Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3090/21.9T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
CRIMES SEXUAIS
CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
MEIOS DE PROVA
DÚVIDAS
CRIMINALIDADE VIOLENTA
ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO À VÍTIMA
OBRIGATORIEDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RP202402283090/21.9T9VNG.P1
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO, SEM PREJUÍZO DE SE DETERMINAR A ANULAÇÃO PARCIAL DA SENTENÇA RECORRIDA E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA NA QUAL O TRIBUNAL ARBITRE UMA QUANTIA MONETÁRIA A FAVOR DA MENOR, A TÍTULO DE REPARAÇÃO PELOS PREJUÍZOS SOFRIDOS.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida.
II – O ónus de impugnação deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não "por atacado", impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova, que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
III – A prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual revela-se, normalmente, particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Por isso, normalmente sucede nestes casos que o único elemento de prova existente resume-se às declarações dos menores ofendidos, podendo coexistir alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.
IV - Não raras vezes, o sistema jurídico assume que as crianças possuem poucas competências enquanto testemunhas em situações criminais, mas a investigação tem demonstrado que estas podem recordar e contar as suas experiências com precisão, desde idade precoce, revelando elevadas capacidades testemunhais e comunicacionais.
V - Mostra-se manifestamente insuficiente para provocar a «dúvida razoável» a circunstância de o arguido ter negado a prática do crime ou de existirem, eventualmente, imprecisões ou incongruências nos relatos sobre os abusos efetuados ao longo do tempo, desde que, naturalmente, tais incompatibilidades não sejam importantes e de molde a colocar em crise a consistência e credibilidade da descrição dos factos.
VI - Constitui entendimento dominante na jurisprudência que, no caso de condenação por criminalidade violenta, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, a não ser que a vítima expressamente se oponha a esse arbitramento.
VII - Tratando-se de uma questão de natureza obrigatória, a respetiva omissão de pronúncia determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, sendo esta nulidade de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3090/21.9T9VNG.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia

(Horácio Correia Pinto; Jorge Langweg)





Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório

No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 3090/21.9T9VNG, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«Por todo o exposto, julgo a Acusação Pública, parcialmente procedente e, em consequência decido:

1- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Abuso Sexual de Criança p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de três anos e oito meses de prisão.

2- Suspender a execução da pena de prisão de três anos e oito meses, por igual período, mediante a sujeição a regime de prova, nos moldes que vierem a ser elaborados pela DGRSP, devendo assentar em particular na prevenção da reincidência, devendo ainda incluir o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente, através da frequência de programas de reabilitação e intervenção psicoterapêutica na área da sexualidade, o que de resto, também se impõe nos termos do disposto nos artigos 53.º n.º 3 e 4 e 54, º n.º 4, ambos do Código Penal.

3- Condenar o arguido AA nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 U.C. e demais encargos com o processo (artigos 513º, nº 1, e 514º, nº s 1 e 2, do Código de Processo Civil, e artigo 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais).


****

Oportunamente, remeta boletim ao Registo Criminal - (cf. art. 6.º al. a), da Lei n.º 37/2015 de 05 de Maio).

Deposite de imediato- (artigo 372.º n.º 5 ex vi do artigo 373.º n.º 2, ambos do CPP).

Oportunamente, comunique-se à equipa da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, para elaboração de relatório nos termos do disposto no artigo 53.º e 54.º ambos do Código Penal.

Notifique. […]».


*

Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas “conclusões”, que se transcrevem:

« I. AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Abuso Sexual de Criança p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de três anos e oito meses de prisão.

II. Foi aplicada a suspensão da execução da pena de prisão de três anos e oito meses, por igual período, mediante a sujeição a regime de prova, nos moldes que vierem a ser elaborados pela DGRSP, devendo assentar em particular na prevenção da reincidência, devendo ainda incluir o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente, através da frequência de programas de reabilitação e intervenção psicoterapêutica na área da sexualidade, o que de resto, também se impõe nos termos do disposto nos artigos 53.º n.º 3 e 4 e 54, º n.º 4, ambos do Código Penal.

III. A conclusão a que o Tribunal chegou, não é coerente com a prova produzida.

IV. Nas suas declarações, o arguido AA explicou a sua verdade dos factos.

V. Porém o Tribunal a quo atribuiu maior credibilidade a outros fatores que considerou mais fidedignos.

VI. O principal fundamento que o Tribunal a quo indica para apontar o recorrente como autor do facto foi - “a tese”.

VII. A sua condenação pelo crime que não cometeu;

VIII. A falta de produção de prova durante todas as fases processuais;

IX. A veracidade do testemunho apresentado pela mãe da menor e pela menor BB;

X. A falta de verificação do relatório da Polícia Judiciária e dos factos lá constantes, do depoimento, das respetivas conclusões.

XI. Na verdade, nada poderia levar o Tribunal à conclusão de que o arguido AA praticou o crime, e ainda que duvidas houvesse, sempre teria o mesmo de ser absolvido pelo princípio do in dubio pro reo.

XII. Claramente o Tribunal a quo, atribuiu à pena aplicada ao recorrente um efeito de repressão e de castigo, por algo que não fez.

XIII. O Arguido, mesmo sabendo dos seus direitos, que podia manter o silêncio, não podendo ser prejudicado pelo mesmo, decidiu falar, prestar declarações, em todas as fases processuais atinentes ao processo do qual foi acusado e condenado.

XIV. Nunca, em momento algum, foi desprovido de inveracidade em qualquer depoimento prestado e/ou qualquer instância.

XV. As Declarações emitidas pela Polícia Judiciária - Diretoria do Norte foram efetuadas, contudo a sua apreciação não foi levada ao foro da Douta Sentença Condenatória promovida – reveja-se a simples leitura do NUIPC: 3090/21.9 T9VNG – Secção/Brigada SICS/2ª – Exma. Sra. Inspetora CC datadas de 01 de setembro de 2021 assim como no seu Relatório Final.

XVI. A sentença proferida baseou-se só e unicamente na medida do valor da prova prestada por depoimento, nomeadamente das declarações do arguido e do depoimento das testemunhas, da sua credibilidade, seriedade, isenção e razões de ciência.

XVII. As declarações prestadas pela menor BB são totalmente distintas daquelas que foram apresentas em fase de inquérito (Polícia Judiciária) e cuja importância não foi relevada à douta decisão condenatória.

