Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1906/23.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO DA PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202403041906/23.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O justo receio, no procedimento cautelar de arresto, está direcionado à perda de garantia patrimonial, não bastando a verificação de uma situação de incumprimento da obrigação de natureza pecuniária.
II - O critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do credor. Ainda que perfunctória, é necessária a prova de factos ou circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata.
III - Sendo a providência decretada sem a audição da parte contrária, o requerido, com vista a obter a revisão dos fundamentos fácticos da decisão proferida, na oposição deduzida, pode requerer a nova instância das testemunhas ou declarantes anteriormente ouvidos, sem indicação de novos factos.
IV - Não se verifica a autoridade de caso julgado entre a acção de reivindicação no âmbito da qual foi reconhecido o direito de propriedade sobre determinado imóvel e a condenação do réu a restituir, esse imóvel, ao autor, e o procedimento cautelar de arresto proposto por aquele, invocando a titularidade de um direito de crédito que resulta da circunstância de ter sido por si disponibilizada a quantia necessária ao pagamento do preço desse imóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1906/23.4T8PRT-A.P1


Acordam as Juízas da 5ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Morais

Primeira Adjunta: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro

Segunda Adjunta: Ana Paula Amorim

I_ Relatório

AA requereu o procedimento cautelar especificado de arresto contra BB e CC pedindo que seja decretado o arresto do prédio composto por habitação no rés-do-chão direito, sito na Travessa ..., da freguesia ..., concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o artigo n.º ...; e a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., para acautelar o crédito que possui sobre os Requeridos, no valor de €52.241,85 (cinquenta dois mil duzentos quarenta e um euros, oitenta cinco cêntimos).

Alegou, em síntese, que:

i. O Requerente pretendeu, em 2003, adquirir a fração autónoma designada pela letra “ A” correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ....

ii.Para tanto, necessitava de € 45.000,00 que, no momento não dispunha, nem reunia as condições económicas exigidas pelas instituições de crédito para contrair um mútuo financeiro.

iii. Assim, dispondo apenas de € 20.000,00 (vinte mil euros ) que o Requerente disponibilizou aos Requeridos, a sua irmã BB e o marido desta, CC, para com esse dinheiro, acrescido da quantia de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros) que estes obtiveram por via de um financiamento junto de uma instituição bancária, junto do antes Banco 1..., agora Banco 2..., perfazer o referido montante de €45.000,00, necessário para aquisição daquele imóvel e consequentes despesas de registos e outras.

iv. Obtido esse financiamento bancário de €25.000,00 (vinte cinco mil euros), acordaram verbalmente as partes no seguinte:

a. até ao pagamento do total do capital mutuado, juros e despesas, aquela fracção seria registada em nome dos mutuários, os Requeridos BB e CC, comprometendo-se estes, a final, transferir a propriedade do citado imóvel para o Requerente;

b. as prestações mensais de amortização de todo o crédito e juros seriam totalmente da responsabilidade do Requerente;

c. o Imposto Municipal sobre Imóveis relativamente àquele imóvel, até que fosse alterado o referido registo, ficaria, como ficou, sob encargo do Requerente.

v. O Requerente em 2003, instalou-se no referido imóvel, usando-o como seu fosse, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de boa-fé, de forma ininterrupta, pacifica, na convicção de que exercia um direito próprio embora sabendo que o registo havia sido feito a favor de terceiros nas circunstâncias antes descritas, por um lado e, por outro lado, na convicção de que a irmã e o cunhado nunca faltariam com a sua palavra, ou seja, detinha o Requerente a posse, uso e fruição plenas do imóvel ali identificado.

vi. Entre Novembro de 2003 e o dia 10 de Outubro de 2015, o Requerente, cumprindo, nesse período, o convencionado, pagou 144 (cento quarenta e quarto) prestações mensais às instituições de crédito (Banco 1... e Banco 2...), no valor total de € 31.694,00 (trinta um mil euros, seiscentos noventa e quatro cêntimos) correspondente ao capital e juros mutuados.

vii. Pagou o Imposto Municipal sobre Imóveis devidos por aquela propriedade como acordado.

viii. Liquidado todo como o mútuo bancário e cumprido que foi, pelo Requerente, o acordado, era expectável que os Requeridos, cumprissem com a sobredita transferência de propriedade para o Requerente, como resultava do citado acordo verbal, o que não aconteceu.

ix. Interpelados os Requeridos, pelo Requerente, para procederem à transferência de propriedade, aqueles não só não o fizeram, como intentaram contra o Requerente uma acção que correu termos no Juízo Local Cível sob o n.º 2052/17.5T8GDM que foi julgada procedente e condenado o Requerente a reconhecer que os ora Requeridos são os proprietários do referido imóvel, bem como a restituí-lo aos Requeridos livre de pessoas, o que fez.

x. Aceitou fazer o negócio jurídico verbalmente atentas as relações familiares (irmã e cunhado) e por ter acreditado na boa fé dos Requeridos;

xi. A  Requerida BB, sua irmã, confessou em julgamento, no processo n.º 72/17.9T8GDM, que as 144 transferências bancárias para a referida conta bancária, pelo Requerente, consumaram o pagamento de todo o capital mutuado e respectivos juros correspondentes ao mútuo que os Requeridos contraíram a fim de se financiarem com o valor de € 25.000,00 que faltava para a aquisição do sobredito imóvel.

xii. Concluiu que tem o Requerente um crédito sobre os Requeridos, no valor de €52.241,85 (cinquenta dois mil duzentos quarenta e um euros, oitenta cinco cêntimos), correspondente à entrada inicial, transferências para liquidação do capital mutuado e juros e, ainda, o IMI [entrada inicial: € 20.000,00 + 144 transferências bancarias para liquidação de capital mutuado e juros, no montante de € 31.694,00 + liquidação do Imposto Sobre Imóveis, no montante de € 547,85].

xiii. A circunstância de terem sido interpelados para o efeito e ainda não terem pago a dívida ao Requerente e, ainda, por outro lado, “atento ao caráter e perfil desonesto dos Requeridos, tudo somado leva a acreditar na real possibilidade de virem a alienar património para se furtarem à acção do credor Requerente, in caso, a acção de condenação que este irá intentar contra aqueles por ser a única forma de reaver o seu crédito sobre aqueles, sendo aqui que entronca, precisamente, um justificado receio, de perda da garantia do seu crédito”.

Concluiu, assim, que se verificam os pressupostos para que seja decretado o arresto.


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I.1_ Por despacho de 7/9/2022, foi “declara[da] a incompetência d[o] Juízo Local Cível de Gondomar para a preparação e julgamento do presente procedimento cautelar” e determinada “a remessa destes autos ao (…) Juízo Central [Cível do Porto]”.

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I.2_ Remetidos os autos para o Juízo Central do Porto, por despacho, datado de 26/9/2022, foi decidido que pelo “requerente nenhum facto alegou passível de integrar o requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial do alegado crédito. O que o requerente se limita a fazer é a alegar o seu receio meramente subjetivo de perda de garantia patrimonial. Não faz qualquer sentido estar o tribunal a convidar o requerente a trazer aos autos factos passíveis de fundamentarem um justo receio objetivo (que é o que é passível de integrar o requisito do periculum in mora) que não foram alegados (…).

Dada a falta de alegação de quaisquer factos passíveis de preencher o requisito do periculum in mora, conclui-se que o requerimento inicial não contém quaisquer factos que permitam concluir pelo preenchimento do requisito de justo receio de perda da garantia patrimonial. É, assim, manifesta a improcedência do pedido de arresto, o que determina, nesta fase (arts. 226.º, n.º 4, al. b) e 590.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil), o indeferimento liminar do arresto.

Decisão

Pelo exposto, indefiro liminarmente o presente procedimento cautelar de arresto.

Custas do procedimento a cargo do requerente, sem prejuízo do apoio judiciário.

Valor do procedimento: € 52.241,85.

Notifique.

Registe.


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I.3_ Interposto recurso dessa decisão, por Decisão de 25/10/2022, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, foi decidido “conceder provimento ao recurso aqui interposto, e revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por uma outra que convide o requerente AA a, em prazo a fixar, aperfeiçoar o requerimento inicial, concretizando os factos susceptíveis de preencher o requisito da providência do justo receito de perda da garantia patrimonial.”.

I.4_ Em 17/11/2022, foi proferido o seguinte despacho:

Em cumprimento do determinado pelo Tribunal da Relação do Porto, convido o requerente AA a, no prazo de 10 dias, aperfeiçoar o requerimento inicial, concretizando os factos suscetíveis de preencher o requisito da providência do justo receio de perda da garantia patrimonial.

I.5_ Na sequência do convite feito pelo Tribunal, o Requerente apresentou, em 24/11/2022, requerimento no qual alegou o seguinte:

a. os requeridos BB e CC, aconselhados ou não por advogado(a), não evidenciam através de publicidade estática por eles divulgada a vontade de alienar pela venda o património que detêm sabendo que uma das consequências possíveis e previsíveis em caso de condenação na ação principal, será a penhora e venda desses bens para pagamento da dívida ao requerente.

b. Porém, vão manifestando essa vontade de alienação por contactos directos e verbais com potenciais terceiros interessados na compra desses imóveis, facto que é do conhecimento directo das testemunhas arroladas”.

I.6_ Foi determinada a produção das provas oferecidas pelo requerente, sem audiência da parte contrária.

I.7_ Ouvidas as testemunhas arroladas pelo Requerente e prestadas declarações de parte, foi proferida decisão [1], em 7/12/2022, constando do dispositivo:

“…ao abrigo das disposições legais acima referidas, julgo procedente este procedimento cautelar de arresto interposto por AA contra BB e marido, CC e, consequentemente, decido ordenar o arresto dos seguintes bens imóveis, para garantia do crédito do requerente, até ao valor de 52.241,85 euros:

a) Imóvel composto por habitação no rés-do-chão direito, sito na Travessa ..., da freguesia ..., concelho de Valongo, descrito na Conservatório do Registo Predial de Valongo sob o artigo n.º ...;

b) A fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ....


