou outro reduzidos até esse montante, tal como dispõe o nº 2 do mesmo preceito.

Não tendo sido prestada caução económica ou esta não for suficiente, o arguido pode pagar voluntariamente o montante referido, ou o valor remanescente, nos 10 dias subsequentes ao trânsito em julgado da sentença, extinguindo-se o arresto com esse pagamento (cf. nº 3).

Não se verificando o pagamento, são perdidos a favor do Estado os bens arrestados (nº 4).


*

Em suma, o arresto mantem-se até que seja proferida decisão final absolutória (art. 11º, nº 3 da Lei 5/2002), ou até que seja proferida decisão de perda e o arguido pague voluntariamente o valor da incongruência, podendo manter-se para além da decisão final condenatória nos termos do art. 12º, nº 4 da Lei 5/2002. E deve ser reduzido quando o valor perdido a favor do Estado for inferior ao dos bens arrestados.

Assim, e tendo em conta que, relativamente às sociedades arguidas A... Unipessoal, Lda. e B..., Lda., foi proferida decisão absolutória, determina-se o levantamento do arresto das contas bancárias e valores mencionados nos pontos B. e C.

Já no que respeita ao arguido JJ, tendo em conta que foi condenado a pagar ao Estado a quantia de €544 541,48 (quinhentos e quarenta e quatro mil quinhentos e quarenta e um euros e quarenta e oito cêntimos) e que as participações sociais arrestadas têm o valor global de €410.000, e que, segundo informação prestada a 11/10/2022 (ref. 142254) pelo Gabinete de Recuperação de Activos, as contas de depósito à ordem nº  ..., por ele titulada, e nº  ..., co-titulada por ele e pela sua mulher, FF, apresentam saldo devedor, enquanto a conta nº  ..., titulada pelo filho por GG, apresenta um saldo de €8,32, não resta senão concluir inexistir fundamento para o levantamento ou redução do arresto decretado. (…)  »

           Apreciemos então as questões suscitadas por cada um dos recursos, e pela supra aludida ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.

*

1.        De saber se o acórdão recorrido padece de nulidade por haver sido utilizada prova nula (por referência à busca levada a cabo no dia 02/09/2021 nas instalações da sociedade “B..., Lda.”).

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

A primeira questão de que cumpre conhecer – até porque em resultado da sua (eventual) procedência, poderíamos estar perante uma situação em que toda a decisão recorrida se mostrasse processualmente invalidada, perdendo assim utilidade a apreciação das demais questões recursórias –, é aquela suscitada pelo arguido DD, quando alega dever ter–se por verificada a nulidade do acórdão recorrido em virtude de no mesmo haver sido objecto de valoração prova que deve ter–se por proibida.

            Faz em especial o recorrente incidir a sua invectiva sobre a diligência de busca, e subsequente apreensão de bens e valores, levada a cabo nas instalações da fábrica “B..., Lda.” (sitas Rua ..., ..., na Zona Industrial ...) no dia 2 de Setembro de 2021 (dia em que, aliás, vieram a ser abordados e detidos todos os arguidos nos autos).

Assim, alega, no caso concreto inexiste despacho a autorizar ou a ordenar a busca em causa, assim como inexistiu consentimento (quer do titular, quer de terceiros) para a mesma ; igualmente, prossegue, não existe fundamento legal para a aludida busca, não sendo aplicável qualquer das situações previstas no nº 5 do art. 174º do Cód. de Processo Penal ; mais alega, enfim, que a busca em causa não foi validada.

Em tais termos, conclui, deverá ser declarada a nulidade da busca, o que leva a que também a apreensão efectivada na decorrência da mesma esteja ferida de similar vício – tudo por violação dos arts. 174º e 119º/b) do Cód. de Processo Penal, 18º/1 e 32º/8 e 34º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos.

Desde logo cumpre referir que, pese embora não seja em absoluto certeira a referenciação normativa dos fundamentos do vício processual aqui invocado, é materialmente certo que a sentença que proceda à (indevida) valoração como meios de prova de elementos processuais insusceptíveis de tal valoração, deverá considerar–se afectada de nulidade.

           Na verdade – e tendo por imediata referência o teor da alegação do ora recorrente no presente caso concreto –, o art. 125º do Cód. de Processo Penal consagra o princípio da legalidade da prova, estipulando que em processo penal «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei». Em imediato complemento, resulta do disposto no nº1 do art. 126º do Cód. de Processo Penal, serem por regra nulas, não podendo ser utilizadas, «as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas» (estatuindo o nº2 do mesmo artigo casos–padrão de situações que configurarão este último circunstancialismo) ; e mais adita o nº3 do referido artigo, que, ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

Ora, assentando em prova proibida e nula, necessariamente deverá considerar–se a sentença também afectada de nulidade, que, ainda que não expressamente prevista nos arts. 119º e 120º do Cód. de Processo Penal, se impõe seja reconhecida e declarada, mesmo nesta fase processual – tanto assim que desde logo o nº3 do art. 118º do Cód. de Processo Penal especificamente adverte que «as disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova».

Na verdade, a nulidade processual assim em causa tem como efeito o de tornar inválido o acto em que se verifique, assim como aqueles que dele dependerem e que possam ser afectados pela mesma, sendo a abrangência processual dos efeitos de tal nulidade determinada na decisão que a reconheça e declare – tudo nos termos prevenidos no art. 122º/1/2 do Cód. de Processo Penal.

Donde, estando em causa a valoração de um meio de prova proibido que haja levado o tribunal recorrido à formação de determinado juízo de convicção sobre a globalidade da prova plasmado na sentença, e sendo o mesmo constatado em sede de recurso da mesma sentença, o único caminho legalmente admissível consiste precisamente na expurgação do dito meio de prova, e à reformulação, pelo tribunal recorrido, do raciocínio lógico-dedutivo à luz tão apenas da prova permitida.

Efectivamente, em situações em que está em causa um meio de prova proibido que, conjuntamente com outros permitidos, fundamenta a convicção do tribunal a quo, só este último, por ter proferido a decisão sob recurso, está em condições de voltar a decidir com base nos meios de prova permitidos e legais, refazendo a sua convicção e expô-la para eventual nova reapreciação pelo tribunal ad quem.

Neste sentido, e além dos citados Acórdão do S.T.J. de 06/10/2016 (proc. 535/13.5JACBR.C1.S1) e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/02/2022 (proc. 161/16.7GAVLG.P2), referenciam–se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2013 (proc.  42/11.0EACBR.C1)[[3]], e da Relação de Évora de 11/10/2011 (proc. 849/09.7TBFAR.E1)[[4]] ; também neste sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (ob. citada, nota 11. ao art. 126º do Cód. de Processo Penal), referenciando que «a procedência da nulidade tem a consequência da repetição da sentença pelo tribunal recorrido, sem a ponderação da prova proibida».

E é ainda quanto substancialmente decorre das palavras do Professor Costa Andrade (em “Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, págs. 65/66), no extracto a seguir transcrito, sendo não obstante que o ilustre professor não deixa de ressalvar a necessidade de uma ponderação casuística da relevância dos pressupostos da invalidade em causa, designadamente em função do seu efectivo impacto na situação jurídico–penal do arguido : «Resumidamente, não estarão de todo em todo, excluídas as constelações típicas em que a conexão normativa entre o vício e a sentença seja tão óbvia como decisiva. É o que sucederá nos casos em que a valoração proibida do meio de prova constitua o único suporte probatório sobre que assenta a sentença condenatória. Hipótese em que tanto a pertinência do recurso como o sentido da sua decisão – sc. a absolvição do arguido – se afiguram inescapáveis.

As coisas serão igualmente lineares nas constelações que se situam no extremo oposto, em que a irrelevância causal da valoração da prova proibida aparece claramente exposta. Então a invocação da proibição de prova, a não determinar a rejeição do recurso (art. 420.º do CPP) não será em qualquer caso e só por si bastante para pôr em causa a decisão recorrida.

O mesmo deverá ser o tratamento dos casos em que a nulidade devida à proibição de prova haja de considerar-se sanada por exclusão do nexo normativo entre o vício e a sentença (…) As expressões concretas, segregadas pelos caprichos da vida, e que constituem a fenomenologia das proibições de prova oferecida ao aplicador do direito, raramente se ajustarão aos modelos canónicos referenciados, extremados quanto à relevância ou irrelevância causal do erro sobre a sentença.

O normal será que a prova proibida concorra com uma bateria de meios admissíveis, numa teia dificilmente extrincável de influência e codeterminação recíprocas. Muitas vezes nada, por isso, mais aleatório e inseguro do que a tentativa de identificar e isolar o peso que o meio de prova terá tido na convicção do julgador… Nestas hipóteses só pela via da revogação da decisão se poderão assegurar a reafirmação contrafáctica das normas violadas e a actualização do respectivo fim de protecção. O que terá de fazer-se prevenindo-se o perigo de a convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido, entretanto lograda – e para a qual contribuiu, a seu modo, o meio proibido de prova – ter já operado uma reinterpretação cognitiva do significado e da valência probatória dos meios sobrantes e legítimos de prova.».

Assim enquadrada processualmente a questão suscitada pelo recorrente, prossigamos.

           No caso concreto, atalhando desde logo caminho na sua apreciação, considera–se que não assiste razão ao ora recorrente.

            E assim sucede pelos exactos termos e fundamentos que, a propósito de similar questão suscitada em sede de Instrução pelos arguidos, sustentam a improcedência do requerido então decretada em sede de decisão instrutória de pronúncia – ainda que tal apreciação não consubstancie nos autos caso julgado formal sobre tal questão, por via da irrecorribilidade daquele despacho estipulada no nº 1 do art. 310º do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento», e da imediata advertência do nº 2 do mesmo artigo, que especificamente salvaguarda que «O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas».

           Na verdade, e exactamente ao contrário do alegado pelo arguido/recorrente DD, a realização da diligência de busca em causa encontra a sua validade processual legitimada nos termos das disposições conjugadas do art. 174º/5/c)/7 do Cód. de Processo Penal.

           Assim, se é certo que, nos termos do nº3 do art. 174º do Cód. de Processo Penal, se estabelece a regra geral segundo a qual «As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência», logo o nº5 do mesmo artigo ressalva um conjunto de circunstâncias em cujo contexto, a verificarem–se in tempo concreto, é possível a um órgão de polícia criminal levar de imediato a cabo a diligência probatória em causa sem a observância daquela acima aludida regra.

São, em concreto, os casos :

«a)      De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b)         Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c)        Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão».

           Sendo ademais certo que, de entre estes casos excepcionais, apenas quando esteja em causa aquele previsto naquela alínea a) se impõe que «a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação», como liminarmente decorre do nº 7, sempre do mesmo artigo.

            Pois bem – e como, aliás, o acórdão recorrido dá boa nota em sede de motivação –, no presente caso fácil é constatar, compulsados os autos, que a diligência de busca àquelas instalações da fábrica da arguida “B..., Lda.” ocorrida no dia 02/09/2021 – e bem assim, já agora, todas as revistas então efectuadas sobre as pessoas e veículos dos arguidos na mesma ocasião – teve lugar no âmbito de uma diligência policial de vigilância e controle de movimentos – acompanhadas de seguimento em tempo real de intercepções telefónicas que vinham decorrendo – que estavam sendo levadas a cabo pela Polícia Judiciária no mesmo dia, e incidentes sobre os arguidos, tudo por via das suspeitas que nos autos se verificavam de que os mesmos estivessem levando a cabo uma actividade de tráfico de estupefacientes, crime este que é punível com pena de prisão – suspeitas e respectivos indícios carreados para o processo até à data e que sustentavam a investigação que vinha então sendo levada a cabo há meses.

            Assim, o teor do auto de fls. 218/220 dos autos descreve de modo claro o modo como se desenrolaram tais diligencias que o OPC levou a cabo nesse dia, percebendo-se igualmente de forma cristalina o porquê da sua actuação e o modo como tudo se desenrolou e foi levado a cabo.

Ali se descreve o seguimento, desde Lisboa, ao arguido AA e ao individuo que o acompanhava, e que se apurou entretanto tratar-se do arguido DD, mais resultando que, após todos os arguidos haverem entrado nas instalações da aludida fábrica, pelas 17h10 os arguidos CC e BB são vistos abandoná–las, sendo então que o OPC decide abordá–los, tendo sido detectado na posse do arguido BB um produto que se apurou ser cocaína, o que confirmou todas as suspeitas existentes.

Ou seja, as suspeitas existentes que desencadearam por parte do OPC aquelas diligências de vigilância e de intercepções telefónicas, mostram-se plenamente justificadas – sendo isso que levou à imediata realização das buscas e revistas, e bem assim às apreensões efectuadas nessa sequência.

A busca às instalações da fábrica da sociedade arguida, a que se segue nomeadamente a apreensão, no interior dos respectivos escritórios, da mochila contendo também ela cocaína – cfr. se mostra autuado a fl. 226 –, ocorre, clara e inequivocamente, em contexto de uma situação de flagrante delito relativa à prática de actos consubstanciadores de um crime punível com pena de prisão, e que estava sendo verificado pelo OPC.

Recorda–se que, de acordo com o disposto no nº 1 do art. 256º do Cód. de Processo Penal, «É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer», aditando o nº 2 que se reputa também de flagrante delito «o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar» ; acresce ainda determinar o nº 3 do citado artigo que «Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar».

Ou seja, tudo quanto no caso concreto, e naquela concreta ocasião, se estava verificando aos olhos (e ouvidos) do OPC competente.

A busca em causa mostra–se, pois, e como já se anunciou, salvaguardada na sua validade – mesmo sem necessidade de ulterior validação jurisdicional formal –, pelo disposto no art. 174º/5/c)/7

           E bem assim válida é a apreensão ocorrida na sequência da mesma, pois que, nos termos do nº 4 do art. 178º do Cód. de Processo Penal, «Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º» – do qual decorre precisamente que «Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova … nomeadamente … Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adotar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objetos apreendidos.».

           Sendo que, adite–se, a apreensão em causa foi objecto de oportuna validação pela autoridade judiciária competente – o Ministério Público, no caso – nos termos e dentro do prazo (de 72 horas) previstos no nº 6 do mesmo art. 178º do Cód. de Processo Penal, como facilmente se constata pelo teor do despacho de fl. 288, proferido logo no dia 03/09/2021.

           

Em conclusão, é em absoluto processualmente válida a busca levada a cabo às instalações da arguida “B..., Lda.” no dia 02/09/2021, e bem assim as apreensões levadas a cabo no âmbito e na sequência da mesma, sendo, por isso, também válidos como meio de prova os bens e objectos então recolhidos pelo OPC.

Estamos, em suma, perante prova perfeitamente válida e permitida, não se verificando, assim, a nulidade processual do acórdão proferido nos autos – o qual, muito bem, a ponderou e valorou.

Improcede, assim, este primeiro segmento do recurso do arguido DD.

2.        De saber se o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia.

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]

           A primeira questão suscitada, entretanto, pelo recorrente/arguido CC, tem a ver igualmente com a invocação de nulidade do acórdão condenatório proferido nos autos.

            Assim, alega este recorrente, que o tribunal a quo deixou de ponderar documentos juntos pelo arguido em sede de audiência de julgamento, atinentes à sua inserção laboral, pelo que, pese embora considere como assente que o arguido ao longo da sua vida manteve hábitos de trabalho, não concretiza que tal sucedeu durante 19 anos de forma contínua – o que assume particular relevo no que tange à determinação da medida e espécie de pena aplicar, quando conjugada com a materialidade dada como assente, de que o arguido se restituído à liberdade tem assegurada a sua contratação como distribuidor de produtos de alimentação animal.

Propugna consubstanciar tal circunstância uma situação de omissão de pronúncia, violando as normas conjugadas dos arts. 374º/1/d)/2 e 379º/1/a)/c) do Cód. de Processo Penal, o que «obriga ao reenvio do processo para a realização de novo julgamento, abrangendo esta questão em concreto, a efectuar pelo Tribunal de categoria e composição idênticas ás do Tribunal recorrido».

           

           Apreciando se dirá ser manifesta a falta de razão do recorrente.

Vejamos.

O artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Sublinhe-se que a necessidade de fundamentar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos consagrados no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [[5]], na medida em que se traduz num elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.

Aquele princípio constitucional encontra consagração nos termos do disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal, que prevê em especial os motivos pelos quais a sentença penal pode ser afectada de nulidade.

Ora – e aqui chegamos à distinção que se mostra pouco clara na alegação do recorrente –, e por um lado, o nº1, alínea a) do citado art, 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º/2/3/b), do mesmo código. Na parte que aqui importa considerar, o art. 374º do Cód. de Processo Penal, versando sobre os requisitos da sentença, estipula no seu referido nº2 o chamado dever de fundamentação da sentença, determinando que em tal sede «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

Por outro lado, a alínea c) do nº1 do mesmo art. 379º do Cód. de Processo Penal, trata da chamada omissão de pronúncia, que existirá, tornando igualmente nula a sentença, quando nesta «O tribunal deixe de pronunciar–se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Sumariamente se dirá que o dever de fundamentação vem plasmado desde logo no art. 97º/4 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão», encontrando, como acaba de se enunciar, concretização reforçada no que tange às sentenças penais nos termos do disposto nos aludidos arts. 374º/2 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.

É na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador, do mesmo passo se viabilizando a possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.

Por seu turno, a omissão de pronúncia verifica–se, nos termos do art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal, quanto o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – havendo que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras (cfr. também art. 660º/2 do Cód. de Processo Civil).

A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012 (proc. 131/11.1YFLSB)[[6]], «A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão. ».

           Assim, a omissão de pronúncia, porque referida a questão ou questões submetidas ao conhecimento do tribunal, deve aferir–se na consideração das questões que constituíam o objecto processual que se apresentava à actividade de julgamento e decisão do tribunal, e não dos termos concretos em que a decisão sobre a matéria de facto foi adoptada, tema a apreciar em plano diverso e posterior.

Revertendo ao caso presente, desde logo se dirá que a própria fórmula como se mostra configurado, pelo recorrente, o vício aqui invocado, permite antever a falta de razão da respectiva invocação.

Na verdade, a circunstância de o tribunal colectivo, em sede de acórdão, não fazer referência ao concretíssimo facto neste segmento do recurso aludido – recorde–se, o de que os hábitos de trabalho do recorrente foram mantidos «durante 19 anos de forma contínua» – e que vem suscitada como alicerce da invalidade em questão, não configura processualmente a sua verificação.

Desde logo porque o acórdão recorrido é claro no elenco da matéria de facto considerada, e patenteia de forma evidente haver considerado – como o recorrente, aliás, bem atesta – como assente muito em especial o seguinte :

«228.   O arguido CC manteve, ao longo da sua vida, ocupação laboral regular.

229     Quando restituído à liberdade tem possibilidade de vir a ser contratado como distribuidor de produtos de alimentação animal, conforme declaração de fls. 2396.

(…)

267.     Tem perspectiva de enquadramento laboral numa empresa de distribuição de alimentação animal, podendo iniciar actividade laboral a qualquer momento, caso a sua situação jurídica o venha a permitir.»

Salvo o devido respeito, não se descortina, de todo, que a alegação do recorrente integre uma qualquer omissão minimamente relevante relativamente à matéria de facto provada nos autos – a qual, julga–se, preenche e salvaguarda integralmente a ponderação do tribunal sobre o percurso laboral do arguido e, mais importante, inclusive sobre as suas perspectivas de enquadramento profissional futuro.

Donde, e para que dúvidas se não suscitem, a alegada omissão suscitada pelo recorrente não se verifica, nem acarreta qualquer vício processual de nulidade, nem na perspectiva da falta de fundamentação, nos termos da invocada alínea a) do artigo 379º/1 do Cód. de Processo Penal, nem sequer na vertente da omissão de pronúncia plasmada na alínea c) da mesma disposição.

Nesta última vertente em especial, e como acima se disse, em bom rigor o vício da omissão de pronúncia só é susceptível de se verificar por referência à análise de questões sobre as quais o tribunal deveria pronunciar–se.

Ora, no acórdão recorrido não se constata a omissão de tratamento de questão sobre que devesse pronunciar–se o tribunal a quo – sendo que a questão propriamente aqui em causa sempre seria, como alude também o recorrente, a da determinação dos termos da punição do arguido/recorrente, e essa é questão que é objecto da imposta análise e pronúncia em sede de acórdão recorrido – ali vindo, aliás, a ponderar precisamente aquele conjunto de factos que a montante vemos ter dado por assentes nesta parte.

Em suma, não se verifica a nulidade processual invocada pelo arguido/recorrente CC, improcedendo assim esta primeira parte do seu recurso.

3.        De saber se se verifica no acórdão recorrido algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

           Vem o arguido/recorrente DD fazer incidir a sua impugnação recursória também no que tange à matéria de facto tida por assente em sede de acórdão recorrido.

           

Como é consabido, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas :

– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal,

– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.

           No presente caso, o recorrente referencia centrar a sua impugnação da matéria de facto, na (alegada) verificação, em sede de decisão recorrida, dos vícios da insuficiência da matéria de facto para a decisão e de erro notório na apreciação da prova – reportando, assim, à sindicância da decisão da matéria de facto por via da verificação de vícios prevenidos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.

Porém, e como (crê–se) de forma evidente patenteia a leitura das alegações e das conclusões do recurso, julga–se que recorrente, e salvo o devido respeito, labora em alguma confusão no que tange à destrinça do vício processual que imputa à sentença recorrida, a qual se traduz numa não perfeita caracterização do mesmo.

