Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16976/22.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
PACTO DE PREENCHIMENTO DE LETRA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RP2024020516976/22.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de caso julgado abrange duas vertentes: a do caso julgado formal ou externo, relativo a questões de carácter processual e a do caso julgado material, substancial ou interno, “referente à relação material em litígio”.
II - O pressuposto processual caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, quando na primeira causa já tenha sido proferida decisão final transitada em julgado e a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância.
III - A exigência da tríplice identidade – do pedido, da causa de pedir e dos sujeitos - fixa os limites subjectivos e objectivos do caso julgado.
IV - A autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, não depende da verificação integral da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC.
V - Ao devedor solidário, apesar de não ser parte na primeira acção, aproveita o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor com fundamento não respeitante pessoalmente a este.
VI - Tendo a letra sido subscrita e avalizada em branco, os Executados/Embargantes/avalistas, obrigados cambiários com intervenção na celebração do pacto de preenchimento, dispõem de legitimidade para opor, à Exequente/Embargada, a excepção material de preenchimento abusivo do título.
VII - Por força desse contrato de preenchimento, a Exequente obrigou-se a preencher a letra com valor não superior “à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do contrato” de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/...., celebrado entre si e a aceitante e, por sua, vez, os avalistas comprometeram-se a ficar vinculados no título a ser preenchido com esse valor.
VIII - Assim, a apreciação da excepção material de preenchimento abusivo da letra, invocada pelos Embargantes/avalistas, tem como pressuposto a determinação dos “montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato” pois, essa é a obrigação que resulta do pacto de preenchimento, para a Embargada, que, por sua vez, corresponde ao objecto da acção de verificação ulterior de créditos, intentada por esta, contra, entre outros, a insolvente (avalizada e aceitante da letra dada à execução).
IX - Apreciado o direito de crédito da Embargada/Exequente resultante “dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do contrato” de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/...., por sentença, transitada em julgado, proferida na acção de verificação ulterior de créditos, intentada por apenso ao processo de insolvência, por aquela, contra a massa insolvente, os credores e a insolvente (avalizada e aceitante da letra), nessa decisão mostra-se definido o pressuposto da situação jurídica que nestes embargos importa regular e definir.
X - Assim, julgada aquela acção totalmente improcedente, os efeitos da autoridade de caso julgado emanados dessa decisão repercutem-se nesta acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 16976/22.4T8PRT-A.P1

Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Morais

Primeira Adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca

Segundo Adjunto: António Mendes Coelho

I_ Relatório

Por apenso à acção executiva intentada por “A..., S.A.”, vieram os executados AA e BB deduzir oposição à execução, pedindo que seja declarada extinta a execução.

Alegaram, em suma, que:

- a sociedade “B..., Lda.” celebrou em 28/03/2011, com a embargada, o contrato de prestação de serviços com o n.º ... a que estão associados os contratos de aluguer de veículos sem condutor, n.ºs ... e ...;

- a sociedade “B..., Lda.”, para garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações por si assumidas, assinou uma letra em branco, a favor da embargada – documento nº 1 junto à execução -  que os embargantes avalizaram;

- a referida sociedade “B..., Lda.” foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado em 6/6/2022, tendo a exequente reclamado o seu crédito no processo da insolvência, no montante de €287,84 [referentes a duas facturas, a factura ..., vencida em 02/06/2022, no montante de €73,80, e a factura ..., vencida em 09/06/2022, no montante de € 73,80, e, ainda, juros no valor de €0,86, bem como a quantia de €139,38, a título de despesas com o advogado] que lhe foi reconhecido;

- posteriormente, a embargada, requereu no processo de insolvência que lhe fosse reconhecido o crédito de € 4.624,75, tendo o Tribunal indeferido tal pretensão;

- os embargantes somente podem ser responsáveis pelo pagamento de tal quantia que é devida pela devedora principal e que se encontra reconhecida, não podendo ser responsáveis por valores que não são devidos pela devedora principal, nem se encontram reconhecidos como tal;

- bem sabendo que não detém qualquer crédito reconhecido, para além da quantia de €287,84, sobre a devedora principal, a embargada/exequente preencheu abusivamente a letra que detinha com o montante de €5.137,47 e não com aquela quantia.

Pediram a condenação da exequente como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a €4.000, nos termos e para os efeitos do art.º 542.º n.º 1 e n.º 2 alínea a), b), e d) do Código de

Processo Civil.


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Os embargos foram admitidos liminarmente.

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Notificada, a exequente/embargada contestou, impugnando os factos constantes do requerimento inicial.

Alegou, em síntese, que:

- o crédito no valor de €287,84, reconhecido no processo da insolvência, respeita ao momento em que o contrato ainda não se encontrava resolvido e anterior à recuperação das viaturas pois, só a partir daí é que se mostrou possível fazer a avaliação destas e apurar os restantes valores a suportar pela sociedade, sendo por esse motivo que foi proposta, pela embargada, acção de verificação ulterior de créditos;

- a obrigação prestada pelo aval é autónoma em face da obrigação do avalizado;

- em 28/03/2011, a Embargada celebrou com a B..., Lda., um contrato de aluguer de veículo sem condutor com as condições gerais n.º ALD/...., e com as condições particulares n.º ... e nº ...;

- em virtude da celebração dos contratos acima indicados, a Embargada cedeu à B..., Lda. o gozo temporário do veículo automóvel RENAULT ..., com a matrícula ..-TP-.., e do veículo automóvel RENAULT ..., com a matrícula ..-RO-..;

- no âmbito da celebração do mencionado contrato, a Embargada sacou da B..., Lda., a letra dada à execução, título que os Embargantes avalizaram;

- o valor aposto na letra dada à execução decorre do contratualmente previsto, aceite pela sociedade cliente, tendo por base, além da factura ..., vencida em 02/06/2022, no montante de €73,80, e da factura ..., vencida em 09/06/2022, no montante de €73,80, os juros no valor de €0,86, e a quantia de €139,38, a título de despesas com o advogado,  as seguintes facturas:

- Factura n.º ..., vencida em 01/07/2022, no montante de €560,03;

- Factura n.º ..., vencida em 15/07/2022, no montante de €147,60;

- Factura n.º ..., vencida em 10/08/202, no montante de €61,50;

- Factura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de €3.722,45;

- Factura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de €890,45;

- Juros de mora, no montante de €30,19, calculados à data da interpelação dos Embargantes;

- Despesas com honorários de Advogado, nos termos da cláusula 42.11, conjugada com a cláusula 9.14 e 9.15 do contrato supra mencionado, no montante de €622,77;

- intentou acção de verificação ulterior de créditos, dentro do prazo legal para o efeito, em 24/11/2022, por referência a tais quantias;

- pronunciando-se sobre a excepção de preenchimento abusivo do título, refere que os avalistas  “são responsáveis da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, o que não significa que os avalistas se possam prevalecer dos mesmos meios de defesa que o avalizado ou que a Exequente esteja limitada, no exercício do seu direito de crédito contra os avalistas, por via do estipulado em sede de processo de insolvência do devedor principal;

- a obrigação derivada da prestação de aval é autónoma da do avalizado, pois o avalista, ao prestar o seu aval, obriga-se ao pagamento da quantia inscrita no título de crédito e não ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, sendo assim a sua obrigação perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, não sendo idênticas as responsabilidades assumidas pelos avalistas decorrentes dos respectivos títulos com todas as demais que foram negociadas no negócio jurídico subjacente, e no qual o avalista não interveio;

- o processo de insolvência, e respectivo plano de insolvência que venha a ser constituído nesse âmbito (ou não), comportam um conjunto de medidas que só visam a sociedade insolvente, regulando os termos e condições em que os débitos dele constantes irão ser pagos, não sendo as obrigações dos co-devedores do insolvente ou dos terceiros garantes, afectadas por aquele plano – art.º 217º, n.º 4 do CIRE;

- o facto de, eventualmente, o credor não poder exigir à insolvente o pagamento do seu crédito, para além dos termos aí acordados, não é impeditivo de poder exigir a totalidade do crédito nos termos em que o podia fazer anteriormente aos avalistas da insolvente;

- os avalistas, aqui Embargantes, reconhecem ter avalizado a letra, mas parecem ter esquecido os termos do respetivo contrato de preenchimento do título cambiário que também outorgaram, nos termos do qual a letra “…visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/....…”;

- desse contrato consta, ainda, que, “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato.”;

- pela simples leitura de tais cláusulas se depreende que a letra de câmbio em execução pretende garantir pelos seus subscritores e avalistas o cumprimento de todas as obrigações assumidas pela sociedade cliente.

Rejeita o enquadramento da sua actuação na previsão de qualquer das alíneas do nº 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil, pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.


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Proferido despacho saneador, foi dispensada a fixação do objecto do litígio e dos temas da prova, com fundamento na “manifesta simplicidade” dos autos.

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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, constando do dispositivo:

Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado não provados e totalmente improcedentes e, em consequência, determino o prosseguimento da execução.

Absolvo ainda os embargantes do pedido de condenação como litigantes de má fé.

Custas a cargo dos embargantes (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC)…”.


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Inconformados, os Recorrentes/embargantes interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1- A exequente apoiou a execução, em letra, por si preenchida, no valor de € 5.137,47 (cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos).

2- Letra essa entregue em branco, pela sociedade “B..., Lda.” contendo a assinatura do representante da sociedade e dos avalistas, aqui executados/embargantes, com o objetivo de “garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações que assumiu com a celebração em 28/03/2011 do contrato de prestação de serviços n.º ALD/..., a que estão associados os contratos de aluguer de veículos sem condutor, n.ºs ... e ...”, conforme documentos juntos à execução sob doc. 2 a 4.

3- A exequente, alegando incumprimento contratual, da sociedade “B..., Lda.”, resolveu preenchê-la com o montante acima indicado e exigir o pagamento desse valor aos avalistas;

4- Os Executados, apresentaram embargos onde pediram, para ser considerada procedente a oposição apresentada, e ser declarada extinta a execução;

5- Demonstrando para tal que a sociedade “B..., Lda.” (devedora principal) foi declarada insolvente, por sentença já transitada em julgado, no processo 3832/22.5T8VNG que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2;

6 – Sendo que à Exequente/Embargada, foi reconhecido somente o crédito de € 287,84 sobre a sociedade “B..., Lda.” (devedora principal);

7- Nessa medida a Exequente esta e estava condicionada ao fundamento e montante da reclamação e à verificação do crédito reclamado, apenas podendo exigir dos Executados/Embargantes, como avalistas obrigados ao pagamento desse valor.

8 – De outra forma a exequente candidatava-se a receber um valor dos executados, que não existe nem é ou era devido, pelo “devedor originário”.

9- Valor esse que os avalistas/executados jamais poderiam aspirar a receber, por inexistente.

10- Efetivamente, no presente caso, a exequente preencheu a letra por valor muito superior ao crédito que lhe foi reconhecido judicialmente, pelo que tal atitude configura preenchimento é abusivo.

11- O certo é que em paralelo com a interposição da presente execução estava em curso na ação de insolvência, o apenso de verificação ulterior de créditos intentado pela exequente para apurar a existência ou não de um crédito no montante de €4.624,75, de que se arrogava credora.

