Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2470/09.2TBMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
OBRIGATORIEDADE
OMISSÃO
NULIDADE PROCESSUAL
RECURSO
Nº do Documento: RP201909122470/09.2TBMAI-A.P1
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º181, FLS.376-383)
Área Temática: .
Sumário: I - Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
II - A não realização desse acto processual só será consentida no âmbito do exercício do dever de gestão processual, a título de adequação formal, se o juiz entender que a matéria a decidir foi objecto de suficiente debate nos articulados, justificando a dispensa dessa diligência. Sobre o propósito de dispensar a audiência prévia deverá, porém, ouvir as partes, de acordo com o disposto nos artigos 6.º, nº 1 e 3.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.
III - A não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui nulidade processual, podendo ser arguida em sede de recurso, conduzindo à anulação da decisão que dispensou a sua convocação e do saneador-sentença que se seguiu a essa decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2470/09.2TBMAI-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução da Maia – J1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
1. Por apenso aos autos de execução comum para pagamento de quantia certa que o Banco B…, S.A., com sede na Avenida …, nºs …/…, Porto, instaurou contra C…, Lda., com sede na Avenida …, nº …., …, Porto, D…, com domicílio na Rua …, nº …., …, Maia, D…, com domicílio na Rua …, nº …., …, Maia, e E…, com domicílio na Rua …, nº …, …, o executado F… deduziu embargos de executado, pedindo, a final, a notificação do exequente para proceder à junção aos autos do original da livrança e a procedência da excepção da prescrição cambiaria e, em consequência, a procedência da oposição e o levantamento da penhora.
Para tal, alegou que a acção executiva foi intentada em 6 de Abril de 2009, que a livrança dada à execução tem data de vencimento de 30 de Janeiro de 2009 e que o embargante só foi citado para os termos da execução no dia 21 de Maio de 2018 por falta de impulso processual do exequente por não ter requerido a citação prévia.
Por despacho proferido a fls. 8, foram recebidos os embargos de executado e determinou-se a notificação do exequente para contestar, querendo.
Notificado, o exequente contestou a fls. 13 e segs., impugnando a factualidade alegada pelo executado, respondendo à excepção e concluindo, a final, pela improcedência dos embargos de executado.
Para tal, alegou que a livrança foi dada à execução três meses após o seu vencimento, que é irracional que no início do decurso da totalidade do prazo de prescrição o exequente requeresse a citação urgente dos executados e que requereu de imediato a penhora de bens, não se verificando falta de impulso processual da sua parte.
Mais afirmou que e acordo com as pesquisas que foram sendo efectuadas no processo e com o requerimento de novas penhoras foram registadas penhoras, o que motivou a citação dos executados.
Por despacho proferido a fls. 24, determinou-se a notificação do exequente para proceder à junção aos autos do original da livrança, o que o mesmo cumpriu, encontrando-se a mesma a fls. 31.
Com data de 17.10.2018 foi proferido o seguinte despacho:
O processo está apto a ser decidido em sede de despacho saneador. Assim indaga-se as partes se concordam com a dispensa da audiência prévia, sendo que nada dizendo se presumirá que anuem. Prazo: 10 dias.
Notificadas as partes, apenas o exequente se pronunciou, fazendo-o nos seguintes termos: Quanto à dispensa da audiência prévia, o Exequente não prescinde da sua realização, requerendo-se o seu agendamento.
Seguidamente, sem que tivesse lugar a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, a declarar válida e regular a instância, foi identificado o objecto do litígio e, após se mencionar que “O estado dos autos permite que se conheça, desde já, do pedido, pois o processo contém já todos os elementos necessários à prolação da decisão e não depende da prova a produzir”, foi proferida sentença que, julgando improcedentes os embargos, absolveu o exequente do pedido contra ele formulado.
2. Não se conformando com o decidido, interpôs o executado F… recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1ª Vem o presente recurso interposto da decisão proferida nos autos de embargos de executado em que é Exequente o Banco B…, S.A. e Executado, entre outros, F…, porquanto, e não obstante despacho anterior a notificar as partes se concordavam com a dispensa da audiência prévia, o Tribunal a quo, ignorando a oposição manifestada pela Exequente, dispensou a realização da dita audiência prévia, avançando para a prolação de saneador sentença.