Na verdade, o recorrente alude à verificação dos aludidos vícios, os quais são, na sua essência, de lógica intrínseca exclusiva da própria construção da sentença – isto é, os mesmos, para se terem por verificados, têm imperiosamente que resultar do próprio teor da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, em ‘Código de Processo Penal Anotado’, 10ª ed., pág. 729 ; Germano Marques da Silva, em ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª ed., pág. 339 ; ou ainda Simas Santos e Leal Henriques, em ‘Recursos em Processo Penal’, 6.ª ed., pág. 77 e ss.).

Ora, no presente caso, é claro que em sustento da sua alegação o recorrente apela vastamente à consideração do teor de elementos de prova produzida nos autos, nomeadamente em sede de audiência de julgamento, muito em especial ao concreto teor das declarações de co–arguidos e de depoimentos de testemunhas – isto é, a elementos processuais que extravasam o estrito teor da sentença recorrida.

O que transporta a materialidade da alegação do recorrente, afinal, para o âmbito do erro de julgamento – a supra designada impugnação ampla da matéria de facto – a que se refere o artigo 412º/3/4/6 do Cód. de Processo Penal, em que a apreciação pretendida não se restringe ao texto da decisão, conforma acima sucintamente se começou por caracterizar.

Trata–se, na verdade, de vícios processuais distintos, e cujas causas e efeitos não se confundem.

Assim, não deixando embora de neste primeiro momento se percorrer o teor da decisão recorrida por forma a aferir se na mesma se vislumbra qualquer dos vícios invocados, adiante não deixará de se apreciar a impugnação da matéria de facto suscitada em sede de recurso em conformidade com a sua materialidade – e independentemente, portanto, da qualificação formal que da mesma vem efectuada.

Isto dito, prossigamos.

Do que nesta parte agora se cuidará é da aludida primeira vertente, em que estamos perante a arguição formal dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º.

Estabelece, assim, este art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :

a)         a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;

b)        a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ;

c)         o erro notório na apreciação da prova.                          

           Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar.

Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que, por isso, não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado.

Atalhando para quanto aqui em especial releva – atentos os termos e fundamentos do recurso –, temos desce logo a referência a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Tal vício ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova : «com efeito, aqui, e num momento logicamente anterior, é a prova produzida que é insuficiente para suportar a decisão de facto ; ali, no vício, é a decisão de facto que é insuficiente para suportar a decisão de direito», cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/12/2014 (proc. 155/13.4PBLMG.C1)[[7]]. Ou, como se consigna no Acórdão do S.T.J. de 6/10/2011 (proc. 88/09.9PESNT.L1.S1)[[8]], «A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados».

Ou seja, o vício em causa não se caracteriza por uma «insuficiência de factos para considerar como provada [determinada] a matéria [de facto]», como alega o recorrente, mas sim numa insuficiência da matéria de facto provada para o sustento da decisão de Direito que venha a ser adoptada na sentença.

Para que se verifique o vício da alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada» (cfr. Prof. Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 339/340), pois que este vício «só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada». Tal vício só se concretizará quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal ficam aquém do necessário para concluir pela decisão jurídica adoptada nos termos em que o é.

Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto] ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).

Ora, no presente caso, e muito claramente, a matéria de facto averiguada e considerada pelo tribunal a quo é suficiente para a decisão jurídico–penal que, a jusante, vem a ser adoptada.

Resulta claro do teor da decisão recorrida que a mesma se mostra fundamentada de facto em termos manifestamente suficientes para alicerçar, a jusante, a decisão jurídico–penal que vem a ser adoptada pelo tribunal. E nem tão pouco se patenteia (de todo) que o tribunal haja incorrido num desadequado exercício de indagação sobre factos necessários a essa decisão jurídica – nem o recorrente, diga–se, adianta que putativos factos seriam esses.

Na verdade, o exercício de fundamentação de facto e de motivação da mesma revela – de forma, aliás, abundante – que o tribunal a quo indagou a prova adequada à demonstração de quaisquer circunstâncias pertinentes à ponderação, desde logo, sobre a integração dos pressupostos típicos do crime imputado ao arguido.

E, em conformidade, munido de toda a matéria de facto necessária para o efeito que lhe era lícito apreciar, e suscitada na conformação do objecto dos autos desde a acusação/pronúncia até à discussão da causa, decidiu juridicamente em termos que se mostram (mais que) suficientemente sustentados por aquela primeira.

Não se julga, pois, verificado este vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Quanto ao também invocado erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal), verifica-se o mesmo quando, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios – aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.

Não obstante, e como adverte o Acórdão do S.T.J. de 23/09/2010 (proc. 427/08.0TBSTB.E1.S2)[[9]], «O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida». Ou seja, não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Pois bem, claramente no caso dos autos não estamos, sempre à luz do estrito teor da sentença, como aqui se impõe, perante qualquer situação configurável como erro notório na apreciação da prova.

Em bom rigor, o que em última análise ocupa a alegação do recorrente é, como de início se alertou já, a sua discordância quanto à valoração de elementos de prova dos autos – nomeadamente as declarações dos co–arguidos CC e BB e o depoimento da testemunha HH, Inspector da Polícia Judiciária – não poderiam retirar–se as conclusões em termos de matéria de facto que vieram a ser dadas por assentes.

Ora, que resulta do teor da decisão recorrida, e lida e mesma, é que o tribunal a quo valorou num determinado sentido tais elementos probatórios, sentido esse – consignado em sede de motivação da mesma decisão – que é coerente com as regras da lógica e da experiência, não se vislumbrando que exista qualquer tipo de erro, muito menos manifesto, de análise, nem qualquer referência susceptível de tornar incompreensível, inexplicável ou mesmo contraditório o decidido.

O que está afinal em causa na alegação do recorrente é que este não considera que aqueles elementos de prova possam ser valorados nos termos em que o fez o tribunal recorrido – ou seja, para invocar o vício em causa, o recorrente parte da sua própria valoração da prova produzida, essa sim que tem por correcta, daí concluindo que aquela do tribunal só pode, pois, estar notoriamente errada.

Porém, a circunstância de a apreciação que o recorrente faça sobre os elementos de prova e de a sua versão sobre a matéria de facto daí resultante, não coincidirem com a apreciação e a versão acolhidas pelo tribunal, não leva só por si ao ora invocado vício da sentença.

O teor da sentença revela–se, a qualquer intérprete da mesma – mesmo àquele com conhecimentos de natureza jurídico–penal –, claro e coerente no esclarecimento dos motivos pelos quais, no entender do tribunal a quo, são indiscutíveis os indícios recolhidos da conjugação de toda a prova recolhida nos autos, e pelos quais considera que os mesmos apontam de forma convergente para a verificação dos factos relativos à actuação típica objectiva e subjectiva que se mostra assente da parte do arguido/recorrente.

Se esse exercício se mostra adequadamente efectuado, e se as conclusões probatórias a que chega o tribunal recorrido são passíveis de censura, essa é uma questão diversa, e que se situa fora dos estritos limites dos alegados vícios intrínsecos da sentença, reportando–se antes à impugnação ampla da matéria de facto.

Em conclusão, não se têm por verificados os vícios intrínsecos ao teor da sentença recorrida que vinham formalmente invocados pelo recorrente, improcedendo assim também este segmento do recurso interposto.

4.        De saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal.

Em sede de impugnação da matéria de facto considerada no acórdão recorrido, vêm o recorrente/arguido DD e o recorrente Ministério Público suscitar, nos respectivos recursos, aquela que acima vimos ser a segunda via pela qual tal impugnação é possível, isto é, a da designada e já caracterizada impugnação ampla do julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal a quo, exercida nos termos a que se refere o art. 412º/3/4/6 do Cód. de Processo Penal.

O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º/3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Neste caso, o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.

Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :

a)        os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,

b)        as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,

c)         as provas que devem ser renovadas (se for o caso).       

           Sendo que, com relação às duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência : estando em causa o apelo a prova objecto de gravação, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal – é o que resulta do nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, que exactamente exige que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Cumpre assinalar que não deixará a instância de recurso de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos previstos no nº 6 do mesmo art. 412º do Cód. de Processo Penal – onde precisamente se prevê que «No caso previsto no n.º 4 [onde, por sua vez, se determina que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”], o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.».

Ademais, e prosseguindo, não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Assim, para que a impugnação possa proceder, as provas que o recorrente invoque, e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com as valoradas pelo tribunal a quo ou com a valoração que esse tribunal efectuou, devem não apenas revelar que os factos foram incorrectamente julgados, como também devem determinar a convicção de que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

A remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal.

Todas estas ideias encontram eco indisputado na jurisprudência, podendo citar–se, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2005 e de 09/03/2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06)[[10]], onde se escreve que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» ; ou ainda o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011 (proc. 158/09.3GBAVV.G2.S1)[[11]], onde se consigna o seguinte :

«         IV – Como o STJ vem decidindo, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430.º do CPP), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP. V - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento pela 2.ª instância, dirigindo-se somente ao reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa, indicadas pelo recorrente, e não a todas as provas produzidas na audiência.

VI - Por isso, o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, sendo certo que ao exercício dessa tarefa o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas, pelo que, se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas, se pode limitar a aderir ao exame crítico das provas efectuadas pelo tribunal recorrido. ».

Efectuadas estas considerações – como forma de enquadramento dos limites em que se move a invocação desta forma de impugnação ampliada do exercício de fundamentação de facto por parte do tribunal a quo –, vejamos quanto sucede no caso concreto dos autos, e por reporte, sucessivamente, a cada um dos recursos que suscita esta questão.

4.1.     Por referência aos factos típicos do crime de tráfico de estupefacientes imputado ao arguido DD.

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

           Como acima já se enunciou, ocupa o arguido DD parte substancial do seu recurso com aquilo que materialmente configura esta impugnação ampla do julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal a quo.

Reverte o recorrente a sua impugnação – podendo assim considerar–se cumprida a primeira vertente da especificação aqui exigida e imposta na alínea a) do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal – à consideração como incorrectamente julgados dos factos constantes dos pontos 24., 25., 31., 34., e 48., factualidade cujo teor, recorda–se, é o seguinte :

24 -    Na execução desse plano o arguido JJ, na manhã desse dia, deslocou-se a Lisboa a fim de, junto do arguido DD, recolher a cocaína.

25 -   O arguido EE deu conhecimento desse facto ao arguido CC, a quem telefonou pelas 09h07m, avisando-o de que já estava a caminho de Lisboa.

31 -    O arguido DD, que trazia consigo uma mochila preta com risca vermelha, com o símbolo e o nome Ferrari, escrito a branco, contendo cocaína, entrou na viatura conduzida pelo arguido EE, ocupando o lugar do passageiro.

34 -   No decurso da viagem, e durante o almoço, o arguido DD esteve sempre em posse da mochila que transportou desde Lisboa contendo cocaína.

48 -     Os arguidos AA, CC, BB e DD conheciam a natureza e características estupefacientes da cocaína que transportavam e detinham.

Como se extrai da argumentação do recorrente DD, o mesmo assenta a sua impugnação essencialmente no aspecto – que se revela fundamental para que se tenham por preenchidos, na parte que lhe respeita, os pressupostos típicos do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual vem condenado – de que tenha sido ele a proceder ao transporte da cocaína apreendida no dia dos factos (2 de Setembro de 2021), muito em especial no interior da mochila que veio a ser apreendida nos escritórios da sociedade arguida “B..., Lda.”, ou que tenha tido por alguma forma qualquer envolvimento na detenção e transporte desse mesmo produto.

Alega que dos elementos de prova recolhidos nos autos não pode extrair–se, com o grau de certeza necessário, a demonstração de tais circunstâncias de facto, pelo que, os aludidos pontos da matéria de facto provada devem ser objecto de alteração no sentido de se considerar outrossim não provado tudo quanto ali respeite à participação objectiva e subjectiva do arguido nas mesmas.

No que tange à exigência de especificação decorrente da alínea b) do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, também se mostra materialmente satisfeita pois que o recorrente apela em especial às declarações prestadas pelos co–arguidos CC e BB, e bem assim ao depoimento da testemunha HH, Inspector da Polícia Judiciária, elementos dos quais recorta os segmentos que considera relevantes para sustento da sua pretensão.

Assim :

–         das declarações prestadas pelo co–arguido BB, e por referência à gravação efectuada na acta de audiência de julgamento do dia 18/04/2023 (e que se encontra gravada entre as 10.43 e as 11.18), recorta a seguinte passagem :

Mma Juiz-       Quando o sr chegou à fábrica, como é que o sr entrou?

Arguido-          Liguei para o CC a dizer que cheguei.

Mma Juiz -       O CC é o sr CC?

Arguido -          Sim, eu trato por CC.

Mma Juiz -       Está bem. Ele abriu-lhe o portão, a porta, o quê?

Arguido -          Abriu-me o portão.

Mma Juiz -      Quem é que estava lá dentro, quando o sr lá entrou?

Arguido -          Estava o CC e estava o senhor AA, que foi o único que eu vi.

Mma Juiz -       Não viu o sr DD?

Arguido -          Não.

Mma Juiz -       Olhe e o sr dirigiram-no para que sítio da fábrica?

Arguido -         Fomos para cima, não sei se era escritório ou umas salas, fomos

lá para cima.

Mma Juiz -      E o que é que aconteceu, quando os senhores foram lá para cima?

Arguido - Depois foi a situação de o rapaz não ter vindo connosco, humm, nós estávamos necessitados, estávamos a precisar de fazer alguma coisa e não deixarmos o negócio ir abaixo, pegarmos outra vez naquilo e íamos atrás do rapaz.

Mma Juiz -       Não percebi nada. Agora não percebi nada do que o sr disse, peço-lhe desculpa mas não percebi, deixar o negócio ir abaixo e iam atrás do rapaz. Olhe, eu vou-lhe fazer essas perguntas. Os senhores foram para uma sala. Quem é que estava na sala?

Arguido -          Estava na sala o sr AA.

Mma Juiz -      O sr AA, o sr e o senhor CC? Os três, pronto. O que é que aconteceu quando o sr chegou à sala?

Arguido -         Eu cheguei à sala, não tinha a pessoa que ia comprar a droga.

Mma Juiz -       O comprador era o LLLL, era?

Arguido -          Sim, que não estava.

Mma Juiz -       Pronto, vamos com calma, que senão a gente não entende. O comprador era o LLLL e não estava. O sr viu a droga quando lá chegou, estava exposta, tiraram-na de algum sítio?

Arguido -          Exposta, estava na mesa.

Mma Juiz -       Estava na mesa? Estava em alguma mochila?

Arguido -          Isso não sei, não reparei.

Mma Juiz -       Não sabe?

Arguido -          Doutora, eu estava …era a primeira vez que ia fazer isto, eu estava nervoso e queria era fazer as coisas para me pôr a andar.

Mma Juiz -      A droga estava toda no mesmo pacote, havia vários pacotes de droga, como é que era isso?

Arguido -         Era… não sei, era droga mas eu não sei, não posso precisar quanto estava ali, não faço a mínima.

–         por seu turno, das declarações prestadas pelo co–arguido CC, e por referência à gravação efectuada na acta de audiência de julgamento do dia 18/04/2023 (e que se encontra gravada entre as 11h18m a 12h56m), recorta os seguintes trechos

– do minuto 29’51” até 31’24” :

Mma Juiz -      A droga entrou na fábrica quando entraram o sr AA e o sr DD?

Arguido -          Correto.

Mma Juiz -       Podemos concluir que a droga entrou na mochila?

Arguido -          Podemos concluir isso.

Mma Juiz -       O sr viu quem é que trazia a mochila?

Arguido -          Não reparei.

Mma Juiz-       Olhe, os srs dirigiram-se todos quando eles chegaram aos escritórios? Os 3? Os Srs ainda estiveram meia hora à espera do Sr BB não é?

Arguido -          Sim.

Mma Juiz -       O que é que os Srs fizeram nessa meia hora?

Arguido -         Nessa meia hora, o Sr AA e o DD subiram ao escritório, depois desceram e foram para o refeitório, e eu estava lá no fundo da fábrica com um funcionário que ainda estava lá para preparar as máquinas para fazer o enchimento do dia seguinte.

Mma Juiz -      Então, o Sr sabe quem é que dividiu ou se a droga já vinha dividida, o quilo e meio?

Arguido -         Isso eu não sei, quem é que dividiu mas da maneira que estava eu acho que já vinha assim doutora.

Mma Juiz -       Já vinha assim?

Arguido -          Sim.

Mma Juiz -       E então, depois quando chegou o sr BB?

Arguido -         O Sr BB chegou, ligou-me, eu abri o portão, ele entrou, subi com ele lá acima ao escritório.

Mma Juiz -       E o que é que aconteceu?

Arguido -          O Sr AA entregou ao Sr BB.

Mma Juiz -       O Sr AA?

Arguido -          Sim.

Mma Juiz -       E onde é que estava o Sr DD?

Arguido -          O Sr DD estava na parte de baixo, não me recordo mas eu acho que estava onde a gente chama o refeitório.

Mma Juiz -       Então nessa sala só estavam vocês os três?

Arguido -          Sim senhora.

(...)

– do minuto 38’04” até 38’34” :

Mma Juiz -       O sr entabulou alguma conversa com o Sr DD?

Arguido -          Não percebi.

Mma Juiz -       Falou com o sr DD, na altura?

Arguido -          ão, não.

Mma Juiz -       Apercebeu-se se ele era o fornecedor da droga?

Arguido -          Não, não doutora.

Mma Juiz -       Não?

Arguido –         Não tive conversa nenhuma, só tive…

Mma Juiz -      Mas a ideia que o sr teve foi quê, que ele… Quando lhe apareceu o sr AA com outra pessoa, com que ideia é que o sr ficou?

Arguido -         Doutora, não tirar ilações, eu estava muito nervoso naquela situação doutora, não tirei elações, eu não julgo ninguém, não vou julgar ninguém.

(...)

Mandatária-     Boa tarde Sr CC. Há pouco a Sra Juiz exibiu-lhe umas fotografias relativamente ao escritório, à balança que serviria para pesar malte, como o sr diz, e o sr acenou em relação a todas as fotografias. Em relação a uma mochila que ali se encontra, viu-a? Uma mochila, nas fotografias que lhe foram exibidas. Essa mochila estava lá no escritório?

Arguido -         Estava no escritório, na altura que eu subi já estava lá.

Mandatária-     Sim, e onde?

Arguido -          Isso já não me recordo.

Mandatária-     Já não se recorda? Recorda-se de vê-la, não sabe onde.

Arguido -          Isso eu vi. E vi que veio na carrinha.

Mandatária-     E ela estava aberta, fechada, estava no chão?

Arguido -         Não, não estava no chão, estava em cima do móvel.

Mandatária-    Estava em cima do móvel? Sra Doutora, eu gostava que fossem exibidas outra vez as fotografias do móvel, é porque não se vê lá mochila nenhuma.

Mma Juiz -      O Sr não se importa de chegar aqui se faz favor? De vir aqui? A Sra Doutora se quiser chegar aqui também.

Mma Juiz -      O sr consegue identificar, portanto, folhas a partir de n.º 229 não é Sra Doutora? Aqui não tem nada, aqui também não. É 229, não é? O sr consegue identificar se estaria em algum destes sítios a mochila?

Arguido -          Estava aqui.

Mandatária-     Aí, portanto, fora da fotografia número 2.

Arguido -          Aqui neste móvel.

Mandatária-     Nesse móvel? Está aqui um bocado da mochila, na fotografia primeira.

Mandataria-     Estava aqui e deste lado é que estava a balança e o produto, é isso?

Mandatária–    Sim?

Arguido -          Sim senhor.

Mandatária-     Aqui vê-se o sítio onde estava a mochila?

Arguido -          Não.

Mandatária-    Também não se vê, a folhas 230, Isto é a embalagem não é, que o sr já viu. Era esta a mochila?

Arguido -          Sim.

Mandatária-     E recorda-se se a mochila estava aberta, fechada?

Arguido -          Isso eu não recordo.

Mandatária-    Não recorda. Pronto, pode voltar para trás, está bem, se faz favor.

Mandatária-    Queria colocar aqui mais uma questão. Sr CC já disse aqui ao

tribunal que mas se calhar gostava de perguntar isso de uma outra forma. Já disse que não conhecia o sr DD de parte alguma.

Arguido -          Não conhecia.

Mandatária-     Relativamente ao sr DD, em tudo o que se passou no dia 2 de Setembro, não o viu com rigorosamente nada?

Arguido -          Não.

Mandatária-     Não? Sim, senhora não desejo mais nada.

–         finalmente, e do depoimento da testemunha HH – Inspector da Policia Judiciária que interveio nas diligências policiais do dia 02/09/2021 –, por referência à gravação efectuada na acta da sessão de julgamento do dia 18/04/2023 (entre as 14h38 e as 16h33), recorta os seguintes trechos :

M.P. -   E em relação ao dia em que realmente tiveram a ação policial e conseguiram a apreensão e detenções, que informações é que se basearam para agir e como é que decorreu essa ação?

Test.-    Nesse dia, nós, eu neste caso, tinha controlo de escutas, o controlo do 188 do Código Penal, do Código do Processo Penal, peço desculpa, e quando estava a fazer as gravações e da informação, apercebi-me de uma conversa, de que depois pedi a transcrição, em que o AA dizia ao CC que já estava a ir para baixo, que estava receoso, que ia buscar o - ele usa linguagem codificada, recordo-me que ele tinha na altura, inicialmente ele fala de produto ou uma coisa assim, não sei qual é exatamente a expressão que ele usa, e depois muda para garrafas – mas o conteúdo da conversa não faz sentido se aquilo forem garrafas porque a conversa em si encaminha para um sentido e depois ele parece que há ali um momento em que se recorda que está a falar ao telefone e fala da expressão garrafas. E nós ficámos convictos de que ele poderia estar a preparar uma transação muito próxima e então eu e a minha colega CCCC arrancámos logo para uma zona que sabíamos que ele costuma frequentar, que costumava ir, que já tinha sido, nomeadamente nas localizações regulares, que era a zona da ... e apercebemo-nos, conforme está relatado no ADE, conseguimos detetar o carro que ele estava a usar na altura, que não era o mesmo da situação do ..., era uma outra viatura, e conseguimos detetar, apercebemo-nos que encontrou um indivíduo que não conhecíamos e fizemos o seguimento dele até ao Porto. Entretanto, pedimos apoio aos colegas que tinham ficado na base a preparar para sair e tudo mais e pronto, ficou o meu colega nas interseções, que nos foi dando notícia daquilo que eles iam falando ao telefone – nesse dia houve várias conversas.