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Custas nesta fase pelo requerente (art. 539 do Código de Processo Civil).

Valor do procedimento cautelar: o oferecido com o requerimento inicial”.


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I.8_ Citados, os Requeridos CC e BB apresentaram oposição, tendo deduzido defesa por excepção e por impugnação.

Alegaram, em síntese, que:

i. Os Requeridos são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., n.ºs ... e ..., correspondente a uma fração autónoma que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., Freguesia ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ..., da Freguesia ....

ii. A Requerida intentou, a 12/06/2017, uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o ora Requerente, AA que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 3, sob o n.º 2052/17.5T8GDM, pedindo a condenação deste a reconhecer a ora Requerida como legítima proprietária do imóvel ora em crise, restituindo-lho livre de pessoas e bens.

iii. Na sentença de 22/05/2018, proferida no âmbito desses autos, já transitada em julgado, a acção foi julgada procedente e condenado o ora Requerente, AA, a:

1) Reconhecer que a Autora é legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...;

2) Restituir à Autora o prédio identificado em 1., livre de pessoas e bens.

iv. Desde o trânsito em julgado daquela sentença que a Requerida tentou obter judicialmente a restituição do imóvel, o que tardou devido ao comportamento processual do Réu (ora Requerente), meramente dilatório, que de todas as formas tentou impedir a realização da justiça, e a entrega do imóvel livre de pessoas e bens.

v. Ainda no decurso daquela ação, o ora Requerente intentou uma acção contra os ora Requeridos que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 1, sob o n.º 72/17.9T8GDM, pedindo que seja “proferida decisão judicial que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos, aqui Réus, de forma a ser realizada a escritura de compra e venda do imóvel identificado em 6.º do presente petitório”.

vi. Nessa acção, foi peticionada a execução específica de um alegado contrato promessa de compra e venda que nunca existiu, nem foi assinado pelos Réus, que tem por objecto a referida fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ... , da Freguesia ..., Concelho de Gondomar.

vii. Nesse contrato, o ora Requerente alega ter pago a quantia de € 14.963,94 (catorze mil novecentos e sessenta e três euros e noventa e quatro cêntimos), a título de sinal e início de pagamento, da qual foi alegadamente dada quitação, ou seja, valor diferente do indicado na presente acção.

viii. Ordenada judicialmente a realização da perícia à letra e assinatura dos ora Requeridos no alegado contrato-promessa de compra e venda, foi concluído que é pouco provável que as assinaturas apostas no documento Contrato de Promessa de Compra e Venda datado de 10 de novembro de 2003 tenham sido apostas pelo punho dos réus, tendo a acção sido julgada improcedente, por não provada, e os ora Requeridos absolvidos do pedido.

ix. Nos presentes autos, o discurso é outro, pois como se constata do art.º 3.º da petição inicial, “(...) dispondo apenas de € 20.000,00 (vinte mil euros), que o A. disponibilizou aos R.R., a sua irmã BB e o marido desta CC, para com esse dinheiro, acrescido de mais € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros)(...)”.

x. Mais recentemente, correu termos o proc. n.º 3709/19.1T8GDM - Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 3, intentado pelo Requerente contra os Requeridos, no qual aquele pediu que fosse reconhecido como único proprietário do referido imóvel e legalizada a transmissão da propriedade do mesmo para si.

xi. Por sentença proferida naqueles autos, foi julgada procedente a excepção de caso julgado aduzida pelos Réus no que concerne aos pedidos que o Autor AA deduziu sob os n.ºs 1), 2) e 3), e, em consequência, foram os Réus BB e  CC absolvidos da instância quanto aos mesmos; improcedentes os pedidos deduzidos pelo Autor AA sob os n.ºs 4) e 5), absolvendo, por conseguinte os Réus de tais pedidos; procedente o pedido deduzido pelos Réus BB e CC de condenação do Autor AA como litigante de má-fé, e, em consequência, foi este condenado em multa de 2 (duas) UC’s e numa indemnização aos Réus no montante de € 535,50 (quinhentos e trinta e cinco euros e cinquenta cêntimos), absolvendo-o do demais peticionado.

xii. Na presente acção, o Requerente vem pedir ao Tribunal que decida questões que já se encontram decididas: na sentença proferida no proc. n.º 2052/ 17.5T8GDM,  foi considerado assente “Ao tempo da aquisição do imóvel supra identificado pela A., o R. necessitava de um local de apoio à sua profissão. A pedido do R., a A. aceitou comodatar-lhe, por um período que se pretendia curto, o armazém identificado em A) para que este servisse como local de apoio para movimentação de sucata. Tal acordo foi feito verbalmente. Nos termos acordados, as despesas inerentes ao uso e fruição do local correriam a cargo do R. No entanto, tal situação deveria manter-se por um período de tempo razoável e apenas para o fim que foi acordado. Sucede que, em data que a A. não sabe precisar, o R. procedeu a alterações no espaço, tendo passado a residir no mesmo, onde estabeleceu, inclusive, a sua morada fiscal. Alterações estas, feitas sem autorização da A., que não lhe foram sequer comunicadas pelo R. Em face de tal, e pretendendo a A. fazer cessar o acordo de comodato que tinha com o R., interpelou-o verbalmente, por diversas vezes, para que este lhe restituísse a posse do imóvel…”.

xiii. A Ré BB confessou em julgamento, no proc. n.º 72/17.9T8GDM, que as transferências se destinaram ao pagamento do mútuo bancário, pois, isso foi o acordado.

xiv. Nunca receberam a interpelação constante do doc. n.º 5 junto pelo Requerente que expressamente impugnam, questionando a razão pela qual não foi junto o registo e o aviso de receção.

xv. Rejeitam ter incorporado qualquer quantia ilicitamente no seu património à custa do empobrecimento do património do Autor, referindo que este foi o negócio celebrado.

xvi. O presente procedimento cautelar de arresto não cumpre os requisitos legais para a sua concessão, pois que não existe verosimilhança do direito, nem tampouco perigo na demora, tendo o requerente omitido ao tribunal todos os factos numa clara tentativa de turvar a verdade e procurar através do processo e dos meios judiciais a obtenção de um objetivo a que bem sabe não ter direito.

xvii. Invocam a litigância do Requerente por ter deduzido pretensão bem sabendo que razão não lhe assiste, praticou omissão grave do dever de cooperação e fez do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, e entorpecer a acção da justiça.

Pedem a condenação do Requerente, como litigante de má fé, em multa, e numa indemnização aos Réus, em montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros).

I.9_ Em 7/8/2023, foi proferido o seguinte despacho:

Nos termos do art. 3º, nº 3, do CPC, notifique a requerente para, em 10 dias, se pronunciar, querendo, quanto à matéria alegada em sede de oposição”.

I.10_ Por requerimento de 6/8/2023, o Requerente pronunciou-se sobre a excepção de caso julgado, bem como sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, pugnando pela improcedência de ambos.

Sustenta que não se verifica a identidade da causa de pedir porquanto, na acção declarativa, foi reivindicada a propriedade do imóvel; nesta providência, “reivindica-se o dinheiro que o requerente pagou para a aquisição do imóvel que os requeridos subtraíram ao requerente”.

I.11_ Produzida a prova indicada pelos Requeridos, foi proferida decisão, constando do dispositivo:

“Nestes termos, face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas:

1) Mantém-se o arresto decretado nos presentes autos, julgando-se improcedente a oposição deduzida.

Mais se decidindo que, neste momento, não possuem os autos elementos que justifiquem a condenação do requerente como litigante de má fé.

Custas pelos requeridos (art. 527º, do Código de Processo Civil).

Notifique”.

I.12_ Inconformados, os Requeridos interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. Por sentença proferida nos presentes autos de procedimento cautelar, foi concluído que se encontram indiciariamente provados os seguintes factos:

1- Durante o ano de 2003, foi pelos requeridos adquirido por contrato de compra e venda, pelo valor de 45.000,00 euros e com recurso a crédito bancário, a fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ... (doc. junto aos autos);

2- Para a formalização da compra e venda e para pagamento de parte do respetivo preço, o requerente entregou aos requeridos a quantia de 20.000,00 euros;

3- Para pagamento do restante preço contratado e mais despesas, os requeridos obtiveram financiamento junto de uma instituição bancária, o Banco 1..., agora Banco 2...;

4- Obtido esse financiamento bancário, no valor de €25.000,00 (vinte cinco mil euros), foi o requerente quem pagou as respetivas prestações mensais, desde o início, até final, em 2015, pagando a totalidade do capital mutuado, juros e despesas, num valor total de 31.694,00 euros;

5- Bem como foi o requerente quem pagou o respetivo Imposto Municipal sobre Imóveis relativamente a esse imóvel;

6- Correu ação judicial entre os aqui requeridos (como autores) e o aqui requerente (como réu), ação de reconhecimento do direito de propriedade que tramitou no Juízo Local Cível de Gondomar sob o n.º 2052/17.5T8GDM, ação que viria a ser julgada procedente e condenado o requerente a reconhecer que os ora requeridos são os proprietários do referido imóvel, bem como a restituí-lo aos requeridos;

7- É do conhecimento do requerente e demais moradores das vizinhanças, que os requeridos, sabedores de que o requerente pretende reclamar dos requeridos as quantias acima referidas, pretendem vender o imóvel em causa, assim dificultando a satisfação do crédito invocado.

E considera-se não terem ficado provados os seguintes factos:

8- A pedido do requerente, a requerida aceitou, mediante acordo verbal, descer-lhe o uso do referido armazém, para que este se servisse do mesmo como local de apoio para movimentação de sucata, ficando acordado que, como contrapartida, todas as despesas inerentes ao uso do local correriam por conta do requerente, incluindo o pagamento das prestações do mútuo bancário e despesas fiscais.

II. A M.ma Senhora Juiz a quo considerou que nenhuma das testemunhas inquiridas negou o que já tinha sido dado como provado, mais considerando que se mantinha a factualidade dada como provada indiciariamente na decisão de 07/12/2022, o que os requeridos não podem aceitar, por tudo o já alegado nos autos, e por entender que da prova testemunhal produzida não se podem dar como provados os supra referidos factos, ainda que indiciariamente.