12- Pelo que, antes de mais seria necessário apurar se a exequente, era ou não credora da empresa B..., Lda., e no caso de o ser, quantificar o valor exato;

13- Ora a sentença a quo, desprezou completamente este tema prévio e assumiu que os avalistas tinham de pagar a quantia inscrita na letra, independentemente da mesma ser devida ou não pelo devedor originário;

14- Ou seja, se a Exequente tivesse preenchido a letra com um montante de €1.000.000,00 ou qualquer outro maior ou menor, pela teoria da Juíza a quo, os avalistas teriam de pagar tal montante, pois, não se interessou por apurar se existia ou não um crédito e qual o seu montante.

15 - O certo é que esta questão essencial foi desconsiderada pelo Tribunal a quo, tendo-se limitado a “olhar” unicamente para a relação obrigacional existente entre os embargantes e embargada desprezando a relação entre o pretenso devedor originário e a exequente, nomeadamente se existia ou não crédito e qual o montante.

16- O que pode levar a uma situação completamente errada e injusta, consubstanciada na possibilidade do afiançado nada dever e os avalistas pagarem uma qualquer quantia que o pretenso credor resolveu apor na letra.

17- Como já acima foi referido, em paralelo com a presente execução e embargos correu, por apenso à ação de insolvência da devedora principal (supra identificada), a ação de verificação ulterior de créditos, em que a exequente pedia para lhe ser reconhecido um crédito no montante global de € 5.222,58.

18 - Em 13.07.2023, foi proferida sentença, que somente agora se junta e se dá como integralmente reproduzida e que em si contém suficiente descritivo, nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 651.º n.º 1 e 425.º do CPC, por ser superveniente e só agora ser possível proceder á sua junção. (Doc.1).

19 - Tal sentença, já transitada em julgado, decidiu “julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvem-se os requeridos do pedido”. Mais decidindo “julgar improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má fé.”

20- Ora as faturas que alegadamente serviram de fundamento à exequente para preencher a letra, são as mesmas que foram questionadas no tal processo de verificação ulterior de créditos.

21- Como o devedor originário nada deve, é óbvio que o preenchimento da letra em execução pelo montante pedido é abusivo.

22- Pelo exposto, os embargos deverão ser considerados provados e procedentes e como consequência a execução ser extinta, por falta de fundamento (falta do crédito erradamente titulado na letra e por a mesma consubstanciar preenchimento abusivo.

23- Pelo exposto e de acordo com a sentença já transitada em julgado, agora junta, deverá aditar-se um ponto 15 à matéria de facto, com teor igual ou similar ao que se propõe, dando-se como provado o seguinte:

Por sentença, já transitada em julgado, proferida no apenso de verificação ulterior de créditos da ação de insolvência da devedora principal, “B..., Lda.”, que correu termos  no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, sob o n.º 3832/22.5T8VNG-F, onde estavam em causa, entre outros, os créditos titulados pelas faturas (constantes do ponto 10 dos factos provados), que alegadamente justificaram o preenchimento do montante da letra dada á execução, foi decidido que a “B..., Lda.”, nada devia, tendo sido absolvida, na integra do pedido efetuado pela exequente, no montante de € 5.222,58.

24- A Exequente/Embargada conhecedora de toda a realidade exposta teve a ousadia de preencher a letra e intentar a presente execução contra os oponentes, pretendendo exigir o montante de € 5.141,41, quando bem sabia e sabe que aquele valor não lhe era reconhecido na data do preenchimento da letra, nem foi posteriormente reconhecido como demonstrado, logo é inexigível aos fiadores daquela, pelo que o título que detêm foi preenchido ao arrepio do princípio da boa fé e foi abusivo.

25- Tal conduta da exequente causou e está a causar avultados prejuízos aos executados (ora embargantes), nomeadamente com o pagamento de honorários de advogado, de taxa de justiça e penhoras com valores elevados nos seus bens.

26- Por tudo supra exposto é por demais evidente que a exequente deduziu pedido cuja falta de fundamento não podia nem pode ignorar, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal e torpe. Atuação esta que consubstancia litigância de má fé, nos termos e para os efeitos do art.º 542.º n.º 1 e n.º 2 alínea a), b), e d) do Código de Processo Civil.

27- Sendo a exequente responsável por todos os prejuízos que os oponentes tenham e venham a ter com esta atuação.

Termos em que, deverá ser alterada a decisão de primeira instância, por outra que dê como provado e procedente os embargos de executado, por inexistência da divida titulada pela letra, e em consequência, ordene a extinção da execução interposta contra os avalistas AA e BB, mais condenando a Exequente/Embargada ao pagamento de indemnização tendo em consideração a conduta de extrema gravidade por si assumida nunca inferior a € 4.000,00, nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 542.º e ss do Código de Processo Civil, com todas as consequências legais”.

Com o requerimento de interposição de recurso, os recorrentes juntaram aos autos a certidão da sentença proferida na acção de verificação ulterior de créditos cujos termos correram por apenso ao processo de insolvência nº3832/22.5T8VNG.


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A Embargada/Recorrida apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:

“1. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo in totum, estando em consonância com as peças processuais, documentos e demais elementos constantes dos autos.

2. Aplicando, assim, criteriosamente o direito e fazendo uma correta subsunção dos factos ao mesmo, e fez, por isso, a mais sã e diáfana Justiça.

3. A Recorrida está, pois, convicta que Vossas Excelências, reapreciando os factos e subsumindo-os nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de julgar improcedente o presente recurso, mantendo na íntegra a Douta Sentença.

4. Não assiste qualquer razão aos Recorrentes, mostrando-se completamente infundado o recurso apresentado, baseando-se nas mesmas falsas premissas já invocadas em sede de embargos à execução, numa derradeira tentativa de se furtarem às obrigações contratuais que pessoalmente avalizaram.

5. A aqui Recorrida deu entrada da presente execução tendo por fim, recuperar, coercivamente, o valor decorrente de obrigações pecuniárias emergentes de contratos celebrados no âmbito da sua atividade de aluguer de veículos automóveis sem condutor.

6. Apesar de os contratos celebrados entre a Exequente e a devedora principal terem atingido o seu termo e de as viaturas alugadas terem sido devolvidas, ficaram por liquidar valores contratualmente devidos e titulados pelas faturas emitidas e comunicadas à B..., Lda., totalizando o valor em dívida 5.137,47€ (cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescem ainda os juros de mora, os quais contabilizavam o montante de 3,94€ (três euros e noventa e quatro cêntimos) à data da entrada da presente execução.

7. E bem sabiam os Embargantes/recorrentes quais os valores em dívida e as faturas em causa, pois não só eram os legais representantes da B..., Lda., como foram interpelados pessoalmente, na qualidade de avalistas, para pagamento das quantias em dívida, por carta registada de 06/09/2022 (junta aos autos sob Doc. n.º 5 com o requerimento executivo).

8. Ora, os Recorrentes/Embargantes deduziram Embargos de executado, impugnando parcialmente o alegado pela Exequente no Requerimento de Execução, na medida em que entendiam que o valor devido seria apenas de 287,84€, pois apenas foi esse o montante reconhecido à exequente em sede de processo de insolvência da B..., Lda., que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 2, sob o n.º 3832/22.5T8VNG. Ou seja, entendem os Embargantes que na presente execução apenas podem ser responsabilizados na mesma medida que a devedora principal o é no âmbito do processo de insolvência supra referido.

9. Deste modo, os Recorrentes entendem, infundadamente, que, ao serem demandados autonomamente pelo montante total das obrigações contratuais assumidas, preencheu a Exequente abusivamente a letra de câmbio que deu à execução, litigando com má fé.

10. A aqui Exequente naturalmente não se conforma com o alegado pelos Embargantes, contestando a referida oposição, mormente invocando a autonomia da obrigação prestada pelo aval em face da obrigação do avalizado. Que é, salvo melhor opinião, a questão fulcral a ser decidida na presente lide.

11. Com relevância para a boa decisão da causa, foram dados como provados os seguintes factos na sentença proferida em primeira instância:

«1. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento anexo  ao requerimento executivo, denominado “letra de câmbio”, além do mais, com os seguintes dizeres: “No seu vencimento pagará(ão) Va (s) Ex.o(s) por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos”; importância – 5.137,47€; vencimento – 2022.09.22; local e data de emissão – Sintra – 2022.09.14, sendo que no verso, mostram-se apostas duas assinaturas, sendo a primeira aposta pelo aqui embargante BB e a segunda aposta pela aqui embargante AA, a seguir à expressão manuscrita com os seguintes dizeres: “Bom para aval ao aceitante” (cfr. doc. anexo ao requerimento executivo, cujo original foi junto através do requerimento de 11.10.2022 dos autos de execução, e cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido).

2. A aceitante da letra, B..., Lda. foi declarada insolvente, por sentença proferida em 06.06.2022, no processo n.º 3832/22.5T8VNG, do Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – J2 - cfr. documento n. 1, anexo à petição de embargos.

3. Em 06.07.2022, a aqui embargada reclamou créditos no processo da insolvência, no valor  global de 287,84€, nos termos constantes do documento n.º 2, anexo à petição de embargo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, crédito esse que lhe foi reconhecido por sentença proferida em 07.09.2022 - cfr. documentos n.ºs 3 e 4 anexos à petição de embargos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. Por requerimento de 14.09.2022, a aqui embargada requereu, no processo da insolvência, que lhe fosse reconhecido o crédito sobre a Insolvente no montante global de 4.624,75€, em virtude de, em consequência da denúncia dos contratos que havia celebrado com a Insolvente, se terem vencido novos créditos, o que foi indeferido com o fundamento de que o meio processual idóneo a reconhecer os novos créditos é a ação de verificação ulterior de créditos e não a mera apresentação de requerimento no processo de insolvência – cfr. despacho cuja cópia constitui o documento n.º 5 anexo à petição de embargos.

5. Em 24.11.2022, a aqui embargada intentou, por apenso ao processo da insolvência, ação de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os Credores e a insolvente, pedindo a verificação do crédito de 5.222,58€, acrescido de juros, nos termos constantes do documento anexo à contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Os veículos foram removidos em 01.07.2022.

7. Em 28/03/2011, a Embargada celebrara com a B..., Lda., um contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor com as condições gerais n.º ALD/...., e com as condições particulares n.º ... e ..., nos termos constantes dos documentos n.º 2, 3 e 4 anexos ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Em virtude da celebração dos contratos acima indicados, a embargada cedeu à B..., Lda. o gozo temporário dos veículos automóvel de marca RENAULT ..., com a matrícula ..-TP-.., e RENAULT ..., com a matrícula ..-RO-.. (cfr. doc. 3 e 4 anexos ao requerimento executivo).

9. A B..., Lda. obrigou-se ao pagamento de rendas mensais, nos montantes referidos nas condições particulares – vide doc. nºs 3 e 4 anexos ao requerimento executivo.