2ª O que configura uso ilegítimo do poder/dever de gestão processual, previsto no art.6º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art.6º, nº 4 da Lei 41/2013 de 26.06, já que este dever não se trata de um dever discricionário ou arbitrário, tendo como limites elementares e inultrapassáveis princípios informadores do processo civil, como são o princípio da igualdade das partes; do contraditório; da aquisição processual de factos; da admissibilidade dos meios probatórios.
3ª Ora, in casu, tendo o Mº Juiz a quo, em sequência de conclusão de 17.10.2018, proferido despacho a notificar as partes para se pronunciarem acerca da dispensa de realização da audiência prévia; tendo a exequente manifestado a sua oposição a tal dispensa e requerendo a sua realização; tal pedido não deveria ter sido ignorado, como foi, limitando-se o Mº Juiz a quo a dizer:
“ Dado o estado dos autos, havendo o processo de findar no despacho saneador por ser possível conhecer imediatamente do mérito da causa se necessidade de mais provas, dispensa-se a audiência prévia, nos termos do disposto nos arts. 593º, nºs 1 e 2, a) e 595º, nº1, b), do Código de Processo Civil, pelo que se passa a elaborar o despacho saneador. (...).
4ª Decisão esta que, face ao despacho anterior, bem como à posição assumida pela Exequente, surpreendeu as partes, que esperavam pela marcação da audiência prévia; diligência esta que, foi assim preterida – cfr.art.195º do C.P.C..
5ª Acresce que, ao ter decidido pela não realização da audiência prévia, o Mº Juiz não refere porque motivo não atende a pretensão da Exequente, proferindo, assim, decisão ferida de nulidade, nos termos do disposto no art.615º, al.b) – falta de fundamentação - e d) – omissão de pronúncia - , do C.P.C.;
6ª Nulidades que aqui se invocam e se pretendem ver atendidas, revogando-se a decisão proferida quanto à não realização da audiência prévia, com todas as devidas consequências legais.
SEM PRESCINDIR,
7ª O ora Recorrente não se conforma com o saneador sentença, entendendo que o mesmo padece de vícios, desde logo no que à decisão proferida sobre a matéria de facto diz respeito, já que,
8ª O Executado, na oposição deduzida à execução, invocou a prescrição da acção cambiária, para o que alegou:
“7º Ora, conforme dispõe o art.77º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (doravante LULL), às livranças são aplicáveis as disposições relativas às letras.
8º Operada a remissão referida, configura o art.70º da LULL que todas ações contra o subscritor da livrança prescrevem no prazo de três anos, a contar da data do seu vencimento.
9º Este é, igualmente, o prazo de prescrição do direito de acção do portador da livrança contra o avalista do subscritor, já que o avalista responde na mesma medida do subscritor -cfr.art.78º da LULL.
10º Ademais, assevera o nº1 do art.323º do Código Civil que “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”.
11º Conforme resulta dos autos, a citação do Executado ocorreu no passado dia 21.05.2018, ou seja, decorridos que estão mais de nove (9) anos da data de vencimento da livrança acima identificada, encontrando-se a obrigação cartular prescrita.
12º Ora, é certo que o nº 2 do art.323º do Código Civil concretiza que “se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.
13º Sendo que a efetivação da citação dentro do prazo prescricional é da responsabilidade e interesse da Exequente e, neste sentido, caberia a esta exercer o impulso processual necessário para a sua consumação.
14º Na verdade, nos presentes autos, a delonga na citação deveu-se à falta de impulso processual da Exequente, porquanto a mesma poderia ter requerido, desde logo e ab initio, a citação prévia do Executado (cfr. art. 812º-F, nº1 do Código de Processo Civil, na redação conferida pelo DL 226/2008 de 20/11).
15º Acresce que, não obstante a Exequente, no requerimento inicial ter indicado bens à penhora, designadamente os que constituíam o recheio da residência do(s) executados,
16º Atentando na tramitação processual entretanto decorrida, certo é que a Exequente nada fez para que tal penhora e ulterior citação do Executado se concretizassem com vista à interrupção do prazo prescricional em curso, adoptando uma postura manifestamente pouco diligente.
17º Efectivamente, após a prolação do despacho de Junho de 2009, só em Outubro de 2012 se constata nova tramitação processual;
18º Durante todo o ano de 2016 não se percebe qualquer acto relevante.
19º Desta forma, a frustração da citação dentro do prazo prescricional que o interromperia, deve-se à inércia da Exequente, constituindo causa objectivamente imputável à Exequente.