XVIII. A parcialidade do tribunal ficou patente e objetiva, parecendo que a condenação já estava efetuada, antes mesmo de ser realizada a Audiência de Discussão e Julgamento.

Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas: * Princípio in dúbio pro reo * Artigo 410.º, n.º 2, alínea c) CPP.

Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. Doutamente melhor suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser alterada a, aliás, douta decisão recorrida, substituindo-a pela absolvição do mesmo. Decidindo deste modo, farão V. Exas., aliás como sempre, um ato de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.»

*
Também inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a menor ofendida, invocando a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do artigo 379.º n.º1 c) do CPP, uma vez que nela não é tomada posição sobre questões de que podia e devia ter conhecido, concretamente quanto à indemnização a arbitrar à vítima, nos termos e para os efeitos do artigo 1.º, al. j) e 82.ºA, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, e 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, posição condensada nos fundamentos descritos na respetiva motivação e constantes das conclusões, que se transcrevem:
«A) O Arguido vinha acusado de, em autoria material e na forma consumada, ter cometido um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. no artigo 171.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal, e artigos 69.º-B, n.º 2 e 69.º-C, n.º 2 do Código Penal.
B) O Tribunal julgou a acusação parcialmente procedente por provada, condenando o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, do crime pelo qual vinha acusado.
C) No entanto, e não obstante o Ministério Público ter promovido, atento o estatuto de vítima especialmente vulnerável da Ofendida, o arbitramento de uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos com a prática do crime supra exarado cf. artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, o Tribunal, na sua douta sentença, não tomou qualquer posição sobre tal promoção, não condenando o Arguido nessa parte.
D) Pelo que a Ofendida não se pode conformar com a decisão proferida, nomeadamente no que tange à omissão de pronúncia supra referida.
E) Senão vejamos: na douta acusação pública proferida nos autos, datada de 29.03.2022, o Ministério Público expôs e promoveu o seguinte: “Conforme o disposto no artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do Código de Processo Penal, consideram-se vítimas especialmente vulneráveis as vítimas de criminalidade especialmente violenta, cf. artigo 1.º, alínea l) do Código Penal. Deste modo, BB é considerada vítima especialmente vulnerável, sendo abrangida pelo âmbito de aplicação da Lei 130/2015, de 04 de setembro. Assim, e conforme o disposto no artigo 16.º, n.º 2 da referida lei, «há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser». Pelo exposto, caso não haja oposição de BB, o Ministério Público promove, desde já, o arbitramento de uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos com a prática do crime supra exarado, cf. artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.”
F) O legislador, ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, ressalvando apenas os casos em que há oposição expressa por parte da vítima, afastou o pressuposto previsto na parte final do nº 1 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, quando esteja em causa uma vítima especialmente vulnerável.
G) Nessas circunstâncias, o tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação.
H) De facto, a ofendida nunca se opôs ao arbitramento da reparação em apreço nem deduziu pedido de indemnização civil.
I) Outrossim, foi possibilitado ao arguido o exercício do contraditório quanto a tal questão, aquando do recebimento do douto despacho de acusação já aludido.
J) O processo prosseguiu, o julgamento foi realizado e a sentença proferida, tendo resultado provados os seguintes factos: […]
K) Tendo o Arguido sido condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de Abuso Sexual de Criança p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de três anos e oito meses de prisão, suspendendo-se a execução desta pena por igual período.
L) Pelo que se impunha a aplicação imperativa de tal arbitramento consignado no art. 82.º-A, do Código de Processo Penal, uma vez que tal foi doutamente promovido pelo Ministério Público, nunca houve oposição expressa por parte da vítima nesse sentido nem foi no processo deduzido qualquer pedido de indemnização civil, ao Arguido foi possibilitado o contraditório, e foi o mesmo condenado pelos factos de que vinha acusado.
M) Face ao exposto, a sentença é nula, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do artigo 379.º n.º1 c) do CPP, uma vez que não toma qualquer posição sobre questões de que podia e devia ter conhecido, concretamente quanto à indemnização a arbitrar à vítima, nos termos e para os efeitos do artigo 1.º, al. j), do CPP) e 82.ºA, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, e 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro; sendo certo que o Tribunal dispunha de todos os elementos para se pronunciar quanto a tal questão.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. suprirão, deverá ser declarada nula a sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP, determinando-se, em consequência, o suprimento da nulidade assinalada.»
*

O recurso interposto pelo arguido foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
O recurso da menor ofendida não foi admitido, por falta de legitimidade da recorrente, que não se havia constituído assistente.
Com efeito, o despacho datado de 20/10/2023 tem o seguinte teor (segue transcrição):
«Requerimento sob a referência citius 36869380:

Veio a ofendida BB, interpor recurso, da Sentença proferida nos autos.

Importa, por isso, e antes de mais, apurar da sua legitimidade.

Vejamos:

Dispõe o artigo 401.º do CPP que “Têm legitimidade para recorrer: a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido; b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas; c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas; d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afetado pela decisão. 2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”

In casu, a ofendida interpôs recurso da decisão final.

Prevê o artº 68º, nº 3 do CPP que: “Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento; b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respetivos atos. c) No prazo para interposição de recurso da sentença.”

A atual redação do art.º 68º do CPP foi dada pela Lei n.º 130/2015, de 04/09, - transposição da Diretiva nº 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, para a ordem jurídica interna, e, tal alteração, teve como resultado o aditamento da alínea c).

Assim, o objetivo da referida alteração legislativa é permitir à vítima que, quando confrontada com uma decisão desfavorável, possa, após essa decisão, constituir-se assistente e interpor recurso.

Por isso, nos termos da al. c), do n.º 3, do artigo 68.º do CPP, verifica-se que a lei prevê que o ofendido se quiser recorrer da sentença que lhe foi desfavorável terá de requerer a sua constituição como assistente dentro do prazo para a interposição do recurso.

Pelo exposto, não tendo a ofendida requerido a sua constituição como assistente, carece de legitimidade para recorrer.

Nestes termos, e com tais fundamentos, decido não admitir o recurso interposto pela ofendida.
Notifique.»


*

O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso interposto pelo arguido e consequente manutenção da sentença recorrida, sem prejuízo da efetiva verificação da nulidade por omissão de pronúncia, posição condensada no seguinte conjunto de conclusões:

«1. AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Abuso Sexual de Criança p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1 e 2, do Código Penal, foi condenado na pena de três anos e oito meses de prisão, suspensa na execução da pena de prisão de três anos e oito meses, por igual período, mediante a sujeição a regime de prova, em moldes que vierem a ser elaborados pela DGRSP, devendo assentar em particular na prevenção da reincidência, devendo ainda incluir o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente, através da frequência de programas de reabilitação e intervenção psicoterapêutica na área da sexualidade, o que de resto, também se impõe nos termos do disposto nos artigos 53.º n.º 3 e 4 e 54, n.º 4, ambos do Código Penal.