10. No âmbito da celebração do mencionado contrato, a embargada sacou da B..., Lda. a  letra dada à execução, por esta aceite e avalizada pelos aqui embargantes, com base nas seguintes faturas:

- Fatura n.º ..., vencida em 01/07/2022, no montante de 560,03€;

- Fatura n.º ..., vencida em 15/07/2022, no montante de 147,60€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/202, no montante de 61,50€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 3 722,45€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 890,45€;

- Juros de mora, no montante de 30,19€;

- Despesas com honorários de Advogado, nos termos da cláusula 42.11, conjugada com a cláusula 9.14 e 9.15 do Contrato supra mencionado, no montante de 622,77€.

Aos valores referidos, deduziu a quantia referente às notas de crédito ..., no valor de 541,93€, e ..., no valor de 503,19€.

11. Após a reclamação de créditos apresentada em 06/07/2022 pela aqui embargada, a embargada procedeu à avaliação das respetivas condições, de forma a aferir se haveriam mais valores a suportar pela sociedade cliente, o que deu origem a novas faturas.

12. As viaturas foram removidas em 01.07.2022.

13. No contrato de preenchimento de título cambiário celebrado entre a aqui embargada e os embargantes avalistas, ficou estipulado que a letra referida em 1), assinada em branco, “...visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/.......” e que “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente

ao abrigo do Contrato.” – cfr. documento anexo ao referido contrato de prestação de serviços, com o n.º 2, juntos com o requerimento executivo.

14. Em face do incumprimento dos contratos, a exequente interpelou os executados ao pagamento das quantias que se encontravam por regularizar, nos termos constantes da carta cuja cópia está anexa ao requerimento executivo como documento n.º 5.”

12. Toda a matéria dada como provada, supra transcrita, encontra-se devida e suficientemente motivada, porquanto a Mma. Juíza a quo teve em consideração “a posição vertida pelas partes nos respetivos articulados (factos admitidos por acordo), os dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos, e os depoimentos prestados pelas testemunhas” em sede de audiência de discussão e julgamento. Ou seja, todos os factos e prova trazida aos autos passaram pelo crivo do Tribunal a quo, sendo a mesma “apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas.”

13. Acrescentando a final que “A prova é pratica e exclusivamente documental, e foi corroborada pelo supra referidos depoimentos das testemunhas.”

14. No que toca à motivação de Direito, de forma clara, completa, prudente e balizada pela jurisprudência produzida acerca desta matéria, a Mma. Juiz a quo alcançou a solução do caso sub judice: “O artigo 30º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças estatui que o pagamento de uma letra pode ser garantido, no todo ou em parte, por aval. O fim específico do aval é o de garantir o cumprimento pontual do direito cambiário, consistindo numa garantia prestada à obrigação cartular do avalizado (vide, entre outros, Acórdão do STJ, in BMJ no 279, pág. 214). Trata-se de uma obrigação própria, que é materialmente autónoma e independente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida (salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma), mas que, formalmente, é equiparada à obrigação do avalizado, na medida em que, segundo o estabelecido no art. 32º da LULL, o avalista é considerado responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

Significa tudo isto que o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da livrança (ou da letra), respondendo como obrigado direto, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança.

Esta característica da autonomia da obrigação do avalista pode hoje considerar-se resolvida a partir do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 11.12.2012 in www.dgsi.pt, proc. 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1. Alguns dos considerandos deste aresto, pese embora a sua extensão, justifica-se serem citados por serem esclarecedores quanto à razão e sentido da autonomia do aval. Como aí se refere: “Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou da livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente segregando um feixe de obrigações e deveres que, do nosso ponto de vista, não são passíveis de denúncia”.

Na verdade, como resulta do estatuído no art.º 217º, n.º 4 do CIRE “as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação”. Ou seja, independentemente de os titulares dos créditos terem aceite as providências adotadas no processo de insolvência, quanto à extinção ou modificação dos respetivos créditos, isso não afeta os seus direitos perante os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, ao contrário do que acontecia no regime anterior.

Ora, perante esta evolução legislativa não pode deixar de se concluir que a vontade do legislador foi no sentido de manter incólumes os direitos do credor sobre os garantes das obrigações, desta forma facilitando o acordo quanto aos planos de insolvência.

Também perante esta norma não pode deixar de se extrair a conclusão de que o que ocorre no âmbito do processo de insolvência só tem reflexos quanto ao insolvente e não é invocável pelos respetivos avalistas (sublinhado nosso) – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 26.02.2015 in www.dgsi.pt, proc. 516/13.9TBRMR-A.E1.L1-6.

A autonomia da obrigação cartular impede assim que as ocorrências do processo da insolvência impliquem consequente alteração daquela obrigação, sendo consequentemente irrelevante o montante do crédito que foi ou venha a ser reconhecido no processo da insolvência.

Soçobra pois, este argumento invocado pelos embargantes, assim como o invocado preenchimento abusivo da letra, cujo ónus da prova competia aos embargantes, por se tratar de um facto impeditivo do direito da embargada – cfr. artigo 342º do Código Civil.

Ora, a este propósito os embargantes nada de concreto invocaram, a não ser que a letra devia conter o valor já reconhecido no processo da insolvência de 287,84€, - e já vimos que não é assim - não tendo demonstrado que o restante valor não fosse devido por violar o pacto que livremente pactuaram.

Deflui daqui que a letra dada à execução foi preenchida validamente.” (sublinhado nosso).

15. Efetivamente, o título dado à execução é uma letra de câmbio, valendo os títulos cambiários como títulos executivos, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 46º do CPC.

16. Os Recorrentes reconhecem que subscreveram o título dado à execução na qualidade de avalistas, bem como reconhecem, ou não impugnaram, o contrato de preenchimento deste título cambiário. Nos termos do qual, a letra dada à execução “…visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/....…”.

17. No mesmo pode ler-se ainda que, “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato.”. - conforme documento n.º 2 junto com o requerimento executivo, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

18. Pela simples leitura das cláusulas ora transcritas se depreende que a letra de câmbio em execução pretende garantir pelos seus subscritores e avalistas o cumprimento de todas as obrigações assumidas pela Sociedade Cliente.

19. São, assim, os Recorrentes parte legítima nos presentes autos, tendo garantido pessoalmente o pagamento integral da letra que se executa, prestando válida e eficazmente o seu aval, nos termos dos art. 30.º e 31.º da LULL.

20. E bem sabiam os recorrentes a natureza da obrigação que assumiram e as consequências daí decorrentes.

21. O aval é uma garantia típica dos títulos de crédito, prevendo o artigo 32.º, nº 2 da L.U.L.L. que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

22. Por outro lado, estabelece aquele mesmo artigo que a responsabilidade do avalista é autónoma, não estando dependente da validade da obrigação garantida, nem mesmo da obrigação do afiançado. Existe, pois, autonomia entre a obrigação do avalista e a do avalizado, conforme conclui e bem a douta sentença propalada, não gozando os avalistas da mesma tutela jurídica concedida aos subscritores.

23. Assim, o facto de, eventualmente, a credora não poder exigir à insolvente o pagamento do seu crédito, não é impeditivo de poder exigir a totalidade do crédito nos termos em que o podia fazer anteriormente aos avalistas da insolvente. Aliás, no limite, poderia até a aqui Exequente/Recorrida não ter reclamado qualquer crédito em sede de insolvência da devedora principal e, ainda assim, poderia exigir o cumprimento/pagamento das quantias em dívida totalmente aos avalistas/Recorrentes! Pois, uma das principais características do aval é a subsistência da sua responsabilidade.

24. Veja-se a este propósito a decisão, de 14/01/2020, do Tribunal da Relação de Coimbra – in www.dgsi.pt, Proc. 4211/11.5TBLRA-A.C1.

25. Porém, a letra de câmbio apenas “nasce” pelo saque, que consiste na ordem de pagamento que é dada pelo credor (sacador) ao devedor (sacado) para pagar uma certa quantia à ordem de um terceiro (tomador).

26. Para o efeito, foram os Recorridos interpelados pessoalmente, na qualidade de avalistas, no sentido de liquidar as quantias em dívida de acordo com o contratualmente previsto, conforme decorre da missiva junta com o requerimento executivo sob Doc. n.º 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

27. Não tendo os Recorrentes liquidado a quantia solicitada, logo, verificando-se um incumprimento contratual, assistia à Recorrida o direito de preencher a letra dada à execução pelo valor que lhe fosse devido, a fixar-lhe a data de emissão e de vencimento, bem como a designar o local de pagamento, o que fez. Assim, é claro que o crédito foi concedido com o consentimento e conhecimento de todos os intervenientes cambiários, não podendo vir agora os recorrentes invocar a sua ignorância, inexistência ou inexigibilidade!

28. Como resulta à saciedade do supra exposto, o valor aposto na letra de câmbio em nada depende do crédito que foi reconhecido à Exequente em sede de insolvência.

Sendo que, a Recorrida obrigou-se a preencher a letra de acordo com o montante que se encontrasse em dívida nos termos contratuais.

29. Tendo sido dado como provado que a letra dada à execução, aceite e avalizada pelos Recorrentes, foi preenchida tendo por base as seguintes faturas e demais valores devidos contratualmente:

- Fatura n.º ..., vencida em 01/07/2022, no montante de 560,03€;

- Fatura n.º ..., vencida em 15/07/2022, no montante de 147,60€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/202, no montante de 61,50€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 3 722,45€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 890,45€;

- Juros de mora, no montante de 30,19€;

- Despesas com honorários de Advogado, nos termos da cláusula 42.11, conjugada com a cláusula 9.14 e 9.15 do Contrato supra mencionado, no montante de 622,77€.

Sendo que, aos valores referidos, deduziu-se a quantia referente às notas de crédito ..., no valor de 541,93€, e ..., no valor de 503,19€, para chegarmos ao valor efetivamente em dívida e aposto na letra de câmbio.

30. O certo é que, os Embargantes nada de concreto invocaram em sede de oposição quanto à eventual violação do pacto de preenchimento, resumindo-se a alegar que a havia sido abusivamente preenchida porque apenas devia conter o valor já reconhecido no processo da insolvência, de 287,84€, o que já vimos não ser assim.

31. A exceção de preenchimento abusivo, como exceção do direito material que é, deve ser alegada e provada pelo opoente, por força do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil (cf. Acórdão do STJ de 6 de Abril de 2000, in www.dgsi.pt e Prof. Ferrer Correia in Lições de Direito Comercial, 1994, pág. 484), o que os Embargantes não lograram.

32. Pois, os avalistas não detêm uma posição acessória em relação à obrigação garantida, tanto assim que o artigo 32.º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças confirma que a sua vinculação como garante se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula por qualquer motivo que não seja vício de forma.

33. Nesta perspetiva, podemos afirmar que a posição do avalista é autónoma da do avalizado, pois o avalista, ao prestar o aval, assume a obrigação do pagamento da quantia inscrita no título de crédito, não assumindo ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, ou seja, a responsabilidade do avalista tem relação com a obrigação cartular e não perante a relação subjacente. (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/07/2014, Proc. 1355/13.2TBLRA-A.C1, in www.dgsi.pt).

34. Portanto, a letra foi subscrita e avalizada pelos Recorrentes e isso basta para estes serem responsáveis pelo seu pagamento. - cfr. art. 28º ex vi art. 32º, todos da Lei Uniforme de Letras e Livranças.