III. O Tribunal a quo quanto à exceção de caso julgado invocada, concluiu que:

“Assim, não há qualquer exceção de caso julgado a declarar, improcedendo a exceção invocada.

Quando muito poder-se-ia falar em autoridade de caso julgado, quanto ao facto que sob a alínea F foi dado como provado na ação n.º 2052/17.5T8GDM.

No entanto, a forma genérica e algo conclusiva como se mostra elencado tal facto “Nos termos acordados, as despesas inerentes ao uso e fruição do local correriam a cargo do R.”, não permite sequer concluir que tais despesas integrassem as peticionadas nestes autos. (negrito, itálico e sublinhado nossos)

E, daí que se considere que nem em autoridade de caso julgado se possa falar.”

IV. Não podem os requeridos e recorrentes conformar-se com tal decisão, porquanto existem já decisões com trânsito em julgado - que aqui se dão como integradas e integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais - que, para além de reconhecerem a propriedade do imóvel aos requeridos, estabelecem os termos do acordo celebrado entre o requerente e os requeridos.

V. O autor vem novamente pedir ao Tribunal que decida questões que já se encontram decididas.

VI. Como decidido na douta sentença proferida no proc. n.º 2052/ 17.5T8GDM - Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 3:

“II - Fundamentação de facto

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

Factos assentes por acordo:

L. A A. é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., nos termos constantes de fls. 8 a 10 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

M. O R. é sucateiro;

N. Ao tempo da aquisição do imóvel supra identificado pela A., o R. necessitava de um local de apoio à sua profissão;

O. A pedido do R., a A. aceitou comodatar-lhe, por um período que se pretendia curto, o armazém identificado em A) para que este servisse como local de apoio para movimentação de sucata;

P. Tal acordo foi feito verbalmente;

Q. Nos termos acordados, as despesas inerentes ao uso e fruição do local correriam a cargo do R.;

R. No entanto, tal situação deveria manter-se por um período de tempo razoável e apenas para o fim que foi acordado;

S. Sucede que, em data que a A. não sabe precisar, o R. procedeu a alterações no espaço, tendo passado a residir no mesmo, onde estabeleceu, inclusive, a sua morada fiscal;

T. Alterações estas, feitas sem autorização da A., que não lhe foram sequer comunicadas pelo R.;

U. Em face de tal, e pretendendo a A. fazer cessar o acordo de comodato que tinha com o R., interpelou-o verbalmente, por diversas vezes, para que este lhe restituísse a posse do imóvel;

V. Porém, o R. recusou-se sempre a abandonar o imóvel, restituindo-o à A.”.

VII. Verifica-se caso julgado material / autoridade do caso julgado, quanto à matéria alegada e peticionada, não se verificando qualquer obrigação por parte dos requeridos, seja a que título for, sendo que a expressão “as despesas” abrange, naturalmente, todas as despesas, pois caso assim não fosse, a M.ma Senhora Juiz, naturalmente, teria discriminado quais as despesas abrangidas, e quais as não abrangidas!

VIII. Como tal não foi feito, todas as despesas estão incluídas, sob pena de violação dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança, para além da violação do caso julgado material/autoridade do caso julgado.

IX. Verifica-se claramente a exceção dilatória de caso julgado material, nos precisos termos dos art.os 576.º e ss. do Código de Processo Civil, que é insuprível, ou, quanto mais não seja, de autoridade do caso julgado!

X. O imóvel foi adquirido pelos Réus, que concordaram em ceder o seu uso ao Autor, que, como contrapartida, e por seu interesse, pagaria todas as despesas do imóvel, incluindo as prestações do contrato de mútuo bancário, IMI, etc.

XI. Foi este o acordo que as partes celebraram, facto já dado como provado, pelo que não pode o Autor subverter os factos, procurando, ele sim, locupletar-se à custa dos Réus, não podendo o Tribunal a quo desconsiderar estes factos, já dados como provados, alvo de apreciação e decisão noutros processos judiciais.

XII. Contrariamente ao que diz o Autor no art.º 20.º da petição inicial, os Réus não incorporaram qualquer quantia ilicitamente no seu património à custa do empobrecimento do património do Autor, pois que, como este bem sabe, foi este o negócio que celebrou com os Réus, no seu interesse, facto, aliás, dado como provado por douta sentença já transitada em julgado, como se demonstrou.

XIII. Conclui-se que os factos dados indiciariamente como provados e não provados encontram-se em contradição com a prova dos autos, não se verificando verosimilhança do direito ou perigo na demora, não se justificando, com o devido respeito, e salvo melhor opinião, nem o processo principal, nem o presente procedimento cautelar de arresto.

XIV. Como supra se demonstrou dos excertos dos depoimentos das testemunhas supra transcritas, estas não têm conhecimento direto de nada, antes reproduzindo o que ouviram dizer, nem sequer conseguindo dizer quem disse, não merecendo qualquer credibilidade!

XV. A M. ma Senhora Juíza a quo refere na sentença que “No caso dos autos, o autor propõe o presente procedimento, fazendo apelo aos princípios e pressupostos de instituto de enriquecimento sem causa”, mas certo é que como tudo se vê da petição inicial dada pelo autor aos autos principais, este não reclama o ressarcimento de qualquer montante a título de enriquecimento sem causa.

XVI. Constata-se da petição inicial, que o pedido formulado pelo autor foi para o ressarcimento de alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, nunca a título de enriquecimento sem causa, que é sempre uma ultima ratio, pois caso o tivesse feito, os Requeridos sempre teriam invocado a prescrição da responsabilidade civil extracontratual e do enriquecimento sem causa, o que, por mera cautela de patrocínio fizeram posteriormente.

XVII. Como tudo se alegou e provou nos autos, e adiante se demonstrará, não existe sequer direito do autor, quanto mais enriquecimento sem causa, entendendo os requeridos que tal entendimento viola os princípios da igualdade de armas e da lealdade processual, prejudicando os direitos de defesa dos requeridos, que só têm de defender-se do pedido.

Não tanto pelo alegado, mas pelo doutamente suprido, Vossas Excelências, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, declarando:

1. Verificada a exceção de caso julgado material / autoridade do caso julgado, com as devidas consequências legais, ou;

Caso assim não se entenda,

2. A inexistência de fundamento para o decretamento da presente providência cautelar, revogando a sentença proferida,

Farão V. Exas. a melhor justiça!”


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Não foi apresentada resposta, pelo Recorrido.

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Por despacho de 12/10/2023, foi admitido o recurso, nos termos legais e os autos correram vistos, nada se observando que obste ao conhecimento da apelação.

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II_ Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, perante as conclusões apresentadas pelos Recorrentes, importa apreciar as seguintes questões:
a. Da excepção de caso julgado;
b. Impugnação da decisão da matéria de facto;
c. Da verificação dos pressupostos para o decretamento do arresto.


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III. Fundamentação de facto

Consta da decisão recorrida que “após produzida a prova indicada pelos requeridos, considera-se que se mantêm indiciariamente provados os seguintes factos:

1- Durante o ano de 2003, foi pelos requeridos adquirido por contrato de compra e venda, pelo valor de 45.000,00 euros e com recurso a crédito bancário, a fracção autónoma designada pela letra “ A” correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...;

2- Para a formalização da compra e venda e para pagamento de parte do respectivo preço, o requerente entregou aos requeridos a quantia de 20.000,00 euros;

3- Para pagamento do restante do preço contratado e mais despesas, os requeridos obtiveram financiamento junto de uma instituição bancária, o Banco 1..., agora Banco 2...;

4- Obtido esse financiamento bancário, no valor de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros), foi o requerente quem pagou as respectivas prestações mensais, desde o início até final, em 2015, pagando a totalidade do capital mutuado, juros e despesas, num valor total de 31.694,00 euros;

5- Bem como foi o requerente quem pagou o respectivo Imposto Municipal sobre Imóveis relativamente a esse imóvel;

6- Correu acção judicial entre os aqui requeridos (como autores) e o aqui requerente (como réu), acção de reconhecimento do direito de propriedade que tramitou no Juízo Local Cível de Gondomar sob o nº 2052/17.5T8GDM, acção que viria a ser julgada procedente e condenado o Requerente a reconhecer que os ora Requeridos são os proprietários do referido imóvel, bem como a restitui-lo aos Requeridos;

7- É do conhecimento do requerente e demais moradores das vizinhanças, que os requeridos, sabedores de que o requerente pretende reclamar dos requeridos as quantias acima referidas, pretendem vender o imóvel em causa, assim dificultando a satisfação do crédito invocado.

E considera-se não terem ficado provados os seguintes factos:

8 – A pedido do requerente, a requerida aceitou, mediante acordo verbal, descer-lhe o uso do referido armazém, para que este se servisse do mesmo como local de apoio para movimentação de sucata, ficando acordado que, como contrapartida, todas as despesas inerentes aos uso do local correriam por conta do requerente, incluindo o pagamento das prestações do mútuo bancário e despesas fiscais”.

III_ Fundamentação de direito

1ª Questão

Insurgem-se os Requeridos com a decisão proferida pelo Tribunal a quo por referência à excepção de caso julgado.

Sustentam que “existem já decisões com trânsito em julgado  que, para além de reconhecerem a propriedade do imóvel aos requeridos, estabelecem os termos do acordo celebrado entre o requerente e os requeridos”, sendo pedido, neste procedimento cautelar, que “o Tribunal que decida questões que já se encontram decididas”.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 628.º do Código de Processo Civil que “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Como, entre outros, explicam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Diz-se que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da decisão constitui assim a pedra de toque do caso julgado [2].

O conceito de caso julgado abrange duas vertentes: a do caso julgado formal ou externo, relativo a questões de carácter processual e a do caso julgado material, substancial ou interno, “referente à relação material em litígio”.