2. A decisão recorrida será nula, nos termos do disposto no art.º 379° n° 1 alínea c) do C.P.P., porquanto o Tribunal não se pronunciou sob o pedido de indemnização a favor da vítima, constante da acusação proferida, e para onde remete a decisão instrutória, nulidade essa de conhecimento oficioso.

3. O recorrente refere os pontos de facto que pretende ver analisados, no entanto não cumpre o ónus de impugnação especificada, mormente, a indicação concreta das passagens em que se funda a sua impugnação.

4. As provas que indica, não permitem retirar as conclusões pretendidas.

5. Inexiste violação do princípio in dubio pro reo.

6. Analisada a fixação da matéria de facto, e respetiva fundamentação, mostra-se patente a ausência de qualquer violação das regras de experiência comum, mantendo-se sempre a MM Juiz, na apreciação que fez, sempre dentro das fronteiras definidas pelo principio de liberdade na apreciação da prova.

Termos em que devem ser os autos reenviados a fim de ser suprida a invocada nulidade, ou assim não se considerando, negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida, como é de justiça!»


*
O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso, concluindo nos seguintes moldes (segue transcrição):
«-a prova foi devidamente apreciada e valorada; -o Acórdão está devida e acertadamente fundamentado, e não padece que qualquer erro ou vício; -não houve violação de lei; -o recurso do Arguido, deve ser julgado improcedente, mantendo-se a Sentença, nesta parte, nos seus precisos termos.»

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta ao parecer, reiterando as conclusões do seu recurso.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
a) Houve errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido violados os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos dados como assentes?
b) A sentença recorrida enferma do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP (erro notório na apreciação da prova)?
c) E é nula por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP)?


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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.

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Factos provados e não provados.

«Observado o legal formalismo, procedeu-se a julgamento e, discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:

A) Factos Provados:

1- O arguido AA nasceu em ../../2001 e é filho de DD, sendo esta última, por sua vez, filha de EE.

2- A ofendida BB nasceu em ../../2010 e é filha de FF, sendo esta última, por sua vez, filha de EE.

3- Em Novembro de 2018, na habitação da ofendida BB, sita na Rua ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, designadamente, no quarto da mesma e no período da noite, o arguido AA encontrava-se deitado entre a sua prima BB e o seu primo GG.

4- À data, a ofendida BB frequentava ou 3.º ano de escolaridade e tinha, respetivamente, 8 anos de idade.

5- Em determinado momento da indicada noite, o arguido AA dirigiu as suas mãos para a cintura da sua prima BB, despiu-lhe a parte de baixo do pijama que a mesma trajava nessa altura, expondo a zona das nádegas, e, ato contínuo, encostou o seu pénis no ânus da ofendida.

6- Continuamente, o arguido AA encaminhou as suas mãos para a zona da vagina da sua prima BB, e, inserindo as mesmas nessa zona por debaixo da roupa, introduziu os dedos na vagina da ofendida.

7- Seguidamente, o arguido AA, após a ofendida BB ter acordado e se voltado para si, dirigiu a sua cara à da sua prima, tocando com os seus lábios nos da ofendida.

8- Terminado o beijo, o arguido AA voltou-se para o outro lado da cama, adormecendo posteriormente.

9- O arguido AA, não obstante saber que a sua prima BB tinha à data dos factos menos de 14 anos de idade, nomeadamente entre 6 a 8 anos de idade, e que, por essa razão, não possuía a maturidade e conhecimentos suficientes para iniciar a sua vida sexual e para se autodeterminar nessa matéria, representou e quis manter com a ofendida BB relações de coito anal, introduzindo ainda os seus dedos na vagina desta, bem como, concretizando um beijo, tocando com os seus lábios nos da ofendida, tirando partido da sua ingenuidade e vulnerabilidade, resultantes da idade da sua prima e da relação que mantinham.

10- O arguido AA agiu sempre com a vontade de satisfazer os seus desejos sexuais, naquele momento temporal, com as descritas atuações diversas e neste contexto situacional procurado por aquele.

11- O arguido AA atuou de forma livre, deliberada e consciente, ciente da proibição e punição legal das suas condutas.

Dos antecedentes criminais do arguido:

12- O Arguido não tem quaisquer antecedentes criminais averbado no respetivo certificado de registo criminal.

Dos factos inerentes à personalidade e situação familiar e social do arguido:

13- O Arguido é mecânico e aufere a quantia de 770,00€ mensais.

14- Tem o 12.º ano de escolaridade.

15- Vive com a sua mãe com o seu padrasto e com o seu irmão mais novo.


***

Factos Não provados:

1- Que em 3) dos factos provados, os factos tenham ocorrido em data não concretamente apurada, mas certamente entre o mês de setembro de 2017 e junho de 2019 (anos letivos 2017/2018 e 2018/2019).

2- Que a ofendida em 4) dos factos provados frequentava o 2.º ano e tinha respetivamente, 6 anos de idade.

3- Que em 5) dos factos provados o Arguido tenha introduzido o seu pénis ereto no ânus da ofendida.


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I) Apreciando os fundamentos do recurso.

a) Impugnação da matéria de facto e vícios decisórios.

Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).

A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:

- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;

- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.

Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [1].

Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.

Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal]. [2]

Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [3].

Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [4]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [5].

O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.

A este propósito refere Germano Marques da Silva [6] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.

Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf., no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).

Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [7], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância. Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [8], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”.[9]

Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.


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A presunção de inocência é, consabidamente, um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova [10].

Visando o processo penal apurar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos para que o Estado exerça o seu jus puniendi através da aplicação de uma sanção penal, o princípio da presunção de inocência garante que a condenação só será proferida se e quando se fizer prova inequívoca, através de meios legalmente admissíveis e válidos, de que o acusado praticou os factos que lhe são imputados. Porque na dúvida sobre a culpa do arguido (um non liquet em matéria de prova dos factos) se impõe a sua absolvição, o princípio da presunção de inocência é identificado com o in dubio pro reo.

O “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos [11]- ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o nº 2 do art.º 410.º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há de resultar, claramente, do texto da decisão recorrida e, portanto, ocorrerá quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que deverá decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto [12].      