35. Deste modo, ao contrário do defendido pelos Recorrentes, não teria o Tribunal a quo de averiguar qual o montante do crédito que a Exequente poderia exigir ao devedor originário, não estando dependente do montante reconhecido em sede de processo de insolvência.

36. Além do mais, vieram os Recorrentes juntar com as suas alegações de recurso a sentença proferida, em 13/07/2023, no âmbito da ação de verificação ulterior de créditos supra identificada, já transitada em julgado.

37. Ora, depreende a aqui Recorrida (porque tal não decorre claramente das alegações de recurso) que os Recorrentes pretendem que a sentença proferida naqueloutro processo faça caso julgado no âmbito dos presentes autos. Acontece que, conforme já vem sendo dito, não assiste qualquer razão aos Recorrentes.

38. Repete-se, a obrigação dos avalistas é completamente independente da do avalizado. Ou seja, a posição dominante da jurisprudência portuguesa é favorável à persecução do crédito contra o avalista, apesar dos trâmites do processo de insolvência perante o devedor principal (seja por via do montante do crédito reclamado e reconhecido, plano de insolvência decretado ou sentença proferida em sede de apenso de verificação ulterior de créditos), o que se funda, basicamente, na autonomia e independência do aval, bem como no entendimento de que o plano de insolvência somente vincula os credores e o devedor principal (insolvente).

39. Por outro lado, não tem tal decisão efeitos para lá do processo em que foi proferida, pois não se verificam os respetivos pressupostos.

40. No processo de insolvência da B..., Lda., o crédito da exequente foi reclamado com base nos contratos celebrados entre as partes. Já na presente ação, o título é diverso, pois é uma letra de câmbio.

41. Não existe, igualmente, identidade de partes, pois não são os Recorrentes/avalistas partes naqueloutro processo qua tale, mas apenas nele intervieram na qualidade de representantes e administrados da insolvente.

42. “A figura jurídico-processual do caso julgado pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal. Na análise do caso julgado há que ter em conta duas vertentes que não se confundem: uma, que se reporta à exceção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas ações – contendo uma delas decisões já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: de sujeitos, de causa de pedir e de pedido; a outra, respeitante à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, que se prende com a sua força vinculativa.” – Cfr. Acórdão do STJ, no processo 241/07.0TTLSB.L1.S1.

43. No caso concreto inexiste tripla identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido. Não se encontram, deste modo, reunidos os pressupostos da verificação do caso julgado.

44. Atento o supra exposto, e não fazendo tal sentença caso julgado nos presentes autos, entende a Recorrida que a matéria que os Recorrentes pretendem aditar não deve ser dada como provada, nem aditada à matéria de facto, pois não resultou da prova realizada nos presentes autos.

45. Não obstante, ainda que assim não se entenda, dada a autonomia da obrigação dos avalistas, aquela decisão sempre se mostra inócua em sede de processo executivo.

46. Mais uma vez, não assiste qualquer razão aos Recorrentes a pretender que a Recorrida seja condenada como litigante de má fé, bem sabendo não lhes ser devida a indemnização devida a esse título, tentando, assim, locupletar-se às custas da Recorrida.

47. Todas as questões que se deviam decidir, por carreadas nos articulados legalmente admissíveis, encontram-se todas elas decididas. E a Douta Decisão, tratou exemplarmente todos os elementos de prova carreados.

48. É a violação do dever de boa-fé processual, de forma dolosa ou gravemente negligente, que configura a litigância de má-fé, nos termos do Artigo 542º.

49. O dever de boa-fé processual surge consagrado como reflexo e corolário do princípio da cooperação, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos.

50. Contudo, a atuação da Embargada/Recorrida não recai na previsão de nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil, pois tem direito de peticionar o valor aposto na letra apresentada à execução pelos motivos supra exposto, por efetivamente devido e legítimo.

51. Pelo que, deverá improceder o pedido de condenação da Embargada como Litigante.

52. Imperioso é, pois, concluir que a sentença propalada não enferma de qualquer vício e que não houve erro de julgamento da matéria de facto ou qualquer erro na interpretação das normas legais aplicáveis.

53. As alegações apresentadas pelos Recorrentes mais não são do que uma tentativa vã de substituir o juízo propalado pelo Tribunal a quo pelo seu próprio juízo ou por aquele dimanado do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, no âmbito da ação de verificação ulterior de créditos, melhor identificada supra, sem, no entanto, apresentar qualquer sustentação legal ou jurisprudencial, por forma a alcançar o seu objetivo: eximir-se das responsabilidades que efetivamente assumiu perante a Recorrida.”


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Por despacho de 12/10/2023, foi admitido o recurso, nos termos legais e os autos correram vistos, nada se observando que obste ao conhecimento da apelação.

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II_ Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Os Recorrentes, com as suas alegações, juntaram a sentença proferida, em 13/07/2023, no âmbito da acção de verificação ulterior de créditos, sendo pretensão recursória dos mesmos que os efeitos dessa Decisão judicial se repercuta nos presentes embargos de executado.

Pela Embargada/Recorrida foi entendido que embora “tal não decorr[a] claramente das alegações de recurso (…) os Recorrentes pretendem que a sentença proferida naqueloutro processo faça caso julgado no âmbito dos presentes autos”.

O instituto do caso julgado não foi objecto de apreciação – nem suscitada na fase dos articulados - na sentença proferida nos autos.

Em princípio, os recursos visam apenas reapreciar ou modificar as decisões já tomadas e não proceder à apreciação de questões novas, não apreciadas na instância que proferiu a decisão recorrida, excepto se forem de conhecimento oficioso, o que se verifica no caso do instituto de caso julgado.

Assim, há que apreciar as seguintes questões:
i. Admissão da junção aos autos, com as alegações, da certidão da sentença proferida na acção de verificação ulterior de créditos cujos termos correram por apenso ao processo de insolvência nº3832/22.5T8VNG.
ii. Ampliação da matéria de facto mediante a inclusão, nos Factos Provados, do ponto 25 com a seguinte redacção:
Por sentença, já transitada em julgado, proferida no apenso de verificação ulterior de créditos da ação de insolvência da devedora principal, “B..., Lda.”, que correu termos  no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, sob o n.º 3832/22.5T8VNG-F, onde estavam em causa, entre outros, os créditos titulados pelas faturas (constantes do ponto 10 dos factos provados), que alegadamente justificaram o preenchimento do montante da letra dada à execução, foi decidido que a “B..., Lda.”, nada devia, tendo sido absolvida, na integra do pedido efetuado pela exequente, no montante de € 5.222,58”.
iii. Do caso  julgado da sentença proferida na acção de verificação ulterior de créditos cujos termos correram por apenso ao processo de insolvência nº3832/22.5T8VNG e excepção de preenchimento abusivo da letra.
iv. Da litigância de má fé da embargada.


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III. Fundamentação de facto

Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento anexo ao requerimento executivo, denominado “letra de câmbio”, além do mais, com os seguintes dizeres:

“No seu vencimento pagará(ão) Vª (s) Ex.º(s) por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos”; importância – 5.137,47€; vencimento – 2022.09.22; local e data de emissão – Sintra – 2022.09.14, sendo que no verso, mostram-se apostas duas assinaturas, sendo a primeira aposta pelo aqui embargante BB e a segunda aposta pela aqui embargante AA, a seguir à expressão manuscrita com os seguintes dizeres: “Bom para aval ao aceitante”.

2. A aceitante da letra, B..., Lda. foi declarada insolvente, por sentença proferida em 06.06.2022, no processo n.º 3832/22.5T8VNG, do Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – J2.

3. Em 06.07.2022, a aqui embargada reclamou créditos no processo da insolvência, no valor global de 287,84€, nos termos constantes do documento n. 2, anexo à petição de embargo, crédito esse que lhe foi reconhecido por sentença proferida em 07.09.2022.

4. Por requerimento de 14.09.2022, a aqui embargada requereu, no processo da insolvência, que lhe fosse reconhecido o crédito sobre a Insolvente no montante global de 4.624,75€, em virtude de, em consequência da denúncia dos contratos que havia celebrado com a Insolvente, se terem vencido novos créditos, o que foi indeferido com o fundamento de que o meio processual idóneo a reconhecer os novos créditos é a ação de verificação ulterior de créditos e não a mera apresentação de requerimento no processo de insolvência.

5. Em 24.11.2022, a aqui embargada intentou, por apenso ao processo da insolvência, ação de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os Credores e a insolvente, pedindo a verificação do crédito de 5.222,58€, acrescido de juros.

6. Os veículos foram removidos em 01.07.2022.

7. Em 28/03/2011, a Embargada celebrara com a B..., Lda., um contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor com as condições gerais n.º ALD/...., e com as condições particulares n.º ... e ..., nos termos constantes dos documentos n.ºs 2, 3 e 4 anexos ao requerimento

executivo.

8. Em virtude da celebração dos contratos acima indicados, a embargada cedeu à B..., Lda. o gozo temporário dos veículos automóvel de marca RENAULT ..., com a matrícula ..-TP-.., e RENAULT ..., com a matrícula ..-RO-...

9. A B..., Lda. obrigou-se ao pagamento de rendas mensais, nos montantes referidos nas condições particulares – vide doc. n.º 3 e 4 anexos ao requerimento executivo.

10. No âmbito da celebração do mencionado contrato, a embargada sacou da B..., Lda. a letra dada à execução, por esta aceite e avalizada pelos aqui embargantes, com base nas seguintes faturas:

- Fatura n.º ..., vencida em 01/07/2022, no montante de 560,03€;

- Fatura n.º ..., vencida em 15/07/2022, no montante de 147,60€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/202, no montante de 61,50€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 3 722,45€;

- Fatura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de 890,45€;

- Juros de mora, no montante de 30,19€;

- Despesas com honorários de Advogado, nos termos da cláusula 42.11, conjugada com a cláusula 9.14 e 9.15 do Contrato supra mencionado, no montante de 622,77€.

Aos valores referidos, deduziu a quantia referente às notas de crédito ..., no valor de 541,93€, e ..., no valor de 503,19€.

11. Após a reclamação de créditos apresentada em 06/07/2022 pela aqui embargada, a embargada procedeu à avaliação das respetivas condições, de forma a aferir se haveriam mais valores a suportar pela sociedade cliente, o que deu origem a novas faturas.

12. As viaturas foram removidas em 01.07.2022.

13. No contrato de preenchimento de título cambiário celebrado entre a aqui embargada e os embargantes avalistas, ficou estipulado que a letra referida em 1), assinada em branco, “…visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/....…” e que “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato”.

14. Em face do incumprimento dos contratos, a exequente interpelou os executados ao pagamento das quantias que se encontravam por regularizar, nos termos constantes da carta cuja cópia está anexa ao requerimento executivo como documento n.º 5.

Factos não provados, com interesse para a boa decisão da causa:

Não há”.