O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada”. O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do próprio processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.” [3]

Ensinava o Professor Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, anotação ao art. 672º, que “com o trânsito da sentença em julgado, facto processual definido no § único do art. 677º, produz-se este fenómeno: a formação do caso julgado. O art. 671º propõe-se determinar a autoridade e o valor desta formação. E determina-os assim: a decisão proferida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele. Se confrontarmos este ditame com o que se lê no art. 672º, ficamos logo advertidos de que a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia: ao passo que o art. 671º fala de força obrigatória dentro do processo e fora dele, o art. 672º só atribui à decisão força obrigatória dentro do processo.

Estamos pois em presença de duas figuras diferentes, de duas realidades perfeitamente distintas. À que o art. 671º considera dá-se o nome de caso julgado material ou substancial: à que o art. 672º desenha cabe a designação de caso julgado formal ou processual. Quando é que o caso julgado reveste a primeira ou a segunda modalidade? A aproximação dos dois artigos habilita a dar a resposta. Se a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, temos o caso julgado formal. Se recai sobre o mérito da causa, e portanto sobre a relação jurídica substancial, temos o caso julgado material”.

Escrevem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[4], “a litispendência e o caso julgado são pressupostos processuais de índole negativa, na medida em que a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância (arts. 278º,1,e, e 577º,i)”.

A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma  causa, quando na primeira causa já tenha sido proferida decisão final transitada em julgado (cfr. art. 628º do CPC), dispondo o nº 1 do artigo 578º do Código de Processo Civil que “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

A exigência desta tríplice identidade fixa os limites subjectivos e objectivos do caso julgado. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “É através desta tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado (...). O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção) (…). É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado(…)”.

Concluem, “Pode assim dar-se por assente que a eficácia do caso julgado apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (artigo 659º, 2, in fine), ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir (…). A força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final.” [5] [6]

No que respeita aos limites subjectivos, importa salientar que a identidade dos sujeitos relevante para efeito da excepção de caso julgado é, como dispõe o artigo 580º, nº 2, do CPC, a identidade jurídica, ou seja, não interessa tanto a identidade física dos sujeitos envolvidos nas várias acções, mas a qualidade jurídica em que intervieram no processo.

A identidade de pedidos assume grande relevância no âmbito do caso julgado, já que este se forma directamente sobre o pedido. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que “a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado”. [7]

Tendo presente os diferentes pedidos deduzidos no processo n.º 2052/17.5T8GDM e no procedimento cautelar, desde logo concluímos não se verifica a excepção dilatória do caso julgado.

E a figura da autoridade de caso julgado?

A “autoridade de caso julgado implica o acatamento de decisão proferida em acção anterior, cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”.[8]

Referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Vem surgindo com alguma frequência em arestos dos diversos tribunais o recurso à figura da «autoridade do caso julgado» (ou efeito positivo do caso julgado), com vista a extrair de algumas decisões o mesmo efeito impeditivo que emerge da verificação da exceção dilatória de caso julgado. (…) Em STJ 8-11-18, 478/08, decidiu-se que tal figura pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos que se apresenta como pressuposto indiscutível do efeito jurídico da decisão posterior”.[9]

Para “Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (…) a autoridade de caso julgado que emerge da sentença que transitou em julgado e a exceção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica: «pela exceção visa-se o efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida». Subsume-se nesta orientação o STJ 14-10-2021, 251/13, ao entender que (…):se o objecto de processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objetos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado”.[10]

Já Teixeira de Sousa, numa linha que tem obtido maior adesão por parte da jurisprudência, defende que «a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, acrescentando, ainda, que «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada»”. [11]

Concluem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Enfim, respeitada a identidade dos sujeitos (…), a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art.º 581.º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmos sujeitos (…), abarcando, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam  antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado(…). Seguro é que tal mecanismo, que visa evitar contradições decisórias entre os mesmos sujeitos, não poderá ser invocado em ação que corra entre sujeitos diversos na perspectiva da sua qualidade jurídica...”.[12]
Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 27/2/2018[13]:
“Na jurisprudência deste Supremo Tribunal encontramos plasmado o entendido de que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 498º do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, cf. Ac. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; Ac. de 06.03.2008, processo nº 08B402, e Ac. do STJ de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – assim, nomeadamente, Ac. do 29/07.4.TBPST.S STJ de 12.07.2011, processo 11, www.dgsi.pt – o que tem apoio na doutrina de Miguel Teixeira de Sousa, ao afirmar: “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579)”.
No Acórdão de 17/05/2018, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que: [14]

Segundo a noção dada por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304, o caso julgado material, «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».

É imposto por razões de certeza do direito, mas, sobretudo, de segurança das relações jurídicas.

Tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor, obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.

Mas, enquanto que alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis, para Lebre de Freitas e para Remédio Marques, defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, outros há, como Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, que defendem uma conceção mais ampla do caso julgado.

Assim, nesta última linha, sustenta Miguel Teixeira de Sousa, que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

Também, na esteira desta doutrina, afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) que «a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».

Mas, não obstante a divergência registada ao nível da doutrina sobre o âmbito objectivo do caso julgado, a verdade é que todos parecem estar de acordo num ponto, ou seja, que os fundamentos de facto, por si só, nunca formam caso julgado.

Com efeito, pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Remédio Marques, que o caso julgado «não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final».

No mesmo sentido, refere Antunes Varela que «os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final».

Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».

E é também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente».

Pronunciando-se sobre a autoridade de caso julgado, no Acórdão de 2 de Junho de 2021, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães [15]:

“Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 26.2.2019 (in www.dgsi.pt)a exceção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. art. 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: exigir essa tríplice identidade equivaleria, como já se afirmou, a "matar" esta figura; "a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva”.

A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2 do CPC).

A autoridade de caso julgado "tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (...)

Na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.

Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”(sublinhados nossos).

Dito de outro modo, o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão) (Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.6.2019 in www.dgsi.pt).

Por outro lado, como referido no Acórdão do STJ de 30.4.2019 (in www.dgsi.pt) “tem sido entendido por alguns, nomeadamente a maioria da jurisprudência, que a autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida”.

Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 9/11/2021:[16]
“2- A autoridade do caso julgado deriva não desta tríplice identidade, mas sim da necessidade de assegurar que uma decisão judicial não tenha um efeito contraditório ou incompatível com decisão anterior, sendo fundamental atender ao anteriormente decidido, sempre de acordo com a interdependência e prejudicialidade entre as duas acções;
3.–Para tanto, haverá que atender ao direito material e à relação existente entre a situação já definida por sentença e aquela que vem a juízo, sendo primordial definir quais os terceiros, titulares de relações jurídicas conexas, que ficam abrangidos pela autoridade do caso julgado, ou seja, pelo conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva;
4.–Do regime jurídico do seguro de responsabilidade civil extrai-se a existência de uma relação de prejudicialidade entre a decisão proferida em acção proposta pelo lesado contra o segurado, onde este foi condenado, por sentença transitada em julgado, e a decisão a proferir na acção proposta contra a Seguradora, sendo que aquela decisão faz parte do objecto da nova acção, fixando quer a responsabilidade do lesante, quer os termos da obrigação de indemnizar e que, por esse motivo, devem ser respeitados;
5.–Assim, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado formado na 1ª acção;
6.–Esta interpretação relativamente ao caso julgado e sua autoridade, não é violadora de qualquer preceito constitucional, não existindo qualquer violação dos direitos à tutela judicial efectiva e à defesa”.

A autoridade de caso julgado, decorrente da necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas, não é colocada em crise mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei. [17]
Na esteira do entendimento exposto, a autoridade de caso julgado não depende da verificação integral ou completa da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, esse efeito de caso julgado só vinculará e aproveitará a quem tenha sido parte na respectiva acção ou a quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia directa ou reflexa, consoante os casos.
Relativamente à extensão do caso julgado a terceiros, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [18] distinguem várias categorias de terceiros. Sobre o “[c]aso julgado nas acções relativas às obrigações solidárias”, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [19], «Relativamente às obrigações em que haja dois ou mais  devedores solidários, prevendo a hipóteses de o credor demandar apenas um deles (…), a lei prescreve (artigo 522º do mesmo Código) que “o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor».
Assim, quem não for parte na acção poderá beneficiar do efeito favorável do respectivo caso julgado em conformidade com a lei, como sucede na situação de solidariedade entre devedores, nos termos do artigo 522.º, 2.ª parte, do Código Civil. Ao devedor solidário aproveitará o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor com fundamento não respeitante pessoalmente a este (art.º 522.º, 2.ª parte, do CC).
Transpondo tais princípios para os presentes autos, dos documentos juntos à acção principal (para os quais os Requeridos remetem, na oposição e cujo acesso se mostrou possível através da plataforma Citius) resulta o seguinte:
1. Em 13 e Junho de 2017, BB, ora Requerida [nessa acção, não interveio o Requerido], intentou uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o ora Requerente, AA, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 3, sob o n.º 2052/17.5T8GDM, na qual pediu o reconhecimento da autora [ora requerida] como legítima proprietária do imóvel mencionado no presente procedimento cautelar  e a condenação do Réu a restituir-lhe esse imóvel, livre de pessoas e bens.
2. Nessa acção, a Autora alegou ser proprietária do prédio e ter acordado verbalmente com o irmão, ora requerente, o uso do mesmo para servir de apoio à sua actividade de movimentação de sucata.
3. Por sentença de 22/05/2018, proferida no âmbito daqueles autos, já transitada em julgado, foi a acção julgada procedente e o Réu AA (ora Requerente) condenado a: “1) Reconhecer que a autora é legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n. º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., ...) Restituir à A. o prédio identificado em 1., livre de pessoas e bens”.
4. Nessa acção, foram considerados assentes os seguintes factos:

A A. é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., nos termos constantes de fls. 8 a 10 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

B. O R. é sucateiro;

C. Ao tempo da aquisição do imóvel supra identificado pela A., o R. necessitava de um local de apoio à sua profissão;

D. A pedido do R., a A. aceitou comodatar-lhe, por um período que se pretendia curto, o armazém identificado em A) para que este servisse como local de apoio para movimentação de sucata;

E. Tal acordo foi feito verbalmente;

F. Nos termos acordados, as despesas inerentes ao uso e fruição do local correriam a cargo do R.;

G. No entanto, tal situação deveria manter-se por um período de tempo razoável e apenas para o fim que foi acordado;

H. Sucede que, em data que a A. não sabe precisar, o R. procedeu a alterações no espaço, tendo passado a residir no mesmo, onde estabeleceu, inclusive, a sua morada fiscal;

I. Alterações estas, feitas sem autorização da A., que não lhe foram sequer comunicadas pelo R.;

J. Em face de tal, e pretendendo a A. fazer cessar o acordo de comodato que tinha com o R., interpelou-o verbalmente, por diversas vezes, para que este lhe restituísse a posse do imóvel;

K. Porém, o R. recusou-se sempre a abandonar o imóvel, restituindo-o à A.”

4. Em 9 de Junho de 2017, o ora requerente intentou uma acção contra os ora requeridos, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 1, sob o n.º 72/17.9T8GDM, pedindo a execução específica do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “A”  correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ......, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...; a legalização da transmissão  da propriedade do aludido imóvel para o Autor, devendo, para tanto, ser proferida uma decisão que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos, aqui Réus, de forma a ser realizada a escritura de compra e venda do imóvel…”.