MP - Só antes de avançar, portanto, o individuo que, entrou um terceiro  indivíduo no veículo conduzido, onde seguia o CC…

Test– Não, não. Só estava o AA.

MP -    O AA.

Test-    Só o AA é que estava, o CC estava nas instalações da B....

MP -                Certo.

Test.-   Pelo menos, pelo que ele dizia, e pelo que se passou depois, confirma-se.

MP -                E quem é esse indivíduo?

Test- É o arguido DD.

MP -  E esse arguido DD, tinham alguma informação?

Test.-Nada.

MP -  Não tinham informação nenhuma?

Test.-    Não. Nem havia nas comunicações do AA qualquer indício que fosse ele ou com quem ele ia ter.

MP -  O arguido DD quando entrou no veículo trazia alguma coisa com ele?

Test.-    Sim, trazia uma mochila, que depois viria a ser apreendida nas instalações da B....

MP -   E depois da entrada no carro conduzido pelo AA, era conduzido pelo AA, certo?

Test.- Sim, senhor.

MP -   E seguiram para onde?

Test.- Entraram, seguiram em direção à A1 e arrancaram para…

MP -   Sem paragens?

Test.-   Que me recorde não fizeram paragens, não tenho a certeza disso mas acho que não. Fizeram paragens, recordo-me que eles pararam para almoçar já no Porto.

MP -    Diz aqui um artigo da acusação que o arguido DD entra no carro de maraca Mercedes, tripulado pelo arguido AA, sentando-se ao seu lado, sempre em posse da dita mochila.

Test.- Sim, a tal mochila que depois viria a ser apreendida.

MP -   Mas o sr viu, o sr sempre em posse da dita mochila?

Test.- Eu vi-o a entrar no carro com a mochila, sim.

MP -   E então, vieram para o Porto?

Test.- Exatamente.

MP -   E os srs fizeram o seguimento.

Test.-    Sim e nessa, na sequência das interceções, recordo-me que o AA combinou com o CC, às 16h30 nas instalações da “B...”, e o CC disse que, sendo assim, ia dispensar o pessoal mais cedo, para que não estivessem lá quando eles chegassem.

MP -    E então, e a que horas é que chegam?

Test.-    Eles pararam para almoçar ali no Restaurante Bg..., acho que é D..., ali na Av. ..., e depois chegaram às instalações da B... muito perto das 16h30. Poderia passar uns minutos, não sei ao certo quantos.

MP -    E sabe se quando saíram para almoçar no D... estavam sempre na posse da mochila?

Test.-    Julgo que sim, julgo que saíram com a mochila.

MP -    Saíram do carro com a mochila?

Test.-    Sim.

MP -    Mas foi o sr inspetor que viu isso ou um colega?

Test.-    Sim. Nós acompanhámos a deslocação.

MP -    Diz na acusação que chegaram às instalações às 16h40. Poderá ter sido a esta hora?

Test.-    Sim. Recordo-me que era próximo da hora combinada.

MP -    O veículo estaciona na via pública ou dentro do circuito da empresa?

Test.-    Entrou diretamente para o recinto da empresa, não sei se eles tinham um comando, se alguém abriu de lá de dentro mas, efetivamente, ele entrou sem parar. Abriram, fecharam.

MP -    E depois, como é que se passou então depois?

Test.-    Entretanto, nas interceções tinha sido detetado que ia um terceiro indivíduo recolher o produto estupefaciente. Na verdade, inicialmente, seria um terceiro e um outro, ou seja, seriam dois indivíduos que iriam recolher o produto, sim. Por volta, já depois de o AA ter chegado, há uma comunicação do CC para o número com quem já teria falado antes e que depois se veio a apurar ser o BB, também arguido, e pergunta “Então não vens?”. Eles tinham combinado por volta daquela hora, “Então não vens buscar” e não sei quê, e ele diz “vou,  mas vou sozinho”, uma coisa assim nesse sentido. E efetivamente diz que já está a sair de onde está, não sabíamos onde era, e efetivamente, passado uns minutos, chegou um indivíduo que na altura não era conhecido e depois se apurou ser o BB, ao volante julgo que de um Renault ..., um carro antigo, que estacionou cá fora, usou o telefone para falar com o CC, que lhe abriu a porta, entrou e passado uns momentos, saíram os dois e foi nessa altura que nós fizemos a abordagem.

MP -    E o que é que traziam na sua posse?

Test.-   O BB trazia um pacote com o produto estupefaciente, julgo que teria perto de 500 gr de cocaína, e o CC tinha a chave de entrada, a chave de acesso à fábrica.

MP -    E o arguido AA, onde é que se encontrava? E o arguido DD?

Test.-    Estava no interior da B....

MP -    Em que local exatamente?

Test.-   Pois, isso não sabemos porque a porta estava fechada. Mas depois, dado que o CC tinha a chave lá do local, usámos a chave para entrar na B... e por acaso acho que fui das primeiras pessoas a entrar e o AA estava mesmo ali, junto à porta de entrada.

MP -    Junto à porta?

Test.-   Sim, no hall, aquilo tem uma espécie de hall de entrada, estaria aí.

MP -    E procederam a revista? Encontraram mais produto?

Test.-   Havia produto estupefaciente no escritório, no andar de cima, em cima de uma banca de trabalho, estava a tal mochila, estava uma embalagem com cerca de 1 kg de cocaína e uma balança.

MP -    E o arguido DD onde é que estava?

Test.-   Não detetei o arguido DD, só detetei o arguido DD já depois de termos apanhado o AA e eu julgo que ele estaria junto das viaturas; aquilo tem um portão de entrada de viaturas, uma porta de entrada de pessoas, nós entrámos pela porta e, logo aí, à esquerda, era o acesso à zona das viaturas e eu julgo que ele estaria aí.

MP -   Mas então ninguém estava a controlá-lo? Ele podia ter-se ido embora?

Test.-    Não, a equipa dividiu-se, uns ficaram com o AA, subimos.

MP -    Estava mais alguém nas instalações da empresa?

Test.-   Estava, estavam duas crianças, julgo que seriam familiares do CC,

e estava um funcionário da B..., que eu julgo que se chama DD, mas não tenho a certeza. Tanto é que nesta confusão nós pedimos ao rapaz que levasse as crianças porque aquilo tem, o espaço é relativamente grande e amplo, e atrás tem uma espécie de um pátio, e pedimos para ele ficar lá com as crianças enquanto nós fazíamos o que tínhamos a fazer.

MP -   Além da droga, da balança, o que é que foi apreendido nesse momento, relacionável com esta atividade?

Test.-    Telemóveis.

MP -    Telemóveis, dinheiro não foi encontrado?

Test.-   Eu não me recordo mas se foi está no… Alguns deles tinham dinheiro com eles mas não sei exatamente quantias nem quem é que tinha o quê, mas isso consta dos autos de apreensão e da revista.

MP -   Consta aqui da acusação que também foi apreendido do interior do Mercedes que foi conduzido pelo arguido AA, um talão de depósito em numerário de mil euros. Sabe por que é que foi apreendido, respeita a quê isto?

Test.-   Recordo-me de haver alguns papéis, não me lembro em concreto o quê e nem sei, nem me recordo, o que é concreto é que esse depósito foi apreendido.

MP -    Os telemóveis apreendidos, foram analisados?

Test.-             Os telemóveis foram analisados, mas o sistema que nós temos não conseguiu desencriptá-los, por isso, não… Julgo que houve dois que foi possível mas que não tinham nada. Os do AA, se me recordo, como não tínhamos os códigos de acesso, não foi possível aceder ao seu conteúdo.

MP -   Em relação a tráfico de estupefacientes, mais alguma informação, mais algum elemento de prova que tenha tido acesso, implicando aqui os arguidos?

Test.-    Não.

MP -    Foi isto não é?

Test.-    Sim.

(…)

– mais recortando ainda o seguinte :

Juiz–   Queria perguntar, a primeira coisa é o sr inspetor viu o arguido DD a entrar com a mochila no carro.

Test.–   Sim.

Juiz -    E depois viu, quando foram almoçar, ele deixou a mochila no carro?

Test.-    Levou a mochila.

Juiz -   Levou a mochila. Foi sempre ele que transportou a mochila?

Test.-    Julgo que sim, do que me foi permitido ver. (...)

Pois bem, liminarmente se dirá que não assiste, manifestamente, razão ao arguido/recorrente.

Nomeadamente estes trechos da prova assim seccionados e invocados pelo recorrente não permitem inquinar, de todo, a leitura que o tribunal a quo, neste concreto aspecto, fez da prova produzida – ou seja, não se demonstra, como seria necessário, a existência de prova que impusesse decisão diversa.

E assim sucede, desde logo, porque tais trechos se mostram de tal forma descontextualizados e desligados de quanto resulta da respectiva conjugação, não só com o demais teor de tais elementos de prova em si mesmos, como também com toda a demais prova produzida nos autos, que basta um singelo percurso pelo exercício de motivação efectuado pelo tribunal a quo para que se percepcione a inapelável falência da pretensão do recorrente.

De facto, recorde–se, o recurso da matéria de facto visa tão só a sindicância da decisão já proferida nesse âmbito, e o tribunal de recurso em matéria de exame critico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.

Logo, e a menos que tenham sido indevidamente valoradas provas ilegais ou proibidas, que tenha sido desrespeitada a força probatória plena que a lei confere a alguns meios de prova, ou que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, a convicção alcançada pelo tribunal que efectuou o julgamento tem de se considerar validamente formada de acordo com a regra estabelecida no art. 127° do Cód. de Processo Penal, sendo, por isso, inatacável.

Ora, ressalta com cristalina clareza que o Tribunal não incorreu em qualquer percepção errada ou sequer errática da prova produzida em julgamento, e no que em especial tange aos pilares em que assentou a conclusão positiva sobre a intervenção do arguido/recorrente nos factos e sobre a sua correspondente culpa.

Porque em boa verdade se revela exercício tão espinhoso como, no final das contas, inútil (porque não o faríamos melhor), procurar dizer de maneira diferente aquilo que – de forma que se reputa absolutamente exemplar e paradigmática daquilo que deve ser o exercício jurisdicional de motivação da decisão sobre a matéria de facto, tarefa que é, afinal, a mais relevante e crítica em sede de sentença – o tribunal a quo consigna em sede de motivação a propósito de tais questões em concreto, recordemos o respectivo teor.

Assinala–se que quanto ali profusamente se descreve ser o teor dos elementos de prova assinalados, encontra absoluta e irrepreensível correspondência com o confronto com os mesmos agora efectuado por esta instância.

Assim, temos – e com sublinhados agora apostos :

«          Já quanto aos factos que levaram à detenção dos arguidos e à apreensão de cocaína no dia 2 de Setembro de 2021 nas instalações da fábrica B..., o tribunal teve e consideração as declarações prestadas pelos arguidos CC e BB, conjugadas com os depoimentos prestados pelos elementos policiais que efectuaram a vigilância e a posterior apreensão.

O arguido CC referiu que a transacção de cocaína que se concretizou nesse dia lhe foi proposta pelo arguido EE que, por ter “um contacto” em Lisboa, lhe propôs um negócio de venda de droga, para o qual ele deveria “arranjar” um comprador. Confrontado com as intercepções telefónicas dos dias 23/8/21, 30/8/21 e 2/9/21 transcritas, respectivamente, a fls. 13 a 15 do Apenso I, a fls. 21 a 22 do Apenso II e a fls. 23 a 40 do Apenso II, assumiu que todas se reportam ao negócio de venda de estupefacientes que combinou com os arguidos AA e BB e que se concretizou a 2 de Setembro.

Detalhou que, no final de Agosto de 2021, efectuou contactos e conseguiu encontrar um comprador para o produto estupefaciente que o arguido AA iria buscar a Lisboa, um indivíduo que identificou como LLLL, pessoa que vendia estupefacientes no Bairro ..., no Porto. Explicou que, porque o LLLL não estava disposto a ir sozinho buscar a droga, tanto mais que não tinha carta de condução, contactou o seu amigo de infância e vizinho, o arguido BB, a quem propôs que acompanhasse o LLLL, de quem também era amigo, quando ele fosse buscar o estupefaciente que o arguido AA iria trazer de Lisboa. Tanto ele como o BB iriam ganhar cerca de €500 cada um, se o negócio se concretizasse.

Particularizou que, nesse dia, o arguido EE se deslocou a Lisboa para ir buscar a cocaína e que, durante a viagem, contactaram telefonicamente diversas vezes (como comprovam as intercepções telefónicas acima referidas). Num desses telefonemas informou-o que tinha dispensado os funcionários da fábrica de cerveja nesse dia à tarde, uma vez que o arguido AA contava ali chegar pelas 16:30 horas, e, noutro, contactou o arguido BB dando-lhe a conhecer a hora a que deveria chegar à fábrica e o modo como deveria proceder para ali entrar.

Explicou que o arguido EE chegou à hora combinada, vindo de Lisboa, na companhia do arguido DD, uma vez que foi ele quem os recebeu quando chegaram à fábrica da B.... Depois o AA e o DD dirigiram-se para o escritório, enquanto ele permaneceu na zona da fábrica. Mais referiu que a mochila que veio a ser encontrada pelos agentes policiais nesse escritório não se encontrava na fábrica previamente, assim como também não se encontrava ali qualquer embalagem com estupefaciente.

Mencionou ainda que o arguido BB acabou por ali comparecer, mas, ao contrário do combinado, não veio acompanhado pelo LLLL. Assumiu ter sido ele quem lhe franqueou a entrada e ter sido na sua presença que o arguido AA entregou ao arguido BB meio quilo de cocaína, que se destinava a ser entregue por este último ao LLLL, para a experimentar.

A intercepção telefónica de fls. 23 e ss do Apenso II relativa a conversação mantida entre o arguido CC e o arguido EE no dia 2/9/21 permite corroborar estas afirmações, dela se inferindo que o arguido AA foi informado pelo arguido CC que o comprador do estupefaciente que ele iria buscar queria “levar um bocado” para experimentar e que, se gostasse do produto, “todas as semanas pode rolar” (cf. fls. 24). A circunstância de ambos se assegurarem que não estariam funcionários presentes quando a transacção fosse realizada é também evidente a partir da leitura dessa transcrição.

O arguido CC referiu ainda que saiu das instalações da fábrica juntamente com o arguido BB tendo como destino o Bairro ..., no Porto, onde deveriam entregar o estupefaciente, o que não veio a suceder, por terem sido abordados por agentes da Polícia Judiciária.

Do seu depoimento resultou comprovado que o estupefaciente entrou nas instalações da fábrica com os arguidos AA e DD.

           O arguido BB referiu não conhecer previamente qualquer um dos arguidos, à excepção do CC, de quem é amigo de infância e vizinho. (…)

Assumiu ter sido encontrada na sua posse a cocaína apreendida, declarou-se arrependido por assim ter procedido, mencionando ser esta uma situação única na sua vida, que foi determinada por questões económicas.

Quanto ao arguido DD disse não o ter visto nessa ocasião, nem em qualquer outra.

Ainda a propósito dos factos ocorridos no dia 2 de Setembro de 2021 o inspector HH referiu que, nesse dia, estava a fazer o controle de escutas quando ouviu o arguido AA dizer que tinha que ir “lá baixo buscar garrafas”, afirmação que, no seu entender, não fazia sentido e que o levou a suspeitar que poderia estar a preparar uma transacção de estupefacientes. Por esse motivo foi montada uma operação de vigilância na zona onde o arguido costumava accionar as antenas celulares (o ..., em Lisboa), que permitiu avista-lo a conduzir uma viatura Mercedes, na qual veio a entrar o arguido DD, pessoa que, até àquele momento, era desconhecida da investigação. Referiu que o arguido DD transportava uma mochila escura da marca Ferrari com a qual entrou no veículo do arguido AA, tendo ambos se dirigido à cidade do Porto onde almoçaram. Asseverou que viu o arguido DD a sair da viatura, quando pararam para almoçar, levando consigo a mochila, que manteve consigo durante o almoço. Após, ele e o arguido AA retornam à viatura conduzida por este último e dirigiram-se à Maia, às instalações da fábrica de cerveja B..., onde o veículo entrou.

Referiu ainda que, porque das intercepções telefónicas se indiciava serem dois os indivíduos que iriam levantar a droga (cf. fls. 33 e 37 do Apenso II), permaneceram no exterior até à chegada do arguido BB, que contactou telefonicamente o arguido CC (cf. intercepção de fls. 39 do apenso II) antes de entrar nas instalações.

Também detalhou que, quando os arguidos BB e CC saíram das instalações, foi encontrado na posse do arguido BB cerca de 500 gramas de cocaína.

Em face dessa apreensão, fazendo uso das chaves encontradas na posse do arguido CC, entrou nas instalações fabris onde encontrou o arguido AA, junto à entrada, e produto estupefaciente, cerca de um quilograma de cocaína e uma balança de precisão, no escritório. Este relato está comprovado pelo auto de diligência de fls. 218 a 220.

No mais confirmou os objectos apreendidos a cada um dos arguidos, tal como descritos nos autos de apreensão, além da cocaína, apreenderam os telemóveis e bem assim dinheiro aos arguidos, tal como comprovam os autos de revista e apreensão de fls. 221 e 222, 224, 225, 226, 233 e 237 e a reportagem fotográfica de fls. 227 a 232.

No que respeita ao arguido DD mencionou desconhecer o local onde se encontrava quando foi efectuada a abordagem policial.

            (…)

Da conjugação das declarações prestadas pelos arguidos CC e BB com os depoimentos prestados pelos mencionados inspectores da Polícia Judiciária e os elementos documentais juntos aos autos acima referidos, foi possível ao tribunal concluir que o arguido JJ se deslocou a Lisboa, no dia 2 de Setembro de 2021, para recolher cocaína, a qual lhe foi fornecida pelo arguido DD, que a transportou até às instalações da fábrica de cerveja dentro de uma mochila da marca Ferrari (que a sua mulher em audiência confirmou pertencer-lhe).

Efectivamente, tendo em consideração que o arguido AA se deslocou a Lisboa propositadamente para ir buscar cocaína, que a pessoa que ali contactou foi o arguido DD, que o arguido CC referiu que antes da chegada do arguido DD não existia estupefaciente na fábrica, dúvidas não restaram quanto ao facto de ter sido o arguido DD a pessoa que transportou o estupefaciente desde Lisboa, na mochila que foi apreendida no interior da fábrica.

É certo que UUU, cunhado do arguido DD, e o sócio dele, MMMM, afirmaram que a deslocação ao Norte do país no dia em que foi detido se destinava à compra de máquinas usadas. Todavia, nenhum deles soube indicar o local onde as pretensas máquinas iriam ser adquiridas ou a quem, nem concatenar essas afirmações com o facto de o arguido, na data, não exercer qualquer actividade declarada ou com a circunstância de o arguido EE não desenvolver qualquer actividade ligada à compra e venda de máquinas de construção civil.

Aliás, se atentarmos aos documentos juntos pelo próprio arguido DD a fls. 860 a 873, verificamos que suspendeu a actividade da sua empresa a 30/9/2020, que, nos últimos cinco anos, viu instauradas contra a sua empresa quatro acções cíveis (intentadas pelo sector financeiro) para cobrança de mais de €110.417,00 (cf. fls. 861 e 863) e que, em 2018, tinha apenas 2 empregados, o que significa que, ao contrário do que afirmaram as mencionadas testemunhas, não existe qualquer evidência que exercesse alguma actividade comercial, que justificasse aquela deslocação.

Pelos mesmos motivos a afirmação do seu cônjuge, YYY, no sentido de que o marido lhe disse que vinha ao Norte a trabalho e que iria dormir em casa do cunhado, e que, por isso, transportava consigo a mochila com uma muda de roupa, também não mereceu qualquer credibilidade. Na verdade, também ela não soube explicar, de forma minimamente coerente, a que se deveu a deslocação do marido, porque motivo veio com o arguido AA, o que foi fazer à fábrica de cerveja ou que máquinas pretendia adquirir, quando, como demonstram os documentos que o próprio juntou aos autos, na altura não trabalhava e tinha avultadas dívidas.

Por fim, não podemos olvidar que o arguido DD não deu nenhuma explicação para se ter deslocado desde Lisboa na companhia do arguido EE, transportar a mochila e se encontrar na fábrica de cerveja onde veio a ser detido. E, se é certo que o silêncio não o pode prejudicar, também o é que não o pode beneficiar. Perante a evidencia de ter sido transportado pelo arguido AA no dia em que se deslocou a Lisboa precisamente para ir ter com o contacto que lhe forneceria a cocaína, não mereceram qualquer credibilidade as declarações das mencionadas testemunhas, o que levou a que os factos a esse propósito alegados pelo arguido DD na contestação tivessem sido considerados não provados. As declarações prestadas pelos arguidos BB e CC também, conjugadas com as intercepções telefónicas acima mencionadas e com a apreensão no interior da fábrica de cocaína, permitiram comprovar que o arguido AA tinha um contacto em Lisboa que lhe forneceria a cocaína e que combinou com o arguido CC encontrar um comprador para esse produto estupefaciente, o que este fez, contactando um individuo que vendia estupefacientes no Bairro .... Enquanto o arguido BB ficou encarregue de fazer o transporte da droga (e do seu comprador) entre a fábrica de cerveja e o seu destinatário final.