20º Pelo que o direito de ação do Exequente-portador contra o embargante-avalista prescreveu, já que entre a data de vencimento aposta no título- 30.01.2009- e a data da citação do ora Embargante - 21.05.2018- decorreram mais de três anos - cfr.art.77º e 70º da LULL; e, a título de exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/10/2017 e 26/05/2015, disponíveis em http://www.dgsi.pt/.
21º Encontrando-se prescrita a obrigação cartular, é manifesto que a Exequente não dispõe de título executivo válido e exigível.”
9ª A Exequente, contestando os embargos, alegou, em suma, que a delonga na citação do Executado não lhe é imputável, já que, à execução em causa, não se aplica a citação prévia e a acção foi instaurada três meses após a data de vencimento da livrança que lhe serve de título.
10ª Pelo que, para apreciação da questão suscitada pelo Executado - da prescrição da acção cambiaria - , incumbia ao tribunal apurar, além da data de vencimento da livrança e data de entrada da acção em tribunal; qual a data de citação do executado para a acção e, tendo a mesma ocorrido já depois de decorridos três anos da data de vencimento do citado título cambiário, se se verificou, causa imputável à Exequente para que a citação só tivesse ocorrido em 21.05.2018, questão esta última controversa entre as partes.
11ª Ora, atentando na decisão em crise, nomeadamente na factualidade dada como provada;
12ª E face à inexistência de qualquer referência a factos não provados, é manifesto que o Tribunal a quo incumpriu o dever de fundamentação imposto por lei a qualquer decisão - cfr.art.607º, nº 4 do C.P.C. e art.205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, o que, desde logo, implica a nulidade da mesma;
13ª Resulta ainda evidente que a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, que a seguir se transcreve,
“a) O exequente é portador da livrança no valor de €18.746,96 (dezoito mil e setecentos e quarenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), com data de emissão de 8 de Janeiro de 2009 e de vencimento de 30 de Janeiro de 2009, emitida a seu favor, contendo no lugar destinado ao nome dos subscritores a aposição do carimbo com os dizeres “C…, Lda. – A Gerência”, seguida da assinatura “D…” e no verso a aposição dos dizeres manuscritos “Por aval ao subscritor”, seguida da assinatura do embargante, cujo original se encontra a fls. 31, deste apenso;
b) A execução de que os presentes embargos são apenso foi intentada em 6 de Abril de 2009 (cfr. certificação electrónica de fls. 15, v.º, dos autos principais);
c) O embargante foi citado para os termos do processo principal no dia 21 de Maio de 2018 (cfr. fls. 33 dos autos principais);” é manifestamente insuficiente para a decisão proferida no que à causa da delonga da citação do Executado diz respeito.
14ª Efectivamente, dita a sentença que:
“A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, como resulta do preceituado no art. 323º, nº 1, do Código Civil.
Por outro lado, conforme resulta depois do nº 2, da mesma disposição legal, “Se a citação ou notificação não se fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.”
Assim sendo, pese embora o executado embargante só tivesse sido citado para a execução no dia 21 de Maio de 2018, uma vez que não é imputável ao exequente a não realização da citação do executado no prazo de cinco dias após aquela ter sido requerida com a propositura da acção executiva (sublinhado nosso), a prescrição tem-se por interrompida após o decurso desse prazo de cinco dias após a propositura da acção, in casu, no dia 12 de Abril de 2009, sem que se vislumbre em que factos se baseia tal decisão.
15ª Ora, tendo desaparecido do Código de Processo Civil a elaboração da base instrutória, relegando-se para a decisão final a fixação da matéria de facto, nem por isso deixa o Tribunal de ter que consignar todos os factos provados e não provados relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que tenha que considerar-se controvertida, não lhe sendo lícito consignar apenas os factos que relevem para a solução jurídica que preconiza para o caso concreto, sob pena de a decisão ser incompreensível para as partes e impossível de sindicar pelos tribunais superiores -cfr. art.607º, nº 3, 4 e 5 do C.P.C..
16ª E a verdade é que, in casu, ao Executado não é perceptível a apreciação feita pelo Tribunal à actuação da Exequente quanto à alegada falta de diligência e impulso processual no prosseguimento da execução, mais concretamente, no que à efectivação da citação diz respeito.
17ª Incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento na apreciação da prova e fixação da matéria de facto;
18ª O que, como acima referido, torna a decisão recorrida ininteligível, desde logo quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, motivo pelo qual não se poderá manter – cfr. art.662º, nº 1 do C.P.C..