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IV. Fundamentação de direito

1ªQuestão: Da admissibilidade da junção do documento

Com as suas alegações, os Recorrentes juntaram, aos autos, certidão da sentença, proferida em 13/7/2023, na acção de verificação ulterior de créditos que correu por apenso ao processo de insolvência de “B..., Lda.”, sob o nº3832/22.5T8VNG-F, mencionada no ponto 5 dos Factos Provados

Cumpre, assim, apreciar da admissibilidade da junção desse documento em sede recursória.

Os momentos normais para a junção dos documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção e da defesa são:

1) com o articulado respectivo (cf. art.º 423º, n.º 1, do CPC);

2) até ao encerramento da discussão em 1ª instância com multa (ou sem ela, se feita a prova da indisponibilidade no primeiro momento) – cf. n.º 2 do art.º 423º do CPC.

Depois do encerramento da causa, a junção de documentos apenas é admissível para aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior (art.º 425º do CPC).

Dispõe o artigo 651º, n.º 1 do CPC que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.”

Por sua vez, o artigo 425º do CPC estatui que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”

Da conjugação destas normas resulta que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é considerada apenas a título excepcional) depende da alegação e da prova pelo interessado de uma de duas situações:

a) a impossibilidade de apresentação do documento até ao encerramento da discussão em 1ª instância, valendo aqui a remissão do artigo 651º, n.º 1, para o artigo 425º;

b) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

No que se refere à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

Objectivamente, só é superveniente quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão em primeira instância. Subjectivamente, é superveniente quando a parte tomou conhecimento da situação documentada ou da existência desse documento depois daquele momento.

A parte que pretenda oferecer o documento deve demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, ou seja, alegando e demonstrando o carácter objectivo ou subjectivo da apresentação superveniente desse mesmo documento.

No que tange à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância, referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[1], “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.”

Por último, uma vez que a junção de documentos tem em vista a prova de factos que hajam sido alegados, a possibilidade de junção de documentos, em sede de recurso, não poderá ter como objectivo ou finalidade a prova de factos que não hajam sido alegados.

Vejamos a situação dos presentes autos.

A sentença recorrida foi proferida em 28/6/2023.

Os Recorrentes apresentaram as suas alegações, em 11/9/2023. Com essa peça, juntaram certidão da sentença proferida em 13/7/2023, na acção de verificação ulterior de créditos, intentada pela Embargada contra a massa insolvente, os credores e a insolvente, e cujo termos correram por apenso ao processo de insolvência referente à sociedade B..., Lda. [a propositura dessa acção havia sido alegada pela embargante, na petição dos embargos].

Considerando a data do documento, dúvidas não subsistem que se trata de documento posterior à data da sentença objecto do presente recurso, ou seja, documento objectivamente superveniente.

Os Embargantes, ora Recorrentes, deduziram oposição à execução, invocando, entre o mais, a excepção de preenchimento abusivo da letra que fundamentam no facto de o crédito reconhecido à embargante sobre a sociedade “B..., Lda.” (devedora principal) ser no valor de € 287,84.

A letra foi preenchida com o valor de € 5.137,47, correspondente à soma dos valores constantes das facturas n.º ... [montante de €560,03], n.ºSMI/...94 [montante de €147,60], n.º ... [montante de €61,50], n.º SMI/...32 [montante de €3.722,45], n.º ... [montante de €890,45], da quantia de €30,19, a título de juros, e da quantia de € 622,77, a título de despesas com “honorários de Advogado”, deduzidas das quantias referente às notas de crédito ... [valor de €541,93] e ... [valor de €503,19].

Na acção de verificação ulterior de créditos, a ora Embargada pediu o reconhecimento do crédito, no montante de €5.222,58, sobre a insolvente “B..., Lda.”, integrando a causa de pedir o contrato ínsito no ponto 7 dos Factos Provados [contrato de aluguer de veículo sem condutor com as condições gerais n.º ALD/...., e com as condições particulares n.º ... e ...] e as seguintes quantias:

- €560,03, referente à factura ...;

- €147,60, referente à factura ...;

- €61,50, referente à ...;

- €3.722,45, referente à factura ...;

- €890,45, referente à factura ...;

- a nota de crédito ... [na quantia de €541,93];

- a nota de crédito ... [na quantia de €503,19];

- juros de mora vencidos, no total de €114,44;

- despesas com honorários de Advogado, nos termos previstos na cláusula 52.06 do contrato, no montante de €483,39 (quatrocentos e oitenta e três euros e trinta e nove cêntimos).

Nessa acção, por sentença, transitada em julgado - ora junta -, decidiu o Tribunal “julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvem-se os requeridos do pedido”. O contratos e as facturas que serviram de suporte para preencher a letra são as invocadas pela Exequente/Embargante para alicerçar a pretensão que deduziu na acção de verificação ulterior de créditos que correu por apenso ao processo de insolvência.

Concluem os recorrentes que “não restam dúvidas que a exequente preencheu abusivamente a letra”.

Face a este enquadramento, e atento o estatuído no art.º 651º, n.º 1 do CPC, admite-se a junção aos autos do documento apresentado, pelos Recorrentes.


*

2ª Questão

Pretendem os Recorrentes a ampliação da matéria de facto mediante a inclusão, nos Factos Provados, do ponto 15 com a seguinte redacção:

Por sentença, já transitada em julgado, proferida no apenso de verificação ulterior de créditos da ação de insolvência da devedora principal, “B..., Lda.”, que correu termos  no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, sob o n.º 3832/22.5T8VNG-F, onde estavam em causa, entre outros, os créditos titulados pelas faturas (constantes do ponto 10 dos factos provados), que alegadamente justificaram o preenchimento do montante da letra dada à execução, foi decidido que a “B..., Lda.”, nada devia, tendo sido absolvida, na integra do pedido efetuado pela exequente, no montante de € 5.222,58”.

Pronunciando-se sobre a questão, defende a Recorrida que “não fazendo tal sentença caso julgado nos presentes autos”, “a matéria em questão não deve ser dada como provada nem aditada à matéria de facto, pois não resultou da prova realizada nesta sede”. Caso assim não se entenda, dada a autonomia da obrigação dos avalistas, aquela decisão mostra-se “inócua em sede de processo executivo”.

Para a apreciação da excepção de preenchimento abusivo da letra, bem como do caso julgado, segundo as plausíveis soluções de Direito, importa ter em conta os factos que resultam da certidão da sentença proferida em 13/7/2023, na acção de verificação ulterior de créditos, intentada pela embargada contra a massa insolvente, os credores e a insolvente, e cujo termos correram  por apenso ao processo de insolvência referente à  sociedade B..., Lda., documento junto com o requerimento de interposição de recurso, em articulação com a cópia da petição apresentada pela embargada para propositura dessa acção e junta aos presentes autos, com a contestação.

Assim, ao abrigo disposto no artigo 662º, nº1, do CPC, adita-se à matéria de facto provada, os seguintes factos:

15_ Na acção de verificação ulterior de créditos que correu termos por apenso ao processo de insolvência referente à  sociedade B..., Lda., proposta contra a Massa Insolvente, os Credores e a Insolvente, a Autora, ora Embargada A..., S.A. pediu o reconhecimento do crédito, no montante global de €5.222,58 (cinco mil duzentos e vinte e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos, com fundamento nos seguintes factos:

- no âmbito da sua actividade, celebrou com a sociedade insolvente os seguintes contratos de aluguer de veículo automóvel sem condutor (aos quais se encontra associado o Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos Sem Condutor n.º ALD/.... - Condições Gerais):

- Contrato n.º ..., através do qual foi cedido o gozo e utilização do veículo automóvel da marca RENAULT ..., com a matrícula ..-TP-..;

- Contrato n.º ..., através do qual foi cedido o gozo e utilização do veículo automóvel da marca RENAULT ..., com a matrícula ..-RO-..;

- a Insolvente não cumpriu com todas as obrigações deles decorrentes, encontrando-se em dívida para com a Reclamante.

- à data da apresentação da reclamação de créditos, os créditos a favor da ora Credora ascendiam ao montante total de 287,84€ (duzentos e oitenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), que foram incluídos e reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência na lista por si elaborada ao abrigo do disposto no artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas(CIRE).

-   por comunicação eletrónica datada de 29-06-2022, o Senhor Administrador da Insolvência comunicou à Autora a denúncia dos contratos que esta havia celebrado com a Insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 108.º do CIRE..

- na sequência da decisão de não manutenção dos referidos contratos, foi necessário proceder à entrega das viaturas a eles associados e ao apuramento dos montantes devidos pela sua cessação antecipada, nomeadamente os decorrentes de indemnizações contratualmente estabelecidas, eventuais despesas de excesso de quilometragem e de reparações de danos encontrados nos veículos.

- aos valores já reclamados acrescem as seguintes quantias: 560,03€, referente à factura ..., vencida em 01/07/2022; 147,60€, referente à factura ..., vencida em 15/07/2022; 61,50€, referente à ..., vencida em 10/08/2022; 3.722,45€, referente à factura ..., vencida em 10/08/2022; 890,45€, referente à factura ..., vencida em 10/08/2022;

-às facturas identificadas há que deduzir os valores decorrentes das seguintes notas de créditos: 541,93€, referente à nota de crédito ...; e  503,19€, referente à nota de crédito ...;

- o que totaliza um montante de 4.336,91 € (quatro mil trezentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos);

- ao valor supra mencionado acrescem ainda os juros de mora vencidos, calculados, à taxa comercial, desde a respetiva data de vencimento e até à presente data, que totalizam o montante de €114,44 (cento e catorze euros e quarenta e quatro cêntimos) e, bem assim, juros vincendos até efectivo e integral pagamento;

- a Insolvente é ainda responsável pelos montantes apurados a título de despesas com honorários de Advogado, nos termos previstos na cláusula 52.06 do contrato supra mencionado, no montante de €483,39 (quatrocentos e oitenta e três euros e trinta e nove cêntimos);

- ao montante do crédito já anteriormente reclamado (€287,84) acresce a quantia de €4.934,74 (quatro mil novecentos e trinta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos), pelo que, o valor global do crédito da Credora Reclamante sobre a Insolvente totaliza o montante de €5.222,58 (cinco mil duzentos e vinte e dois euros e cinquenta e oito cêntimos) (€287,84 + €4.934,74).

16. Na acção referida no ponto anterior, foi proferida sentença, em 13/7/2023, transitada em julgado, constando do dispositivo "decide-se julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvem-se os requeridos do pedido”.


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3ª Questão

Insurgem-se os Recorrentes com a sentença proferida pelo Tribunal a quo invocando o preenchimento abusivo da letra. Sustentam que o direito de crédito da exequente sobre a devedora não é no valor com o qual a letra foi preenchida, mas no valor de €287,84. Não impugnaram a decisão da matéria de facto considerada provada, sustentando a sua posição na sentença proferida na acção de verificação ulterior de créditos que correu termos por apenso ao processo de insolvência referente à sociedade B..., Lda., intentada pela Exequente/Embargada contra a Massa Insolvente, os Credores e a Insolvente.