É certo que os arguidos JJ e DD não prestaram declarações, porém, essa circunstância não obsta a que possam ser valoradas as declarações prestadas pelos co-arguidos BB e CC. (…)

No caso em apreço, não só não se verifica a limitação a que alude o nº 4 do art. 345º do Código de Processo Penal, como as declarações prestadas pelos arguidos BB e CC, como pensamos ter demonstrado, se mostram sustentadas noutros elementos de prova, como sejam as intercepções telefónicas, as apreensões, as diligências policiais e os depoimentos dos elementos policiais que referimos, motivo pelo qual mereceram acolhimento. ».

Esta instância de recurso, percorridos também, pela sua parte, todos os elementos de prova assim elencados, considera que a apreciação conjugada que o tribunal a quo faz dos mesmos se revela absolutamente coerente com as mais elementares regras da lógica e da básica experiência comum.

É verdade que, no absolutíssimo rigor dos princípios, a detenção e transporte daquela quantidade de cocaína por parte do arguido DD na aludida mochila desde Lisboa, assenta em elementos de prova indiciária ou indirecta.

Porém, e desde logo, como de forma abrangente e elucidativa se consignou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/03/2015 (proc. 400/13.6PDPRT.P1)[[12]] se deve considerar que «I – Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.»

Ora, no que tange às regras ou requisitos impostos sobre a apreciação da prova indirecta pelo tribunal, e não estabelecendo a lei processual penal regime específico nesta matéria, é aplicável também aqui o princípio geral de livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do Cód. de Processo Penal, que exactamente prevê que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Traduz–se isto em que o fundamento da credibilidade da chamada prova indirecta está igualmente dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.

Assim, fundando–se embora em presunções naturais – ou seja, em ilações que se retiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido –, essas ilações devem ser suportadas por um exercício motivado e claro que se revele conforme com regras de experiência especialmente reportadas ao contexto do caso em análise, e que permita afastar quaisquer dúvidas sobre a ocorrência do facto probando que por essa via se demonstra.

Ora, in casu, entendeu o tribunal a quo que existem uma quantidade de indícios ou indicadores graves (isto é, sérios, importantes, fortes ou intensos), precisos (ou seja, certos e distintos ou exactos), e todos concordantes (quer dizer, coincidentes ou direccionados segundo resultado comum e consequente) no sentido de se ter por demonstrado que os factos se passaram como a acusação, nessa parte, os descrevia e, portanto, se deram como assentes.

E crê–se que bem andou a primeira instância.

Na verdade, os indicadores que sustentam aquela valoração pelo tribunal recorrido julgam–se de tal forma robustos que, em bom rigor, estamos na prática já sobre uma linha divisória de quanto se mostra permitido constatar por via de elementos de prova directa dos factos. Ou seja, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, é absolutamente seguro, no presente caso, «fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido» – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/05/2015 (proc. 1938/12.8PSLSB.L1-9)[[13]].

Refira–se, nesta sequência, que não é, de todo, verdade quanto afirma o recorrente ao alegar que «Entendeu o arguido exercer um direito que lhe assiste, o direito ao silêncio, sucede que, atenta a transcrição supra, foi esse mesmo direito violado pelo Tribunal “ a quo”, uma vez que o tribunal a quo refere que o arguido, no exercício deste direito, prejudicou-se, levando à convicção – que se entende arbitrária – de um juízo de culpa e consequente condenação”».

O que o tribunal a quo simplesmente explicou é que, do muito legítimo exercício do seu direito ao silêncio, não só não pode o arguido esperar que o julgador fique inibido de valorar todos os demais elementos de prova carreados para os autos (desde que o faça respeitando as elementares regras de lógica e de experiência comum), concluindo que os factos ocorreram de determinada forma, como também não pode esperar que aquela valoração se mostre obstaculizada, afinal, por qualquer explicação alternativa (e desde que a mesma revista similar força à luz da mesma lógica e experiência) para os mesmos factos.

Alternativa, note–se bem, que inclusive no caso, como vimos, o tribunal colectivo até apreciou, na medida em que foi proposta pelas testemunhas de defesa, cujos depoimentos também valorou com o mesmo rigor de todos os outros elementos probatórios.

E também nessa parte se constata que são as mesmas regras de lógica e de experiência, aliadas à falta de sustentação material de tal proposta – desde logo porque contrariada por outros elementos dos autos –, que ainda mais robustecem a convicção do tribunal.

No fundo, e tendo em conta o que residualmente resulta da lógica que teria de impor–se como alternativa, e ora proposta pelo recorrente, contrariar a convicção a que chegou o tribunal recorrida significaria aceitar como mais coerente e conforme com básicas regras de experiência, desde logo e só num primeiro passo, que o arguido DD se teria deslocado de Lisboa ao Porto com uma finalidade que nem as suas testemunhas de defesa conseguiram sustentar à luz dos dados objectivos inerentes a tal deslocação ; sendo naquela cidade recolhido por alguém que especificamente ali se deslocou para ir buscar a droga/cocaína cuja venda iria intermediar, acompanhando ao longo da viagem os contactos telefónicos que o mesmo ia fazendo com a pessoa que esperava a sua chegada ao Porto com a mesma droga ; tudo enquanto não largava de vista, nem das mãos, uma mochila vazia, pela qual teria, assim, algum eventual fetiche eventualmente derivado da respectiva marca.

Sim, mochila vazia, porque, contrariamente ao sugestionado (coisa bem diferente de afirmado) pela testemunha YYY (esposa do arguido) que seria habitual aquando das deslocações do arguido «ao Norte», desta vez, e neste dia, o mesmo não transportou qualquer peça de vestuário naquela mochila que era a dele (mochila que a testemunha, aliás, expressamente confrontada pelo tribunal com a fotografia da mesma junta a fl. 232, peremptoriamente reconheceu ser a do seu marido), pois que nem os autos de apreensão de fls. 222, 224, 225 e 226, nem a reportagem fotográfica de fl. 227/232, reportam a presença de tais objectos no local e na altura, e nada mais foi alegado conter a mesma.

Só este primeiro passo já se revela de tal forma inseguro, que não se julga sequer razoável prosseguir no caminho proposto.

Não foi, pois, de forma nenhuma o exercício do direito ao silêncio pelo arguido que o prejudicou – mas antes a dimensão e robustez dos indícios probatórios que o tribunal colectivo, de forma absolutamente válida e coerente, recolheu a partir dos variados elementos de prova carreados para os autos.

E contra tal robustez nada podem os singelos trechos probatórios invocados pelo recorrente.

Aliás, com relação a qualquer deles, e muito em especial no que tange aos do depoimento da testemunha HH, é inclusive com acentuada dificuldade que se percepciona em que medida ou grau o mesmo pode sequer ser interpretado como contrariando a convicção a que nesta matéria chegou o tribunal recorrido.

De tudo o exposto resulta, pois, que o Tribunal fundamentou devidamente a sus decisão quanto a esta parte da matéria de facto, valorando-a, segundo o princípio da livre apreciação da prova, sem que se ressalta qualquer atropelo as regras de experiencia comum, pelo que nada há a apontar em o Tribunal a quo ter dado como provada esta matéria de facto nos termos descritos na decisão recorrida, sendo que de forma nenhuma qualquer elemento dos autos aponta inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela primeira instância – contrariamente ao pretendido pelo arguido/recorrente.

Em face do exposto, impõe-se concluir que a avaliação da prova foi correctamente realizada pelo Tribunal a quo, que a fez reflectir de forma estruturada e fundamentada na sentença, nada havendo a censurar ou a alterar.

Não se considera, pois, verificado qualquer erro de julgamento quanto aos pontos 24., 25., 31., 34., e 48. da matéria de facto dada por provada na decisão recorrida – improcedendo, assim, a respectiva impugnação por parte do arguido DD.

4.2.     Por referência aos factos típicos do crime de branqueamento imputado aos arguidos EE, Lda.” e “B..., Lda.”.

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

           Vem também o Ministério Público recorrer impugnando a decisão em sede de matéria de facto adoptada no acórdão recorrido.

Faz incidir tal impugnação, e em síntese, na discordância quanto a haver sido considerada, perla primeira instância, como não demonstradas, por um lado, a participação do arguido EE numa actividade organizada de tráfico de estupefacientes prolongada no tempo (da qual os factos do dia 02/09/2021 teriam sido mera consumação), e, por outro lado, e em tal contexto, também a correlativa actuação do mesmo arguido – e, por seu intermédio, a das suas sociedades, também arguidas, “A..., Lda.” e “B..., Lda.” – na ocultação e obtenção de vantagens económicas derivadas de uma tal actividade ilícita criminosa.

Tudo com o desiderato cardeal de, a jusante, reverter as decisões jurídico–penais quer de absolvição dos três aludidos arguidos da prática do crime de branqueamento de capitais de que vinham acusados, quer também de parcial (mas substancial) improcedência dos pedidos de perda alargada e de perda clássica de vantagens que vinham formulados pelo Ministério Público nos autos.

Cumpre iniciar a análise desta parte da pretensão recursória do Ministério Público deixando bem claro o seguinte.

Salvo o muito devido respeito, os termos da impugnação recursória do Ministério Público nesta parte não são um exemplo de clareza no que à delimitação dos respectivos fundamentos diz respeito.

Assim, e pese embora aludindo pontualmente, designadamente em algumas passagens das suas alegações de recurso, à existência de erros e contradições na fundamentação de facto do acórdão, a verdade é que basicamente o recorrente apela à ponderação do teor de variados elementos probatórios produzidos nos autos (nomeadamente de declarações e depoimentos, de intercepções telefónicas e de análises contabilísticas, por exemplo).

E muitas vezes, deve dizer–se também, sem que seja totalmente perceptível a que factos concretos se reporta a impugnação por via de que elementos de prova, e em que termos exactamente os mesmos impõem uma decisão diversa da recorrida.

E mesmo quando, na sua argumentação, amiúde reporta a passagens do acórdão em que são enunciados os elementos probatórios em que se sustenta a sua decisão sobre a matéria de facto, o recorrente fá–lo, sempre e invariavelmente, no sentido de procurar demonstrar a mais valia da sua própria valoração probatória de tais elementos por sobre aquela efectuada pelo tribunal colectivo, o que, sempre, reporta logicamente ao respectivo teor, e não à sua mera referenciação em sede de acórdão.

Tudo para dizer, portanto, que atenta a configuração da pretensão recursória nesta parte, e pese embora a aludida falta de clareza que em certas partes da mesma se evidencia, esta instância irá apreciar o recurso do Ministério Público em sede de matéria de facto enquanto impugnação ampla da respectiva decisão, isto é, enquanto invocação de erro de julgamento da matéria de facto, nos termos previstos no art. 412º/2/4 do Cód. de Processo Penal.

De todo o modo, e para que dúvidas se não suscitem, deixa–se também expressamente consignado – como, aliás, já se enunciou supra a propósito da impugnação da matéria de facto efectuada pelo arguido DD – que não se detecta no teor do acórdão recorrido a verificação de qualquer dos vícios decisórios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.

Na sua construção intrínseca, tal como se mostra expressa pelo tribunal recorrido, o acórdão recorrido mostra–se provido com a matéria de facto necessária e suficiente para a prolacção da decisão jurídica nos termos em que vem a ser a mesma adoptada, inexistindo qualquer contradição quer no percurso por essa matéria de facto, quer no confronto desta com a respectiva motivação ou com quanto vem a ser decidido a jusante – mais não revelando a apreciação da prova qualquer flagrante desconformidade com regras de lógica ou de experiência comum.

Os erros e contradições na fundamentação a que o recorrente esparsamente alude, não se reportam a deficiências intrínsecas na fundamentação de facto (seja em sede de elenco dos factos provados e não provados, seja por confronto dos mesmos com a motivação da respectiva decisão) ou no contraponto da mesma com a decisão jurídica adoptada, e que sejam imanentes do estrito teor do acórdão recorrido (pressuposto sine qua non para que possa questionar–se qualquer dos vícios prevenidos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal) – tais erros e contradições são alegados como resultando do confronto entre a fundamentação do acórdão, com aquela que é a apreciação probatória, e convicção dela resultante, alternativamente formuladas e propugnadas pelo próprio recorrente.

Esclarecidos estes aspectos, prossigamos.

Em síntese se poderá dizer que o recorrente/Ministério Público assenta a sua impugnação da decisão sobre a matéria de facto do acórdão, essencialmente em três aspectos fundamentais que considera haverem sido incorrectamente julgados e decididos pelo tribunal a quo, e que propugna deverem ter–se por demonstrados : 

i.         em quanto respeita à ligação do arguido EE, ao longo do tempo, a uma continuada actividade, organizada e de âmbito internacional, de tráfico de estupefacientes, prévia a 02/09/2021, e da qual os actos então praticados seriam apenas um momento de execução,

ii.        no que toca ao papel de liderança do mesmo arguido EE relativamente ao negócio de aquisição para venda da quantidade de cocaína transportada no dia 02/09/2021 e apreendida nos autos,

iii.       e no que respeita à utilização, pelo arguido EE, das sociedades arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.”, no âmbito daquela aludida participação numa continuada actividade de tráfico de estupefacientes, por forma a através das mesmas dissimular e dissipar a origem de valores monetários provenientes dessa actividade criminosa, e de auferir da mesma vantagens económicas.

           Apreciemos, de acordo com esta ordem as vertentes da impugnação assim suscitadas pelo recorrente – ainda que em especial a primeira e terceira estejam indelevelmente conexionadas entre si –, partindo sempre, como não pode deixar de ser, do reporte aos pontos da matéria de facto especificamente indicados como impugnados pelo recorrente, em cumprimento do dever processual que lhe é imposto pelo art. 412º/3/a) do Cód. de Processo Penal.

i.         No que concerne à parte em que não se considerou assente que o arguido EE tinha ligações a uma rede organizada e internacional de tráfico de estupefacientes, impugna desde logo o recorrente o julgamento do facto consignado na alínea a) da matéria de facto não provada, cujo teor, recorda–se agora, é o seguinte :

a)        Os arguidos EE, CC, BB e DD fazem parte de uma rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha, cujo objectivo é a introdução de produto de natureza estupefaciente em Portugal.

           

           Partamos, pois, para a análise deste primeiro segmento da impugnação do recorrente – desconsiderando necessariamente desde logo a circunstância de a imputação do Ministério Público/acusador que aqui estava em causa se reportar aos quatro arguidos no âmbito de uma actuação comum e conjugada entre todos, e a impugnação do Ministério Público/recorrente apenas se dirigir a um deles.

           Entende, pois, o recorrente que deve ter–se por demonstrado que (pelo menos, portanto) o arguido EE fazia parte, em momento anterior ao dos factos do dia 2 de Setembro de 2021, de uma tal rede internacional de tráfico de estupefacientes, conclusão que diz assentar numa «avaliação conjugada de toda a matéria factual e probatória apurada e admitida na própria decisão recorrida que, conjugada com as regras da experiência, apontam para a existência de uma relação prévia do arguido AA com o tráfico de estupefacientes».

           Desde logo não passa sem registo a circunstância de o facto que era imputado na acusação e que se mostra não provado nesta alínea a) da matéria de facto não provada se reportar à participação do arguido EE numa «rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha, cujo objectivo é a introdução de produto de natureza estupefaciente em Portugal», e o ora recorrente procurar – ao longo aliás de todo o seu requerimento recursório –transfigurar essa configuração factual numa mais genérica «relação prévia do arguido com o tráfico de estupefacientes».

           Não sendo, embora, aspecto que se revele determinante em termos substanciais, não deixa de logo à partida indiciar a assunção de uma inviabilidade impugnatória de alcançar a materialidade específica imputada na acusação.

           Seja como for, certo é que não merece provimento a pretensão do recorrente – mesmo nesta perspectiva mais genérica por si propugnada nesta sede.

           

Todos os elementos probatórios a que o recorrente aqui apela (o número, volume e frequência das operações bancárias objectivamente reveladas nos autos – nomeadamente em numerário – em benefício do arguido e das sociedades arguidas por si tituladas, a falta de substracto económico destas últimas, e sua intervenção nos factos do dia 02/09/2021) foram objecto de análise também pelo tribunal a quo, ou seja, é patente que todos os elementos e segmentos de prova invocados pelo recorrente foram devidamente ponderados pela primeira instância, não se mostrando de todo arredados da sua ponderação probatória, e com relação precisamente à matéria fáctica cujo sentido o recurso pretendia inverter.

E em resultado de tal ponderação, a primeira instância concluiu serem tais elementos insuficientes, mesmo na sua indiscutível e assumida (pelo tribunal) indiciação de práticas ilícitas, para demonstrar aquela ligação do arguido EE a uma actividade de tráfico de estupefacientes, e que teria de ter sido, naturalmente, desenvolvida ao longo de todo o tempo em que tais ocorrências indiciárias se foram verificando.

           Ora, no caso, mostram–se absolutamente correctos os parâmetros que, em tese geral, o recorrente aponta vigorarem em sede de exercício de avaliação probatória dos factos por via indiciária ou indirecta. Porém, aquilo que, de forma nenhuma, o recorrente pode criticar no correspondente exercício levado a cabo pelo tribunal a quo no caso concreto dos autos, é que o mesmo não se tenha traduzido no exigido «particular esforço de fundamentação».

           Na verdade, em certos passos do seu requerimento, o Ministério Público aparenta laborar no equívoco de que o tribunal a quo não se teria apercebido da relevância indiciária dos elementos probatórios a que o recurso vem agora também enunciar – como se fosse apenas nesta sede recursória que os mesmos foram devidamente escalpelizados e ponderados (pelo recorrente claro).

Nada menos rigoroso.

Resulta claro da fundamentação de facto e respectiva motivação levada a cabo pelo tribunal a quo, que este último admite – e admite–o também, sem rebuço, esta segunda instância – que os elementos probatórios invocados pelo recorrente permitem referenciar um elenco de indícios de que da parte do arguido poderia vir sendo desenvolvida uma qualquer actividade de carácter não lícito.

O que o tribunal a quo entende não poder ter–se por suficientemente demonstrado é que essa actividade fosse a de tráfico de estupefacientes, o que faz nomeadamente nos seguintes termos onde tal conclusão mais apertadamente se sintetiza : «A participação dos arguidos numa rede internacional dedicada ao tráfico de estupefacientes ficou por demonstrar, por não ter sido produzida qualquer prova que a corroborasse, nem os arguidos a admitiram, nem as testemunhas inquiridas a confirmaram, nem as intercepções telefónicas e demais elementos probatórios recolhidos permitiram dar como assente esse facto.

O facto de o arguido AA comunicar com indivíduos em Espanha ou de nacionalidade Brasileira ou a circunstância de, sobre ele impender a suspeita comunicada pelas autoridades norte americanas que deu origem aos presentes autos, é, evidentemente, insuficiente para que se possa considerar que fizesse parte da alegada rede. Note-se que, apesar da investigação ter começado a 31 de Maio de 2021, até ao dia 2 de Setembro de 2021, os arguidos BB e DD eram totalmente desconhecidos dos investigadores, não tendo sido interceptadas conversações em que tivessem participado, o que também não permite sustentar que fizessem parte de uma rede internacional dedicada ao narcotráfico.

O que resulta evidente da prova produzida é que a suspeita comunicada às autoridades portuguesas não foi confirmada e que, além da transacção de estupefaciente comprovadamente ocorrida a 2 de Setembro de 2021, mais nenhuma foi demonstrada. Não tendo a investigação apurado qualquer facto que permitisse concluir que os arguidos integravam “uma rede de tráfico de estupefacientes, com ligações internacionais, designadamente ao Brasil e a Espanha”, toda essa factualidade foi considerada não provada.

Também porque nenhum elemento probatório recolhido permitiu relacionar os montantes em numerário detidos pelos arguidos, com o tráfico de estupefacientes, essa factualidade foi igualmente considerada não provada.».

É, aliás, o próprio recorrente que, materialmente, acaba por revelar bem compreender não aportar a sua argumentação qualquer elemento de que decorra a imposição de alteração do sentido deste ponto da matéria de facto não provada, quando refere que «toda a atuação apurada quanto ao arguido EE e às sociedades por si dominadas viabiliza a associação das práticas de ocultação financeira demonstradas com a realidade de tráfico de estupefacientes, revelada nos autos em forma de crime consumado em Setembro de 2021» – sublinhado agora aposto.

Ora, como acima se disse, para que possa proceder a impugnação ampla da matéria de facto aqui pretendida, não basta estar demonstrada a possibilidade – que se «viabilize», para usar a expressão do recorrente – de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo, mostrando–se sim necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal.

O tribunal a quo, avaliando todos os elementos probatórios invocados pelo recorrente – e, diga–se, ainda mais vários outros que o ora recorrente omite, pese embora propugne dever ser efectuada uma avaliação conjugada de toda a prova –, concluiu que, em momento anterior a Setembro de 2021, absolutamente nenhum deles demonstra a ligação do arguido EE a actividade de tráfico de estupefacientes.

E crê–se inabalada tal conclusão.

Revertendo mais uma vez ao apelo do recorrente aos critérios de avaliação da chamada prova indirecta, dir–se–ia que, no caso dos autos, falta desde logo a sustentação objectiva e quantitativa de quaisquer outros actos de tráfico de estupefacientes reportados ao período em que nomeadamente todas aquelas transacções e operações monetárias tiveram lugar, para que se possa falar na convergência de uma pluralidade de facos–base.