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Delineados os princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto, analisemos os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente.

Como vimos, o recorrente defende que os factos dados como assentes na sentença recorrida foram incorretamente julgados, com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crime por que foi condenado, enfermando, ainda, a decisão recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova.

Contudo, é manifesto que o recorrente não observou o ónus de impugnação especificada, não tendo procedido à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados (que, em rigor, não individualiza), por referência às concretas provas que, na sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP).

Na verdade, o recorrente deduz uma impugnação “em bloco”, não expondo qualquer raciocínio que conexione os meios de prova apresentados como sendo aqueles que, na sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida com um qualquer dos diferentes factos provados antes aglutinados, deixando ao julgador o ónus de sindicar a que concretos pontos da matéria de facto apresenta os concretos meios de prova produzidos em audiência.

Além disso, tendo as provas sido gravadas, o recorrente não indica, como devia, as passagens em que se funda a impugnação (cf. o art.º 412.º, n.º 4 do CPP).

A inobservância do ónus de impugnação especificada preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal [13], sem prejuízo, porém, da análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP.[14]

Com efeito, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP.

Esta hipótese – que configura o chamado recurso de «revista ampliada» - integra-se nas patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.

O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [15].

Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

O erro notório na apreciação da prova, consagrado no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados ou na apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[16]

Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso, e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [17].

Na sentença recorrida, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade atrás transcrita:

«A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e da livre convicção que o Tribunal formou sobre a mesma, sendo que foi uma tarefa norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, em conjugação com as regras de experiência.

De todo o modo, diremos que a medida do valor da prova prestada por depoimento, como é o caso das declarações dos arguidos e das informações prestadas por testemunhas, mede-se em credibilidade, fator que será composto pelos seguintes subfactores: seriedade (boa motivação da testemunha para depor); isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); razão de Ciência – fonte de conhecimento dos factos e coerência Lógica.

Contudo, é no âmbito da coerência lógica que podem e devem ser ponderados aspetos como o rigor (total coerência interna) e a forma objetiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes).

Se a lógica pura e simples, não der a resposta completa (por exemplo, um facto pode ser possível, mas de difícil verificação), aí entra a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras de experiência.

Refira-se, ainda, que o depoimento prestado pelo arguido em processo penal deve ser também valorado à luz dos fatores de credibilidade com que se julga a prova testemunhal, embora tendo em conta as especificidades decorrentes do seu estatuto.

O arguido é, como se sabe, a “testemunha” principal do processo, pois que ele mais que outra pessoa está em posição para relatar – ou não – os factos de que vem acusado. Porém o arguido tem um estatuto processual especial no nosso direito, não sendo obrigado a prestar declarações nem sequer a falar verdade.

E, é com base nestes pressupostos que iremos avaliar as versões em oposição nos autos.

Ora, o Arguido prestou declarações e negou em absoluto a prática dos factos que lhe são imputados, referindo que dormiu em casa dos seus tios até 2018. Esclareceu que dormia na casa dos tios aos fins de semana e que os tios tinham um quarto e ele dormia noutro quarto juntamente com os seus primos na mesma cama.

Referiu que ficou surpreso com esta situação até porque a sua prima BB ainda esteve em sua casa em Agosto de 2020 a passar um fim de semana. Referiu também que dormiu em casa da tia até 2018 e que dormia lá para ajudar nas obras da casa.

FF, mãe da criança prestou depoimento, que se mostrou verdadeiro, genuíno, espontâneo, circunstanciado e coerente com a demais prova produzida, adiantando esta situação ocorreu há cerca de dois anos por altura do aniversário da sua filha. Esclareceu que o seu sobrinho ia dormir a sua casa aos fins de semana porque lhe pedia. Confirmou que teve conhecimento desta situação em Junho de 2021 quando foi buscar a sua filha à escola. Adiantou que a sua filha só chorava e que lhe transmitiu o que o AA tinha tentado abusar dela. Asseverou que questionou a sua filha sobre quando é que essa situação ocorreu ao que a mesma lhe disse que já tinha sido há muito tempo. Relatou que a BB lhe disse que estava a dormir e que o AA estava no meio dela e do irmão e que acordou com ele a “meter a coisinha dele no rabo” e que lhe meteu os dedos na vagina e que lhe deu um beijo na boca. Referiu que esta situação ocorreu pelo aniversário dela a 15 de novembro, quando ele fez 8 anos. Recorda-se de ter feito uma festa grande e de ele lá ter ido dormir no fim de semana anterior e foi o último fim de semana que ele dormiu lá. Atestou que telefonou à sua irmã e que foram todos a casa dela para falar desta situação e a sua filha falou do que aconteceu, do beijo e da introdução dos dedos na vagina e do pénis.

A testemunha esclareceu que o Arguido confrontado com esta situação negou e disse que era incapaz de fazer isso.

HH, professora da ofendida, num depoimento verdadeiro atestou ao tribunal que foi professora da BB no 5.º ano na escola .... Adiantou que estava em aulas ao final da tarde em junho de 2021 e que a meio do intervalo a BB e duas amigas e pediram para falar consigo sobre um assunto particular da BB. Relatou que falou com a BB sem as duas amigas e que ela lhe transmitiu que há uns tempos atrás não se lembrava há quantos anos tinha tido “uma tentativa de violação” por um primo quando estava no quarto com ele e com o seu irmão no 1.º andar da sua casa. Referiu que a ofendida estava muito nervosa. Por último adiantou que a BB tinha sido reprendida por não ter feitos os trabalhos de casa.

DD, mãe do Arguido, testemunha de defesa, num depoimento contraditório entre si e parcial no sentido de favorecer a narrativa do Arguido, adiantou que teve conhecimento desta situação pela sua irmã em 21 de Junho de 2021. Esclareceu que a irmã telefonou e que foram a sua casa juntamente com a BB. Esclareceu que a sua irmã lhe contou que a professora da BB pediu para falar consigo porque aquela lhe havia dito que o primo tinha tentado abusar dela. Confirmou que a BB esteve em sua casa a passar um fim de semana em Agosto de 2020 e que estava tudo bem. Esclareceu que a última vez que o seu filho AA dormiu em casa da sua irmã foi em 2017 – altura em que perdeu o bebé – e que o AA deixou de frequentar a casa da sua irmã por altura em que a mãe faleceu.