Pronunciando-se sobre a excepção de preenchimento abusivo da letra, a Recorrida sustenta que:

- trata-se de excepção de direito material que deve ser alegada e provada pelo opoente, por força do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil, o que os Embargantes não lograram;

- a posição do avalista é autónoma da do avalizado, pois o avalista, ao prestar o aval, assume a obrigação do pagamento da quantia inscrita no título de crédito, não assumindo ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, ou seja, a responsabilidade do avalista tem relação com a obrigação cartular e não perante a relação subjacente;

- a letra foi subscrita e avalizada pelos Recorrentes e isso basta para estes serem responsáveis pelo seu pagamento. - cfr. art. 28º ex vi art. 32º, todos da Lei Uniforme de Letras e Livranças -, pelo que, ao contrário do defendido pelos Recorrentes, não teria o Tribunal a quo de averiguar qual o montante do crédito que a exequente poderia exigir ao devedor originário.

Pronunciando-se sobre os efeitos da sentença proferida, em 13/07/2023, na acção de verificação ulterior de créditos, alega a Recorrida que “depreende … (porque tal não decorre claramente das alegações de recurso) que os Recorrentes pretendem que a sentença proferida naqueloutro processo faça caso julgado no âmbito dos presentes autos”, discordando desse entendimento “porque a obrigação dos avalistas é completamente independente da do avalizado” , defende que “a posição dominante da jurisprudência portuguesa é favorável à persecução do crédito contra o avalista, apesar dos trâmites do processo de insolvência perante o devedor principal (seja por via do montante do crédito reclamado, plano de insolvência decretado ou sentença proferida em sede de apenso de verificação ulterior de créditos)”, e “o plano de insolvência somente vincula os credores e o devedor principal (insolvente)”.

Após análise do caso julgado, enquanto excepção dilatória e na vertente de autoridade de caso julgado, sustenta que no processo de insolvência da B..., Lda., o crédito da exequente foi reclamado com base nos contratos celebrados entre as partes e a presente acção assenta na letra de câmbio; não existe, igualmente, identidade de partes, pois não são os Recorrentes/avalistas partes naqueloutro processo, tendo nele intervindo na qualidade de representantes e administradores da insolvente.

Conclui que, no caso concreto, inexiste identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido e, consequentemente, não se encontram reunidos os pressupostos do caso julgado.

Cumpre apreciar e decidir.

O título executivo que serve de base à execução para pagamento de quantia certa é a letra a que se reporta o ponto 1 dos factos provados e que tem  inscrita a  “quantia de cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos”, encontrando-se avalizada pelos embargantes, mediante a aposição das respectivas assinaturas no verso a seguir à expressão “Bom para aval ao aceitante”.

Resulta dos autos que a letra não se encontrava inteiramente preenchida quando foi entregue à exequente.

Conforme decorre do artigo 10º da LULL, a lei admite a figura da letra em branco a qual deve ser preenchida antes do vencimento e “o preenchimento tem de fazer-se nos limites e termos ajustados”.

O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante. Referem Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos[2] que ”o pacto de preenchimento é uma convenção pela qual se estipula o modo como o título virá a ser preenchido, mais tarde” e só é oponível entre as partes.

Como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 13/4/2011[3], o «pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária»..

Ensinam Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos Pedro[4], “O preenchimento abusivo, segundo o artigo 10º da LULL, não é oponível ao terceiro portador. Este preceito carece de alguma explicitação. Deve entender-se que o portador referido no artigo 10º da LULL, a que o preenchimento abusivo não pode ser oposto, é um portador que não seja interveniente no pacto de preenchimento. A doutrina do artigo 10º é a mesma do artigo 17º da LULL: as convenções extracartulares só podem ser opostas entre os respectivos intervenientes.”

Os Embargantes vincularam-se como avalistas. O aval é o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento. Segundo o artigo 32º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. Isto significa que a responsabilidade cambiária que para o avalista emerge do aval se determina pela do avalizado. Mas a posição do avalista, como a de qualquer interveniente da letra, é também autónoma. O aval subsiste mesmo que o acto do avalizado seja nulo por qualquer razão “que não seja um vício de forma” (artigo 32º, nº2, da LULL).

A autonomia do aval traduz-se num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria como avalista, que se define pela do avalizado, mas que vive e subsiste independentemente desta. Trata-se de uma garantia cambiária em que a responsabilidade do obrigado cambiário é determinada pelo título e pode funcionar separadamente da obrigação do avalizado, respondendo o avalista mesmo que o avalizado não deva responder, sendo a garantia dada à obrigação cambiária e não à relação extracartular. Genericamente, embora o aval, como os demais actos cambiários, possua uma relação subjacente, esta será constituída pela relação jurídica que funda a prestação do aval só podendo ser invocada nas relações entre o avalista e o avalizado.

A relação subjacente ao aval não se confundirá com a relação subjacente existente entre o sacador e o aceitante, não podendo o avalista opor ao sacador/portador os meios de defesa que competiam ao avalizado/aceitante - defender-se com as excepções que o avalizado poderia opor ao exequente (excepção feita ao pagamento).

Sobre o aval, o pacto de preenchimento e a oponibilidade da excepção de preenchimento abusivo, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 13/4/2011[5], proferido no processo nº2093/04.2TBSTB-A L1.S1.

«Tendo o avalista intervindo no pacto de preenchimento pode ele opor ao portador as excepções que competiam ao avalizado se o título cambiário estiver no domínio das relações imediatas – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.2006, in www.dgsi.pt.

A qualidade de mero avalista não legitima a oponibilidade da excepção de preenchimento abusivo, se não subscreveu o pacto de preenchimento. Isto porque a prestação do aval estará então condicionada ao conhecimento e aceitação pelo avalista do montante a avalizar e data de vencimento…
Não pode, em consequência, excepcionar o preenchimento abusivo, cujo “onus probandi” cabe ao obrigado cambiário (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil) já que integra um facto modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito. (cfr., “inter alia”, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2007 – 07 A205 – e, desta Conferência – de 14 de Dezembro de 2006 – 06 A2589),
salvo se também tiver subscrito o pacto de preenchimento.” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 22.2.2011, Proc. 31/05-4TBVVD-B.G1.S1, in www.dgsi.pt.

Também neste sentido, que corresponde a jurisprudência prevalente neste Tribunal, decidiu o Acórdão de 23.9.2010 – Proc. 4688-B/2000.L1.S1 – acessível na referida base de dados:

“1. Em execução fundada em título de crédito, invocado pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – e mostrando-se respeitados os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo, – não carece o exequente de alegar complementarmente, no requerimento executivo, os factos atinentes à relação causal ou subjacente à emissão daquele título cambiário, sendo, porém, lícito ao executado/embargante opor ao exequente/embargado excepções fundadas nesta relação, desde que nos situemos no plano das relações imediatas.

2.Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de letra subscrita e avalizada em branco, e tendo a avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o sacador, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção”.

Aqui chegados, resulta dos factos provados que:
i) a execução à qual os presentes autos se encontram apensos foi intentada pela sacadora da letra a quem a mesma foi entregue em branco;
ii) os avalistas intervieram na celebração do acordo de preenchimento;
iii) “no contrato de preenchimento de título cambiário celebrado entre a aqui embargada e os embargantes avalistas, ficou estipulado que a letra referida em 1), assinada em branco, “…visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/....…” e que “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato.” (sublinhado nosso)

Pelo exposto, os Executados/Embargantes [avalistas], obrigados cambiários com intervenção na celebração do pacto de preenchimento, dispõem de legitimidade para opor, à Exequente/Embargada, a excepção material de preenchimento abusivo do título, estando esta obrigada a preencher a letra com valor não superior “à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do contrato”. Os avalistas comprometeram-se a ficar vinculados no título a ser preenchido com esse valor e não com outro valor. Caber-lhes-ia, todavia, o ónus da prova em relação aos factos constitutivos daquela excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil. Como excepção de direito material, o preenchimento abusivo deve ser alegado, com articulação dos factos concretos que apontarão para tal, bem como provado, cumprindo ao opoente demonstrar o desrespeito pelo acordado no acordo de preenchimento.

Nos presentes autos, os Embargantes não lograram demonstrar que o valor com o qual foi a letra preenchida é superior ao que resulta do pacto de preenchimento.

Todavia, a Exequente/Embargada, em 24/11/2022, intentou, por apenso ao processo da insolvência, acção de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os credores e a insolvente, pedindo a verificação do crédito de €5.222,58, acrescido de juros, com fundamento no contrato mencionado no pacto de preenchimento.

Pretendem os Recorrentes que a sentença proferida nessa acção produza efeitos nestes autos no sentido de demonstrar que a Exequente, de harmonia com o pacto de preenchimento, não podia preencher a letra com quantia superior a €287,84.

Diverge desse entendimento a Recorrida/embargante. Após a referência ao caso julgado nas suas duas vertentes – uma, a excepção dilatória do caso julgado e outra, respeitante à força e autoridade do caso julgado -, defende que, no caso concreto, inexiste tripla identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, pelo que não se encontram reunidos os pressupostos do caso julgado.

Importa, assim, apreciar e decidir se os efeitos da sentença proferida na acção de verificação ulterior de créditos se repercutem na presente acção, como defendem os Recorrentes, ou se, pelo contrário, face à inexistência de identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, não se encontram reunidos os pressupostos do caso julgado.

Dispõe o artigo 628.º do Código de Processo Civil que “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Como, entre outros, explicam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Diz-se que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da decisão constitui assim a pedra de toque do caso julgado [6].

O conceito de caso julgado abrange duas vertentes: a do caso julgado formal ou externo, relativo a questões de carácter processual e a do caso julgado material, substancial ou interno, “referente à relação material em litígio”.

O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada”. O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do próprio processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.” [7]

Ensinava o Professor Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, anotação ao art. 672º, que “com o trânsito da sentença em julgado, facto processual definido no § único do art. 677º, produz-se este fenómeno: a formação do caso julgado. O art. 671º propõe-se determinar a autoridade e o valor desta formação. E determina-os assim: a decisão proferida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele. Se confrontarmos este ditame com o que se lê no art. 672º, ficamos logo advertidos de que a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia: ao passo que o art. 671º fala de força obrigatória dentro do processo e fora dele, o art. 672º só atribui à decisão força obrigatória dentro do processo.

Estamos pois em presença de duas figuras diferentes, de duas realidades perfeitamente distintas. À que o art. 671º considera dá-se o nome de caso julgado material ou substancial: à que o art. 672º desenha cabe a designação de caso julgado formal ou processual. Quando é que o caso julgado reveste a primeira ou a segunda modalidade? A aproximação dos dois artigos habilita a dar a resposta. Se a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, temos o caso julgado formal. Se recai sobre o mérito da causa, e portanto sobre a relação jurídica substancial, temos o caso julgado material”.

Escrevem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[8], “a litispendência e o caso julgado são pressupostos processuais de índole negativa, na medida em que a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância (arts. 278º,1,e, e 577º,i)”.

A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma  causa, quando na primeira causa já tenha sido proferida decisão final transitada em julgado (cfr. art. 628º do CPC), dispondo o nº 1 do artigo 578º do Código de Processo Civil que “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

A exigência desta tríplice identidade fixa os limites subjectivos e objectivos do caso julgado. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “É através desta tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado (...). O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor(ou pelo réu, através da reconvenção) (…). É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado(…)”.