5. Nessa acção, alegou o Autor [ora Requerente] que celebrou com os Réus [ora Requeridos], em 10 de Novembro de 2003, um contrato designado por contrato-promessa de compra e venda através do qual o primeiro prometeu comprar aos segundos, que, por sua vez, lhe prometeram vender, a fracção autónoma designada pela letra “A”  correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ......, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..., tendo sido estipulado para a venda do imóvel, o preço de €39.903,83; o Autor entregou aos Réus, na data em que outorgaram o contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 14.963,94; os Réus, com  a assinatura do contrato-promessa, deram quitação do valor recebido a título de sinal; o Autor comprometeu-se a pagar aos Réus a restante parte do preço no montante de €24.939,89; o referido pagamento prestacional visava o pagamento de um crédito contraído pelos Réus junto da Banco 1..., em Setembro de 2003, sob o contrato nº ... para aquisição do imóvel objecto do contrato-promessa  em causa; o Autor fez os referidos pagamentos (….) tendo finalizado no dia 10 de Outubro de 2015; com  a celebração do contrato-promessa em causa, o Autor tomou posse do imóvel  (...)”.

6. Desse contrato-promessa consta que:

- “Os primeiros outorgantes [BB e CC] são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ......, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..., a fls. 173 do Livro ...…”.

- “Pelo presente contrato, os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo ou a quem este indicar a referida fracção pelo valor de €39.903,83, livre de encargos ou ónus seja de que natureza forem”.

- “Como sinal e início de pagamento foi paga a quantia de 14.963,94 da qual foi dada quitação”.

- “Os restantes €24.939,89 serão pagos em 144 prestações mensais, iguais e sucessivas com vencimento até ao fim do mês a que respeitarem, com início em Novembro de 2003 e até total cumprimento”.

- “A escritura notarial de compra e venda será marcada pelo segundo outorgante, logo que o mesmo queira sendo que para tal lhe foi passada procuração com poderes especiais mas obrigando-se o mesmo a liquidar previamente todas as prestações do empréstimo que os primeiros outorgantes celebraram com a Banco 1... (...)”.

6. A referida acção, por sentença de 26/1/2019, foi julgada improcedente, por não provada, tendo os ora requeridos sido absolvidos do pedido.

7.Na acção cujos termos correram sob o n.º 3709/19.1T8GDM - Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 3, intentada pelo ora requerente contra os ora requeridos, aquele pediu que fosse reconhecido como único proprietário da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ......, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...; que se legalize a transmissão da propriedade do aludido imóvel para o autor, para tanto devendo ser proferida decisão judicial que permita ao autor registar na competente Conservatória do Registo Predial, a sua propriedade sobre o indicado imóvel. Ou se assim não for entendido, que fosse reconhecida a propriedade do imóvel ao autor, através do instituto da usucapião e que os réus fossem condenados a reconhecer essa propriedade plena e, em consequência, a absterem-se da prática de qualquer acto sobre o mesmo imóvel.

8. Nessa acção, o Autor, ora Requerente alegou que “na sequência de uma proposta de aquisição de uma fracção, resolveu adquirir a mesma pelo preço de €40.000, mas, uma vez que apenas dispunha de €20.000 e que não conseguia obter financiamento bancário, aceitou a proposta da Ré (sua irmã) de pedir em seu nome o financiamento do valor remanescente, necessário para aquisição do imóvel, mediante a condição de que as prestações do crédito ficariam a cargo do autor, assim como as despesas relacionadas com o imóvel e ainda que a propriedade do imóvel ficaria registada a favor dos réus como garantia do pagamento e, findo este, os Réus transfeririam a propriedade para o Autor; como garantia de que os Réus cumpririam o acordado, foi celebrado entre as partes, aquando da escritura de compra e venda, um contrato-promessa nos termos do qual os Réus prometiam vender o imóvel ao Autor. Mais alegou que o financiamento solicitado foi de €25.000, quantia que os Réus entregaram ao Autor que a usou para pagar o preço de aquisição do imóvel, tendo pago as 144 prestações mensais relativas ao crédito obtido pelos Réus junto da instituição bancária, o que fez desde Novembro de 2003 até Outubro de 2015. Referiu, ainda, que esteve na posse do imóvel desde o início do ano de 2003, sendo visto como proprietário do mesmo, e que, desde essa data, sempre suportou as despesas de IMI, água e luz a eles referentes.

9. Por sentença proferida nessa acção, em 12-07-2021 e transitada em julgado, foi julgada:

“a) Procedente a excepção de caso julgado aduzida pelos Réus no que concerne aos pedidos que o Autor AA deduziu sob os n.os 1), 2) e 3), e, em consequência, foram os Réus BB e marido, CC absolvidos da instância quanto aos mesmos;

B) Improcedentes os pedidos deduzidos pelo Autor AA sob os n.os 4) e 5), absolvendo, por conseguinte os Réus de tais pedidos;

C) Procedente o pedido deduzido pelos Réus BB e marido CC de condenação do Autor AA como litigante de má-fé, e, em consequência, foi este condenado em multa de 2 (duas) UC’s e numa indemnização aos Réus no montante de € 535,50 (quinhentos e trinta e cinco euros e cinquenta cêntimos), absolvendo-o do demais peticionado”.

No caso dos autos, o AA requereu o procedimento cautelar especificado de arresto contra BB e CC pedindo que seja decretado o arresto do prédio composto por habitação no rés-do-chão direito, sito na Travessa ..., da freguesia ..., concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o artigo n.º ...; e a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., para acautelar o crédito que possui sobre os Requeridos, no valor de €52.241,85 (cinquenta dois mil duzentos quarenta e um euros, oitenta cinco cêntimos).

Invoca a titularidade de um direito de crédito sobre os Requeridos resultante da circunstância de lhes ter disponibilizado a quantia de €20.000,00 e de ter pago a totalidades das prestações do crédito bancário contraído por aqueles, bem como o IMI. A apreciação e decisão desse direito de crédito não colide com o reconhecimento do direito de propriedade da Requerida sobre o imóvel, nem esta relação material constitui pressuposto do crédito.

É certo que na acção n.º 2052/17.5T8GDM, proposta pela Requerida contra o Requerente, ficou assente que a pedido do R., a A. aceitou ceder-lhe o uso, por um período que se pretendia curto, de o armazém como local de apoio para movimentação de sucata, ficando as despesas  inerentes ao uso e fruição do local a cargo do primeiro.

Porém, como referido, para que opere a autoridade de caso julgado mostra-se necessário que esteja respeitada a identidade de sujeitos, o que não se verifica pois, na acção n.º 2052/17.5T8GDM, não interveio o Requerido.

Por último, não operando a autoridade de caso julgado, a circunstância de ter ficado assente, naquela acção, que as despesas inerentes ao uso e fruição do local ficam a cargo do ora Requerente, não permite que esse facto possa ser considerado isoladamente, coberto pela eficácia do caso julgado pois, vale enquanto fundamento da decisão proferida nessa acção e em conjunto com a mesma.

Improcede, assim, a excepção de caso julgado e de autoridade de caso julgado.

2ª Questão

Os Recorrentes insurgem-se com a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo sustentando que a prova testemunhal produzida não permite considerar provada a “factualidade dada como provada indiciariamente na decisão de 07/12/2022” (conclusão II) pois, como demonstrado “dos excertos dos depoimentos das testemunhas” que transcreveram na motivação, “estas não têm conhecimento directo de nada, antes reproduzindo o que ouviram dizer”. (conclusões XII e XIII).

Sustentam, ainda, que o imóvel foi adquirido pelos Recorrentes que concordaram em ceder o seu uso ao Recorrido que, como contrapartida e por seu interesse, pagaria todas as despesas do imóvel, incluindo as prestações do contrato de mútuo bancário, IMI, etc.”, facto já dado como provado (conclusões X e XI).

Embora se entenda que a enunciação da matéria de facto impugnada não tenha sido efectuada da forma mais adequada, delimita, com clareza suficiente, quais os factos que se mostram indiciariamente assentes e que considera que devem ser carreados para a matéria de facto não provada.

Na motivação, os Recorrentes transcrevem excertos dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF, testemunhas que foram arroladas na oposição e que já haviam sido inquiridas na audiência sem contraditório.

Previamente à apreciação da decisão da matéria de facto, importa apreciar e decidir uma questão prévia.

Dispõe o artigo 372º, nº 1, do CPC que “Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no nº 6 do art. 366º:

a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não deveria ter sido deferida;

b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tido em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução (...)”.

Ensina A. Abrantes Geraldes[20], na oposição “não se trata de facultar ao mesmo tribunal a reapreciação da decisão, a partir dos mesmos elementos, mas de conferir a possibilidade de revisão da convicção anteriormente formada, através de novos elementos de prova ou de novos factos com que o tribunal não pôde contar”.