II, testemunha de defesa, padrasto do arguido, num depoimento contraditório e totalmente manipulado e parcial no sentido de favorecer a tese do arguido. Adiantou que em junho de 2021 ocorreu uma reunião com a BB a mãe e a mãe do AA e o Arguido. Esclareceu que quando chegou a casa a BB agarrou-se à sua esposa a pedir desculpa. Esclareceu que o AA dormiu em casa da tia até 2018 e que dormia lá para ajudar nas obras, porque a casa ainda estava a ser contruída. Confirmou que em Agosto de 2020 a BB ainda esteve em sua casa a passar um fim de semana e que posteriormente ocorreu um afastamento entre a sua esposa e a mãe da BB por causa da morte da mãe de ambas. Ora, neste contexto, conjugando toda a prova e transpondo para a situação dos autos, temos que os factos provados em 1)) a 11)), foram confirmados pela ofendida BB que os explicou, aquando a sua inquirição em fase de inquérito, prestando declarações verdadeiras e genuínas. Com efeito a ofendida relatou com grande pormenor que sentiu o Arguido a introduzir os dedos no seu “pipi” e que sentiu algo a encostar ao seu rabinho – “acho que era a pilinha, mas eu não vi, só senti.” A par, assumiu especial relevância o teor do Relatório de Avaliação Psicológica efetuado à criança BB do qual resulta que “(…) Mostrou capacidade narrativa e mnésica, revelando as competências percetivas e narrativas esperadas para a sua idade e capacidade de responder às questões que lhe foram dirigidas, dando informações sobre acontecimentos do quotidiano, protagonistas, dinâmicas, interações, locais e contextos. Verbalizou acerca dos seus gostos, interesses e preferências. Demonstrou igualmente capacidade para distinguir realidade de fantasia, verdade de mentira, não se inibindo de corrigir a perita ou de fornecer respostas do tipo “não sei” ou “não me lembro”. Neste contexto somos de opinião que a menor apresenta capacidade para apresentar um testemunho válido.”

Relativamente Relatório de perícia médico legal junto aos autos, sempre se dirá que tem valor de perícia, com o sentido estrito de prova pericial realizada pelo INMLCF, IP, e que é perentório ao afirmar que “O discurso da examinanda denota: (1) desconforto na abordagem ao evento em apreço; (2) descrição coerente e consistente da situação de eventual abuso; (3) sentimentos de tristeza associados ao evento; (4) sensação de alívio em relação ao passo de revelação, mas com sentimentos de tristeza pela consciencialização face às consequências da revelação na dinâmica familiar; (5) capacidade crítica e de juízo face à situação. 6. Assim, especificamente em relação ao discurso da examinanda e, de acordo com a literatura científica (Análise de Conteúdo Baseada em Critérios (CBCA) que permite analisar se os relatos cumprem critérios que são reconhecidos pela investigação psicológica e cuja presença indica uma probabilidade alta de corresponder a um facto real – Alexandra Anciães, 2006) consideramos que os relatos apresentados pela BB, em postura natural, com um discurso coerente e consistente, com afeto congruente, reúnem critérios de credibilidade, não revelando indicadores de fantasia, mentira e/ou simulação. Nomeadamente, os seus relatos apresentam uma estrutura lógica (as declarações prestadas são no seu conjunto coerentes, lógicas, plausíveis, admissíveis, com carácter realista e as diversas partes ‘encaixam’) e elaboração inestruturada (os elementos factuais do caso são acompanhados de digressões temporais e a sequência de acontecimentos não se dá por ordem cronológica, no entanto, conseguimos unir os fragmentos da declaração e dar-lhe uma consistência lógica). A examinanda forneceu alguns detalhes na contextualização do alegado evento (e.g. associa a noite anterior a um dia de festa) e faz alusão ao estado subjetivo da própria (sentiu-se desconfortável sem perceber exatamente do que se tratava). Outro fator que aponta para a credibilidade é o facto de admitir falhas de memória quanto à data exata, por exemplo, ou pormenores mais específicos do momento. Nas falsas declarações procura-se dar uma boa imagem e por isso, por norma, não se assume facilmente falhas de memória, nem se coloca em causa afirmações já feitas ou se corrige qualquer situação. Além disso, dado o afastamento do acontecimento e a idade da menor à data do mesmo (crianças mais novas providenciam menos informação), e o facto de ter sido uma única ocorrência (as crianças elicitam mais informação quando os acontecimentos são repetidos), é muito provável que a menor não tenha fornecido uma descrição mais pormenorizada. Além do mais, natureza/tipo do abuso em si poderá não conter efetivamente mais pormenores.” o que é compatível e consentâneo com a demais prova produzida em audiência. Deste modo, o Tribunal atendeu ainda às declarações para memória futura prestadas pela criança durante o inquérito e perante o JIC.

Ora, a versão apresentada pelo arguido é manifestamente incoerente e ilógica e, por conseguinte inverosímil, quando confrontada com versão dos factos apresentada pela criança, em declarações para memória futura (Ac. UJ 11/10/2017, proc. nº 895/14.0PGLRS.L1-A.S1), cuja credibilidade se funda igualmente na prova documental junta aos autos, que confirmou que “Não foram detetados indicadores sugestivos de contaminar a credibilidade do seu discurso nem a capacidade de compreender e relatar factos.”

Ora, as declarações para memória futura têm natureza excecional e constituem uma exceção ao princípio da imediação, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram, contrariando assim o princípio de que toda a prova deve ser produzida em julgamento.

As declarações para memória futura são uma medida de alcance inovador e de grande eficácia em termos probatórios, que devem ser particularmente consideradas no planeamento e desenvolvimento de toda a ação penal.

Podem ser obtidas em qualquer fase do processo e destinam-se a recolher antecipadamente prova para que, em caso de necessidade, a mesma possa ser lida e valorada em audiência de discussão e julgamento.

Apesar de tudo, a tomada de declarações para memória futura, no caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior (art. 271.º, n.ºs 2 e 4, do C.P.P.).

Na exposição de motivos da P.L. n.º 109/X, refere-se o seguinte: “nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, passa a ser obrigatória a recolha de declarações para memória futura (sendo que hoje é facultativa), durante o inquérito”.