Concluem, “Pode assim dar-se por assente que a eficácia do caso julgado apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (artigo 659º, 2, in fine), ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir (…). A força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final.” [9] [10]

No que respeita aos limites subjectivos, importa salientar que a identidade dos sujeitos relevante para efeito da excepção de caso julgado é, como dispõe o artigo 580º, nº 2, do CPC, a identidade jurídica, ou seja, não interessa tanto a identidade física dos sujeitos envolvidos nas várias acções, mas a qualidade jurídica em que intervieram no processo.

A identidade de pedidos assume grande relevância no âmbito do caso julgado, já que este se forma directamente sobre o pedido. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que “a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado”. [11]

Tendo presente as diferentes causas de pedir e de pedidos da acção cujos termos correram por apenso ao processo de insolvência e da presente acção, desde logo concluímos não poder verificar-se a excepção dilatória do caso julgado.

E a figura da autoridade de caso julgado?

A “autoridade de caso julgado implica o acatamento de decisão proferida em acção anterior, cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”.[12]

Referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Vem surgindo com alguma frequência em arestos dos diversos tribunais o recurso à figura da «autoridade do caso julgado» (ou efeito positivo do caso julgado), com vista a extrair de algumas decisões o mesmo efeito impeditivo que emerge da verificação da exceção dilatória de caso julgado. (…) Em STJ 8-11-18, 478/08, decidiu-se que tal figura pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos que se apresenta como pressuposto indiscutível do efeito jurídico da decisão posterior”.[13]

Para “Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (…) a autoridade de caso julgado que emerge da sentença que transitou em julgado e a exceção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica: «pela exceção visa-se o efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida». Subsume-se nesta orientação o STJ 14-10-2021, 251/13, ao entender que (…):se o objecto de processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objetos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado”.[14]

Já Teixeira de Sousa, numa linha que tem obtido maior adesão por parte da jurisprudência,  defende que «a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, acrescentando, ainda, que «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada»”. [15]

Concluem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Enfim, respeitada a identidade dos sujeitos (…), a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art.º 581.º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmos sujeitos (…), abarcando, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam  antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado(…). Seguro é que tal mecanismo, que visa evitar contradições decisórias entre os mesmos sujeitos, não poderá ser invocado em ação que corra entre sujeitos diversos na perspectiva da sua qualidade jurídica...”.[16]
Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 27/2/2018[17]:
“Na jurisprudência deste Supremo Tribunal encontramos plasmado o entendido de que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 498º do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, cf. Ac. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; Ac. de 06.03.2008, processo nº 08B402, e Ac. do STJ de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – assim, nomeadamente, Ac. do 29/07.4.TBPST.S STJ de 12.07.2011, processo 11, www.dgsi.pt – o que tem apoio na doutrina de Miguel Teixeira de Sousa, ao afirmar: “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579)”.
No Acórdão de 17/05/2018, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que: [18]

Segundo a noção dada por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304, o caso julgado material, «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».

É imposto por razões de certeza do direito, mas, sobretudo, de segurança das relações jurídicas.

Tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor, obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.

Mas, enquanto que alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis, para Lebre de Freitas e para Remédio Marques, defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, outros há, como Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, que defendem uma conceção mais ampla do caso julgado.

Assim, nesta última linha, sustenta Miguel Teixeira de Sousa, que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

Também, na esteira desta doutrina, afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) que «a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».

Mas, não obstante a divergência registada ao nível da doutrina sobre o âmbito objectivo do caso julgado, a verdade é que todos parecem estar de acordo num ponto, ou seja, que os fundamentos de facto, por si só, nunca formam caso julgado.

Com efeito, pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Remédio Marques, que o caso julgado «não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final».

No mesmo sentido, refere Antunes Varela que «os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final».

Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».

E é também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente».

Pronunciando-se sobre a autoridade de caso julgado, no Acórdão de 2 de Junho de 2021, decidiu  o Tribunal da Relação de Guimarães [19]:

“Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 26.2.2019 (in www.dgsi.pt)a exceção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. art. 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: exigir essa tríplice identidade equivaleria, como já se afirmou, a "matar" esta figura; "a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva”.

A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2 do CPC).

A autoridade de caso julgado "tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (...)

Na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.

Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”(sublinhados nossos).

Dito de outro modo, o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão) (Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.6.2019 in www.dgsi.pt).

Por outro lado, como referido no Acórdão do STJ de 30.4.2019 (in www.dgsi.pt) “tem sido entendido por alguns, nomeadamente a maioria da jurisprudência, que a autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida”.

Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 9/11/2021:[20]
“2- A autoridade do caso julgado deriva não desta tríplice identidade, mas sim da necessidade de assegurar que uma decisão judicial não tenha um efeito contraditório ou incompatível com decisão anterior, sendo fundamental atender ao anteriormente decidido, sempre de acordo com a interdependência e prejudicialidade entre as duas acções;
3.–Para tanto, haverá que atender ao direito material e à relação existente entre a situação já definida por sentença e aquela que vem a juízo, sendo primordial definir quais os terceiros, titulares de relações jurídicas conexas, que ficam abrangidos pela autoridade do caso julgado, ou seja, pelo conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva;
4.–Do regime jurídico do seguro de responsabilidade civil extrai-se a existência de uma relação de prejudicialidade entre a decisão proferida em acção proposta pelo lesado contra o segurado, onde este foi condenado, por sentença transitada em julgado, e a decisão a proferir na acção proposta contra a Seguradora, sendo que aquela decisão faz parte do objecto da nova acção, fixando quer a responsabilidade do lesante, quer os termos da obrigação de indemnizar e que, por esse motivo, devem ser respeitados;
5.–Assim, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado formado na 1ª acção;
6.–Esta interpretação relativamente ao caso julgado e sua autoridade, não é violadora de qualquer preceito constitucional, não existindo qualquer violação dos direitos à tutela judicial efectiva e à defesa”.

A autoridade de caso julgado, decorrente da necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas, não é colocada em crise mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei. [21]
Na esteira do entendimento exposto, a autoridade de caso julgado não depende da verificação integral ou completa da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, esse efeito de caso julgado só vinculará e aproveitará a quem tenha sido parte na respectiva acção ou a quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia directa ou reflexa, consoante os casos.
Relativamente à extensão do caso julgado a terceiros, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [22] distinguem várias categorias de terceiros. Sobre o “[c]aso julgado nas acções relativas às obrigações solidárias”, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [23], «Relativamente às obrigações em que haja dois ou mais  devedores solidários, prevendo a hipóteses de o credor demandar apenas um deles (…), a lei prescreve (artigo 522º do mesmo Código) que “o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor».
Assim, quem não for parte na acção poderá beneficiar do efeito favorável do respectivo caso julgado em conformidade com a lei, como sucede na situação de solidariedade entre devedores, nos termos do artigo 522.º, 2.ª parte, do Código Civil. Ao devedor solidário aproveitará o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor com fundamento não respeitante pessoalmente a este (art.º 522.º, 2.ª parte, do CC).
Transpondo tais princípios para os presentes autos, em 28/03/2011, a Embargada celebrou com a B..., Lda., um contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor com as condições gerais n.º..., e com as condições particulares n.º ... e ..., tendo esta ficado obrigada a proceder ao pagamento de rendas mensais, nos montantes referidos nas condições particulares.
No âmbito da celebração do mencionado contrato, a embargada sacou da B..., Lda. a letra dada à execução, por esta aceite e avalizada pelos aqui embargantes.
No contrato de preenchimento do título cambiário celebrado entre a aqui embargada e os embargantes avalistas, ficou estipulado que a letra referida em 1), assinada em branco, “…visa garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo cliente perante a A..., através do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos sem Condutor n.º ALD/....…” e que “em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a dez dias, do contrato por parte do cliente, a C... pode preencher a letra de câmbio referida na cláusula I supra, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, pelos montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato.”
A letra, aceite por B..., Lda., foi preenchida com “a quantia de cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos” [€5.137,47] e data de vencimento, “2022.09.22”.
O valor aposto na letra, pela embargada, teve por base – ponto 10 dos factos provados:
- a Factura n.º ..., vencida em 01/07/2022, no montante de €560,03;
- a Factura n.º ..., vencida em 15/07/2022, no montante de €147,60;
- a  Factura n.º ..., vencida em 10/08/202, no montante de €61,50;
- a Factura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de €3.722,45;
- a Factura n.º ..., vencida em 10/08/2022, no montante de €890,45;
- juros de mora, no montante de €30,19;
- despesas com honorários de Advogado, nos termos da cláusula 42.11, conjugada com a cláusula 9.14 e 9.15 do Contrato supra mencionado, no montante de €622,77.
- a nota de crédito ..., no valor de €541,93, e a nota de crédito ..., no valor de €503,19.
A aceitante da letra, B..., Lda. foi declarada insolvente, por sentença proferida em 06.06.2022, no processo n.º 3832/22.5T8VNG, do Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia
Em 06.07.2022, a aqui embargada reclamou créditos no processo da insolvência, no valor global de €287,84, que lhe foram reconhecido por sentença proferida em 07.09.2022.
Em 24.11.2022, a aqui embargada intentou, por apenso ao processo da insolvência, acção de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os credores e a insolvente, pedindo a verificação do crédito de €5.222,58, acrescido de juros. Nessa acção, a embargada fundamentou a sua pretensão no referido contrato de prestação de serviços relativos a aluguer de veículo sem condutor - condições gerais n.º ALD/.... e nos contratos de aluguer de veículo sem condutor n.ºs ... e ..., associados àquele; na denúncia de tais contratos, mediante  comunicação eletrónica datada de 29-06-2022, pelo Senhor Administrador da Insolvência; e nos  montantes devidos pela sua cessação antecipada, e no não cumprimento das obrigações deles decorrentes, alegando que se encontravam em dívida as quantias parcelares que foram, por si, contabilizadas para o preenchimento da letra com o valor de €5.137,47, ou seja:
- €560,03, referente à factura ..., vencida em 01/07/2022;

- € 147,60, referente à factura ..., vencida em 15/07/2022;

- €61,50, referente à factura ..., vencida em 10/08/2022;

- € 3.722,45, referente à factura ..., vencida em 10/08/2022;

- €890,45, referente à factura ..., vencida em 10/08/2022;

- a nota de crédito ..., no valor de €541,93, e a nota de crédito ..., no valor de € 503,19;

- juros de mora vencidos, calculados, à taxa comercial, desde a data de vencimento das facturas, no montante de €114,44 (cento e catorze euros e quarenta e quatro cêntimos);

- despesas com honorários de Advogado, no montante de €483,39 (quatrocentos e oitenta e três euros e trinta e nove cêntimos).

Resulta dos documentos mencionados no ponto 3 dos Factos Provados que o crédito reclamado no processo da insolvência, no valor global de €287,84, integra as seguintes parcelas:

- factura ..., vencida em 02/06/2022, no montante de €73,80;

- factura ..., vencida em 09/06/2022, no montante de € 73,80;

- juros no valor de €0,86;

- a quantia de € 139,38, a título de despesas com Advogado.