19ª Efectivamente, como alegado e resulta dos autos de execução de que os presentes são apenso, no âmbito da realização das diligências prévias à penhora, o senhor agente de execução requereu o levantamento do sigilo bancário com vista à identificação de eventuais saldos bancários; requerimento que foi alvo de despacho de deferimento em 29.06.2009 - cfr. despacho de 29.06.2009, ref.ª 4454898 dos autos principais.
20ª Não tendo a citação do Executado ocorrido então, presume-se que não tenham sido encontrados saldos bancários penhoráveis, o que, nos termos da legislação então em vigor, Código de Processo Civil na versão dada pelo Decreto-Lei 226/2008 de 20.11, art.833-B, nº 3, depois de realizadas as diligências prévias à penhora e não tendo sido encontrados bens penhoráveis, o exequente deve indicar bens à penhora no prazo de 10 dias, sendo penhorados os bens que ele indique. E, nos termos do disposto no nº 4 do mesmo artigo, não sendo indicados bens pelo Exequente, é o Executado citado para, ainda que se oponha à execução, pagar ou indicar bens para penhora no prazo de 10 dias....
21ª Compulsados os autos, verifica-se que nada do que a lei dispõe foi feito e que, só em Outubro de 2012 há movimentação dos mesmos, novamente com pesquisa de bens, com vista à identificação de bens penhoráveis.
22ª Ou seja, após a entrada do requerimento executivo, durante muito mais de mais de três anos, não se constata nos autos de execução qualquer requerimento ou impulso da Exequente com vista à efectivação da penhora e ulterior citação dos Executados;
23ª Constatando-se sim que, perante a, pelo menos classificável atitude de total inércia da Exequente, o agente de execução esteve anos – entre Abril de 2009 e Maio de 2018 - a efectuar pesquisa de bens, sem que tenha sido requerida ou promovida a citação do executado!
24ª E, a atitude de inércia da Exequente resulta ainda do facto de conforme alegado na oposição à execução e se comprova dos autos, durante todo o ano de 2016 não se constata qualquer movimento nos autos de execução.
25ª Factualidade esta que, alegada em sede de oposição e demonstrada por mera consulta aos autos principais, deveria ter sido considerada, e, tratando-se de factualidade objectiva, julgada provada, dando-se como provada a existência de causa imputável à Exequente na delonga da citação do Executado.
26ª Em sequência do que, fazendo-se correcta aplicação do direito aos factos, designadamente do disposto nos art. 77º e 70º da L.U.L.L. e arts. 323º, nº 1 e 323º, nº 2 do Código Civil, levará à declaração da prescrição da acção cambiária e ao procedimento dos embargos deduzidos pelo Executado.
27ª O que ora se requer, revogando-se a decisão proferida, a qual deverá ser substituída por outra que, consignando a factualidade acima transcrita, julgue provada a ocorrência de causa imputável à Exequente na delonga da citação do Executado, afastando, assim, a ficção legal prevista no nº 2 do art.323º do Código Civil e, declare a prescrição da acção cambiaria e a procedência da oposição, com todas as devidas e legais consequências,
Termos em que,
Deve o douto despacho saneador-sentença ser revogado e,
a) Declarando-se a nulidade do mesmo, desde logo na parte em decidiu pela não realização da audiência prévia, por preterição da formalidade em causa, implique a nulidade de todo o processado ulterior, ordenando-se a marcação da citada diligência;
b) Sem prescindir, e assim não se entendendo, deverá o despacho saneador-sentença ser declarado nulo por falta de fundamentação e enunciação dos factos não provados, proferindo-se nova decisão, devidamente fundamentada e que contemple decisão sobre a factualidade não provada; c) Ainda e sempre sem prescindir, deverá ainda o despacho saneador-sentença ser revogado, e substituído por outro que, apreciando a factualidade alegada e respeitante à causa da delonga da citação do Executado diz respeito, declare a prescrição da acção cambiária e a procedência dos embargos, com todas as devidas e legais consequências.
Fazendo-se assim a devida e costumada JUSTIÇA.