Dispõe ainda o art. 131.º do C.P.P. que, sendo um menor de 18 anos a testemunhar, pode haver perícia sobre a sua personalidade, e isto para quê? Para auferir se o menor tem características de personalidade de quem presta o depoimento, isto é, se sabe falar e esclarecer as coisas devidamente, se tem a memória e a atenção apuradas e a capacidade de contradizer o investigador, e se é capaz de efetuar a “distinção entre a fantasia e a realidade, e a distinção entre a verdade e a mentira”. Isto porque, um dos problemas encontrados no depoimento dos menores é justamente esse, distinguir a verdade da mentira ou a fantasia da realidade.

Assim, de acordo com a Jurisprudência obrigatória fixada pelo Acórdão do proferido Supremo Tribunal de Justiça de 11/10/22017 as “declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271.º, do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código.”

Ora, atribuiu-se credibilidades às declarações prestadas pela criança nos termos do disposto no artigo 271.º do CPP as quais devidamente conjugadas com o relatório pericial efetuado à mesma refere que “(…) consideramos que os relatos apresentados pela BB, em postura natural, com um discurso coerente e consistente, com afeto congruente, reúnem critérios de credibilidade, não revelando indicadores de fantasia, mentira e/ou simulação. Nomeadamente, os seus relatos apresentam uma estrutura lógica (as declarações prestadas são no seu conjunto coerentes, lógicas, plausíveis, admissíveis, com carácter realista e as diversas partes ‘encaixam’) e elaboração inestruturada (os elementos factuais do caso são acompanhados de digressões temporais e a sequência de acontecimentos não se dá por ordem cronológica, no entanto, conseguimos unir os fragmentos da declaração e dar-lhe uma consistência lógica). A examinanda forneceu alguns detalhes na contextualização do alegado evento (e.g. associa a noite anterior a um dia de festa) e faz alusão ao estado subjetivo da própria (sentiu-se desconfortável sem perceber exatamente do que se tratava). Outro fator que aponta para a credibilidade é o facto de admitir falhas de memória quanto à data exata, por exemplo, ou pormenores mais específicos do momento. (…) permite ao Tribunal concluir nos termos em que o fez relativamente aos factos dados como provados.

Com efeito, decidimos afastar a tese do Arguido que não mereceu credibilidade até porque a mesma desde logo foi frontalmente contrariada pelo depoimento da ofendida.

Note-se que a BB, manteve sempre a mesma versão dos factos explicou que não se lembra quando foi- mas foi há muito tempo atrás, mas quando ela frequentava o 3 ano de escolaridade, o Arguido lhe introduziu os dedos na vagina e que encostou o pénis na zona anal e lhe deu um beijo na boca.

Acresce referir ainda que a ofendida admitiu as suas falhas de memória relativamente à concreta da prática dos factos, sendo certo que se reporta ao 3.º ano de escolaridade – o que efetivamente é coincidente com o depoimento da testemunha FF, a qual foi perentória em afirmar em audiência que o ultimo fim de semana que o Arguido esteve em sua casa foi em Novembro de 2018, no fim de semana anterior à festa de anos da BB.

A par, diga-se que a ofendida manteve desde o início a mesma postura e os relatos dos factos sem deles se afastar e não colocou em causa as afirmações já feitas, nem corrigiu os factos que foi relatando às varias pessoas que a questionaram sobre o sucedido.

Conforme já se referiu, o arguido nega a prática dos factos desde a primeira hora e a BB, por seu turno, sempre manteve o seu relato dos factos, ou seja, que o primo lhe tocou de forma inapropriada, ou seja de cariz sexual.

Note-se que nem o facto de a narrativa do Arguido e do depoimento da sua mãe DD, apontarem o facto de que a BB só relatou esta situação depois de ter sido confrontada na escola com a falta de apresentação de trabalhos escolares, não se recorta como suficiente para afastar credibilidade atribuída ao depoimento da ofendida, que com pormenor o relatou.

Note-se que a mesma até referiu que não sentiu dor o que é compatível com o facto de que o arguido efetivamente não penetrou o ânus da ofendida.

Decorre ainda das regras da lógica e da experiência que naturalmente em face de uma acusação grave como é esta que imputa estes factos ao Arguido, este se tenha aprestado a negar, em bloco, os factos que lhe são imputados. Quanto à inexistência de antecedentes criminais e situação pessoal e personalidade do arguido reportados nos incisos 12) dos factos provados, foi finalmente tido em conta o certificado de registo criminal, junto aos autos, e as declarações prestada pelo arguido, no que a este particular diz respeito, uma vez que tais declarações se afiguraram sérias e credíveis.

Já quanto à factualidade constante em 10)) a 11)) dos factos provados como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93 - In B.M.J. 324/620 - “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência” razão pela qual a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados, bem como e essencialmente das declarações prestadas pela ofendida em sede de declarações para memória futura e dos depoimentos prestados pelas testemunhas supra referidas, quanto ao contexto em que os mesmos ocorreram.

Assim, da conjugação de toda a prova supra referida o Tribunal concluiu que, à luz da regras da experiência comum, o arguido sabia e não podia ignorar, que a ofendida tinha à data apenas 08 anos de idade e que com a sua conduta a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexuais, tendo o arguido querido e satisfeito os seus instintos libidinosos, tendo atuado de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a suas conduta era proibida e punida criminalmente. Por fim, o tribunal atendeu ainda ao auto de notícia, certidões de assento de nascimento e bem assim ao relatório pericial do exame de avaliação psicológica.»

Da análise da decisão recorrida resulta, assim, que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [18] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.

Com efeito, o tribunal a quo explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na sentença recorrida, sendo da análise conjugada das declarações prestadas para memória futura pela menor com a prova pericial contida no processo e, complementarmente, com os depoimentos prestados pelas testemunhas de acusação - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.

O recorrente, por seu turno, limita-se a negar as acusações que lhe são dirigidas e aponta, no recurso, incongruências que considera existir nas declarações prestadas pela menor ofendida, por contraponto com as suas próprias declarações e o depoimento de testemunhas, sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [19].

Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
É certo que da análise da decisão recorrida facilmente se constata que o tribunal baseou a sua convicção fundamentalmente nas declarações prestadas pela menor BB, mas sem que tal constitua algum problema sob o ponto de vista processual. Como é assinalado no acórdão do TRC de 17/5/2017 (consultável em www.dgsi.pt), o Tribunal pode formar a sua convicção apenas num único depoimento, mesmo que se trate do ofendido/assistente - importante é que este o preste de forma séria e credível e o Tribunal de forma clara e concisa explicite as razões do seu convencimento.
De resto, como é justamente salientado no acórdão do TRC, de 4/3/2020 [20], “há que atender ao facto de a prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, ser particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador.”.
Com efeito, normalmente sucede nestes casos que o único elemento de prova existente resume-se às declarações dos menores ofendidos, podendo coexistir alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.
O tribunal a quo fundou justificadamente a sua convicção – na falta de outra prova direta – nas declarações prestadas pela menor ofendida para memória futura, salientando a sua congruência, verossimilhança e credibilidade, aferida, designadamente, pela forma séria como relatou os abusos, inexistindo qualquer indício de efabulação ou de mentira. A corroborar a veracidade do relato da ofendida, salientou também o depoimento das testemunhas FF e HH (respetivamente, progenitora e professora da menor).
Para além dos depoimentos prestados pelas aludidas testemunhas, que considerou isentos e credíveis, o tribunal evidenciou o conteúdo do relatório de perícia médico-legal constante do processo, no qual se concluiu pela inexistência, do ponto de vista psicológico forense, de qualquer fator que diminua a credibilidade dos relatos da menor examinada. Com efeito, e como o tribunal realçou na sentença recorrida, o relatório pericial destaca que «os relatos apresentados pela BB, em postura natural, com um discurso coerente e consistente, com afeto congruente, reúnem critérios de credibilidade, não revelando indicadores de fantasia, mentira e/ou simulação.»

Como é salientado por Inês Sarmento Rodrigues, na dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de Mestre em psicologia, intitulada  “ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: ORIENTAÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA NO SISTEMA JUDICIAL” [21], “A competência ou capacidade da criança para testemunhar é uma das dimensões avaliadas e postas em causa no seu depoimento. Não raras vezes, o sistema jurídico assume que as crianças possuem poucas competências enquanto testemunhas em situações crime, mas a investigação tem demonstrado que estas podem recordar e contar as suas experiências com precisão, desde idade precoce, revelando elevadas capacidades testemunhais e comunicacionais (Soeiro, 2003; Ribeiro, 2009). Variáveis como a mentira, a fantasia, a memória, a linguagem, a vulnerabilidade, a sugestionabilidade e a credibilidade são, igualmente, muitas vezes apontadas pelos investigadores como fatores que desvirtuam a autenticidade do testemunho da criança. No entanto, vários autores sugerem (e.g., Lamb, Strenberg, Orbach, Hershkowitz e Esplin, 1999; Soeiro, 2003) que variáveis como a sugestionabilidade podem ser contornadas pela correta atuação dos profissionais envolvidos, tendo surgido, neste âmbito, vários protocolos visando testar as competências da criança e despistar relatos falsos. A este respeito, vários estudos demonstram também que as crianças, tendencialmente, não mentem sobre a ocorrência de situações de abuso, não fantasiam acerca de situações abusivas, nem fabricam esse tipo de acontecimentos (e.g. Ribeiro, 2009). Ainda assim esta é uma dimensão que gera incertezas no sistema judicial e, por vezes, na família da criança. (…)”.
É de notar que a doutrina que atribui às crianças tendência para mentir ou para memórias falsas está já ultrapassada pela investigação científica. Com efeito, e como nos dá conta Maria Clara Sottomayor [22], esta demonstra que as crianças não têm tendência a mentir e que revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, assim como uma capacidade de discernimento superior à que lhes é frequentemente atribuída, percebendo a diferença entre a verdade e a mentira, geralmente, a partir dos 4 anos.
Ora, um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade [23].
Fatores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, mas sobretudo a sua completude e verossimilhança, constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração [24].
Como vimos, o tribunal recorrido expressou – fundamentadamente, procedendo a uma análise crítica da prova de forma exaustiva e certeira - um juízo positivo sobre a credibilidade das declarações da menor ofendida e negativo sobre a credibilidade, plausibilidade e verossimilhança das que o arguido/recorrente prestou na audiência de julgamento, sem que, naturalmente, tal implique qualquer violação do princípio da igualdade constitucionalmente tutelado ou decorra da derrogação das suas garantias de defesa, que foram estrita e escrupulosamente observadas.

Aparentemente, o recorrente considera que o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, na medida em que fundou a sua convicção nas declarações prestadas pela menor, apesar de inexistir concordância ou convergência entre tais declarações e a posição por ele manifestada sobre a matéria. Porém, sem qualquer razão.

Tal princípio, enquanto emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (32.º, n.º 2, da Constituição), consagra uma “regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos”. Dele decorre que o ónus probatório cabe a quem acusa e que em caso de dúvida, séria, razoável, objetiva e insanável, relativamente aos factos que consubstanciam a prática de um crime pelo arguido, deve tal dúvida ser resolvida a favor deste.

É de notar que não basta ao arguido lançar uma qualquer versão alternativa para que possa infundir dúvidas no processo da formação da convicção do julgador. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção [25].

Ora, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que o tribunal a quo não teve qualquer dúvida sobre a realidade dos factos que considerou demonstrados. De resto, nem tal dúvida poderia ser legitimamente equacionada em face da certeza e segurança da prova produzida, pelas razões já explicitadas, sendo manifestamente insuficiente para provocar a dúvida razoável a circunstância de o arguido ter negado a prática do crime ou de existirem, eventualmente, imprecisões ou incongruências nos relatos sobre os abusos efetuados ao longo do tempo, desde que, naturalmente, tais incompatibilidades não sejam importantes e de molde a colocar em crise a consistência e credibilidade da descrição dos factos [26] [27].

Já a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. [28] Com efeito, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).

Em conclusão, não merece censura a convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida, tal como se encontra retratada na decisão, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que, como vimos, o tribunal de primeira instância não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [29].

Baseando-se na factualidade atrás transcrita e que temos por definitivamente assente, é manifesto que o comportamento do recorrente integra o tipo objetivo (e subjetivo) do crime de abuso sexual de crianças por que foi condenado, para além do respetivo tipo de culpa.

Improcede, por conseguinte, o presente recurso.


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II) Apreciando a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Consta do despacho de acusação o seguinte (segue transcrição):

«Conforme o disposto no artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do Código de Processo Penal, consideram-se vítimas especialmente vulneráveis as vítimas de criminalidade especialmente violenta, cf. artigo 1.º, alínea l) do Código Penal.

Deste modo, BB é considerada vítima especialmente vulnerável, sendo abrangida pelo âmbito de aplicação da Lei 130/2015, de 04 de setembro.