Sendo que, precisamente a tal propósito, não pode deixar de se recordar o recorrente (pois que, aparentemente, se esqueceu desse pormenor), que em sede de acusação alguns factos assaz pertinentes nesse sentido até vinham imputados, não logrando, porém, demonstrar–se.

Na verdade, cumpre realçar que a acusação reportava o início da actividade de tráfico de estupefacientes dos arguidos a Maio de 2021, e em muito em concreto contextualizava um imputado conjunto de factos relativos a uma deslocação dos arguidos EE e CC a Lisboa nos dias 31/05 e 01/06 de 2021, no âmbito um encontro com vista a transaccionarem cocaína.

Ora, tendo sido provada objectivamente a deslocação em causa (cfr. pontos 4. a 12. da matéria de facto provada), vieram a resultar como não provados os seguintes factos :

b)        Para esse efeito, desde meados de Maio do ano de 2021, organizaram-se e elaboraram um plano em ordem a garantir a entrada e comercialização, em Portugal, de cocaína.

d)        Para além da situação ocorrida no dia 2 de Setembro de 2021 os arguidos combinaram outros encontros onde transaccionaram cocaína, designadamente, nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2021.

           Em similares termos, mais se imputava, sempre em termos muito específicos, aos arguidos EE e CC haverem os mesmos mantido uma conversa telefónica em 23/06/2021, no âmbito da qual teriam tratado da aquisição de estupefacientes.

Ora, tendo sido provada objectivamente a conversa telefónica em causa (cfr. pontos 13. a 16. da matéria de facto provada), veio a resultar como não provado o seguinte facto :

i)         Na conversa mencionada no ponto 13) dos factos provados (telefonema de 23/6/21) os arguidos EE e CC falam sobre quantias a entregar para a aquisição de estupefaciente.

           Pois bem, e como se constata, o julgamento que se mostra efectuado destes factos – designadamente os considerados não provados nestas alíneas b), d) e i) – não se mostra objecto de impugnação por parte do Ministério Público.

           Ou seja, o Ministério Público que, enquanto recorrente, vem pugnar pela existência de erro de julgamento no que tange à não consideração como assente de uma ligação do arguido EE à actividade de tráfico de estupefacientes num período de tempo anterior ao dia 02/09/2021, conforma–se afinal com a consideração como não provados de actos que in concreto traduziriam uma tal ligação.

          Se fossem traduzíveis para os requerimentos recursórios os vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal, poderia dizer–se estarmos aqui perante uma contradição insanável na impugnação da matéria de facto.

E a verdade é que tal contradição não deixa de traduzir, também ela, a liminar falência da argumentação do recorrente neste segmento.

Em suma, os elementos de prova invocados pelo recorrente não permitem inquinar a leitura que o tribunal a quo, neste concreto aspecto, fez da prova produzida – ou seja, não se demonstra, como seria necessário, a existência de prova que impusesse decisão diversa.

A forma como o tribunal a quo valorou os elementos probatórios dos autos se integra num exercício de exame crítico criterioso e claro que não merece, neste segmento, qualquer censura, julgando–se que a prova produzida não determina, de todo, e em termos de decisão sobre a matéria de facto, conclusão diversa daquela exarada na decisão recorrida.

O que decorre dos termos do recurso é exactamente que não agrada ao recorrente a convicção a que chegou o tribunal em resultado da avaliação feita pelo mesmo da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pretendendo afinal substituir a convicção do tribunal a quo pela sua, assente esta última numa valoração diversa dos aludidos elementos probatórios.

Não é isso, contudo, que pode só por si sustentar uma sindicância que inquine o julgamento de facto recorrido. O recorrente poderá não concordar com a apreciação que nesta parte é feita pelo julgador – mas em momento algum a sua própria apreciação permite contrapor a decisão que foi adoptada pelo tribunal e os alicerces da mesma.

           À luz de tudo quanto acaba de se expor, não se considera, pois, que se imponha, por via do propugnado pelo recorrente, qualquer alteração da matéria de facto no que tange a esta alínea a) da matéria de facto não provada.

ii.        No que respeita ao papel de liderança do arguido EE relativamente ao negócio de aquisição para venda da quantidade de cocaína transportada no dia 02/09/2021 e apreendida nos autos, impugna o recorrente o facto consignado nos pontos 21. a 23. da matéria de facto provada, cujo teor é o seguinte :

21 -  No dia 23 de Agosto de 2021, pelas 21h57m, o arguido CC, utilizando o número de telefone ..., telefonou ao arguido AA, questionando-o sobre a possibilidade de efectuar uma transacção de cocaína, ao que este anuiu.

22 -    Nessa ocasião o arguido CC informou o arguido AA que os interessados na aquisição da cocaína estavam de férias, mas que regressariam no sábado seguinte.

23 -   No dia 02 de Setembro de 2021, os arguidos CC, EE, BB e DD decidiram concretizar essa transacção de cocaína.

Suscita o recorrente a impugnação aqui em causa na medida em que entende que na redacção de tais pontos da matéria de facto não se mostra vertida adequadamente a realidade claramente apurada nos autos, resultante das intercepções telefónicas e da confissão do arguido CC – nas partes de tais elementos probatórios a que o recorrente especificadamente apela –, no sentido de que a iniciativa da operação e o controlo dos meios, designadamente quanto aos contactos necessários à obtenção da cocaína apreendida, coube ao arguido EE.

Nesta parte julga–se assistir, pelo menos em parte, razão ao recorrente.

Sendo que, cumpre deixá–lo claro, a perspectiva da alteração que neste caso se impõe é precisamente mais a de uma completude da matéria de facto no sentido de clarificar algo que, em bom rigor, já transpareceria evidenciado por via quer do teor de outros factos tidos como assentes no acórdão, quer também do próprio exercício de motivação da decisão de facto ali exarado.

Seja como for, é certo, como bem realça nesta parte o recorrente, que a própria descrição dos factos efectuada pelo arguido CC – e à qual, aliás, o tribunal recorrido atribuiu credibilidade dentro dos limites objectivos da mesma –, desde logo revela o aludido maior controlo da operação levada a cabo no dia 02/09/2021 por parte do arguido EE.

Assim – e como, aliás, bem realça o acórdão recorrido em sede de motivação –, nas suas declarações o arguido CC referiu que a transacção de cocaína que se concretizou nesse dia foi proposta pelo arguido EE que, por ter um contacto em Lisboa, propôs um negócio de venda de droga, para o qual ele (arguido CC) arranjaria um comprador.

Isso mesmo resulta evidenciado também por via da intercepção telefónica do dia 23/08/2021, transcrita a fls. 13 a 15 do Apenso I – que, ademais, o arguido CC, confrontado com a mesma, assumiu reportar–se ao negócio de estupefacientes que combinou com os arguidos EE e BB e que se concretizou a 02/09/2021.

É o seguinte o teor de tal conversa – identificando–se como “JJ” o arguido AA e como “WWWWW” o arguido CC –, no segmento da mesma que releva para quanto aqui importa ponderar :

WWWWW –     Olha, e aquela cena lá...que tinhas lá em baixo, conseguiste desenrascar em alguém?

JJ -      Não, tá...o resto tá tudo em dia, o proble...o meu problema está sendo isto cara, porque eu tenho...

WWWWW -     Não, não...sim, mas pera aí. Aquela cena que tu tinhas... lá em baixo...

JJ-       Hmmm.

WWWWW -     Foda-se... o bacalhau, que tava lá em baixo.

JJ -      Não, não mandei para ninguém...

WWWWW –     Você entendeu?

JJ -      Não mandei para ninguém...

WWWWW –      Você entendeu?

JJ -     Também tá todo o mundo, todo o mundo fala que não precisa que está de férias. Deixo todo o mundo de férias. Quando chegar aqui aí todo o mundo paga mais caro (impercetível) mercadoria... Eu acho que vai tar mais caro.

WWWWW -     Ouve eu...a mal...a malta que eu conheço tá de férias e sei que isto está tudo seco. Tu tens no...no dia que tu quiseres? Faz de conta, hoje queres, pode-se ir lá buscar?

JJ -      Tenho.

WWWWW -     Então eu, eu acho que eles vão... chegam agora no sábado ou o carago.

JJ -      Porra irmão, você não sabe, é muita coisa que aconteceu nos últimos tempos. Eu arrumei um negócio que eu precisava arrumar. Já consigo trazer em vinte e quatro horas...

WWWWW -     Foda-se.

...         , já tá tudo armado.

Desta conversa resulta, pois, que o entre o arguido EE e CC são acertadas as linhas gerais do procedimento relativo à transacção de estupefacientes executada dias depois, a 02/09/2021, referindo o arguido EE que «arrumei um negócio» que consegue «trazer em vinte e quatro horas», tendo entretanto o arguido CC referido que, uma vez que o arguido AA tem e pode ir buscar, «então eu acho que eles vão… chegam agora no sábado ou o carago» – referindo–se à «malta que eu conheço», a qual «tá de férias e sei que isto está tudo seco».

Revertendo directamente à alegação do recorrente/Ministério Público nesta parte, deve desde logo notar–se que do teor da conversa em causa não resulta rigorosamente que a iniciativa de falar num potencial negócio de droga parta do arguido EE, como bem vem a consignar o tribunal a quo no ponto 21. da matéria de facto provada – em boa verdade, é o arguido CC que, sabedor da capacidade, naquele momento, de o arguido EE arranjar um fornecimento de estupefaciente em Lisboa, que lhe pergunta se tal é viável no pressuposto de ele, CC, arranjar um destinatário para essa droga nos próximos dias.

Não obstante, é verdade que resulta também claro do conteúdo desta mesma conversa – em coerência, aliás, quer com os termos como o arguido CC a contextualizou nas suas declarações, quer com aquilo que objectiva e materialmente veio a ocorrer nos dias seguintes, culminando a 02/09/2021 –, que é apenas e só por via dos meios de que o EE dispõe e que lhe permitem na altura obter aquela partida de cocaína, que o negócio passa da mera hipótese eventual suscitada pelo arguido CC, para uma concretização efectiva que, como vem a verificar–se, ocorre sob direcção e orientação do arguido EE.

Na verdade, resulta também dos elementos probatórios dos autos (designadamente das intercepções telefónicas, vigilância policial e declarações dos arguidos) que foi o arguido EE quem foi recolher a Lisboa o arguido DD e a cocaína que estava sendo transaccionada, decorrendo ainda das declarações do arguido CC – conforme, aliás, trecho supra transcrito em sede de impugnação da matéria de facto pelo arguido DD – que foi o arguido EE quem, após entrar nas instalações da “B..., Lda.” naquele dia na posse da droga, se dirigiu com o arguido DD para o escritório onde a droga foi colocada, ficando o arguido CC na zona fabril.

A tudo isto se associe a circunstância, documentalmente atestada nos autos (cfr. designadamente a cópia do contrato de trabalho, junta a fls. 2345, com início a 23/03/2021, celebrado entre o arguido CC e a “B..., Lda.” representada pelo arguido EE) e, aliás, dada por assente no ponto 226. da matéria de facto provada, de que o arguido EE era, à data, o patrão do arguido CC, pois que trabalhava para o mesmo na empresa “B..., Lda.”.

           Em suma, entende–se na verdade que estes elementos probatórios, valorados aliás exactamente de acordo com o mesmo critério de credibilidade que orientou o processo de formação da convicção do tribunal a quo, é adequado e suficiente para fazer aqui funcionar a possibilidade concedida a esta instância de alteração da matéria de facto nos termos do art. 431º/b) do Cód. de Processo Penal – onde se dispõe que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada, e nomeadamente, «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º».

E, nessa medida, será de alterar em especial o ponto 21. da matéria de facto provada no sentido de clarificar o contexto em que o negócio de transacção de cocaína executado no dia 02/09/2021 assentou no controlo do acesso ao fornecimento de tal produto por parte do arguido EE.

Não se determina, outrossim, a alteração dos demais pontos (22. e 23.) aqui também especificados na impugnação, por o respectivo teor, tal como se mostra consignado, não conflituar com o sentido da alteração agora introduzida, sendo logicamente compatível com a mesma.

Assim, determina–se, nos termos do disposto no art. 431º/b) do Cód. de Processo Penal, a alteração do ponto 21. da matéria de facto provada em sede de acórdão, no sentido quer de o mesmo passar a ter a seguinte redacção :

21 -      No dia 23 de Agosto de 2021, pelas 21h57m, o arguido CC, utilizando o número de telefone ..., telefonou ao arguido AA, questionando-o sobre a possibilidade que o mesmo teria de efectuar uma transacção de cocaína, tendo o arguido EE referido que conseguia um fornecimento de tal produto, podendo por essa via levar a cabo a aludida transacção, acordando com o arguido CC que este arranjaria comprador para o mesmo.

 iii.       Vem enfim o recorrente/Ministério Público impugnar o julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal a quo no que se refere à não demonstração da utilização, pelo arguido EE, das sociedades arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.”, no âmbito daquela aludida participação numa actividade de tráfico de estupefacientes, e por forma a através das mesmas dissimular e dissipar a origem de valores monetários provenientes dessa actividade criminosa, e de auferir da mesma vantagens económicas.

           Nesta parte o recorrente especifica impugnar o ponto 79. da matéria de facto provada, e as alíneas r), s), t) ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww) da matéria de facto não provada – cujo teor começa aqui por se recordar :

79       - Antes teve proveniência em concreto não apurada e destinava-se a ser reintroduzida na economia por AA, o que não veio a acontecer, por aquela operação bancária ter sido suspensa.

(referência que se reporta à transferência bancária da quantia de €3.254.335,00 para conta da sociedade arguida “A..., Lda.” em causa nos pontos 68. a 78. da matéria de facto provada, e que, conforme se mostra assente neste último ponto 78., não visava a efectiva compra de arroz)

r)        O arguido JJ decidiu utilizar estas duas sociedades e receber, através de contas bancárias por elas tituladas, rendimentos provenientes do cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, os quais dissimulou e reintroduziu no circuito económico, através de operações que aparentavam cumprirem as normas legais vigentes.

s)         Na execução dessa tarefa o arguido EE procedeu da forma descrita nos pontos 65) e 66) dos factos provados.

t)         O que fez com vista a dar uma aparência legal a esses valores que sabia terem origem no tráfico de estupefacientes e de modo a encobrir a sua origem.

ff)         As transferências bancárias efectuadas pela sociedade A... para TT, S..., T... Limited, U..., V..., W..., X..., Y...., Z... Llc., Aa... Limited, Ab..., Ac... Lda., Ad..., não são compagináveis com o objecto social da A... e não se referem a serviços/negócios prestados à A....

mm)    Os montantes depositados em numerário, bem como aqueles que foram transferidos de, ou para, as contas bancárias tituladas pela sociedade A... mencionados nos factos provados tiveram origem na prática do crime de tráfico de estupefacientes, destinando-se as operações bancárias a eles atinentes a encobrir os lucros advindos dessa actividade.

nn)       A sociedade B... foi usada pelo arguido JJ para encobrir os lucros advindos do tráfico de produtos estupefacientes.

ss)        O arguido AA actuou, por si e em nome, no interesse e em representação das sociedades comerciais “A... Unipessoal Lda.” e “B... Lda.”, em execução de um plano prévio, de modo livre, deliberado e consciente, com o propósito de, através dessas sociedades, dissimular os proveitos económicos obtidos através de actividade, que sabia ser ilícita, resultante da prática de crime de tráfico de estupefacientes.

tt)        Agiu ainda, por si e em nome, no interesse e em representação das sociedades arguidas, sob a mesma resolução, com o propósito de que as quantias em dinheiro e as transferências bancárias não fossem relacionadas com a actividade de tráfico de estupefacientes que desenvolvia.

uu)      De modo a que, como produto dessa actividade, tais quantias não fossem rastreáveis e apreendidas e ainda para evitar que pudesse vir a ser responsabilizado criminalmente.

vv)       O arguido EE, por si e em representação das mencionadas sociedades, acordou levar a cabo as suas condutas, bem sabendo que dificultava a detecção da proveniência do dinheiro e a sua ligação com o seu real destinatário.

ww)     O que fez sabendo que essas condutas eram proibidas e punidas por lei.

           Como de início se enunciou, e resulta, aliás, desde logo muito claro por via dos termos da alegação recursória aqui em causa, esta parte da impugnação do julgamento da matéria de facto está umbilicalmente ligada à impugnação reportada ao ponto a) da matéria de facto não provada, acima analisada.

           Na verdade, é denominador absolutamente comum e transversal a esta parte da presente impugnação, a pretensão do recorrente de que se deva ter por demonstrado que todas as operações bancárias e financeiras a que se reportam estes vários pontos agora sindicados da fundamentação de facto do acórdão proferido, têm origem na actividade de tráfico de estupefacientes que vinha sendo desenvolvida pelo arguido EE ao longo de todo o período das mesmas – isto é, por via da sua ligação à tal organizada rede internacional de tráfico de estupefacientes..

            Donde, seria condição sine qua non da mesma desde logo que se tivesse por demonstrada uma tal ligação do arguido ao tráfico de estupefacientes no período em causa, pois que só assim, logicamente, poderia sequer cogitar–se ser essa a origem de todos aqueles movimentos monetários.

           O que, se quisermos desde já atalhar caminho para a decisão que tal pretensão do recorrente justifica, desde logo anuncia o inevitável naufrágio da mesma.

            Efectivamente, e como acima já se analisou, não se impõe nos autos a alteração da matéria de facto considerada em sede de acórdão no sentido de se ter por assente uma ligação do arguido EE à actividade de tráfico de estupefacientes (coisa inclusive sempre distinta, volta a realçar–se, de pertencer a uma rede organizada internacional com tal objecto) em momento anterior a, no limite, meados de Agosto de 2021 – a conversa telefónica que acima se evidenciou ocorre no dia 23 deste último mês.

            Pois bem, nesta parte do seu recurso, reitera o recorrente basicamente a mesma linha de argumentação e o apelo essencialmente aos mesmos elementos probatórios com que antes – ou simultaneamente, para sermos mais rigorosos – sustenta a sua pugna pela consideração daquela ligação.

           Porém, também nesta sede se constata que todos os elementos probatórios aqui invocados foram objecto de apreciação pelo tribunal a quo, não se revelando que a conclusão extraída da sua ponderação conjugada deva soçobrar perante a convicção alternativa proposta pelo recorrente.

            Como acima se disse já, e o recorrente aqui volta a realçar, é verdade que a economia da fundamentação de facto da decisão recorrida é no sentido de admitir que os elementos probatórios invocados pelo recorrente permitem referenciar indiciariamente que da parte do arguido poderia vir sendo desenvolvida uma qualquer actividade de carácter não lícito, e que pelo menos algumas das operações financeiras em causa em todos estes pontos agora impugnados da matéria de facto estariam cm ela relacionadas.

           O mesmo se dirá, já agora, relativamente às conversas telefónicas objecto de intercepção e transcrição nos autos, a que o recorrente especificamente alude, mantidas, entre Julho e Agosto de 2021, entre o arguido e a sua esposa (sessão 92251) ou com um terceiro (sessão 92101) e aquela entre o arguido CC e a testemunha SSS (sessão16155).

           E não deixa mesmo de se compreender a indiciada contextualização a que o recorrente apela nas ocorrências que o recorrente assinala relativas à gestão e administração das sociedades arguidos “A..., Lda.” e “B..., Lda.” por parte do arguido EE.

           A questão inultrapassável, porém, é que, apreciando todos esses elementos probatórios, por si e na sua conjugação (ao contrário do que refere o recorrente), o tribunal a quo não teve por suficientemente demonstrado que uma tal indiciada actividade fosse a de tráfico de estupefacientes.

           E a verdade é que não impõe o exercício impugnatório do recorrente a inversão desta fulcral circunstância.

O que aqui em boa verdade se constata é que, na bem significativa expressão utilizada pelos arguidos EE, “A..., Lda.” e “B..., Lda.” na sua resposta ao recurso, «O Ministério Público rebusca e busca os dados das empresas para trás e para frente esquecendo os factos sujeitos a julgamento e que resultam inequívocos da acusação/pronúncia».

           Na verdade, aquilo que seria imprescindível demonstrar para que todas as operações financeiras nestes concretos pontos da matéria de facto ora impugnados relevassem jurídico–criminalmente enquanto actos típicos de crime de branqueamento de capitais, seria, nos termos imputados em sede de acusação, que as mesmas teriam origem numa actividade de tráfico de estupefacientes a que o arguido EE se dedicaria no período em que ocorreram.

           E é a demonstração dessa sua origem concreta, e não apenas a indiciação das operações em causa como ilicitamente suspeitas, que o recorrente propugna em última análise dever ser objecto de alteração fáctica.

           Ora, o tribunal a quo, justificando os motivos pelos quais considera não ser viável dar o salto agora proposto pelo recorrente com a segurança probatória processualmente imposta em sede de sentença, explicita – desde logo por referência às transacções comunicadas por entidades bancárias referentes a contas tituladas pela arguida “A..., Lda.” (nomeadamente aquela em causa no ponto 79. da matéria de facto provada), mas em termos que se podem considerar aplicáveis com referência a todas as operações em causa nas alíneas da matéria de facto não provada ora impugnadas –, nos seguintes termos, e com sublinhados agora apostos :

« Conjugando estes elementos probatórios com as regras de normalidade e de experiência comum foi possível ao tribunal considerar assente que aquele valor a creditar na conta bancária da sociedade A... não proveio da alegada compra e venda de arroz, teve antes proveniência em concreto não apurada e que e destinava a ser (re)introduzido na economia por AA, o que não veio a acontecer, por aquela operação bancária ter sido comunicada pelo banco e judicialmente suspensa, tal como se comprova a partir do despacho de fls. 175, do volume 1º do Apenso III. Tendo, posteriormente, também por decisão judicial de 29/12/2021 (cf. fls. 970 a 974 dos autos principais), sido ordenado o congelamento imediato dos fundos depositados nessa conta, bem como os levantamentos e operações a débito.