O apelado apresentou contra-alegações, nelas pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se:
a) Com a não realização da audiência prévia foi preterida formalidade que a lei prescreve e, na afirmativa, consequências legais;
b) O saneador-sentença padece de nulidade;
c) A acção cambiaria se acha prescrita,
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
a) O exequente é portador da livrança no valor de €18.746,96 (dezoito mil e setecentos e quarenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), com data de emissão de 8 de Janeiro de 2009 e de vencimento de 30 de Janeiro de 2009, emitida a seu favor, contendo no lugar destinado ao nome dos subscritores a aposição do carimbo com os dizeres “C… Lda. – A Gerência”, seguida da assinatura “D…” e no verso a aposição dos dizeres manuscritos “Por aval ao subscritor”, seguida da assinatura do embargante, cujo original se encontra a fls. 31, deste apenso;
b) A execução de que os presentes embargos são apenso foi intentada em 6 de Abril de 2009 (cfr. certificação electrónica de fls. 15, v.º, dos autos principais);
c) O embargante foi citado para os termos do processo principal no dia 21 de Maio de 2018 (cfr. fls. 33 dos autos principais).
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Do eventual vício da falta de realização da audiência prévia.
Insurge-se o recorrente pelo facto de ter sido dispensada a audiência prévia, não obstante a tal se ter oposto a exequente, não se mostrando, além disso, fundamentada a opção pela não realização de tal formalidade.
Importa, por isso, equacionar se a não realização da audiência equivale a preterição de formalidade legal e se tal omissão era susceptível de influir no exame e na decisão da causa[1].
Permite o n.º 2 do artigo 590.º da lei processual civil que, findos os articulados, o juiz profira despacho pré-saneador com uma das finalidades previstas nas alíneas a) a c).
Não havendo lugar a tal despacho ou concluídas as diligências do mesmo resultantes, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 591.º, nomeadamente, facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa [alínea b)], ou proferir despacho saneador, nos termos do nº 1 do artigo 595.º [al. d)].
O artigo 592.º determina em que casos não há lugar a audiência prévia: nas acções não contestadas que tenham de prosseguir em obediência ao disposto nas als. b) a d) do artigo 568.º, ou quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Prevê o artigo 593.º que nas acções que hajam de prosseguir, o juiz possa dispensar a audiência prévia, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º - ou seja, quando se destine, apenas, a proferir despacho saneador, a determinar adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova -, caso em que, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, profere despacho nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, podendo as partes requerer a realização da audiência prévia se pretenderem reclamar do despacho na parte em que determinou adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, em conformidade com o n.º 3 do citado dispositivo.
O artigo 595.º, n.º 1 enumera os fins a que se destina o despacho saneador: a) conhecer das excepções dilatórias ou nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou, que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objeto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando exceções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
Entende Abílio Neto[2] que “a realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (art. 592.º) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no art. 593.º fica ao critério do juiz dispensar a sua realização”.
Revertendo à situação dos autos: o processo findou com a prolação do despacho saneador que, conhecendo da excepção peremptória invocada pelo embargante F…, à qual respondeu em sede de contestação o embargado, julgou improcedente a mesma e, consequentemente, os embargos deduzidos à execução.
Não se configura, assim, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 592.º, contemplando a alínea b) do seu n.º 1 as excepções dilatórias - que deixa fora do seu âmbito de aplicação as excepções peremptórias que, como adiante se esclarecerá, contendem com o mérito da causa -, nem a situação do artigo 593.º da lei processual civil - que concede ao juiz a faculdade de dispensar a audiência prévia, destinando-se esta apenas a algum dos fins nela especificados -, concebido apenas para a hipótese das “acções que hajam de prosseguir”.
Ora, como destaca o acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015[3], “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b))”.
Assim, e voltando de novo à discussão dos autos, a audiência prévia só poderia ser dispensada no contexto – que, para o efeito, teria de ser expressamente invocado em despacho que expresse a decisão de dispensa da realização da referida formalidade processual e só depois de ouvidas as partes - dos artigos 547.º e 6.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil[4].
Dado que a audiência prévia não foi dispensada nessa específica situação[5], exigia-se a sua realização para assegurar o cumprimento da finalidade imposta pelo n.º 1, al. b) do artigo 591.º Código de Processo Civil.
Segundo o citado acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015, “a convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3), pelo que se nos afigura que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados”.
Como explica Lebre de Freitas[6], “quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzido(s) (art. 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim.
No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, exceptuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta excepção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes”.
Acha-se hoje estabilizado o entendimento de que conhece sobre o mérito da causa, independentemente da solução adoptada implicar ou não o termo do processo, o despacho que aprecie qualquer excepção peremptória, designadamente, a caducidade[7].