Em anotação ao artigo 372º, nº4, do Código de Processo Civil, referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa [21], “No âmbito da oposição, o juiz deve expressar na decisão que venha a proferir  a nova convicção que puder  formar a partir de uma discussão mais alargada  proporcionada pelo exercício do contraditório, com resultados na revogação da medida ou na sua redução aos justos limites, de acordo com o que, ainda que em termos provisórios, resultar apurado nesta fase do procedimento.

Não estando de modo algum vinculado pelo teor da anterior decisão que foi decretada sem audiência contraditória, o juiz deve sentir-se livre para revê-la se acaso concluir que a versão dos factos inicialmente trazida pelo requerente não corresponde à verdade ou que este acentuou em demasia os aspectos que lhe convinha, omitindo aqueles que o prejudicavam”.

Escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [22], “o acto de produção de prova na ausência do requerido não tem lugar em contraditoriedade. Na medida em que nessa prova se baseie a decisão que ordenou a providência, o requerido pode querer exercer o direito de intervir  que lhe é facultado pelo artigo 415º, nº2, sem pretender simultaneamente alegar novos facto ou produzir novos elementos de prova: contentar-se-á, por exemplo, em instar testemunhas inquiridas, de cujo depoimento adquire conhecimento pela gravação. Este direito não lhe pode ser negado, mas, sendo admissível a renovação de atos de produção de prova na Relação (artigo 662-2ª), poderá questionar-se se, neste ponto, a alínea b) não deve ser interpretada à letra e, consequentemente,  se o meio da apelação não será o adequado a satisfazer a pretensão do requerido. Inclinamo-nos para uma resposta negativa, que passará por nova interpretação extensiva do preceito da alínea b), Em sentido aparentemente diverso: Abrantes Geraldes, Temas cit. III, p. 278(…). No sentido da anotação: Ramos Faria – Luísa Loureiro, Primeiras Notas cit, nº1 da anotação ao art. 372).”

Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães[23], no Acórdão de 25/2/2021, «…apesar de, como se considerou no Acórdão do STJ, de 6 de Julho de 2004, do n.º 2 do artigo 388º do CPC (atual, art. 372º), decorrer que “a decisão inicialmente proferida no procedimento cautelar, sem contraditório do requerido, é uma mera “decisão provisória”, insusceptível de constituir caso julgado que impeça a ulterior apreciação jurisdicional da oposição deduzida, de uma forma superveniente, pelo requerido, constituindo a segunda decisão complemento ou parte integrante da primeira, pelo que – emitida esta – o procedimento passa a ter uma decisão unitária” e não obstante ser certo que, “sendo admissível recurso desta segunda decisão, proferida sobre a oposição, o seu objecto pode compreender a impugnação pelo requerido dos fundamentos da decisão inicial que decretou a providência”, não se deva esquecer que, para obtenção de uma, usando as palavras de Abrantes Geraldes, revisão dos fundamentos fácticos de tal decisão favorável ao requerido/impugnante, necessário se torna que os novos meios de prova produzidos (ou, segundo a interpretação extensiva acima referida, a nova instância das testemunhas ou declarantes anteriormente ouvidos) e por aquele indicados nas suas alegações imponham uma decisão diversa sobre os pontos fácticos impugnados, sob pena de se manter o inicialmente considerado provado, certo, para além do mais, que não se exige ao juiz, na reapreciação da medida anteriormente decretada, a utilização de um critério mais rigoroso do empregue na primeira decisão (cfr. obra e autor que temos vindo a citar, pág. 238, referindo em favor de tal posição a opinião de Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 233, segundo o qual, o juiz deve usar na apreciação dos novos meios de prova o mesmo critério de verosimilhança que utilizou no primeiro momento).

E, assim sendo, no recurso da decisão proferida após a oposição, terão também que ser estes “novos meios de prova” (com a amplitude que acima se deu a este conceito) a sustentar a pretensão de alteração da decisão relativa à matéria de facto, por imporem decisão diversa da firmada pela primeira instância».

Perfilhando-se este entendimento e sustentando os Recorrentes a pretensão de alteração da decisão da matéria de facto, nos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF, arroladas na oposição, após inquiridas na audiência sem contraditório, importa reapreciar tais depoimentos para aferir se impõem decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo. Sendo a prova produzida incindível, a reapreciação de tais depoimentos não pode ser parcelar, o que conduz a que a análise dessa prova seja conjugada com os meios de prova produzidos na primeira fase e valorada globalmente.

Vejamos, então, se assiste razão aos Recorrentes.

No que tange ao alegado crédito do Requerente, no montante de €52.241,85 (cinquenta dois mil duzentos quarenta e um euros, oitenta cinco cêntimos), importa distinguir as diferentes parcelas constitutivas desse valor: a quantia de €20.000,00; a quantia de €31.694,00 correspondente a 144 transferências bancárias para amortização do empréstimo; e a liquidação do Imposto Sobre Imóveis, no montante de € 547,85.

Os Requeridos, na sua oposição, aceitaram o pagamento, pelo Requerente, quer das prestações do empréstimo, quer do IMI, apenas conferem a tais factos um enquadramento distinto. Referem que necessitando o Requerente de um espaço para o exercício da sua profissão, concederam-lhe o gozo do imóvel, ficando este obrigado a pagar as prestações do empréstimo e o IMI, bem como o consumo de água e de electricidade  [saber se o alegado acordo consubstancia um contrato de comodato ou outro respeita à qualificação jurídica e não à decisão da matéria de facto, importando, para o efeito, procurar,  através da interpretação do acordo, o que foi pretendido pelas partes].

Assim, assume natureza controvertida a entrega, aos Requeridos, da parcela de €20.000,00, mas não o pagamento das demais quantias, pelo Requerente.

Sobre o acordo firmado entre Requerente e Requeridos e a alegada entrega de €20.000,00, foram inquiridas as testemunhas DD, EE e FF.

A testemunha DD, na sessão de 7 de Dezembro de 2022, na presença apenas do Requerente, aos costumes disse ser vizinha e “conhecer há algum tempo” Requerente e Requeridos. Só na sessão de 24/11/2023, realizada após a oposição, declarou que o Requerente viveu em união de facto com a sua mãe. 

A testemunha EE, na sessão de 7 de Dezembro de 2022, na presença apenas do Requerente, aos costumes disse residir em ..., “muito próximo” do armazém, conhecer o Requerente e conhecer os Requeridos por ter vivido com aquele. Na segunda sessão, esclareceu ter vivido com o Requerente até 2017.

A testemunha FF é filho do Requerente e sobrinho da Requerida, razão pela qual tem conhecimento dos factos sobre os quais depôs.

A testemunha DD declarou “o que eu sei é que houve uma compra do Sr. AA, do armazém, e depois houve confusões porque... por causa de uma entrada de dinheiros e não sei quê, é isso que eu sei…”, acrescentando que o Requerente adquiriu o armazém ao pai da sua mãeFeita a pergunta “quem é que lhe disse isso?”, a testemunha respondeu “conversas... de casa, conversas a que assisti e a pagamentos também, nomeadamente, de uma entrada ou de um sinal de €20.000,00, (…) em dinheiro…foi em dinheiro, porque eu sei, porque eu fui lá com o Sr. AA e com a minha mãe pagar, fazer esse pagamento ao meu tio, a casa do meu tio”. Acrescentou, “a única coisa que eu vi foi um pagamento em dinheiro, de €20.000,00 …e até posso acrescentar que foi uma situação caricata... eram notas de € 20,00, e demorámos imenso tempo a contar aquilo. Perguntado “esse dinheiro, segundo o convénio do que estavam ali a falar, ou seja, quando foi pago esse dinheiro, havia uma explicação para ser pago esse dinheiro, que era?”, a testemunha respondeu “a compra do armazém do Sr. AA aos meus tios, ao meu avô.”

A testemunha nada esclareceu quanto ao acordo que foi estabelecido entre Requerente e Requeridos.

Sobre o acordo entre Requerente e Requeridos, a testemunha EE respondeu “só sei dizer que sempre se falou que ele tinha mandado os € 20.000,00”. Perguntado “sabe como é que pagou?”, respondeu “Só que aí nessa altura ele já tinha o armazém, não sei mais nada”.  Perguntado “o quê que eles acordaram em relação ao imóvel? Em relação aos pagamentos das despesas do imóvel, a Senhora sabe mais alguma coisa?”, respondeu “os pagamentos, eu sei que ele pagava todos os meses uma mensalidade”. Confirmou a testemunha que Requerente e Requeridos combinaram que aquele “tinha que pagar aquela quantia à D. BB que era na conta dela; eu até cheguei a pagar alguns”. Perguntado “mas a casa era deles, da D. BB e do Sr. CC?”, respondeu “não sei do acordo deles, isso já foi para aí há vinte anos, não sei mais nada”. Sobre a entrega da quantia de €20.000,00, reiterou que “era o que eu ouvia falar lá em casa”.

Na sessão, declarou “sempre se falou que ele pagou 20 mil euros. A própria BB (…) dizia. Ouvia falar.”.

A testemunha FF, filho do Requerente, declarou que a última vez que falou com a Requerida, sua tia, foi em Junho de 2022. Na primeira sessão foi questionado, apenas, sobre “a hipotética venda do património”, pelos requeridos. Na segunda sessão, declarou a testemunha que “não assistiu a nada”, acrescentando que a sua tia, ora Requerida, lhe disse que “o armazém estava em nome dela” e o pai, ora Requerente, “que lhe deu [à Requerida] dinheiro, em mão”.

O Requerente prestou declarações confirmando a versão dos factos narrada no requerimento inicial. Da factualidade narrada no requerimento inicial, consta a disponibilização, da quantia de €20.000,00, “aos Requeridos, a sua irmã BB e ao marido desta CC…”, nada constando sobre qualquer pagamento da quantia de €20.000,00 ao vendedor do imóvel. Do depoimento da testemunha DD resulta versão diferente, conforme referido: declarou ter acompanhado o Requerente, à casa do tio, e ter presenciado a entrega da quantia de €20.000,00, ao “seu tio” e não aos Requeridos. Diversamente, o filho do Requerente declarou que este lhe disse ter entregue a quantia de €20.000,00, à Requerida.