Todavia, apesar de não se aceitar que aquela transferência se destinasse a pagar o arroz vendido pela A..., a verdade é que a sua real proveniência ficou por demonstrar, não tendo sido sequer objecto de investigação.

É certo que o Ministério Público alega que esse valor advém da prática do crime de tráfico de estupefacientes, porém, o que resulta evidenciado nos autos é que essa transferência foi ordenada em Março de 2021, altura em que não havia notícia da prática de qualquer acto que configurasse um facto ilícito típico integrante do crime de tráfico de estupefacientes. Efectivamente, até 2 de Setembro de 2021, inexiste comprovação da prática por parte do arguido EE ou de qualquer outra pessoa, de actos de tráfico de estupefacientes geradores de proventos que o arguido estivesse incumbido de integrar na chamada economia legítima.

Não se alcança como seja possível concluir que aquela quantia tivesse como proveniência os lucros obtidos pela prática do crime de tráfico que ainda não havia sido cometido.

Por outro lado, também se nos afigura que a quantidade de estupefaciente apreendida a 2 de Setembro de 2021, não é passível de ser relacionada com um valor tão elevado, veja-se que foi apreendido cerca de um quilo e meio de cocaína, com um grau de pureza de apenas 17,2% (que não vale três milhões de euros, nem segundo os elementos juntos aos autos pelo Ministério Público a fls. 1878). Ora, não havendo nos autos notícia de quaisquer outras transacções anteriores de estupefacientes, não é possível correlacionar aquele movimento bancário sequer com o estupefaciente apreendido.

É certo que essa transferência, tal como as que adiante se analisarão, é suspeita, mas não podemos deixar de realçar não ser possível comprovar que se trata de dinheiro proveniente do tráfico de estupefacientes como entendeu o Ministério Público na acusação. Mesmo considerando que o dinheiro provinha efectivamente de indivíduo, ou indivíduos, de nacionalidade venezuelana, esse facto não é, de todo, suficiente para concluir que a quantia em questão seja proveniente do tráfico de estupefacientes.

A acusação limita-se a transcrever a informação apresentada pelo banco que comunicou aquela transacção (meses antes da apreensão de estupefaciente) por a considerar suspeita, o que se aceita, sem, contudo, investigar a proveniência daquele valor. Nenhum elemento de prova foi recolhido quanto à sociedade G... Inc., ou relativamente ao “circuito” do dinheiro e, por isso, não foi possível demonstrar que esse valor tivesse a proveniência que lhe foi atribuída pelo Ministério Público, o tráfico de estupefacientes.

O mesmo sucedendo relativamente aos demais movimentos suspeitos comunicados por outras entidades bancárias.

É verdade que, tendo em consideração as comunicações efectuadas pelos bancos Banco 3... e Banco 2..., de fls. 37 a 41 do volume 1º do Apenso III, o tribunal pôde dar como assente a existência de movimentos em contas tituladas pela sociedade A..., que as respectivas entidades bancárias consideraram suspeitos. Todavia, para além dessas comunicações, reportadas a movimentos ocorridos em 2019, dois anos antes da apreensão da cocaína, também relativamente a eles nenhuma investigação consta dos autos que permita aquilatar da proveniência de tais fundos, designadamente, comprovar que provinham da prática do crime de tráfico de estupefacientes. »

Depois, imediatamente após este passo da motivação, o tribunal a quo passa a analisar (rectius, a esmiuçar) de forma detalhada e integral, todas as demais operações bancárias e financeiras em causa nos autos (nomeadamente aquelas destes pontos da matéria de facto não provada ora impugnados), em especial as que se referem :

–          a transferências recebidas na conta nº ... titulada pela “A..., Lda.” no Banco 1... (movimentada pelo arguido EE), provenientes das seguintes sociedades: (i) I..., entre 19 e 23 de Novembro de 2019; (ii) J..., entre Julho de 2020 e Fevereiro de 2021; (iii) K..., entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021; (iv) L..., entre 19 de Janeiro e 21 de Fevereiro de 2021; (v) M..., entre 18 e 27 de Novembro de 2019; (vi) Ac..., Lda., em 19 de Setembro de 2019; (vii) Ad..., em 4 de Março de 2021; (viii) A..., em Setembro de 2019, de conta por ela titulada no Banco 2...; (ix) Ae... Inc., entre 20 e 24 de Setembro de 2019 e em 1 de Outubro de 2019;

–         as transferências efectuadas pela “A..., Lda.” através da mesma conta para: (i) N..., entre 8 de Fevereiro e 12 de Março de 2021; (ii) P..., entre 17 de Janeiro e 19 de Março de 2021; (iv) Q..., entre Fevereiro e Julho de 2020; (v) R..., SA, sem data mencionada; (vi) TT, entre Setembro de 2020 e Março 2021; (vii) S..., em 24 de Julho de 2020; (viii) T... Limited, em 24 de Novembro de 2020; (ix) U..., em 24 de Novembro de 2020; (x) V..., em 27 de Novembro de 2020; (xi) W..., em 27 de Novembro de 2020; (xii) X..., em 27 de Novembro de 2020; (xiii) Y..., em 2 de Dezembro de 2020; (xiv) Z... Llc., em 27 de Dezembro de 2020; (xv) Aa... Limited, em Dezembro de 2020; (xvi) Ab..., em Setembro de 2019; (xvii) B..., em 26 de Fevereiro de 2021; (xviii) IIII, NNNN, YY, BBB e WW, sem data indicada.

–          e, por fim, a depósitos em numerário.

Pese embora o recorrente aluda, em termos que se reputam nos antípodas do rigor, s tal exercício de motivação probatória como o mero «elencar o numeroso conjunto de operações bancárias sem justificação económica ou racional», a verdade é que, muito pelo contrário, estamos perante uma análise efectuada pelo tribunal a quo de todas estas operações, em si mesmas e conjugando–as e correlacionando–as com vários outros elementos probatórios dos autos, que se revela absolutamente rigorosa e exaustiva – e que, por isso, aqui se dá por integralmente reproduzido.

Análise a partir da qual, e ao longo da qual, invariavelmente, vai concluindo não descortinar a comprovação processual de qualquer relação entre as operações em causa e o tráfico de estupefacientes.

Referindo em especial, mais uma vez em termos que podem considerar–se abrangentes pese embora em concreto reportados a transferências para a “A..., Lda.”, que «Não obstante tivesse sido possível concluir que os montantes acima referidos transferidos pela A... ou recebidos na conta titulada pela A... não se inseriam no seu objecto social, não foi possível concluir que tivessem como proveniência rendimentos obtidos com a prática do crime de tráfico de estupefacientes e que se destinassem a encobrir os lucros provenientes dessa actividade (único fundamento enunciado na acusação para os justificar conforme resulta expressamente dos seus artigos 70º, 71º, 174º, 194º, 195º e 196º).

O caminho trilhado pela investigação e pela acusação, correlacionando os valores movimentados com a prática de factos ilícitos típicos integrantes do crime de tráfico de estupefacientes, ficou, claramente, por demonstrar.

E estando os factos sob julgamento, de acordo com o princípio do acusatório, delimitados pela acusação, que fixa o objecto do processo, arredada está da alçada do tribunal de julgamento a investigação da eventual prática de outros factos ilícitos típicos, que pudessem explicar os movimentos bancários efectuados.

Elencar transferências bancárias anteriores, a crédito e a débito, que não têm correlação com o objecto social da A..., sem que resulte comprovada a prática do crime precedente, no caso, o crime de tráfico de estupefacientes (veja-se que, até dia 2 de Setembro de 2021, não existe qualquer elemento probatório objectivo que permita correlacionar o arguido EE com o tráfico de droga), é quanto basta para o tribunal ter considerado como não provada a indicada proveniência desses valores.» – sublinhados e negrito agora apostos.

 E logo adiante que similar conclusão deve retirar–se com relação à sociedade arguida “B..., Lda.”, passando a analisar, mais uma vez de forma exaustiva que aqui se dá por reproduzida, os vários elementos de prova relativos à mesma e bem assim a levar a cabo a sua correlacionação com as incidências relativas à aquisição e gestão da mesma empresa pelo arguido EE.

           Cumpre notar que nem em um só passo da sua impugnação recursória o recorrente aponta qualquer erro de lógica ou qualquer desajuste material entre o conteúdo de todos os elementos probatórios que o tribunal a quo analisa, e a interpretação e análise que dos mesmos este último faz.

           O que o recorrente entende, ainda e sempre, é que a sua própria apreciação – também lógica e materialmente plausível – é mais valiosa que aquela efectuada pelo tribunal.

            Já se disse e repetiu, porém, que não é isso que permite o sucesso da impugnação ampla do julgamento da matéria de facto efectuado pela primeira instância, e que cumpre a esta instância sindicar – labor que não se confunde com um novo julgamento da causa, que é o que o recorrente propõe.

           

Ora, retomando o percurso da presente análise, o que temos por certo é que nenhum dos elementos probatórios referenciados pelo recorrente e alternativamente interpretados pelo mesmo, impõe que se sobreponha essa alternativa ao julgamento do tribunal a quo.

Julgamento que, apreciada materialidade do mesmo, revela sempre uma bitola que absolutamente conforme com o inevitável respeito pelas regras e limites que se impõem em sede de valoração probatória, decorrentes da correcta aplicação do princípio da livre apreciação da prova – princípio que se mostra expresso no art. 127º do Cód. Processo Penal -– cuja violação, diga–se, vem aludida en passant pelo recorrente em sede de conclusões –, onde se estipula que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

O que tal significa e traduz é, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2021 (proc. 343/18.7SMPRT.P1)[[14]], que na apreciação e valoração dos elementos probatórios disponíveis e, assim, no processo de formação da sua convicção quanto à matéria de facto, «o julgador não está vinculado a conceções políticas ou ideológicas predefinidas ou a prova tarifada, podendo ajuizar as probabilidades das máximas da experiência necessárias à prova indirecta, exigindo-lhe que se liberte dos seus processos psicológicos e da sua moral pessoal, e se coloque numa posição imparcial».

Como contraponto, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo (porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo).

Como diz o Prof. Figueiredo Dias (em ‘Direito Processual Penal’, 1º Vol., págs. 202/203), «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo».

Ou seja, estamos perante um princípio basilar que, não obstante, não pode fazer perder de vista os próprios limites inerentes ao mesmo - e que determinam, acima de tudo, que não se está perante um poder discricionário, a usar pelo mesmo julgador sem qualquer critério.

A violação de tal princípio só ocorrerá quando, maxime, o tribunal não enuncie todos os meios de prova produzidos e valorados ; ou quando não dê conta dos critérios adoptados na respectiva valoração, assim inviabilizando a compreensão da razão pela qual os factos plasmados na decisão foram dados como provados ou não ; ou quando a apreciação da prova não se revele criteriosa, e seja efectuada ao arrepio de critérios 1ógicos e objectivos, ou de elementares regras de experiência comum, fazendo uso desajustado dos princípios da imediação e da oralidade.

Porém, «se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum» – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/06/2015 (proc. 12/14.7GBSRT.C1)[[15]] –, inexistirá desrespeito do princípio em causa, ainda que possa existir algum pontual erro de julgamento a corrigir em sede de recurso.

Pois bem já se disse o suficiente crê–se, para que se deva concluir, contemplado o acórdão de que se recorre e a correspondente valoração que da prova aí foi feita pelo tribunal a quo, ser manifesto que o percurso adoptado para a formação da convicção alcançada por este se mostra suficientemente objectivada e motivada.

No âmbito da sua decisão sobre a matéria de facto, o tribunal explana de forma criteriosa e completa o processo de formação da sua convicção, o que se traduz não apenas na completa indicação dos meios de prova carreados para os autos e utilizados, bem como na enunciação exaustiva e rigorosa de tudo o que o julgador privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio que seguiu e das razões da sua convicção.

Tanto assim é, aliás, que de todo se divisa que na argumentação expendida em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto que o recorrente tenha tido a mais ténue dificuldade em compreender tal percurso de formação da convicção do tribunal recorrido e os critérios da mesma – questão muito diversa de com os mesmos concordar, ou não, materialmente.

Mostra–se assim possível aferir uma correcta utilização do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Cód. de Processo Penal, tendo em vista a verdade prático-jurídica baseada numa convicção objectivável e motivável, não se verificando na decisão recorrida qualquer desrespeito pelo mesmo.

Em conclusão, improcede esta derradeira vertente da impugnação ampla da matéria de facto efectuada pelo recorrente/Ministério Público, não se determinando, pois, qualquer alteração no ponto 79. da matéria de facto provada, nem nos pontos r), s), t) ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww) da matéria de facto não provada.

5.        De        saber se no acórdão recorrido foi violado o princípio da presunção de inocência.

[questão suscitada pelo recurso do arguido DD]

           Invoca o recorrente/arguido DD, a determinado passo do seu recurso, que o tribunal a quo desfavoreceu o arguido ao afirmar a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido um determinado facto relevante, qual seja o de que o mesmo efectuou no dia 02/09/2021 o transporte de cocaína dado por assente nos autos, sendo esse o objectivo da sua deslocação ao Porto, em manifesta violação do princípio da presunção da inocência plasmado no art. 32º/1 da Constituição da República Portuguesa.

           Na verdade, alega, o tribunal a quo imputa ao recorrente a responsabilidade para este explicar o porquê dessa sua deslocação desde Lisboa, quando, em Processo Penal o ónus de fazer prova sobre os factos constantes na acusação, por força do princípio do acusatório, compete única e exclusivamente ao Ministério Público, e nunca ao arguido.

            Donde, conclui, não pode o arguido ser prejudicado porque não explicou um facto que constava na acusação.

           O princípio da presunção de inocência mostra–se desde logo plasmado no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, onde se estipula que «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».

           

           Reportando aos contornos concretos da invectiva do recorrente DD nesta parte, temos como uma das manifestações e concretizações processuais de tal presunção de inocência, a estatuição do direito ao silêncio que pode ser livremente exercido pelo arguido ao longo de todo o processo e com relação aos actos e factos que lhe sejam imputados, e os correspectivos limites absolutos que se impõem ao julgador em sede de apreciação probatória desses factos perante o exercício de tal direito.

           Assim, logo o art. 61º/1/d) do Cód. de Processo Penal prevê que «O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, do[s] direito[s] de … Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar», direito que encontra concretização no que em especial á fase de julgamento diz respeito desde logo no art. 343º/1 do mesmo Código, onde expressamente se impõe que «O presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo».

           Donde, e sem qualquer dúvida, estaríamos perante uma flagrante violação do princípio aqui em causa, e assim dos direitos processuais do arguido DD, caso a partir do exercício do direito ao silencio pelo qual legitimamente o mesmo optou em audiência, o tribunal a quo houvesse assentado a convicção positiva sobre algum dos factos que lhe eram imputados na acusação criminal formulada.

            Não foi, porém, e muito manifestamente, isso que sucedeu.

            Como já acima (no ponto 4.1., a propósito da impugnação da matéria de facto efectuada pelo mesmo arguido) se referenciou, aquilo que o tribunal a quo simplesmente explicou em sede de motivação, foi que do legítimo exercício do seu direito ao silêncio, não só não pode o arguido esperar que o julgador fique inibido de valorar todos os demais elementos de prova carreados para os autos (desde que o faça respeitando as elementares regras de lógica e de experiência comum, como aqui sucedeu), concluindo que os factos ocorreram de determinada forma, como também não pode esperar que aquela valoração se mostre obstaculizada, afinal, por qualquer explicação alternativa (e desde que a mesma revista similar força à luz da mesma lógica e experiência) para os mesmos factos.

           E é esse o equívoco em que labora o recorrente, isto é, interpretar o direito ao silêncio que assiste ao arguido e o não prejuízo daí decorrente em termos de avaliação probatória, com um benefício em termos de limitação á consideração a avaliação pelo tribunal de quanto decorra validamente de outros elementos probatórios.

           E, efectivamente, percorrida a decisão recorrida, muito facilmente se constata que não foi por via de uma valoração do silêncio do arguido que o tribunal concluiu que os factos imputados e dados como provados correram pela forma que se mostra assente.

            De todo.

           Essa convicção positiva assentou antes na apreciação conjugada de uma multiplicidade de elementos probatórios carreados para os autos, nos termos que já acima se enunciaram e que dispensam aqui reiteração.

           

            A condenação do arguido assentou, pois, numa convicção positiva do julgador alicerçada em elementos probatórios concretos e seguros o bastante para afastar as dúvidas razoáveis sobre essa mesma convicção, ao contrário do que sugere o recorrente, não se mostrando assim também violada outra expressão do princípio da presunção de inocência e que se consubstancia no princípio do in dúbio pro reo, do qual decorre, em síntese, que qualquer dúvida razoável na convicção do julgador deve ser valorada em benefício do arguido – ou seja, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, I, pág. 213.

Este princípio é, pois, violado quando o tribunal decide contra alguém tendo dúvidas consistentes nesse sentido e em relação à fiabilidade da prova.

Donde, o mesmo não significa dar relevância às dúvidas que os sujeitos processuais encontrem na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014 (proc. 155/13.4PBLMG.C1)[[16]], «a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que o Julgador não logrou ultrapassar».

Pois bem, no caso vertente, o Tribunal a quo não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão.

No presente caso, é inegável, analisando a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, que não se detecta qualquer estado de dúvida na explanação efectuada na motivação da decisão da matéria de facto, antes nela se manifesta uma convicção segura, pelo que não havia que lançar mão do princípio in dubio pro reo, destinado, como vimos, a fazer face aos estados dubitativos do julgador e não a dar resposta às dúvidas da recorrente sobre a matéria de facto, no contexto da valoração probatória por ela efectuada e com base na qual pretende ver substituída a convicção formada pelo tribunal a quo.

Em suma, e concluindo, fica, deste modo e por qualquer das vias, afastada a invocada violação do princípio da presunção de inocência.

6.        De saber se os arguidos EE, Lda.” e “B..., Lda.” devem ser condenados pelo crime de branqueamento de capitais do qual vêm absolvidos.

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

           Nos pontos 6., 7., e 8. que se seguem na economia da presente decisão, cumpre apreciar da pretensões recursórias formuladas pelo Ministério Público na decorrência da por si propugnada, a montante, alteração da matéria de facto no sentido de se ter por demonstrada a ligação do arguido EE à actividade de tráfico de estupefacientes no período a que se reportam os variados movimentos monetários em causa na matéria de facto provada, em benefício das sociedades arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.” – devendo, assim, considerar–se tais movimentos como relacionados com aquela actividade e as quantias em causa dela provenientes.

           Ou, como bem delimita o recorrente em sede de conclusões ao fazer a passagem da impugnação da matéria de facto para a parte do recurso em matéria de Direito, «Revertendo–se a apreciação dos factos apontados» importa extrair conclusões, em termos de configuração jurídico–penal.

           Tão só esta pequena introdução já permite evidenciar a inevitável derrocada de tudo quanto, nessa sede, vem propugnado pelo recorrente/Ministério Público.

            É que, como vem de se analisar, não mereceu acolhimento a alteração da matéria de facto no sentido que aqui seria essencial à procedência do presente requerimento recursório em sede de impugnação da matéria de Direito, ao contrário do pressuposto pelo recorrente ao erigi–la.

            Vejamos, pois.

           Começando pela pretensão do recorrente de que deverá ser revertida a decisão recorrida quanto à integração das condutas do arguido EE e das sociedades arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.”, por si detidas e dominadas, no âmbito do crime de branqueamento de capitais de que se mostravam acusados – e de que vêm absolvidos –, condenando–se numa pena situada nunca antes do meio da moldura abstractamente aplicável.

           Muito sucintamente se começa por referir que são materialmente idênticos os pressupostos típicos do crime de branqueamento de capitais tal como previstos na redacção do art. 368º–A do Cód. Penal – quer na versão de tal artigo em vigor à data dos factos (e decorrente, nos termos analisados pela decisão recorrida para os quais se remete, da Lei 58/2020, de 31 de Agosto), quer à luz daquela entretanto introduzida pelas Leis 79/2021, de 24 de Novembro, e 2/2023, de 16 de Janeiro.

           Assim, e invariavelmente, pratica do crime de branqueamento de capitais, desde logo nos termos do nº3 do referido artigo, «quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal».

           Prevêem por sua vez os nºs 4 e 5, respectivamente, do mesmo art. 368º–A, que igualmente incorre no cometimento do crime ema causa, quem «ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.» ou «não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade».

           Sucede que, ainda antes da enunciação de tais elementos típicos próprios do crime de branqueamento, começa o nº1 do art. 368º–A do Cód. Penal por efectuar uma delimitação objectiva prévia que enformará depois aqueles, estatuindo à partida a definição do que deve entender–se pelo conceito de vantagens cuja manipulação transversalmente caracteriza o cometimento típico criminal em causa.

           De acordo com a mesma, o cometimento do crime de branqueamento só se poderá ter por verificado se estiverem em causa vantagens alcançadas através de um determinado e específico facto ilícito típico antecedente que este preceito enumera especificadamente.

            Assim, prevê-se nesse nº1 do art. 368º–A do Cód. Penal – e revertamos agora ao elenco tipificado na redacção do mesmo em vigor à data dos factos – que «Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:

a)        Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores;

b)         Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de crédito, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;

c)         Falsidade informática, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;

d)         Associação criminosa;

e)         Terrorismo;

f)          Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

g)         Tráfico de armas;

h)        Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos;

i)         Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais;

j)          Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social;

k)        Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado;

l)         Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado;

m)       Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.»