Assim, e conforme o disposto no artigo 16.º, n.º 2 da referida lei, «há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

Pelo exposto, caso não haja oposição de BB, o Ministério Público promove, desde já, o arbitramento de uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos com a prática do crime supra exarado, cf. artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.»

Como é observado no acórdão deste TRP de 10/2/2021 [30], constitui entendimento dominante na jurisprudência que, no caso de condenação por criminalidade violenta, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, pois, nessa situação, as particulares exigências de proteção da vítima resultam da própria redação daquela norma, dada a utilização do advérbio "sempre", a não ser que a vítima expressamente se oponha a esse arbitramento.

No mesmo sentido da aludida jurisprudência, Paulo Pinto de Albuquerque entende que o direito à indemnização previsto na aludida lei prejudica as regras do art.º 82.°-A, do Código de Processo Penal, uma vez que consagra o carácter obrigatório do arbitramento oficioso de indemnização. As únicas condições de reparação oficiosa da vítima são, nestes casos, a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação. O regime especial prevalece, assim, sobre o regime geral.

O artigo 82º-A do Código de Processo Penal versa sobre a reparação da vítima em casos especiais, dispondo o seguinte:

"1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.

2. No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3. A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização."

No caso em apreço, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo disposto no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

A vítima não deduziu pedido de indemnização civil ou oposição à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e foi observado o contraditório, tendo o arguido tido a oportunidade de se pronunciar sobre tal matéria.

Competia, assim, ao tribunal a quo a fixação de uma quantia monetária, a título de reparação, atentas as particulares exigências de proteção da vítima.

Sucede, porém, que a sentença é totalmente omissa quanto a esta matéria, já que em nenhum momento é tratada a questão da atribuição oficiosa de uma indemnização à vítima, nos termos previstos no art.º 82.º-A do CPP.

Tratando-se de uma questão de natureza obrigatória, a respetiva omissão de pronúncia determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, sendo esta nulidade de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso [31].

Impõe-se, assim, que o tribunal de primeira instância profira nova sentença, na qual arbitre uma quantia monetária a favor da menor BB, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.


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III – Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto no seguinte:


1) Determina-se a anulação parcial da sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra na qual o tribunal arbitre uma quantia monetária a favor da menor BB, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.

2) Sem prejuízo do decidido no ponto 1), nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se, consequentemente, a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 513.º, n.º 1 do CPP).

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

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Porto, 28 de fevereiro de 2024.
Liliana Páris Dias (Relatora)
Horácio Correia Pinto (Adjunto)
Jorge Langweg (Adjunto)
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[1] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.
[2] Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros fatores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.”.
Não basta, portanto, para que o tribunal possa modificar a decisão quanto à matéria de facto que a solução defendida em recurso, aparentemente, se mostre tão plausível como a assumida pelo tribunal. Neste caso, deve prevalecer a opção do tribunal de primeira instância, que beneficiou da oralidade e da imediação na audiência de discussão e julgamento, ferramentas que não estão ao dispor do tribunal de recurso.
[3] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[4] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[5] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12.
[6] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[7] In “A NECESSIDADE DE REFORMAR O SISTEMA DE RECURSOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA. O SISTEMA DE RECURSOS EXIGE REFORMAS?”, Reforma do Sistema de Recursos – Setembro 2019 - Ebook do Cej, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Reforma_Recursos.pdf.
[8] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
[9] Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[10] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[11] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
Consta também do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
[12] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29/5/2008 (Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt.
[13] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[14] Com efeito, cumpria ao recorrente especificar, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida desses específicos pontos de facto e, tendo a prova sido gravada, as concretas passagens em que se funda a impugnação - tudo nos termos do art.º 412º, nºs 3 e 4 do C. P. Penal -, o que não fez, ou fez de modo deficiente.
Como se observa no recente acórdão deste TRP, datado de 13/12/2023 (relatado pelo Desembargador José António Rodrigues da Cunha e consultável em www.dgsi.pt), «Questionada a decisão matéria de facto através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.º 3, do CPP, recai sobre o recorrente o ónus de especificar e individualizar os concretos factos que, em seu entender, se encontram incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Feita tal indicação, deverá ainda explicar a razão pela qual as provas ou os meios de prova que especifica impõem decisão diversa da recorrida. Por exemplo, não basta transcrever excertos de declarações ou de depoimentos e dizer que dali resulta o contrário do decidido. Acresce que o ónus deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não por atacado, impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
Porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, não pode o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem. Isto é, quando a convicção do julgador da primeira instância tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável».
[15] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[16] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[17] Cf. o acórdão do TRP, de 15/11/2018, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio, consultável em www.dgsi.pt, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
[18] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[19] Como observa o Exmo. PGA no seu parecer e vem sendo salientado de forma reiterada pela jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou violando prova tarifada (por exemplo, prova pericial), ou, finalmente, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.
[20] Relatado por Maria José Nogueira, igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[21] Disponível na internet para consulta.
[22] In “Uma análise crítica da síndrome de alienação parental e os riscos da sua utilização nos tribunais de família”, Revista Julgar n.º 13, Janeiro-Abril 2011.
[23] Cf., neste sentido, o acórdão do TRP datado 28/1/2015, relatado pelo Desembargador Neto de Moura e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[24] Sobretudo fatores como a constância, espontaneidade, coerência interna e verossimilhança dos relatos de abusos sexuais afiguram-se determinantes para determinar a veracidade e credibilidade do testemunho, como resulta da leitura da generalidade dos relatórios de avaliação psicológica habitualmente existentes nos processos judiciais desta natureza.
[25] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cf. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[26] Como é observado no acórdão deste TRP de 10/2/2021 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e consultável em www.dgsi.pt), «Não é incomum que uma vítima de um evento traumático, sendo sujeita a várias entrevistas, realizando múltiplos relatos, tendo em conta também o tempo decorrido, apresente imprecisões, ou incongruências, entre relatos».
[27] É de notar, por outro lado, que os restantes elementos apontados pelo recorrente para suscitar a sua divergência quanto à convicção do tribunal nem sequer poderiam ser valorados: as declarações eventualmente prestadas pela menor perante a autoridade policial não podem ser apreciadas criticamente pelo tribunal à margem do regime contido no artigo 356.º, n.ºs 2 e 5 do CPP; por seu turno, o relatório elaborado pela Polícia Judiciária (e conclusões nele contidas) não configura sequer um meio de prova, suscetível de ser apreciado e valorado pelo tribunal.
[28] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[29] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art. 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[30] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e já citado.
[31] Que dispõe que é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.