Do alegado acordo firmado entre Requerente e Requeridos, nenhuma testemunha inquirida demonstrou ter conhecimento directo, sendo antagónicas as versões por aqueles apresentadas.

A titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, além de não ser objecto destes autos, já se mostra reconhecida por sentença transitada em julgado, no processo n.º 2052/17.5T8GDM (certidão judicial junta nos autos principais), acção intentada por BB, ora requerida, contra o ora Requerente, AA.

Em 9 de Junho de 2017, o ora Requerente intentou uma acção contra os ora Requeridos que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 1, sob o n.º 72/17.9T8GDM, pedindo uma decisão que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos [aqui Requeridos], de forma a ser realizada a escritura de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma cave ampla, com sanitários, destinada a armazém, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., Concelho de Gondomar, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ......, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..., a fls. 173 do Livro ....

Nessa acção, alegou o ora requerente que celebrou com os ora Requeridos, em 10 de Novembro de 2003, um contrato designado por contrato-promessa de compra e venda através do qual prometeu comprar a estes, que, por sua vez, prometeram vender-lhe, aquela fracção autónoma, tendo sido estipulado para a venda do imóvel, o preço de €39.903,83. Alegou, ainda, o Requerente, nessa acção, que “entregou aos Réus, na data em que outorgaram o contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 14.963,94; os Réus com  a assinatura do contrato-promessa, deram quitação do valor recebido a título de sinal; o Autor comprometeu-se a pagar aos Réus a restante parte do preço no montante de €24.939,89; o referido pagamento prestacional visava o pagamento de um crédito contraído pelos Réus junto da Banco 1..., em Setembro de 2003, sob o contrato nº ... para aquisição do imóvel objecto do contrato promessa  em causa…”.

Em suma, o Autor apresentou versões não coincidentes dos factos, nessa acção e no presente procedimento, desde logo no valor que refere ter disponibilizado aos Requeridos. À semelhança do que ocorre com as declarações do Requerente, as declarações prestadas pela Requerida também não merecem credibilidade, pela falta de coerência, concordando-se, nesta parte, com o Tribunal a quo.

Sendo esta a prova produzida, mostra-se manifestamente insuficiente e consistente para se considerar indiciariamente demonstrado o facto vertido no ponto 2, ou seja, que “para a formalização da compra e venda e para pagamento de parte do respectivo preço, o requerente entregou aos requeridos a quantia de 20.000,00 euros”, bem como o facto 8.

O financiamento obtido junto de instituição bancária para pagamento de parte do preço mostra-se admitido pelos Requeridos, bem como o pagamento, pelo Requerente, de todas as prestações para amortização desse empréstimo e do IMI referente ao imóvel – factos vertidos nos pontos 3, 4 e 5 -, mostram-se admitidos pelos Requeridos.

A compra e venda do imóvel pelos requeridos consta da escritura pública junta com a contestação, apresentada na acção principal, encontrando-se registado em seu nome a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, direito que se mostra reconhecido por sentença transitada em julgado, pelo que se mostram indiciariamente assentes os factos ínsitos nos pontos 1 e 6.

Sobre a intenção dos Requeridos de procederem à venda do imóvel, a testemunha DD, na primeira inquirição, declarou que “consta na zona” que o armazém “está à venda…as pessoas comentam que o armazém está à venda”. Na sessão de 7/12/2022, à pergunta “sabe se, por acaso, o armazém está à venda?”, respondeu “não sei de nada acerca desse assunto, não sei de nada.”

Sobre a intenção de venda do imóvel, a testemunha EE respondeu “…na altura que eu fui ao café, como moro ali perto, estavam a falar que estava para venda”, no café, “estavam lá a falar, não sei quem era, mas não foi comigo”. Perguntado “e quem é que estava lá a falar?” respondeu “só estavam a dizer que estava um armazém para venda”. Na sessão de 7/12/2022, referiu que dirigiu-se ao café [não se sabe quando] “e estavam a falar que estava para venda”. Perguntado “Quem estava no café?”, respondeu “Um senhor entrou e estavam a falar que estava um armazém para venda”.

Declarou o Requerente AA que existiram “pessoas que me perguntam se o imóvel está à venda”, “o que consta na rua é que o imóvel está à venda”. Declarações com teor mais vago é impossível.  Quem mencionou que o armazém estava à venda? Quem transmitiu ao requerente que os Requeridos tinham manifestado a intenção de vender o armazém? Quando? Qual o valor exigido?

A testemunha FF, filho do Requerente, declarou que a última vez quer falou com a Requerida, sua tia, foi em Junho de 2022. Feita a pergunta pelo Ilustre Mandatário do Requerente “o que é que sabe em concreto sobre a hipotética venda do património?”, a testemunha respondeu  que questionou a Requerida sobre a situação, de “ela se estar a apropriar de uma coisa que não é dela… e eu nunca acreditei que ela pudesse ter a atitude que está a ter agora”. Perante esta resposta, o Mandatário do Requerente disse-lhe “mas não é isso, isso não é para ser discutido agora…o que me interessa saber é se dessa conversa resultou alguma informação no sentido de que ela ia pagar ou não iria pagar, iria alienar património….”, tendo a testemunha respondido “eu questionei se ela iria pagar ou reverter a decisão em ficar com o armazém e o que ela me respondeu que não…”.  O Mandatário do Requerente insistiu “Não foi isso que eu lhe perguntei, Tem alguma informação de …” e a testemunha interrompeu, respondendo “ela não quer ficar com o armazém”. De seguida, o Mandatário do Requerente diz à testemunha Não, não é isso. Tem alguma informação no sentido de que ela se quer furtar a essa responsabilidade ou vender o património para não ter que assumir mais tarde essa obrigação?”, a testemunha respondeu “ACREDITO que sim”. Feita a pergunta “tem algum conhecimento concreto”, respondeu “ACREDITO que sim. Constou-me através de um conhecido meu, que estão à procura de vender o património”, tendo o Ilustre Mandatário observado “indirectamente o Senhor tomou conhecimento que a sua tia … e o seu tio querem vender o património”,   respondendo a testemunha “sim”, “não ouvi da boca dela mas por amigos que eu tenho, constou-me que estariam à procura de vender o armazém”.

Ora, é manifesta a falta de espontaneidade deste depoimento. E quando surge a resposta pretendida, a testemunha não esclarece quem lhe forneceu essa informação, como é que esses seus amigos tomaram conhecimento, quando isso sucedeu e qual o valor do imóvel que estava a ser pedido.

Na sessão de 24/11/2023, a testemunha respondeu que tomou conhecimento “por amigos que moram na zona” que o questionaram “o teu pai vai sair dali, vai por aquilo à venda”, tendo localizado esta “conversa em data anterior a Junho de 2022, ou seja, antes da última conversa que teve com a tia, ora Requerida.

Não existe a identificação de qualquer pessoa que tenha falado com os Requeridos sobre a venda do armazém; não existe qualquer identificação dos “amigos” e “pessoas” que comunicaram o propósito de venda dos Requeridos.

As testemunhas GG e HH, irmã e cunhado do Requerente e da Requerida, declararam que nunca ouviram esta dizer que pretendia vender o imóvel.

Sendo esta a prova, é manifestamente insuficiente para se concluir o propósito de os Requeridos procederem à venda do imóvel, pelo que o facto ínsito no ponto 7 dos factos indiciariamente provados deve ser carreado para a matéria de facto não demonstrada.

Em consequência da procedência parcial da impugnação da decisão matéria de facto, são os seguintes os factos considerados provados e não provados:

1- Durante o ano de 2003, foi pelos requeridos adquirido por contrato de compra e venda, pelo valor de 45.000,00 euros e com recurso a crédito bancário, a fracção autónoma designada pela letra “ A” correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ....

2- (não provado)

3- Para pagamento do restante do preço contratado e mais despesas, os requeridos obtiveram financiamento junto de uma instituição bancária, o Banco 1..., agora Banco 2....

4- Obtido esse financiamento bancário, no valor de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros), foi o requerente quem pagou as respectivas prestações mensais, desde o início até final, em 2015, pagando a totalidade do capital mutuado, juros e despesas, num valor total de 31.694,00 euros.

5- Bem como foi o requerente quem pagou o respectivo Imposto Municipal sobre Imóveis relativamente a esse imóvel.

6- Correu acção judicial entre os aqui requeridos (como autores) e o aqui requerente (como réu), acção de reconhecimento do direito de propriedade que tramitou no Juízo Local Cível de Gondomar sob o nº 2052/17.5T8GDM, acção que viria a ser julgada procedente e condenado o Requerente a reconhecer que os ora Requeridos são os proprietários do referido imóvel, bem como a restitui-lo aos Requeridos.

7- (não provado)

Factos não provados:

2- Para a formalização da compra e venda e para pagamento de parte do respectivo preço, o requerente entregou aos requeridos a quantia de €20.000,00.

7- Os requeridos, sabedores de que o requerente pretende reclamar a quantia de €512.241,85, pretendem vender o imóvel em causa, assim dificultando a satisfação do crédito invocado.

8 – A pedido do requerente, a requerida aceitou, mediante acordo verbal, descer-lhe o uso do referido armazém, para que este se servisse do mesmo como local de apoio para movimentação de sucata, ficando acordado que, como contrapartida, todas as despesas inerentes aos uso do local correriam por conta do requerente, incluindo o pagamento das prestações do mútuo bancário e despesas fiscais.

Procede, assim, parcialmente a impugnação da matéria de facto.

3ª Questão

Insurge-se o Recorrente com a decisão proferida advogando que não se verifica “a verosimilhança do direito ou perigo na demora”, não existindo fundamento para o presente procedimento cautelar de arresto. Sustenta, ainda, que  o Tribunal a quo menciona que o Requerente fundamenta o direito que se arroga titular no enriquecimento sem causa, mas assim não sucede, tendo este instituto natureza subsidiária e não se encontra mencionado no requerimento inicial.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 362.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».