           Adita entretanto o nº2 que se consideram-se igualmente vantagens «os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior».

Donde, estando o preenchimento dos pressupostos do crime de branqueamento de vantagens patrimoniais ilicitamente obtidas dependente à partida da prática de um destes especialmente delimitados crimes precedentes, o primeiro exercício que sempre haverá de efectuar-se é o da dupla constatação de que se mostre assente, primus, o cometimento de actos típicos de um desses ilícitos e, secundus, que dos mesmos resultaram tais vantagens patrimoniais – sendo que uma coisa não implica necessariamente a outra, isto é, nem sempre o cometimento de um daqueles actos típicos tem como resultado a obtenção para o agente, ou para terceiros, de um vantagem de natureza patrimonial.

           Fundamental decorrência do regime assim legalmente estatuído e tipificado, é que esta delimitação é excludente da possibilidade de censurar criminalmente actos de branqueamento de vantagens, ainda que indevidas, se as mesmas tiverem sido obtidas por via de um acto, ainda que ilícito e típico, que não se mostre previsto no catálogo de crimes precedentes referido.

O que significa que falta a necessária condição de punibilidade aos actos de branqueamento de vantagens adquiridas ou provenientes da prática de actos típicos de crime se estes não fossem considerados como integrantes de um daqueles crimes precedentes à data dos ditos actos (de branqueamento), por imposição do princípio da legalidade expresso no art. 2º/1 do Cód. Penal.

           Efectuada esta prévia delimitação, e tendo–a presente, revertamos à situação concreta dos autos, e à pretensão recursória do Ministério Público nesta parte.

E para dizer que, como se constata e já se assinalou supra, era uma única e exclusiva a vertente sob a qual a acusação, primeiro, e o recurso, agora, assentam a imputação deste ilícito, qual seja a circunstância de o arguido EE, no período em que teriam sido obtidas e movimentadas determinadas quantias monetárias através das sociedades por si geridas “A..., Lda.” e “B..., Lda.” (como assinala a decisão recorrida, o período temporal a considerar, no que ao imputado crime de branqueamento diz respeito, mostra–se situado entre o ano de 2019 e 24/3/2021), se dedicar a uma actividade de tráfico de estupefacientes organizada e de carácter internacional, na qual todos os valores em causa, e movimentações dos mesmos, teriam origem – tendo, assim, o arguido EE, e por intermédio da sua vontade as sociedades arguidas, actuado no sentido de transferir, fazer circular e dissimular, por via da sua reintrodução no comércio jurídico legítimo, vantagens económicas indevidas obtidas através da prática de actos típicos e ilícitos de tráfico de estupefacientes.

Mas a consideração de tal pressuposto dependia, como já se anunciou, da inversão da decisão em sede de matéria de facto dos pontos da mesma em que não de deu por assente uma tal ligação à actividade de tráfico de estupefacientes no aludido período, e, concomitantemente, que aqueles valores em causa nos aludidos movimentos monetários tivessem essa origem.

Inversão que o recorrente não logrou alcançar por via do presente recurso.

           Como acima se analisou e concluiu, a circunstância de se considerarem como não provados os supra aludidos factos cujo julgamento foi impugnado pelo recorrente (ou seja, os das alíneas r), s), t), ff), mm), nn), ss), tt), uu), vv) e ww)), e bem assim de se considerar não demonstrada a origem da transferência em causa no ponto 79. da matéria de facto provada, não se tem, ao contrário do afirmado pelo recorrente, por devida «à incapacidade do tribunal em relacionar as condutas apuradas com o crime precedente de tráfico de estupefacientes». Tal circunstância deve–se antes à incapacidade de o Ministério Público demonstrar a verificação daquele que era o único e exclusivo ilícito precedente de que resultavam tais actos, isto é, aquela imputada actividade de tráfico de estupefacientes – quer desde logo enquanto acusador, como era seu ónus de acordo com o princípio do acusatório ; quer agora nesta sede, enquanto recorrente, como lhe é imposto pelo art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal,

O Ministério Público, em sede de acusação, colocou todas as fichas relativas à caracterização dos actos aqui em causa como actos típicos de branqueamento de capitais, na específica ocorrência de uma actividade de tráfico de estupefacientes precedente e temporalmente contemporânea a todos os movimentos monetários objectivados nos autos e ocorridos na esfera dos arguidos EE, “A..., Lda.” e “B..., Lda.” – ou, como vimos referir o tribunal a quo, era esse o «único fundamento enunciado na acusação para os justificar».

E era, por isso, essa actividade que, inevitavelmente, tinha de demonstrar para que, chegado este momento do recurso, tivesse sucesso a sua pretensão.

Não se demonstrando tal factualidade, mas antes se mantendo a decisão relativa à mesma adoptada pelo acórdão recorrido, soçobra inevitavelmente a viabilidade de considerar que as quantias em causa nas operações monetárias demonstradas, tinham aí a sua origem, e, assim – como de início se enunciou – configurarem relevância típica enquanto actos integrantes de um crime de branqueamento de capitais levados a cabo pelos arguidos.

Mostra–se, pois, isenta de censura a decisão recorrida no que tange à absolvição dos arguidos EE, “A..., Lda.” e “B..., Lda.” da prática do crime de branqueamento que lhes era imputado, absolvição que, por isso, integralmente se mantém.

7.         De saber se deve ser julgado procedente o pedido de perda alargada a favor do Estado de valores pertencentes às arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.”.

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

            Vem o recorrente/Ministério Público, na imediata sequência da pretensão acabada de analisar, propugnar por que, face à (para tal efeito pressuposta) condenação das arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.” pelo crime de branqueamento de capitais, devam igualmente ser condenadas as mesmas sociedades arguidas na perda da vantagem da actividade criminosa, consistente no património incongruente apurado, em conformidade com a liquidação efectuada em sede de acusação.

           Assim, e ao abrigo do disposto no art. 7º/2 da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, ali se requeria que fossem condenadas a pagar ao Estado :

-          a sociedade “A... Unipessoal Lda.”, a quantia de €802.143,15,

-           e a sociedade “B..., Lda.”, a quantia de € 273.067,57.

           

           Como se constata, a decisão recorrida veio a julgar improcedente o pedido em causa, pois que, e resumidamente, «No caso em apreço verificamos, desde logo, que, em relação às sociedades A... e B... não se provou o cometimento de qualquer um dos crimes enunciados no nº 1 do art. 1º [da Lei 5/2002], designadamente, o indicado na sua alínea i), o crime de branqueamento de capitais cuja prática lhes vinha imputada, o que significa que, quanto a elas, falece um dos pressupostos para que a perda possa operar. Improcedendo, nessa medida, o peticionado pelo Ministério Público.».

           E julga–se que indiscutivelmente assim bem decidiu a primeira instância.

           Na verdade, temos que A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira – em especial quanto aos crimes previstos no elenco do seu art. 1º/1, que, quanto precisamente ao âmbito da sua aplicação, define que «a presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes de [restringindo–se agora o elenco em causa à parte que para aqui releva] : (…) i) branqueamento de capitais (…) »

           Entre essas medidas está, pois, aquilo que usualmente se designa de perda alargada de bens, que vem especialmente regulada designadamente nos arts. 7º e 8º da mesma Lei.

           Assim, o art. 7º da Lei 5/2002, sob a epígrafe «Perda de bens», prevê – e na parte que se mostra suficiente para a presente decisão –, o seguinte :

« 1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito».

É, pois, liminar pressuposto a ter em consideração para decidir pela perda de bens dos arguidos, que ocorra a sua condenação pela prática de um dos crimes elencados no art. 1º/1 da Lei.

In casu, e no que tange às sociedades arguidas, tal crime seria, nos termos imputados em sede de acusação, o de branqueamento de capitais.

Sucede que, como vem de se decidir no ponto 6. da presente decisão, não devem as sociedades arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.” ser objecto de condenação pelo crime de branqueamento imputado – nem por qualquer outro dos elencados naquele art. 1º/1 da Lei 5/2022.

Pelo que, como inevitavelmente decidiu a primeira instância, falece o pressuposto básico que possibilitaria sequer a ponderação sobre a viabilidade e (eventual) procedência do pedido de perda alargada que vinha deduzido pelo Ministério Público em sede de acusação contra as duas arguidas/sociedades comerciais.

Deve, assim, ser confirmada e integralmente mantida a correspondente decisão da primeira instância de improcedência de tal pedido de perda alargada relativamente às arguidas “A..., Lda.” e “B..., Lda.”, não merecendo provimento o recurso do Ministério Público também neste segmento.

8.        De saber se deve ser julgado procedente o pedido de perda de vantagens (clássica) a favor do Estado da quantia de €3.254.335,00.

[questão suscitada pelo recurso do Ministério Público]

            Vem finalmente o Ministério Público requerer que a quantia de €3.254.335,00 – em causa nos pontos 68. a 79. da matéria de facto provada e que foi objecto de transferência bancária para conta da arguida “A..., Lda.” em 24/03/2021 –, deva ser declarada perdida a favor do Estado ao abrigo do disposto nos arts. 110º do Cód. Penal.

            O que faz sob duas vertentes sucessivas :

–         em primeiro lugar, considerando simplesmente que, em função da alteração da matéria de facto em conformidade com a impugnação formulada, tal quantia deve considerar–se uma vantagem proveniente de crime de tráfico de estupefacientes, devendo o seu perdimento ser declarado ao abrigo do disposto no art. 110º/1/b) do Cód. Penal,

–         ou então, e subsidiariamente no caso de assim não se entender, ainda que não se considere provada essa concreta proveniência da quantia e transferência em causa, a mesma não pode em qualquer caso deixar de ser vantagem proveniente da prática de facto ilícito típico, qual seja o de fraude fiscal previsto no art. 103º do RGIT, e, enquanto tal, sujeita igualmente ao mecanismo de perda previsto nos arts. 110º/1/b) do Cód. Penal.

            Não assiste, manifestamente, razão ao recorrente.

Sob a epígrafe «Perda de bens e vantagens», dispõe o art. 110º do Cód. Penal, no seu nº1, que são declarados perdidos a favor do Estado :

« a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem»,

aditando o nº2 que «O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem».

            Por seu turno o nº3 do art. 110º do Cód. Penal prevê que a perda dos produtos e das vantagens possa ter lugar «ainda que os mesmos tenham sido objecto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado».

A perda tem ainda lugar, nos termos no art. 110º/5 do Cód. Penal, «ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz».

Pois bem, desde logo revertendo à primeira concreta linha de argumentação propugnada pelo recorrente nesta parte e atalhando neste passo o caminho que já vem sendo desbravado por via do percurso que tem vindo a ser seguido na presente decisão e no que tange ao recurso do Ministério Público, simplesmente se dirá que, sendo pressuposto da perda de vantagens aqui em causa que as mesmas tenha origem num facto ilícito típico, no caso é neste momento certo e seguro que não resulta demonstrado nos autos que a quantia de €3.254.335,00 aqui em causa tenha sido produzida, originada ou resultante, directa ou indirectamente, em qualquer acto típico de tráfico de estupefacientes – ou de branqueamento de capitais, adianta–se – que qualquer dos arguidos (mormente EE ou a sociedade “A..., Lda.”, por ele representada), tivessem praticado, nem que tenha sido uma recompensa relacionada com actos de tal natureza.

Como, aliás, bem augurava o recorrente, a eventual procedência desta sua pretensão sempre assentaria na necessária «procedência da alteração da matéria de facto apurada, em conformidade com a impugnação que antecede», pressuposto que não se verifica.

Assim, e neste primeiro segmento, é clara a conclusão de que não se mostram reunidos os pressupostos para que possa ser deferida a declaração de perda requerida nesta parte a título principal.

           Quanto à requerida declaração de perda com a argumentação subsidiária formulada, ainda se julga – se possível – mais evidente a falta de sustento da pretensão do recorrente.

Assim, e para recordar em termos sucintos os fundamentos desta sua derradeira pretensão recursória, entende o recorrente que «A sociedade A..., ao não exercer uma actividade real, ao não declarar as transacções e rendimentos revelados, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC, nem qualquer trabalhador ao seu serviço, está comprometida, para além do que ressalta sobre o crime de branqueamento já supra defendido, com a prática do crime de fraude fiscal p.e.p. pelos arts. 103º e 104º do RGIT», mais aditando que «Os documentos apresentados para justificar a transferência do dia 24/03/21, foram judicialmenrte considerados inidóneos e mesmo falsos, conforme decorre da fundamentação do Acórdão. Ora, a ocultação de dados relevantes, constitui, pelo menos, “a ocultação de factos ou valores que deviam ser revelados à administração tributária, conduta tipificada como crime de fraude fiscal no art. 103º nº 1 al. b) do R.G.I.T.». E sempre na mesma linha, remata referindo que «Ademais, a sociedade A... obteve com tal conduta o óbvio benefício de utilizar a conta bancária (…) para viabilizar a transferência de uma elevadíssima quantia monetária de proveniência indiciariamente ilícita para Portugal. Ao desenvolver a operação do dia 24/03/21 e ao não reflectir a mesma nas suas contas ou em qualquer declaração à AT, a sociedade A... incorreu na prática, para além do crime de branqueamento, de um crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103º do RGIT.».

Em suma, o que recorrente/Ministério Público em bom rigor propugna, nesta espécie de vigésima quinta hora do seu recurso, é que, em sede de recurso da decisão final sobre o objecto processual dos autos, se decrete a perda para o Estado daquela quantia de €3.254.335,00, enquanto vantagem da prática de supostos factos integradores de um ilícito típico que não foi objecto de investigação ou sequer de caracterização na acusação dos autos por parte do titular de qualquer dessas prerrogativas processuais – isto é, o próprio Ministério Público, ora recorrente.

É verdade, como refere o recorrente, que «o art. 110º, nº1, al. b) do CP não impõe qualquer catálogo de crimes, mas apenas o apuramento de uma vantagem de facto ilícito típico». Assim como é certo decorrer do regime de perda de produtos e vantagens aqui em causa não se exigir que haja no processo uma efectiva condenação pela prática do facto típico em causa.

Porém, terá, sempre, de tratar–se de um facto ilícito típico que se mostre previamente configurado e delimitado enquanto tal nos autos, e em sede de matéria de facto imputada desde logo na acusação deduzida.

O que, aqui, manifestamente não sucedeu.

O apelo à caracterização da concreta transferência da quantia de €3.254.335,00 aqui em causa como contextualizando um acto típico ilícito reportado a crime de natureza tributária – o de fraude fiscal prevista no art. 103º do RGIT – levado a cabo pelos arguidos AA e “A..., Lda.”, somente vem a ser suscitado no processo aqui e agora, em sede recursória.

Tal crime, na sua caracterização de tipicidade e ilicitude, além de não haver sido objecto de investigação e muito menos de imputação, não se mostra, de todo, configurado sequer nos seus contornos típicos e ilícitos próprios em sede de acusação.

Ora, como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/02/2022 (proc. 127/19.5IDBRG.G1)[[17]], e no segmento aqui relevante, «uma vez formulado pelo Ministério Público, titular da ação penal, o respetivo pedido de declaração de perda das vantagens, preenchendo a factualidade provada um facto ilícito típico e dele tendo resultado vantagens para o seu agente, o tribunal terá de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais» – sublinhado agora aposto. Ou, como também se refere no Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Guimarães de 08/11/2021 (proc. 4/19.0T9VNC.G1)[[18]], «A questão da determinação da perda de vantagens, está conexionada diretamente com o crime praticado, competindo ao Tribunal decidi-la na sentença penal».

Donde, seria inclusive um passo analítico demasiado largo apreciar sequer da verificação típica ou não de tais contornos de tipicidade e ilicitude no que tange a esta transferência e quantia, pois que a pretensão recursória nesta parte naufraga no seu ponto de partida – isto é, não se julga tão pouco viável contemplar estarmos sequer perante um (eventual) acto típico ilícito nos termos e para os efeitos exigidos no art. 110º do Cód. Penal, pois que como tal não se mostra devidamente delineado e caracterizado em sede de imputação criminal, primeiro, e de sentença, depois.

A proceder esta última pretensão subsidiária do recorrente Ministério Público, teríamos configurada uma decisão que se traduziria, julga–se, numa flagrante violação dos princípios da legalidade, do acusatório, e dos direitos de defesa do arguido em sede de processo penal – para já não falar dos deveres de lealdade processual de que o próprio princípio da descoberta de verdade material não prescinde.

    

Em suma, improcede esta última pretensão do recorrente/Ministério Público – e por qualquer das vias alternativamente propostas – reportada à perda para o Estado, ao abrigo do disposto no art. 110º do Cód. Penal, da aludida quantia de €3.254.335,00.

9.         De saber se a medida concreta da pena de prisão aplicada ao arguido CC é excessiva.

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]

Passemos, enfim, a apreciar as demais questões suscitadas por via do recurso apresentado pelo arguido CC.

Assim, vem o arguido/recorrente CC, em primeiro lugar, suscitar a censura da medida concreta da punição que lhe foi aplicada em primeira instância em função do crime por si praticado e pelo qual vem condenado.

Em apertada síntese, alega e conclui o recorrente que da factualidade apurada nos autos deflui conjunto de circunstâncias – que circunstanciadamente enuncia – mitigadoras do grau de ilicitude dos factos e da culpa do arguido, bem como das exigências da prevenção geral e especial que o caso impõe, as quais, entende, o tribunal não valorou suficientemente.

Pelo que, propugna, face aos critérios legais aplicáveis nesta matéria – decorrentes em especial dos arts. 40º, 70º e 71º do Cód. Penal – o recorrente deveria ser punido atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, em pena não superior a 5 anos de prisão.

Vejamos.

O arguido vem condenado em primeira instância, recordemo–lo, como como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º/1 do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I–B anexa ao mesmo diploma.

Donde, a moldura penal que lhe é aplicável é a de pena de prisão a fixar entre o mínimo de 4 anos e o máximo de 12 anos.

Dentro desta última, vem, pois, o arguido condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

Pois bem, nesta parte do recurso interposto julga–se que assistirá parcialmente razão ao arguido/recorrente.

E tal consideração assenta precisamente em considerar–se, como aliás vem assinalado pelo recorrente, que embora o tribunal a quo tenha tomado em consideração o conjunto de circunstâncias que no caso são determinantes para a fixação da pena, o resultado do exercício de concreta ponderação das mesmas não terá sido absolutamente ajustado.

Assim, como é por demais consabido, por isso dispensando especiais dissertações, resulta desde logo do art. 40º do Cód. Penal que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos (considerações de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (considerações de prevenção especial). O n.º 2 do artigo citado enuncia o princípio geral e estruturante do direito penal, o princípio da culpa, através do qual se afirma que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

Como factores de escolha e graduação da respectiva pena concreta há a considerar os parâmetros dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal.

A primeira dessas disposições (que determina que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”) não releva no presente caso, pois que ao crime a punir apenas é cominada pena de prisão.

Já o art. 71º do Cód. Penal estabelece que essa determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que - não fazendo parte do tipo de crime - depuserem a favor ou contra o arguido.

Assim, na determinação da medida da pena não poderá ultrapassar-se no seu limite máximo, a medida da culpa, sendo a mesma, contudo, delimitada, no seu limite mínimo, pelos ditames da prevenção especial (centrados na tutela de bens jurídicos), abaixo dos quais não pode fixar-se, sob pena de perda de confiança da comunidade no restabelecimento da vigência da norma violada.

Como, por todos, se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/12/2014 (proc. 52/14.6GTCBR.C1)[[19]], «A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos. A reintegração do agente na sociedade está ligada á prevenção especial ou individual, isto é, á ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida

O grau de exigência na protecção dos valores jurídicos que estejam em causa em determinada criminalização, deverá ser objecto de ponderação a partir de dois vectores complementares e indissociáveis : por um lado, e em termos gerais, do respectivo relevo em termos de hierarquia axiológica legal e constitucionalmente estipuladas, e por outro lado, em termos concretos, da intensidade do respectivo desrespeito em que a actuação ilícita do agente se traduziu. Trata–se de vectores que, naturalmente, já se mostram omnipresentes na própria definição a montante dos critérios de estatuição da punibilidade aplicável em cada tipo criminal, mas que mantém, agora em sede de determinação punitiva concreta, o seu relevo por via da sua devida densificação.

Quanto às necessidades de ressocialização, na avaliação do grau da respectiva necessidade haverá de se atentar na medida em que os actos do agente são um reflexo quer da sua personalidade, quer das suas circunstâncias – e, estas, quer as específicas verificadas no momento do acto, quer as relativas ao seu percurso e situação de vida –, por forma a aquilatar a medida de exigência punitiva à salvaguarda de um eficaz processo de recondução do agente à conduta de normatividade que é exigência comunitária.

No caso concreto, e como acima já se assinalou, em sede de decisão recorrida se assinalam os primordiais factores de graduação da pena que aqui relevam.

Ali se consignou, recorda–se, o seguinte :

« Na determinação da medida concreta de cada uma das penas importa, portanto, considerar, no que respeita a todos os arguidos, a muito elevada ilicitude dos factos, tendo em conta que a conduta concertada entre todos se destinou ao transporte de quantidade muito significativa de cocaína com vista à sua comercialização, tendo dividido tarefas entre si, para melhor alcançarem o seu propósito.

O arguido CC combinou com o arguido EE efectuar essa transacção de cocaína, encontrando um comprador para o produto, enquanto o arguido AA encontrou o fornecedor, o arguido DD, ficando o arguido BB encarregue de assegurar o transporte de parte do produto, o que só não veio a suceder porque foi detido à saída da fábrica.