Assim, de acordo com o exposto, teria de ser designada audiência prévia para concretização da finalidade prevista no artigo 591.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil, não contrariando esse entendimento o facto de as partes haverem discutido nos articulados a excepção da prescrição e de o Sr. Juiz haver previamente anunciado que o processo se achava “apto a ser decidido em sede de despacho saneador”.
E tendo-se indagado acerca da concordância das partes na dispensa da audiência prévia, tendo uma delas expressamente a tal se oposto, porfiando pela realização de tal diligência, podiam aquelas legitimamente esperar que pudessem fazer valer nesse acto, através da garantia do primado da oralidade, os seus derradeiros argumentos. Na medida em que viram defraudada essa expectativa que a lei lhes assegurava, não pode deixar de constituir decisão-surpresa a que conheceu do mérito da causa à revelia do estabelecido no mencionado artigo 591.º, n.º 1, b).
Paulo Pimenta[8] explica desta forma a necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…).
Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”
O facto de, antes do conhecimento da excepção peremptória da prescrição, ter sido dispensada a audiência prévia, quando a lei impunha a sua realização, constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
Resta saber se o vício em causa pode ser reconhecido e declarado nesta instância, sendo legítima a dúvida face ao princípio de que das nulidades cabe, por regra, reclamação[9].
Importa, por isso, questionar se a nulidade denunciada podia ser suscitada por via recursiva, ou se devia antes ser objecto de reclamação perante o tribunal onde o vício se consumou.
Como já Alberto dos Reis[10] fazia notar, “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.
E, de acordo com idêntica orientação, defendia o Prof. Manuel de Andrade[11] que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.
Esse é também o entendimento sustentado pelos Profs. Antunes Varela[12] e Anselmo de Castro[13].
Afirma o primeiro que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”, enquanto o segundo refere que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”.
No caso aqui em debate, a nulidade processual cometida está a coberto da decisão judicial que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação[14], podendo o vício em causa ser objecto de recurso e ser declarado por esta Relação[15].
Tal nulidade implica a anulação da decisão que, dispensando a audiência prévia, a omitiu, bem como dos termos processuais subsequentes a essa decisão viciada, incluindo a decisão que ditou a improcedência dos embargos de executado.
2. A anulação da decisão que dispensou a audiência prévia e da que se lhe seguiu, nos termos acima relatados, confere inutilidade à apreciação das demais questões suscitadas nas alegações do recorrente.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência da apelação, em anular a decisão que dispensou a realização da audiência prévia e o subsequente saneador-sentença, devendo ser proferida decisão a convocar as partes para audiência prévia, nos termos e para os efeitos do artigo 591.º do Código de Processo Civil.
Custas da apelação: pelo apelado.

Porto, 12 de Setembro de 2019
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.

Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Artigo 195.º do Código de Processo Civil.
[2] “Novo Código de Processo Civil – Lei n.º 41/2013 – Anotado”, “Ediforum – Edições Juídicas, Ldª”, pág. 216.
[3] Processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-“, www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 09.10.2014, processo nº 2164/12.1TVLSB.L1-2, www.dgsi.pt.
[5] Apesar de ter ouvido as partes, indagando da anuência das mesmas à dispensa da audiência prévia, não se tendo o embargante pronunciado, mas a tal se tendo expressamente oposto o embargado, que requereu a realização da referida diligência, foi proferida decisão final sobre os embargos deduzidos, com conhecimento da exceção peremptória da prescrição, sem que previamente tivesse lugar a referida diligência processual, não tendo sido proferida decisão de onde constem os fundamentos da opção pela dispensa da mesma.
[6] ”A Acção Declarativa Comum à Luz do CPC de 2013, Coimbra Editora, 3ª ed., pág. 172.
[7] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, Almedina, pág. 185, Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, págs.403, 404, Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, págs. 159, 160.
[8] “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs.. 231, 232.
[9] Daí o tradicional postulado de que dos despachos recorre-se e das nulidades reclama-se.
[10] “Comentário ao Código de Processo Civil”, II, págs. 507, 508.
[11] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 183.
[12] “Manual de Processo Civil”, 1985, pág. 393.
[13] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, 1982, pág. 134.
[14] Citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2011 e da Relação de Lisboa, de 04.06.2009.
[15] Neste sentido, cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 11.01.2011, proc.º 286/09.5T2AMD-B.L1, e acórdãos da Relação do Porto de 24.04.2012, proc.º 10336/11.0TBVNG-B.P1 e de 11.05.2015, proc.º 440/07.4TVPRT-B.P1, todos em www.dgsi.pt.