Deste modo, o procedimento cautelar destina-se à adopção de medidas provisórias que permitam remover ameaças sobre o direito, enquanto a questão não é definitivamente decidida, sendo seus fundamentos a invocação da probabilidade séria da existência de um direito (“fummus bonni juris”) e o fundado receio de que a demora natural na solução do litígio acarrete um prejuízo grave de difícil reparação (o “periculum in mora”), tudo isto aferido mediante prova sumária, isto é, não aprofundada mas, em todo o caso, minimamente consistente (“summaria cognitio”).

Feita esta prova, o Tribunal decretará a providência desde que o prejuízo causado ou a causar ao requerido não exceda aquele que o requerente, por sua vez, pretende evitar. E sempre dentro de uma perspectiva de instrumentalidade hipotética, ou seja, de que a composição final e definitiva do litígio no processo respectivo possa vir a ser favorável ao requerente.

Requerida a providência cautelar de arresto, dispõe o artigo 391º, nº 1, do Código de Processo Civil que “O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.”

 Por seu turno, o artigo 392º, nº 1, do Código de Processo Civil estabelece que “O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (…)”.

Resulta do disposto nos artigos 391º e 392º do Código de Processo Civil que compete ao requerente provar os factos constitutivos do direito de crédito de que se arroga e a existência de justo receio da sua lesão e de perda de garantia patrimonial desse crédito, tratando-se de requisitos de necessária verificação cumulativa.

Considerando a factualidade indiciariamente provada, o Requerente é titular de um crédito sobre os Requeridos, como referido pelo Tribunal a quo, não no montante indicado, mas de €32.241,85, salientando-se, face à argumentação dos Requeridos, que o tribunal não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos alegados e provados, sendo livre na aplicação do direito.

Relativamente ao justo receio de perda da garantia patrimonial previsto no artigo 406º, nº 1, do CPC, e no artigo 619º do CC exige-se um juízo de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias.

É, assim, essencial a alegação e prova de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança desse provável crédito já constituído.

O critério de avaliação deste requisito não pode assentar em simples conjecturas mas, ao invés, como ensina António Geraldes[24], “deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva”. Trata-se, em todo o caso, de um juízo provisório que terá de assentar em critérios de mera verosimilhança.

A Jurisprudência tem considerado a verificação de periculum in mora, para efeitos de decretamento do arresto, em situações em que existe, nomeadamente, a tentativa do devedor de alienar bens imóveis; o risco de o devedor ficar em situação de insolvência por dissipação ou oneração do seu património; a demonstração de que o devedor se furta aos contactos e pretende vender o património conhecido; o acentuado défice entre o crédito exigido e o valor do património conhecido do devedor, juntamente com a circunstância de o mesmo ser facilmente ocultável; a descapitalização de empresas, através da transferência dos activos, ou a prática de actos de alienação gratuita a favor de terceiros ou actos simulados de alienação ou de oneração[25].

Pelo Supremo Tribunal de Justiça foi considerado como factos indiciadores desse justo receio da perda da garantia patrimonial, «designadamente que... alienou ou está em vias de alienar determinados bens ou que deu o seu consentimento ou tenciona dá-lo quanto à alienação doutros.»[26]

Para ser considerado justo, há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, porventura conjecturado e exagerado, do credor, de ver satisfeita a prestação a que tem direito.

Por isso se entende que se verifica o justo receio de perda de garantia patrimonial quando o devedor adopte, ou tenha o propósito de adoptar, relativamente ao seu património conduta indiciada por factos concretos susceptíveis de fazer recear pela solvabilidade do devedor para satisfazer o direito do credor, sendo a ocultação de património, a alienação ou a expectativa de alienação ou de transferência de património sinais dos quais pode resultar o justo receio da perda da garantia patrimonial.

O fundado receio, pressuposto no arresto, não se basta com o mero temor, quer do eventual incumprimento, quer da eventual superveniente impossibilidade de efectivação do cumprimento coercivo através do património do devedor.

Analisados os factos indiciariamente provados, facilmente se conclui que não são susceptíveis de preencher o requisito do justo receio. Não se encontra demonstrados factos concretos que espelhem a situação económica e financeira dos Requeridos, a maior ou menor solvabilidade, a dissipação ou ocultação de bens.

Não se encontrando verificado um dos pressupostos do decretamento da providência, pelo que procede o presente recurso.

Custas

Considerando que os Recorridos não obtiveram vencimento em todas as pretensões recursórias, as custas do recurso são a seu cargo e do Recorrente, na proporção de 2/8 e 8/8, respectivamente, sendo as custas da providência a cargo do Recorrido.


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V_ Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em conformidade:
i. revoga-se a decisão recorrida na parte em que mantém o arresto decretado por decisão de 7/12/2022;
ii. determina-se o levantamento do arresto dos bens pertencentes aos Requeridos identificados na decisão de 7/12/2022, proferida pelo Tribunal da Primeira Instância;
iii. no mais, mantém-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo dos Recorridos e do Recorrente, na proporção de 2/8 e 8/8, respectivamente, sendo as custas da providência a cargo do Recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que este beneficia - cfr. artigo 527.º, n.ºs1 e 2, do Código de Processo Civil.


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Sumário:

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Porto, 4/3/2024
Anabela Morais
Ana Olívia Loureiro
Ana Paula Amorim
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[1] Nessa Decisão, foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos:
“1- Durante o ano de 2003, foi pelos requeridos adquirido por contrato de compra e venda, pelo valor de 45.000,00 euros e com recurso a crédito bancário, a fracção autónoma designada pela letra “ A” correspondente a um armazém na cave, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., da Freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... da Freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...;
2- Para a formalização da compra e venda e para pagamento de parte do respectivo preço, o requerente entregou aos requeridos a quantia de 20.000,00 euros;
3- Para pagamento do restante do preço contratado e mais despesas, os requeridos obtiveram financiamento junto de uma instituição bancária, o Banco 1..., agora Banco 2...;
4- Obtido esse financiamento bancário, no valor de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros), foi o requerente quem pagou as respectivas prestações mensais, desde o início até final, em 2015, pagando a totalidade do capital mutuado, juros e despesas, num valor total de 31.694,00 euros;
5- Bem como foi o requerente quem pagou o respectivo Imposto Municipal sobre Imóveis relativamente a esse imóvel;
6- Correu acção judicial entre os aqui requeridos (como autores) e o aqui requerente (como réu), acção de reconhecimento do direito de propriedade que tramitou no Juízo Local Cível de Gondomar sob o nº 2052/17.5T8GDM, acção que viria a ser julgada procedente e condenado o Requerente a reconhecer que os ora Requeridos são os proprietários do referido imóvel, bem como a restitui-lo aos Requeridos;
7- É do conhecimento do requerente e demais moradores das vizinhanças, que os requeridos, sabedores de que o requerente pretende reclamar dos requeridos as quantias acima referidas, pretendem vender o imóvel em causa, assim dificultando a satisfação do crédito invocado.
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De essencial e com interesse para o procedimento cautelar em causa, não existem outros factos a considerar como provados ou não provados”.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 702.
[3] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 703 e 704.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª ed., vol. I, anotação ao art. 580º, pág.711.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 712 a 714.
[6] Sobre as questões não cobertas pela força de caso julgado, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 714 e 715:”Da orientação assim fixada na lei duas conclusões práticas muito importantes se podem extrair: 1.ª – Sendo certo que o caso julgado apenas abrange a resposta dada pelo Estado à pretensão do autor (ou do réu, no caso especial da reconvenção), revestirá sempre o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final; 2ª –Pode haver – e haverá na comum das sentenças – muitos julgamentos, quer sobre a matéria de facto, quer sobre questões de direito que, por não estarem contidos na decisão final, embora integrem os seus fundamentos, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado”.
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, pág. 712.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 30 Março de 2017, no processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Almedina, 2022, pág. 798.
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[11] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, pág.800.
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/2/2018, proc. 2472/05.8TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2018, proferido no processo n.º 3811/13.3TBPRD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Acórdão de 2 de Junho de 2021, do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº4806/20.6T8VNF-B.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[16] Acórdão de 9/11/2021, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 877/20.3T8SNT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. Nesse Acórdão, pode ler-se:
“Também Alberto dos Reis in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVII, págs.206 e segs. (Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros) – apud Ac. STJ 08-01-2019, proc. 992/137TBMAI.P2.S1, relator Roque Nogueira, entendia que “O caso julgado formado sobre uma determinada relação jurídica só deve fazer sentir a sua influência sobre outras relações jurídicas quando estas estejam para com aquela num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão. E para se caracterizar esta dependência parece-nos aceitável o critério de Allorio – o critério da prejudicialidade. Se a relação coberta pelo caso julgado entre na formação doutras relações, como pressuposto ou como elemento necessário, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado sobre essas relações, na medida em que ele fixou e definiu a relação prejudicial”.

“Quando o caso julgado relativo a um objecto prejudicial é invocado numa acção posterior releva nesta segunda acção uma proibição de contradição daquele caso julgado, proibição que não impede a nova pronúncia do tribunal sobre o que é pedido, antes vincula o tribunal a utilizar o caso julgado como base da apreciação sobre o que lhe é solicitado”.
De igual modo, o Ac. TRG de 23-06-2021, proc. 123/20.T8VPC-A.G1, relator Maria dos Anjos Nogueira, refere que “É, portanto, “entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado ” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2016, proc. n.º 74300/15.9YIPRT.P1, relator: Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt)...”.
[17] Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019, proferido no processo nº 5998/16.4T8FNC.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
[18] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 726 a 729.
[19] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 726 a 729.
[20] António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, 4ª ed. revista e actualizada, pág.278.
[21] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª ed. vol. I, pág. 478.
[22] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, vol. II, 4ª ed. pág. 56.
[23] Acórdão de 25/2/2021, proferido no processo nº 321/19.9T8PRG.G1 25/2/2021, acessível em wwww.dgsi.pt.
[24] António Geraldes, em “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, Vol. IV, pág. 187.
[25] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2004, proferido no Processo nº 296/2004-7, acessível em www.dgsi.pt.
[26] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-11-1992, acessível em www.dgsi.pt.