A quantia de €139,38, a título de honorários, somada ao valor peticionado naquela acção, a título de “despesas com honorários de Advogado, nos termos previstos na cláusula 52.06 do Contrato supra mencionado, no montante de €483,39 (quatrocentos e oitenta e três euros e trinta e nove cêntimos)”, perfaz o valor de €622,77, mencionado no ponto 10.

Em suma, para o preenchimento da letra, a exequente considerou que os “montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato” perfaziam o total de € 5.137,47 (cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos). As quantias parcelares que foram consideradas para obter o valor de € 5.137,47 (cinco mil cento e trinta e sete euros e quarenta e sete cêntimos) com a qual foi preenchida a letra, integram a causa de pedir na acção referida no ponto 5 dos Factos Provados.

Por sentença proferida em 13/7/2023, decidiu o tribunal julgar a acção “totalmente improcedente e, em consequência, absolvem-se os requeridos do pedido”.

A relação jurídica definida pela embargada, nessa acção e cuja titularidade invocou, é a relação extracartular existente entre o sacador da letra e a sua aceitante que esteve subjacente à ordem de pagamento que consubstancia o saque e que criou a letra dada à execução, emitida em branco. O contrato de preenchimento de título cambiário foi celebrado entre a embargada e os embargantes avalistas. De harmonia com o pacto de preenchimento, a Embargada assumiu a obrigação de preencher a letra de câmbio com “os montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato”, ou seja, o direito de crédito que a ora Embargada se arrogou titular, nessa acção, é, precisamente, o objecto do contrato de preenchimento da letra, celebrado entre  si e os Embargantes avalistas.

Assim, o conhecimento da excepção de preenchimento abusivo, deduzido nestes autos, assenta nos factos que constituem a causa de pedir da acção de verificação ulterior de créditos que foi proposta pela Embargada, ou seja, o objecto dessa acção constitui pressuposto da apreciação da excepção invocada pelos embargantes, face ao pacto de preenchimento da letra, acordado entre aquela e estes. Os embargantes comprometeram-se a ficar vinculados no título a ser preenchido de acordo com o pacto de preenchimento que assinaram, confiando que a Embargada procederia, no futuro, ao preenchimento do título, do modo convencionado. A Embargada preencheu a letra com a quantia de €5.137,47, não lhe tendo sido reconhecido esse direito de crédito na acção proposta contra, entre outros, a Massa Insolvente de “B..., Lda.” e a Insolvente. É solidária a responsabilidade dos Embargantes e Insolvente.

Posto isto, os efeitos da autoridade de caso julgado emanados da decisão, proferida naqueles autos, repercutem-se nesta acção porquanto, naquela decisão foi definida a relação que constitui pressuposto da situação jurídica que nesta é necessário regular e definir e que consiste em determinar qual o valor total de “os montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato”, pois, essa é a obrigação que resulta do pacto de preenchimento, para a Embargada.

Assim, nestes embargos, o Tribunal deve apreciar e definir a concreta relação jurídica entre Embargada e Embargantes que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição, sem nova apreciação, a decisão proferida na acção de verificação ulterior de créditos quanto aos “montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato”.

Não reconhecido, à embargante [autora naquela acção] o direito de crédito sobre a aceitante, por sentença vinculativa para aquela, não pode a mesma invocar esse crédito para preencher uma letra avalizada em branco e cujo pacto de preenchimento foi acordado entre si e os avalistas. Solução diversa conduziria a permitir precisamente aquilo que a lei quis evitar com a extensão do autoridade de caso julgado, isto é, que a mesma matéria pudesse ser objecto de dois julgamentos contraditórios:

a. A Embargada não ver reconhecido o direito de crédito que se arroga titular relativamente à aceitante que fundamentou em “alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente [B..., Lda.] ao abrigo do Contrato” e, simultaneamente, ver reconhecido esse direito relativamente aos avalistas da aceitante [artigo 47º da LULL], perante os quais se vinculou a preencher a letra com os “montantes correspondentes à totalidade ou parte dos alugueres vincendos ou vencidos e não pagos e outros encargos da responsabilidade do cliente ao abrigo do Contrato”.

Assim, a sentença, transitada em julgado, proferida na acção de verificação ulterior de créditos, proposta pela Embargada contra a Massa Insolvente, os Credores e a Insolvente, assume relevância nos presentes autos para efeitos de extensão da autoridade de caso julgado por referência ao valor com o qual a primeira preencheu a letra.

Tendo o pacto de preenchimento autorizado o preenchimento da letra em função do incumprimento das obrigações pela devedora/aceitante, a Embargada, ao apor na letra a quantia de €5.137,00, sendo o seu crédito no valor de €287,84 [crédito reconhecido, conforme resulta dos pontos 5 e 6 dos Factos Provados] incorreu no preenchimento abusivo do título.

Por último, não assiste razão à Embargante quando invoca o disposto no artigo 217º, nº 4, do CIRE porquanto, nos presentes autos, não está em causa a aprovação de plano de insolvência ou qualquer providência prevista no plano de insolvência.
Pelo exposto, procede a excepção material de preenchimento abusivo do título, com a consequente extinção da instância na parte que exceda o crédito reconhecido no montante de €278,84, prosseguindo a execução os seus ulteriores termos para pagamento desta quantia.

*

4ª Questão

Com fundamento no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b), e d), do Código de Processo Civil, pretendem os Recorrentes a condenação da Recorrida/Exequente como litigante de má fé, sustentando que esta “deduziu pedido cuja falta de fundamento não podia, nem pode ignorar, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal e torpe”.

Pronunciando-se, defende a Embargada/Recorrida que a sua actuação não recai na previsão de nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil “pois tem direito de peticionar o valor aposto na letra apresentada à execução pelos motivos supra exposto, por efetivamente devido e legítimo”.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o nº2 do artigo 542º do Código de Processo Civil que “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) …
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

As partes estão vinculadas aos deveres de probidade e cooperação, agir de boa-fé e cooperar para se obter, com brevidade e eficácia a justa composição do litígio. Se, com propósito malicioso, a parte pretende convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe não ser legítima, ou que não pode ignorá-lo, distorcendo ou omitindo a verdade dos factos, fizer do processo um uso reprovável ou deduz oposição cuja falta de fundamento não pode ignorar, actua de má fé e, por essa razão, pode e deve ser sancionada em multa e indemnização à parte contrária, se o pedir.

Algum exagero na pretensão que foi deduzida não é, por si só, litigância de má fé.

Não consubstancia litigância de má fé a dedução de pretensão que vem a decair por mera fragilidade da prova e de não se convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento ou resultar da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou mesmo, convencida que lhe assiste razão, vê os seus argumentos afastados por razões mais ponderosas ou legalmente fundadas.

A má fé pressupõe uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva. O que não se verifica no caso. A propositura da acção executiva ocorre em momento anterior à propositura da acção declarativa por apenso ao processo de insolvência no âmbito da qual no âmbito da qual não obteve provimento a pretensão por si deduzida no sentido de ver reconhecido o crédito que se arrogava titular.  

Face ao exposto, entende este tribunal que não se mostram ultrapassados, no caso sub judice os limites da “litigiosidade séria" que "dimana da incerteza” [24], não se verificando os pressupostos da condenação da Embargada/Recorrida, como litigante de má fé.


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Custas

As custas dos embargos e da apelação são da responsabilidade dos embargantes e embargada, na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente, considerando que aqueles não obtiveram vencimento em todas as questões suscitadas.


*

V_ Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, decide-se:
1) Aditar aos factos provados os vertidos nos pontos 15 e 16, nos termos enunciados;
2) Revogar a decisão recorrida na parte em que julgou os embargos de executado totalmente improcedentes;
3) Julgar procedente a excepção material de preenchimento abusivo da letra na parte em que excede a quantia de €287,84 (duzentos e oitenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos)  e, nessa medida, extinta a instância executiva, determinando o prosseguimento da execução para pagamento da quantia exequenda remanescente;
4) No mais, confirmar a decisão recorrida.

Custas dos embargos e do recurso pelos Recorrentes e Recorrida, na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente- cfr. artigo 527.º, n.º1, do Código de Processo Civil.


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Sumário:

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Porto, 5/2/2024
Anabela Morais
Teresa Fonseca
Mendes Coelho
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[1] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, págs. 533 e 534.
[2]Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Direito Comercial”, Almedina, vol. I, 2ª ed., pág. 391.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-4-2011, processo 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Direito Comercial”, Almedina, vol. I, 2ª ed., pág. 400.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/4/2011, proferido no processo nº2093/04.2TBSTB-A L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[6]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 702.
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 703 e 704.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª ed., vol. I, anotação ao art. 580º, pág.711.
[9] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 712 a 714.
[10] Sobre as questões não cobertas pela força de caso julgado, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 714 e 715:”Da orientação assim fixada na lei duas conclusões práticas muito importantes se podem extrair: 1.ª – Sendo certo que o caso julgado apenas abrange a resposta dada pelo Estado à pretensão do autor (ou do réu, no caso especial da reconvenção), revestirá sempre o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final; 2ª –Pode haver – e haverá na comum das sentenças – muitos julgamentos, quer sobre a matéria de facto, quer sobre questões de direito que, por não estarem contidos na decisão final, embora integrem os seus fundamentos, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado”.
[11] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, pág. 712.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 30 Março de 2017, no processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º,Almedina, 2022, pág. 798.
[14]António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[15] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, pág.800.
[16] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/2/2018, proc. 2472/05.8TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2018, proferido no processo n.º 3811/13.3TBPRD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[19] Acórdão de 2 de Junho de 2021, do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº4806/20.6T8VNF-B.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[20] Acórdão de 9/11/2021, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 877/20.3T8SNT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. Nesse Acórdão, pode ler-se:
“Também Alberto dos Reis in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVII, págs.206 e segs. (Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros) – apud Ac. STJ 08-01-2019, proc. 992/137TBMAI.P2.S1, relator Roque Nogueira, entendia que “O caso julgado formado sobre uma determinada relação jurídica só deve fazer sentir a sua influência sobre outras relações jurídicas quando estas estejam para com aquela num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão. E para se caracterizar esta dependência parece-nos aceitável o critério de Allorio – o critério da prejudicialidade. Se a relação coberta pelo caso julgado entre na formação doutras relações, como pressuposto ou como elemento necessário, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado sobre essas relações, na medida em que ele fixou e definiu a relação prejudicial”.

“Quando o caso julgado relativo a um objecto prejudicial é invocado numa acção posterior releva nesta segunda acção uma proibição de contradição daquele caso julgado, proibição que não impede a nova pronúncia do tribunal sobre o que é pedido, antes vincula o tribunal a utilizar o caso julgado como base da apreciação sobre o que lhe é solicitado”.
De igual modo, o Ac. TRG de 23-06-2021, proc. 123/20.T8VPC-A.G1, relator Maria dos Anjos Nogueira, refere que “É, portanto, “entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado ” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2016, proc. n.º 74300/15.9YIPRT.P1, relator: Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt)...”.
[21] Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019, proferido no processo nº 5998/16.4T8FNC.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
[22] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 726 a 729.
[23] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 726 a 729.
[24] Fernando Luso Soares, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina, 1987, página 26.