Também não podemos descurar a perseverança demonstrada pelos arguidos EE e DD, o primeiro fazendo a viagem entre Porto e Lisboa para ir buscar a droga e o segundo, acompanhando-o desde Lisboa até às instalações da fábrica de cerveja sitas na Maia, trazendo consigo uma mochila com cerca de um quilo e meio de cocaína.

Os preparativos prévios que envolveram esta transacção, de modo a que não viesse a ser descoberta, a cargo do arguido CC, que em articulação com o arguido EE, garantiu que não estariam funcionários na empresa.

A intensidade do dolo, todos agiram com dolo directo.

A motivação que presidiu à actuação de todos, a obtenção de proventos económicos, confessada pelos arguidos BB e CC.

A qualidade da substância transportada e detida, cocaína, considerada “droga dura” com elevado grau de perigosidade social e para a saúde. Trata-se de um produto com muito elevado poder aditivo, que induz, pela premência em angariar meios para a sua aquisição, à prática de outros tipos de crimes.

O seu grau de pureza, 17,2%, claramente indiciador de se tratar de produto pronto a ser vendido (facto confirmado pelos arguidos BB e CC).

A quantidade da substância estupefaciente, aquela que foi encontrada na posse do arguido BB tinha o peso líquido de 480,200 gramas e possibilitaria a obtenção de cerca de 421 doses das previstas no mapa anexo à Portaria 94/96 de 26/3. Enquanto a restante, encontrada nas instalações da fábrica, tinha o peso líquido de 978.200 gramas e permitiria a obtenção do equivalente a 841 das mesmas doses, o que significa que o estupefaciente que o arguido DD tinha na sua posse e que ele e o arguido EE transportaram desde Lisboa tinha o peso líquido global de 1.458,40 gramas e permitiria a obtenção de um total 1262 doses de cocaína.

Teremos ainda que atender, ao nível das consequências das suas condutas, ao impacto que, se todo esse estupefaciente fosse entregue e, posteriormente, comercializado teria, não só em termos de consumo, mas também ao nível dos proventos económicos decorrentes dessa actividade.

Não podemos igualmente descurar as muitíssimo elevadas exigências de prevenção geral que neste tipo de crime se fazem sentir, atento o perigo que o consumo de estupefacientes representa para a saúde pública e para a vida das pessoas, mas também o alarme social e a insegurança que gera, por o consumo e a dependência de estupefacientes estarem normalmente associados à prática de outros ilícitos, assim como o sentimento de repulsa que a sua prática gera na comunidade, que anseia pela sua erradicação.

Por fim, também há que atentar às exigências de prevenção especial que são muito acentuadas (não obstante não sejam conhecidos antecedentes criminais aos arguidos BB, EE e DD e o arguido CC tenha sofrido uma condenação anterior em pena de multa, por crime diverso), atendendo ao tipo de crime em causa e à natureza da personalidade dos arguidos, que se predispuseram a correr os riscos inerentes ao transporte de cocaína, com vista à sua comercialização assim demonstrando que todos eles aderiram, de forma consciente e segura, à prática de uma conduta antijurídica.

Cumpre ainda salientar que os arguidos EE e DD não demonstraram qualquer arrependimento pela prática dos factos.

Enquanto os arguidos CC e VVVVV, não só confessaram os factos relativos à transacção que veio a ser comprovada, declarando arrependimento por os terem cometido, como contribuíram para o apuramento da participação dos arguidos EE e DD, pelo menos, em parte, dos factos.

            Por fim, há que ter em consideração a situação pessoal de cada um dos arguidos constante da matéria de facto provada.

(…)

O arguido CC é casado, reside com o cônjuge e os dois descendentes, actualmente com 12 e 20 anos de idade, em ..., Vila Nova de Gaia. Trabalhou numa empresa de limpezas técnicas, onde desenvolvia procedimentos e executava tarefas de desinfecção de superfícies, na altura em contexto de combate ao surto pandémico relacionado com a Covid19, auferindo cerca de 2000€mensais.

A mulher exerce actividade como auxiliar de cabeleireiro e aufere o salário mínimo nacional, acrescido de bonificações.

Na data dos factos ocupava os seus tempos livres na companhia dos seus familiares e de amigos/conhecidos com quem partilhava interesses comuns, alguns do contexto laboral, outros que conhecia da infância e outros ainda em função de contextos sociais.

Cresceu integrado no agregado familiar de origem, cuja fonte de rendimento provinha da actividade profissional dos pais, o pai proprietário de um restaurante e a mãe funcionária administrativa.

A sua formação académica decorreu até ao 12º ano de escolaridade em contexto de trabalhador estudante. Após, abandonou os estudos e iniciou actividade laboral a tempo integral, com funções numa empresa de componentes eléctricos. Mais tarde exerceu funções como técnico de comunicações e noutras áreas, até ser admitido na empresa As..., em ....

           Encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica à ordem dos presentes autos, cumprindo as regras e obrigações a que se acha sujeito, bem como mantendo uma interacção positiva com os técnicos da Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.

Beneficia do apoio do seu agregado familiar com quem coabita e bem assim dos progenitores, sendo pessoa considerada no meio social onde habita.

Evidencia sintomatologia depressiva e encetou acompanhamento médico pela especialidade de psiquiatria no Hospital ..., onde lhe foram prescritos fármacos, conforme relatório de fls. 2397 e 2398.

Actualmente, a subsistência do agregado é assegurada pelo vencimento da mulher, bem como do apoio dos restantes membros familiares, nomeadamente, a filha de 21 anos que exerce actividade profissional numa grande superfície comercial da zona.

            Tem perspectiva de enquadramento laboral numa empresa de distribuição de alimentação animal, podendo iniciar actividade laboral a qualquer momento, caso a sua situação jurídica o venha a permitir.

(…)

Ponderando todos estes factores, e realçando positivamente a postura dos arguidos BB e CC, que, como referimos, confessaram parte dos factos que vieram a ser comprovados, declararam-se arrependidos e contribuíram para a descoberta da verdade.

E bem assim o grau de participação de cada um dos arguidos na actuação que conjugadamente desenvolveram:

-          Os arguidos CC e EE foram os mentores do plano, combinaram realizar o negócio, o primeiro encontrou um comprador e o segundo um fornecedor, o arguido DD;

-           O arguido CC efectuou os preparativos com vista a garantir o sucesso da transacção, contactou o arguido BB para fazer o transporte do estupefaciente;

-           O arguido EE deslocou-se a Lisboa para fazer o transporte do fornecedor da cocaína;

-           O arguido DD forneceu quase um quilo e meio de cocaína, que transportou consigo desde Lisboa para ser transaccionado na Maia;

-          O arguido BB estava encarregue de transportar parte da cocaína até ao seu destinatário final.»

Trata–se, sem qualquer dúvida, de um percurso pelos factores mais relevantes na ponderação da medida concreta da pena de prisão a aplicar ao arguido/recorrente.

Não deixam, não obstante de se densificar os factores que não podem aqui perder–se de vista atentos os critérios acima assinalados que impõe a linha delimitadora mínima de qualquer reacção penal – mesmo na contemplação de vários dos factos a que o recorrente em especial apela na tentativa de deslocar essa linha para um patamar inferior.

Assim, a gravidade da ilicitude e as exigências de prevenção dos actos aqui em causa, reportam também, naturalmente, ao recorrente.

Na verdade, visa-se com a criminalização das actividades ilícitas relacionadas com as drogas, além do mais, proteger a saúde pública, não se podendo ignorar que a cocaína é, das drogas ‘correntes’, das que têm efeitos colaterais mais gravosos ; ela provoca, como efeito da situação de dependência física e psíquica que aceleradamente desencadeia nos seus consumidores, fenómenos de grave despersonalização, colocando em causa as suas vida, integridade física e liberdade individuais - e, ademais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos mesmos consumidores e possui comprovadíssimos efeitos criminógenos.

E se é certo que, como alega o recorrente, a quantidade de droga em cujo negócio o arguido interveio não é exacerbada (nomeadamente em termos relativos a outra situações similares), é ainda assim significativa, sendo que, de acordo com a matéria de facto provada, tal quantidade de droga permitiria, a produção de pelo menos cerca de 1200 doses individuais do produto em causa, com exponenciais lucros económicos ilícitos de alguns à custa da vida e sanidade de muitos, sendo assim muito relevante o potencial de disseminação desta droga por uma enorme quantidade de consumidores individuais, factor que também não pode ignorar–se por ser circunstância que transforma o perigo ligado à actividade de tráfico em exasperada potenciação do risco ou mesmo em dano, mostrando–se assim introduzido um elemento de maior densidade na violação do bem jurídico – não podendo qualquer dos arguidos, incluindo, portanto o recorrente, deixar de ter presente, no curso da sua actuação, essa circunstância, atenta a quantidade de produto com que directamente contactaram.

Ora, nenhuma destas circunstâncias inibiu o arguido na sua actuação, prestando-se o mesmo a desempenhar o papel de que a matéria de facto dá nota no contexto deste negócio de tráfico de cocaína.

Tenham–se presentes os dados do OEDT - Observatório Europeu de Drogas e Toxicodependência [em http://www.emcdda.europa.eu/] que revelam que o sistema de vigilância da União Europeia não consegue acompanhar a crescente entrada no mercado de substâncias psicoactivas, tendo vindo os consumos, designadamente de cocaína, a aumentar - principalmente entre a população mais jovem. Ora, precisamente, não pode perder-se de vista que Portugal, e nomeadamente (no caso) o espaço marítimo sob sua tutela, se revela uma muito relevante porta de entrada de drogas no continente Europeu, assumindo assim o nosso país um infeliz papel de liderança no que respeita à prática de actos da natureza daqueles dos ora arguidos - sendo urgente a necessidade de que, em resposta a essa circunstância, o sistema legal e penal português saiba reagir-lhe de forma particularmente incisiva, de maneira a obviar ou pelo menos a não se permitir qualquer forma de pactuação, sequer por omissão, no que à prevenção de tão nefasta realidade diz respeito – o que também passa, naturalmente, por uma particular e efectiva severidade no sancionamento de casos como o dos presentes autos.

É verdade, como mais uma vez acertadamente recorda o arguido/recorrente CC (assinalando–se que com o presente exercício não se pretende dizer que os factores por si referenciados sejam irrelevantes, porque o não são, mas antes que devem ser ponderadamente considerados à luz das demais circunstâncias do caso) não se ter por demonstrado que o arguido fosse ter alguma substancial quitação numa parcela significativa do lucro que tal transacção de droga proporcionaria – pois que não era nem o fornecedor, nem o destinatário daquele lote de tal produto –, a verdade é que assumiu o papel de intermediário na mesma, tendo a sua actuação contribuído determinantemente para a prossecução dos desígnios daqueles que visavam alcançar tais lucros.

Na verdade, como muito bem assinala a decisão recorrida, o arguido foi peça fundamental no surgimento do negócio aqui em causa e na execução da logística organizativa por detrás da fase do negócio de narcotráfico em que este transporte dos autos se inseriu.

Assim, e ao contrário, por exemplo, de quanto se demonstra com relação ao co–arguido BB, o arguido não teve aqui o papel de um mero transportador da droga, antes assumindo um patamar na cadeia de transacção ilícita em causa situado já num degrau acima daquele liminar nível – ainda que, diga–ser também, inferior ao patamar dos co–arguidos EE e DD.

Não deixa também de assinalar, já agora, que pese embora não se demonstrando esse seu proveito substancial com este negócio, a verdade é que, como nesta parte bem refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso, a motivação do arguido não deixou de ser meramente económica, quando é certo que, sempre de acordo com a matéria de facto provada, vinha a auferir generoso ordenado e aparentemente dotado de qualidades laborais suficientes à adopção de uma vida independente e até equilibrada, o que acentua a reprovabilidade da sua opção à luz daquelas que eram as suas condições pessoais.

O juízo de censura e de culpabilidade incidente sobre o comportamento do arguido é, por tudo isto, acentuado.

Não deixa de se aditar que, sendo embora bem mais carregado o traço que delineia os elevados e insistentes os ditames da reprovação e da prevenção geral – o que já fica dito caracteriza sucintamente a enorme dimensão do alarme social que hoje em dia constituem as actividades ilícitas como a apurada nos autos, com particular destaque para aquelas ligadas ao tráfico de drogas, sendo as necessidades de prevenir a criminalidade relacionada uma das prioridades na determinação da respectiva punição –, são também de considerar in casu as exigências de prevenção especial, pois que o arguido regista já um antecedente criminal que, embora pela prática de dois crimes – de ofensa à integridade física – de diversa natureza e gravidade relativamente ao presente, não deixam de ser ilícitos que colocam também em crise valores jurídico–penais de natureza pessoal. Não é, pois, de desconsiderar que se mostra aqui necessária uma dissuasão da reiteração criminal individual, sem a qual se não conseguirá uma verdadeira dissuasão comunitária.

Não poderão, por seu turno, e em contraponto aos factores que pesam em desfavor do arguido, perder–se de vista outros que devem ser sopesados em seu favor, aos quais o recorrente apela, e que se afigura, na verdade, não terão sido valorados – pelo menos alguns deles – de forma totalmente adequada em primeira instância.

Assim, termos desde logo a admissão dos factos registada por parte do arguido, de que o acórdão recorrido dá nota, o arrependimento manifestado na medida correspondente àquela.

Resulta ainda provado que à data dos factos o arguido se mostrava integrado profissionalmente, tendo hábitos de trabalho ao longo de toda a sua vida, e tem perspectivas, quando restituído à liberdade, de vir a desempenhar actividade laboral remunerada.

Mantém ainda o apoio familiar, nomeadamente da esposa e das filhas, e enquanto detido preventivamente no E.P ... assumiu um comportamento ajustado, sem registo de qualquer punição, comportamento que mantém enquanto sujeito a obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica.

Tudo, portanto, indiciando que não será dotado de uma personalidade em absoluto imune à compreensão da censurabilidade da sua conduta e à necessidade de a regular normativamente.

Muito em especial, e aproximando–nos de quanto aqui se julga relevar substancialmente, se constata que aquela aludida admissão dos factos dados por assentes por parte do recorrente em audiência de julgamento, contribuiu sobremaneira para, como se descreve no acórdão recorrido, apurar a dinâmica dos factos que resultaram provados, e delimitar a intervenção dos vários agentes nos mesmos, contribuindo, assim, de forma que tem de se ter por relevante para a descoberta da verdade.

Não se olvida também quanto acima se deixou indicado quando se caracterizou a posição relativa do arguido no âmbito deste negócio.

Se ali tal aspecto foi reportado para demonstrar não ser despicienda a sua importância no surgimento e desenvolvimento desta actividade de tráfico, não deixa de se recordar que o tal posicionamento relativo do arguido se situa num grau intermédio, situado pouco acima daquele do co–arguido BB, e abaixo dos co–arguidos DD e EE.

Acresce que, por via da pontual alteração do ponto 21. da matéria de facto provada – no âmbito da respectiva impugnação por parte do recorrente/Ministério Público –, ficou agora de certa forma mais clarificado que foi apenas porque o arguido EE dispunha da viabilidade de conseguir este fornecimento de cocaína, que foi possível levar a cabo a transacção detectada nos autos, tendo sido ademais este arguido quem, claramente, assumiu a direcção das operações tendentes à sua concretização.

Nestes termos, é indiscutível que, dentro da moldura punitiva aqui em causa, a fasquia mínima que acima dissemos dever fixar–se pelas exigências de prevenção, não se mostra correspondente à medida propugnada pelo recorrente.

Porém, e para além de tudo o que ficou exposto, não pode perder–se de vista que, como de início se assinalou, a determinação da medida concreta máxima da pena – dentro dos limites da lei, e, nestes, das exigências de prevenção – é feita em função da culpa do agente, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida dessa culpa, vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da acção praticada – ou seja, a culpa enquanto reflexo da ilicitude, como censura por o arguido ter actuado pela forma como o fez.

Ora, em face a tudo quanto ficou a propósito da configuração jurídico–penal da actuação do arguido e da sua conduta processual, não pode deixar de encontrar reflexo no juízo de censura incidente sobre a sua conduta, nomeadamente para efeitos de fixação do tecto punitivo que concretamente lhe deve ser aplicado, e que deve reflectir a justa medida correspondente àquela.

Neste conspecto, a pena de 5 anos e 6 meses em que o arguido vem condenado, julga–se algo desajustada por excessiva.

Tendo em conta todos os parâmetros assinalados, isto é, considerando o grau de ilicitude dos actos do arguido e o juízo de censura jurídico-penal e as exigências de prevenção determinadas em concreto pelo caso, entende este Tribunal como mais justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de 5 anos e 3 meses de prisão.

Procede, assim, ainda que apenas parcialmente, esta parte do recurso.

10.       De saber se a pena de prisão aplicada ao arguido CC deve ser declarada suspensa na respectiva execução.

[questão suscitada pelo recurso do arguido CC]

Na derradeira parte do seu recurso, pleiteava o arguido CC dever ser determinada a suspensão da pena de prisão que, por sua vez e a montante, propugnada dever ser–lhe aplicada.

Ou seja, a apreciação desta questão pressupunha que na verdade a pena concreta aplicada ao arguido houvesse sido alterada para uma medida não superior a 5 anos de prisão, pois que só uma pena de prisão fixada em tal medida pode ser (e verificados que estejam ademais os pressupostos substantivos para o efeito) suspensa na respectiva execução, nos termos do disposto no art. 50º/1 do Cód. Penal.

Ora, como acabou de se analisar no ponto anterior, a punição aplicada ao arguido, se bem que alterada por esta instância, vai fixada em medida superior àquela inultrapassável para que pudesse ponderar–se da sua suspensão.

Não é, assim, legalmente viável ponderar da aplicação de tal regime punitivo de substituição.

Donde, atendendo a quanto se decidiu supra, a apreciação da questão aqui em causa mostra–se objectivamente prejudicada, não cumprindo assim decidir sobre a mesma.

Não deixa, não obstante, e para que dúvidas se não suscitem, de dizer que, ainda que se houvesse fixado a pena concreta do recorrente em medida não superior a 5 anos de prisão, sempre não se entenderiam reunidos os necessários requisitos que possibilitam a suspensão da pena de prisão previstos no art. 50º do Cód. Penal.

           Na verdade, só quando que as exigências de prevenção fiquem asseguradas, a pena de prisão poderá ser suspensa na sua execução.

           Ora, no caso concreto do recorrente, desde logo se constata que o percurso vivencial e enquadramento pessoal a que o mesmo apelava em sustento da sua pretensão de suspensão da pena, não o inibiu de participar na prática de ilícito de muito acentuada gravidade, em que a ofensa a valores jurídicos de ordem comunitária assume exacerbado relevo, sendo actuações como aquelas aqui em causa objecto de particular repúdio, desde logo em face da forma da sua execução e dos perigos que a mesma potencia.

            Donde, e perante as circunstâncias que rodearam a prática do crime dos autos, sempre se entenderia que as finalidades da punição, ao nível da prevenção especial, resultariam goradas com a aplicação ao arguido de sanção penal não privativa da sua liberdade – além, naturalmente, do que tal traduziria no defraudar das expectativas comunitárias de reposição da ordem jurídica e da confiança nas normas violadas e no cumprimento do direito, valendo aqui todas as considerações a propósito já efectuadas supra aquando da ponderação sobre os critérios de determinação da pena, considerações que aqui se dão por reproduzidas.

           Em suma, no caso dos autos a ponderação do risco de reiteração criminosa, e, deste modo, o juízo favorável que pudesse fazer–se quanto à adequação futura do arguido às regras de convivência sociais, soçobrariam claramente perante as exigências de prevenção impostas.

           E não permitiriam, assim, deixar de lhe aplicar pena efectiva de prisão.


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III.       DECISÃO

Nestes termos, em face de tudo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto :

1º,        quanto ao recurso do Ministério Público :

a.        conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade, altera–se o ponto 21. da matéria de facto provada considerada em sede de sentença, nos termos consignados no ponto 4.2.ii. da presente decisão ;

b.        negar provimento às demais questões suscitadas no recurso do Ministério Público, confirmando, na parte correspondente, a decisão recorrida ;

2º,        quanto ao recurso do arguido CC :

conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido CC e, em consequência, mantendo–se embora a sua condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21º/1 do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabelas I–B anexa ao mesmo diploma legal, condenam–no agora na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;

3º,        quanto ao recurso do arguido DD :

negar provimento ao recurso interposto pelo arguido DD, confirmando, quanto ao mesmo, a decisão recorrida ;


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Sem custas os recursos do arguido CC e do Ministério Público.

Quanto ao recurso do arguido DD, custas da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 5 (cinco) UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).


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Porto, 7 de Fevereiro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Pedro M. Menezes [com a seguinte declaração de voto: «Acompanho a decisão quanto à pena imposta ao arguido CC por razões de justiça relativa, considerando as penas impostas aos demais arguidos»,]
Donas Botto
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[[1]] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[2]] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[[3]] Relatado por Maria José Nogueira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[4]] Relatado por Sénio Alves, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[[5]] Onde se consigna nomeadamente que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.».
[[6]] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[7]] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[8]] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[9]] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[10]] Relatados ambos por Simas Santos, e acedidos em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[11]] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jtstj.nsf
[[12]] Relatado por Joaquim Moura, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[13]] Relatado por Francisco Caramelo, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[[14]] Relatado por Nuno Pires Salpico, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[15]] Relatado por Fernando Chaves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[16]] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[17]] Relatado por Cândida Martinho, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[[18]] Relatado por Tereza Baltasar, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[[19]] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf