Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
192/15.4GBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20161215192/15.4GBVFR.P1
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 702, FLS.146-161)
Área Temática: .
Sumário: I - Á vítima do crime de violência doméstica é reconhecido o direito de obter uma decisão de indemnização havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artº 82ºA do CPP.
II - Para que seja arbitrada tal indemnização é necessário que se verifiquem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 192/15.4GBVFR
Comarca De Aveiro, Tribunal de Santa Maria da Feira
Instância Local, Secção Criminal, J2

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por sentença proferida em 20 de Maio de 2016 foi o arguido B… absolvido do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nºs 1 als. a) e 2, 4 e 5 do Código Penal (CP) do qual estava acusado e condenado antes por um crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143º nº 1 do CP, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €9,00, tendo ainda sido absolvido do pedido de arbitramento de indemnização à assistente C… pelo Ministério Público.

1.2 Recurso
A assistente interpôs recurso da sentença pedindo que a matéria de facto seja alterada e que o arguido seja condenado pelo crime de violência doméstica pelo qual estava acusado, ou que, subsidiariamente, não sendo a matéria de facto alterada, seja condenado pelo crime de violência doméstica ou ao menos também por dois crimes de injúrias, e em qualquer caso ainda condenado a pagar à assistente a quantia de €2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.
Para tanto invocou em suma os seguintes fundamentos:
- Erro no julgamento da matéria de facto: da conjugação das declarações do arguido e dos depoimentos da assistente e da testemunha D… resulta que devem ser dados como provados factos que constavam na acusação e que o tribunal considerou não provados;
- Erro de julgamento na aplicação do direito: provados os factos referidos, está preenchido o tipo de crime de violência doméstica pelo qual o arguido deverá ser condenado;
- Erro de julgamento na aplicação do direito: mesmo que a matéria de facto não seja alterada, os factos tidos como provados ainda preenchem o tipo legal do crime de violência doméstica, pelo qual o arguido deverá ser condenado;
- Erro de julgamento na aplicação do direito: no caso de não haver alteração da matéria de facto e de se entender que não está preenchido o crime de violência doméstica, ainda assim os factos provados preenchem também dois crimes de injúrias, pelos quais o arguido deverá ser condenado;
- Erro de julgamento na aplicação do direito: o arguido deverá ser condenado a pagar à assistente uma indemnização por danos não patrimoniais, no montante peticionado pelo Ministério Público.

1.3 Resposta
Apenas o Ministério Público respondeu ao recurso, manifestando-se no sentido da sua improcedência e alegando em resumo o seguinte:
- A matéria de facto foi bem julgada, uma vez que a assistente faltou à verdade no seu depoimento e que o depoimento da testemunha D… também não foi credível, visto resultar dele que pode ter sido influenciado para favorecer a assistente, tendo o tribunal dado como provado apenas o que foi corroborado por outros elementos de prova;
- O enquadramento jurídico dos factos feito na sentença está correcto porque estando em causa apenas uma agressão física durante uma discussão e dois episódios de insultos não está preenchido o tipo de crime de violência doméstica;
- A condenação do arguido por crimes de injúrias não é possível porque trata-se de crime particular e a assistente não deduziu acusação nem tão pouco acompanhou a acusação do Ministério Público;
- Face aos factos dados como provados não se verifica o requisito legal existência de particulares exigências de protecção da vítima para que o tribunal arbitrada a indemnização que foi peticionada.

1.4 Parecer do Ministério Público na Relação
Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aderindo às razões apresentadas na resposta do Ministério Público junto do tribunal recorrido.

2. Questões a decidir no recurso
Tal como está colocada a controvérsia em relação á sentença recorrida, as questões a decidir são as seguintes:
- Os factos não provados foram julgados correctamente ou devem antes ser dados como provados?
- Os factos preenchem o tipo de crime de violência doméstica e/ou também o de injúrias?
- Existem particulares exigências de protecção da vítima para que seja arbitrada indemnização à assistente?

3. Fundamentação
3.1. Erro de julgamento da matéria de facto.
3.1.1. Na sentença foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
Matéria de facto provada
Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte matéria de facto:
Da acusação pública:
a). A assistente C… e o arguido contraíram casamento no dia 17 de Junho de 2000.
b). Desse casamento nasceu, no dia 3 de Setembro de 2004, D….
c). Após o casamento, a ofendida e o arguido fixaram residência na Rua …, n." .., …, Santa Maria da Feira.
d). No dia 28 de Março de 2015, pelas 09:30 horas, no interior da residência do casal, mais propriamente do quarto do casal, na sequência de uma discussão de contornos não concretamente apurados, o arguido empurrou a ofendida e, de forma não determinada, com vista a retirar-lhe o telemóvel que aquela tinha na mão, atingiu-a com duas pancadas no tórax, logrando ficar na posse do mencionado telefone, interrompendo o telefonema que a mesma efectuava.
e). Como consequência directa e necessária, a ofendida C… sofreu dor torácica anterior, com os movimentos torácicos e, no tórax, equimose acastanhada na transição dos quadrantes superiores da região mamária esquerda, medindo quarenta por quarenta milímetros; equimose arroxeada no quadrante superoexterno da região mamária direita, medindo quarenta por vinte milímetros; lesões essas que lhe determinaram, como consequência directa e necessária, três dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
f). Em datas não concretamente apuradas, posteriores ao dia 27 de Março de 2015, seguramente mais do que uma vez, e no decurso das frequentes discussões entre o casal, o arguido apelidou a assistente de "puta" e disse-lhe: «Andas a mostrar-te aos homens!».
g). O arguido sabia que devia respeito e consideração à ofendida, sua mulher e mãe do seu filho, e que, actuando da forma descrita, lhe infligia dores no corpo e lesões físicas e ofendia a sua honra e consideração, não se coibindo de assim agir no interior da residência daquela.
h). O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Mais se provou com relevância para a determinação da sanção aplicável:
i). O arguido reconheceu quase integralmente os factos tidos por demonstrados.
j). À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais.
k). O casamento entre arguido e assistente foi dissolvido, por divórcio, por decisão transitada em julgado no dia 7 de Maio de 2015.
l). O arguido tem o 6.° ano de escolaridade e trabalha numa sociedade de exportação e importação de produtos sanitários, auferindo um vencimento de €665 mensais.
m). Vive sozinho, em casa arrendada, pela qual paga €200 mensais.
n). O arguido é proprietário de uma viatura automóvel, da marca "Toyota", modelo "…", do no de 1993.
Matéria de facto não provada
Da acusação pública:
1° No dia 25 de Março de 2015, no interior do veículo automóvel do casal, onde também se encontrava o filho D…, e porque a ofendida mexeu no botão do volume do rádio, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: "Tu és uma puta" e "Tu andas enfeitada com uns cornos há muito tempo e não queres ver".
2° No circunstancialismo descrito na alínea d) dos factos provados, o arguido empurrou a ofendida contra a cama, deu-lhe um soco no tórax e apertou-lhe o pescoço com ambas as mãos.
3° Desde o dia 28 de Março de 2015, e pelo menos até 15 de Abril de 2015, o arguido dirigiu várias vezes, no interior da residência de ambos, na presença do filho menor, e com uma frequência pelo menos diária, à sua mulher, as seguintes palavras: "Vou-te matar. Vou-te tirar o nosso filho. És uma galdéria, és uma grande puta. Andas a mostrar-te aos homens".
4° Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, e com a mesma frequência, o arguido dirigiu ao filho D… as palavras: "D…, olha para a tua mãe, tem mesmo cara de puta".
5° No dia 14 de Abril de 2015, pelas 21:30 horas, no interior da residência do casal, e na presença do menor D…, o arguido dirigiu à ofendida as palavras "Vou-te matar. Vou-te tirar o nosso filho. És uma galdéria, és uma grande puta. Andas a mostrar-te aos homens. Meto-te numa casa de putas para te mostrares aos homens".
6° Em seguida, quando a ofendida ia buscar o seu telemóvel, que estava na sala de estar, o arguido agarrou-a com bastante força nos braços e empurrou-a com violência contra o sofá, na sequência do que aquela caiu, magoando as costas.
7° Após, a ofendida refugiou-se em casa de uma vizinha, tendo o arguido seguido no seu encalço e tocado várias vezes à campainha, ordenando à sua mulher que fosse para casa.
8° Em data não concretamente apurada, entre os dias 28 de Março e 19 de Maio de 2015, o arguido deu uma pancada no automóvel da ofendida e dirigiu-lhe as palavras "Este carro vai para as cinzas, e tu vais junta com ele".
9° Nos dias 10 e 17 de Outubro de 2015, o arguido telefonou para o telemóvel do seu filho D… e dirigiu-lhe as seguintes palavras: "A tua mãe é uma puta", "A tua mãe é uma galdéria", "A mama vai acabar", "Vou-te tirar à tua mãe", "Olha, D…, a tua mãe a mulher que eu mais amei na vida, mas agora é quem mais odeio, e se a apanho na rua mato-a".
10° O arguido sabia que, actuando da forma descrita, causava à ofendida sofrimento psicológico e físico, que se traduziu em provocar nela humilhação, medo e inquietação e de a molestar fisicamente, atentando assim contra a dignidade desta enquanto pessoa e mulher, atentando contra a sua saúde física, psíquica, emocional e moral, perturbando a sua tranquilidade no lar e na presença do filho, menor de idade.
Da contestação do arguido:
(com pertinência para a decisão e excluindo a matéria de mera impugnação)
11° Sucede que, em Março e Abril de 2015, meses que antecederam o divórcio por mútuo consentimento entre ambos decretado em Maio de 2015, a ofendida passou a provocar sistematicamente o arguido quer dirigindo-lhe insultos directamente, quer em conversas telefónicas com as amigas referindo-se ao arguido, como" o cornito está aqui".
12° Os insultos eram quase permanentes pela ofendida ao arguido, que conseguia transformar uma qualquer situação banal do quotidiano numa discussão com insultos mútuos.
13° Pelo que, o arguido viu-se obrigado a sair de casa da morada de família e foi viver com os pais da ofendida a convite destes.
14° Tal situação não foi bem recebida pela ofendida.
15° Acresce que, a ofendida frequentemente insultava a mãe do aqui arguido, dizendo que a mãe dele era uma bruxa, puta e uma vaca, que ele tinha de escolher ou ela ou a mãe, aliás, a ofendida proibiu todo e qualquer contacto entre a avó paterna e o neto. 16° Nos meses que antecederam o divórcio, a ofendida várias vezes ameaçou o arguido que lhe ia tirar o filho, que nunca mais este iria pôr-lhe a vista em cima, mais dizia que ainda ia ter um Mercedes à custa dele.

3.1.2. Consta na sentença a seguinte motivação do julgamento da matéria de facto (transcrição):
Motivação da matéria de facto:
A decisão teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, nomeadamente:
No que respeita à relação que entre arguido e ofendida intercedia, a data do seu término e a existência de um filho do casal, o teor das certidões emitidas pela Conservatória do Registo Civil de Santa Maria da Feira, juntas de folhas 149 a 150 e 151 a 152.
Quanto à demais factualidade, desde logo teve-se em consideração, as declarações do próprio arguido, o qual, não obstante repudiar a veracidade dos factos que lhe eram imputados, acabou por reconhecer que, na situação factual tida por demonstrada, retirou à força o telemóvel da mão da ofendida, admitindo como possível que, no processo, lhe pudesse ter batido no peito e até causado lesões físicas. Mais admitiu o arguido que, pelo menos, uma vez apelidou a assistente de "puta", muito embora afirmasse ter sido na sequência de um primeiro insulto por parte daquela.
Por outro lado, a dinâmica relatada pelo arguido, no que ao episódio da demonstrada agressão física concerne, era inteiramente compatível com as lesões que a assistente veio a patentear e que se mostram descritas no relatório da perícia médico-legal realizada pelo Gabinete médico-legal e forense de Entre o Douro e Vouga, E.P.E. do Instituto Nacional de Medicina Legal, junto de folhas 25 a 27 (duas equimoses no peito) e nos registos clínicos emitidos pelo Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, E.P.E., juntos a folhas 49.
No mais, das declarações do arguido, perpassou uma clara personalidade irritável, alguma instabilidade - por vezes com um discurso mesmo persecutório ("Ela estava sempre a prejudicar-me e a sacanear-me!") - e uma visão algo sexista e preconceituosa do papel da mulher ("Ela deixou de ser a minha mulher e começou a passar a vida em casa das amigas e ao telemóvel!").
Já no que tange à demais factualidade tida por demonstrada, ou seja, quanto aos insultos dirigidos pelo arguido à ofendida, foram determinantes os depoimentos das testemunhas E…, F… e G…, com especial relevância para a primeira, porque se afigurou ser o depoimento a que foi possível reconhecer uma maior credibilidade e isenção.
Com efeito, a testemunha E…, vizinha do lado da então casa de morada de família, evidenciando algum constrangimento com a situação e até uma certa recriminação do arguido, de modo que se afigurou patentemente isento e sincero, porque relatando apenas o que tinha seguro na memória, sem qualquer empolamento ou subjectividade, narrou como, na data da referida agressão, foi alertada pela outra vizinha (a testemunha F…) do sucedido e logo se dirigiu à residência do casal, onde pôde percepcionar o desalinho em que se encontrava a assistente e as marcas que a mesma tinha no peito (referindo não ter qualquer recordação de marcas no pescoço). Mais transmitiu a depoente que, a partir de tal data (e não antes), começaram a ser frequentes as discussões entre o casal, as quais ouvia na sua habitação (para além de contígua, como a construção do prédio é de qualidade inferior, é diminuta a insonorização entre as fracções) e que continham os insultos tidos por provados, sendo certo que a testemunha, na presente data, apenas já se recordava de parte dos epítetos dirigidos pelo arguido à ofendida mas, quando confrontada com as declarações por si prestadas em sede de inquérito (cfr. folhas 54), segura e frontalmente asseverou que, não obstante não ter hoje tal recordação, quando prestou aquele depoimento perante a Guarda Nacional Republicana, tinha naturalmente mais vívidos os eventos e, como tal, afiançou corresponder à verdade o que então transmitiu.
Já a testemunha F…, vizinha da habitação localizada no piso inferior à então casa de arguido e assistente, apresentou um depoimento algo comprometido com a estreita relação de amizade que visivelmente a une à assistente, pautado por claras interferências do que aquela lhe teria transmitido em confidência e não ao que teria presenciado efectivamente, assumindo-se e revelando-se incompatibilizada com o arguido. Ainda assim, foi possível reconhecer alguma credibilidade à depoente, em especial, quanto ao teor das frequentes discussões entre o casal que ouvia na sua habitação (muito embora tenha ficado a convicção que a depoente ouviu menos do que aquilo que transmitiu, não só porque se afigurou algo incredível a verbalizada capacidade auditiva mas também pelo decalque que foi possível reconhecer, em alguns pontos, no seu relato e no da assistente), já que a mesma revelou, de modo aparentemente sincero e espontâneo, a intranquilidade que tal situação lhe trouxe ("muito barulho, muita confusão"). Já no que respeita à situação da agressão física, a narrativa da depoente não se afigurou inteiramente verosímil, não só quanto ao que teria ouvido, no momento que a antecedeu e no seu decurso (já que, uma vez mais, se teve por inaudita uma tal capacidade auditiva, revelando-se ainda inconsistentes e inacreditáveis os ruídos supostamente gerados, sendo ainda de salientar que a dinâmica que se extrairia de tal relato era incompatível com a versão da própria ofendida e seu filho), como também quanto às lesões que, após, teria percepcionado no corpo da assistente ("toda negra no peito, um lanho ao lado da mama esquerda"), manifestamente exacerbadas e sem qualquer correspondência com teor dos aludidos registos clínicos e relatório pericial.
A testemunha G…, tia e madrinha da assistente, evidenciando também alguma parcialidade decorrente da estreita relação de proximidade existencial com a sua sobrinha e do nítido antagonismo para com o arguido, revelou que apenas tinha assistido a uma discussão entre o casal, no decurso da qual o arguido teria insultado a assistente, relato que se teve como credível pela espontaneidade da depoente, que verbalizou com naturalidade não só aqueles insultos, mas também os impropérios com que a própria testemunha logo retorquiu ao arguido, bem como aqueles que a assistente também lhe dirigiu em resposta (facto que, como infra se expenderá, suportou parcialmente a constatação da inverosimilhança das declarações da assistente, segundo a qual, nunca teria sequer respondido às provocações e insultos do arguido e nunca lhe teria dirigido qualquer adjectivação menos correcta).
Por seu turno, não foi possível reconhecer qualquer credibilidade às declarações prestadas pela assistente C… e ao depoimento do seu filho, a testemunha D….
Na verdade, as declarações da assistente afiguraram-se notoriamente tendenciosas, querendo fazer crer que o arguido tinha um comportamento irrascível e imprevisível (muito embora quando directamente questionada para, por exemplo, concretizar a transmitida instabilidade, apenas referisse que o mesmo estava sempre a ir fumar à varanda!) e que recorrentemente a achincalhava, vilipendiava e contra era vociferava, sem qualquer provocação ou mesmo sem qualquer resposta da própria (o que frontalmente foi infirmado pelos depoimentos da testemunha E… - que relatou que os berros que ouvia eram de ambos, referindo até ser mais audível os da assistente - e da testemunha G… - que narrou como, na descrita discussão, a assistente retorquiu igualmente com insultos assaz graves -, sendo ainda certo que, da forma como decorreram as declarações da assistente, também foi possível antever que a mesma não era uma pessoa calma, nem tinha a estabilidade que quis transmitir), evidenciando ainda um claro exacerbamento em todo o seu relato (nalguns pontos mesmo notoriamente inacreditável, à luz da mais elementar razoabilidade, utilizando deliberadamente expressões graves para empolar factos inócuos - por exemplo, dizendo: «Agarra no D… por um braço e espeta-o no quarto!», unicamente para relatar que o Pai o teria conduzido para o quarto aquando a discussão entre o casal - e, em especial no que concerne à demonstrada agressão, patentemente incompatível com as lesões físicas que a mesma veio depois a patentear, as quais não traduziam minimamente a descrita selvática investida) e, mais importante, faltando claramente à verdade dos factos com o propósito de sustentar a sua versão (a assistente, querendo reforçar que, na situação que estava descrita no libelo acusatório como tendo acontecido no dia 14 de Abril, se tinha magoado nas costas porque tinha embatido num friso em madeira do sofá, contra o qual teria sido projectada pelo arguido, confrontada com o acolchoado desse mesmo sofá, patente na fotografia número um, junta a folhas 229, negou a correspondência de tal móvel, repudiando igualmente que a restante mobília aí retratada fosse a da sua então casa; correspondência que ficou, sem qualquer margem para dúvidas, afirmada, não só pelo simples confronto daquela fotografia com as fotografias números dois, três, quatro e cinco, juntas, pela própria, de folhas 229 a 231, das quais se percebe claramente tratar-se do mesmo sofá e restante mobiliário e adornos, como também pelo depoimento das testemunhas supra identificadas, as quais confirmaram tratar-se da mobília e recheio da sala da casa de morada de família).
De igual modo, o depoimento da testemunha D…, filho de arguido e assistente, revelou pouquíssima credibilidade e verosimilhança.
Efectivamente, não se descurando o injusto papel que lhe foi imposto, tanto mais quando considerada a sua jovem idade (apenas onze anos), foi evidente estarmos perante uma clara situação de alienação parental, com um nítido antagonismo pelo progenitor, reproduzindo o menor, quase ipsis verbis, o relato da sua progenitora, utilizando as mesmíssimas expressões e utilizando expressões pouco normais num discurso de alguém com a sua idade ("bateu-lhe na caixa torácica"), demonstrando-se avesso a qualquer pedido de esclarecimento, querendo à viva força relatar os factos talqualmente os havia notoriamente exercitado (sendo expressiva a circunstância de inicialmente negar que tinha falado com a sua progenitora antes de vir prestar depoimento e sobre esse mesmo depoimento, para depois o confessar), mesmo antes de, para tanto, ser questionado, narrando ademais alguns factos que manifestamente não poderia ter visto ou ouvido.
A testemunha H…, colega de trabalho do arguido, apenas presenciou uma situação ocorrida já depois da separação do casal em que o arguido tentou ir buscar alguns bens e mobiliário à residência do casal (e, por tal motivo, pediu o auxílio do depoente) e foi impedido, desse propósito, pela assistente, a qual, de acordo com o depoente, insultou o arguido.
O conhecimento da testemunha I…, amigo e colega de trabalho do arguido, apenas se fundava no que aquele lhe teria relatado.
Por último, as testemunhas J…, K… e L…, todos eles militares da Guarda Nacional Republicana em funções no Posto Territorial de …, não tinham conhecimento directo de qualquer um dos factos descritos na acusação pública, apenas tendo tido contacto com os sujeitos processuais em situações pontuais, traduzindo o que então se puderam aperceber da (má) relação entre ambos.
Assim, a testemunha J…, relatou que apenas se deslocou à residência do casal já depois da sua separação e a propósito de um diferendo entre arguido e assistente por causa da falta de autorização da primeira para o segundo retirar alguns bens daquela habitação, referindo não ter presenciado qualquer discussão, nem lhe ter sido participada qualquer notícia de agressão, ameaça ou insulto.
A testemunha K…, autor do "aditamento" de folhas 141 a 142, apenas recebeu verbalmente da assistente a denúncia dos factos vertidos naquele auto, referindo não ter memória de lhe ter sido exibido o telefone em causa, esclarecendo que, pelo teor do aí consignado, não lhe teria sido mostrado o telemóvel; verbalizando ainda que ficou convicto, pela postura da assistente (não só naquele contacto mas de outros contactos que teve com o casal, nas diversas deslocações de ambos ao Posto e dos Militares à sua residência), que a situação se reconduziria a um mero diferendo entre arguido e assistente quanto aos moldes da separação do casal, mormente quanto à divisão dos bens.
A testemunha L…, autor do auto de notícia de folhas 3 a 4 e que se deslocou à residência do casal na data da agressão física tida por demonstrada, relatou que ainda percepcionou uma acesa discussão entre o casal quando aí chegou, revelando não ter uma memória vívida do que então teria percepcionado.
Quanto às condições pessoais do arguido foram consideradas as suas próprias declarações e quanto à ausência de antecedentes criminais o teor do certificado do registo criminal junta a folhas 147.
Resta dizer que, quanto à factualidade tida por não demonstrada, assim o resultou pela circunstância de, quanto à mesma, não ter sido produzida prova suficientemente consistente e credível, em especial pelo facto de a mesma apenas ter sido referida pela assistente C… e pela testemunha D…, aos quais não foi possível reconhecer qualquer consistência e verosimilhança nos moldes sobreditos.
Por outro lado, se é certo que a testemunha F… fez efectivamente referência a um episódio similar ao vertido sob o ponto 7.° dos factos não provados, a mesma repudiou que tal tivesse acontecido após qualquer situação de agressão, referindo tão somente que a assistente se encontraria em sua casa a "desabafar".
Por último, visto o teor das mensagens juntas de folhas 225 a 228, as mesmas afiguram-se patentemente inócuas.
Assim sendo, na ausência de uma prova testemunhal credível, certo que os documentos juntos não possuem tal virtualidade, não foi possível apurar mais nenhum facto para além daqueles que resultaram provados e não obstante não se tenham também reputado como inteiramente sinceras as declarações prestadas pelo arguido, a dúvida instalada e inultrapassável sempre teria de o beneficiar em obediência às mais elementares regras de processo penal.

3.1.3. Análise da impugnação da matéria de facto
Este fundamento de recurso está regulado nos artigos 412º nºs 3, 4 e 6 e 431º al. b), do Código de Processo Penal (CPP). A assistente identificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que no seu entender impõem decisão diferente da recorrida, referenciadas à sua localização no registo áudio.
Vamos analisar cada um dos segmentos da decisão matéria de facto impugnada. Antes disso, porém, importa referir algumas premissas que norteiam essa análise.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a certos princípios que a lei estabeleceu para garantir ao máximo possível que se descobre a verdade histórica e se chega a uma decisão justa. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que assegura uma relação directa de contacto pessoal e presença física entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada. Na segunda instância, diferentemente, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso e outras que se tenham por relevantes, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova.
Em regra, portanto, a avaliação imediata e integral da prova em primeira instância obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se descobrir a verdade, do que a avaliação, meramente parcial, feita com base na audição ou visualização dos registos de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, como sucede na Relação. Esta diferença de procedimento justifica o princípio de que a reapreciação da prova em recurso não equivale a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição constitucionalmente garantido não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas a possibilidade de fiscalizar e controlar eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial das provas relevantes. A Relação não “julga outra vez”, limita-se a verificar se o tribunal recorrido “julgou bem”; não sobrepõe a sua convicção à convicção do tribunal recorrido, verifica apenas se a essa convicção tem apoio nas provas. Entender o contrário equivaleria a considerar que o legislador teria instituído um sistema ilógico, autorizando uma avaliação sucessiva das provas em dois momentos, mas com ferramentas diferentes, em que, incoerentemente, a decisão final caberia não à instância que avaliou com imediação toda a prova mas sim àquela que apenas a avaliou de forma mediata e parcial e está, por isso, menos apetrechada com os instrumentos necessários para reproduzir a verdade histórica do facto sujeito a julgamento.
Não podemos perder de vista também que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º. Isso é válido tanto para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação. Esse princípio coloca a generalidade das provas no mesmo patamar de importância e confere ao juiz uma margem de discricionariedade para as valorar, em vez de o sujeitar a um sistema de provas com importância tarifada e hierarquizada. Mas, como é evidente, discricionariedade não é arbítrio. O exame crítico da prova está vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. A fundamentação da decisão tem de explicitar o percurso intelectual desse exame crítico e do processo lógico-dedutivo que permitiu partir da prova (premissa) para o facto (conclusão), em que o juiz revela as razões porque acreditou numa certa reconstituição histórica plausível do facto e não noutra. Sendo assim, para que haja erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso, é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é implausível face às provas, ou então que existem outras hipóteses de verdade também plausíveis que desmentem o facto provado ou o tornam duvidoso.
Procedemos à audição do registo integral das declarações do arguido e dos depoimentos da assistente e testemunhas. É pois o momento de verificar as objecções da assistente quanto à matéria de facto não provada à luz dos aludidos princípios.
Os factos que a decisão recorrida julgou não provados e que a assistente entende que se provaram são os seguintes:
- No dia 25 de Março de 2015, no interior do veículo automóvel do casal, onde também se encontrava o filho D…, e porque a ofendida mexeu no botão do volume do rádio, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: "tu és uma puta" e "tu andas enfeitada com uns cornos há muito tempo e não queres ver" (facto não provado nº 1).
- No circunstancialismo descrito na alínea d) dos factos provados, o arguido empurrou a ofendida contra a cama, deu-lhe um soco no tórax e apertou-lhe o pescoço com ambas as mãos (facto não provado nº 2).
- No dia 14 de Abril de 2015, pelas 21:30 horas, no interior da residência do casal, e na presença do menor D…, o arguido disse à ofendida as palavras “és uma galdéria”, “és uma grande puta” e “meto-te numa casa de putas " (parte do facto não provado nº 5).
- Procedeu de tal modo quando a ofendida ia buscar o seu telemóvel à sala e, de seguida” agarrou-a com força nos braços e empurrou-a contra o sofá, na sequência do que aquela caiu, magoando as costas (parte do facto não provado nº 6).
- Em data não concretamente apurada, entre os dias 28 de Março e 19 de Maio de 2015, o arguido deu uma pancada no automóvel da ofendida e dirigiu-lhe as palavras "este carro vai para as cinzas, e tu vais junta com ele" (facto não provado nº 8).
- O arguido sabia que, actuando da forma descrita, causava à ofendida sofrimento psicológico e físico, que se traduziu em provocar nela humilhação, medo e inquietação e de a molestar fisicamente, atentando assim contra a dignidade desta enquanto pessoa e mulher, atentando contra a sua saúde física, psíquica, emocional e moral, perturbando a sua tranquilidade no lar e na presença do filho, menor de idade (facto não provado nº 10).
Ainda antes de analisarmos estes segmentos da matéria de facto impugnada, há que verificar se existem razões válidas para considerar que os depoimentos da assistente e do menor D… não merecem, respectivamente, “qualquer credibilidade” ou mais do que “pouquíssima credibilidade”, como se afirma na sentença recorrida.
Como dissemos atrás, o tribunal recorrido está em melhor posição para fazer esta avaliação, dado que os depoimentos foram prestados na sua presença e teve possibilidade de apreender directamente as manifestações gestuais ou faciais que normalmente acompanham a oralidade mas não ficam registadas na gravação áudio. Contudo, embora respeitando esses pressupostos, a nossa avaliação não pode deixar de verificar se as conclusões extraídas dos depoimentos e vertidas na sentença se adequam à impressão que retirámos da audição dos depoimentos – que inclui tanto as respostas como o modo de condução da inquirição – e às regras da experiência que devem nortear a livre apreciação da prova.
Na sentença afirma-se que a assistente foi notoriamente tendenciosa, omitindo ter provocado ou participado nos insultos, exacerbando o relato dos actos imputados ao arguido e chegando a faltar à verdade. Olhando para os aspectos que em concreto justificam tal adjectivação, não a temos como inteiramente fundada. Na sentença qualificou-se o arguido como uma pessoa com personalidade irritável, algo instável e mesmo com um discurso persecutório e visão sexista e preconceituosa da mulher. Isso de facto nota-se ao longo das suas declarações, pois embora tivesse procurado manter um registo de tranquilidade e de alheamento, deixou antever essas características de personalidade notadas pela Sra. Juiz. Sendo assim, pensamos não poder concluir-se que o depoimento da assistente foi tendencioso, só por querer fazer acreditar que o arguido era uma pessoa irrascível e imprevisível, ao mesmo tempo que se reconhecem essas características como verdadeiras.
Por outro lado, com base nas regras da experiência, em discussões como aquelas que analisamos raramente os insultos e exaltação não são comuns aos dois intervenientes – o no caso foi até confirmado pela testemunha E…. Por isso, temos como certo que a assistente participava activamente nos conflitos verbais com o arguido, muito embora ela o tivesse negado. Parece-nos no entanto exagerada a conclusão de que ao não referir isso a assistente revelou um comportamento tendencioso ao ponto de minar toda a sua credibilidade.
A Sra. Juiz ilustrou a impressão de exacerbamento do depoimento com segmentos que considerou como empolamento de factos inócuos. Por exemplo, ao dizer que o arguido agarrou o filho por um braço e o espetou no quarto, quando o que se passou foi que se limitou a conduzir o filho para o quarto aquando da discussão entre o casal. Mas, perguntamos nós, qual é a versão mais verosímil, tendo em conta que o arguido estava a agredir a assistente e que esta gritava, ao ponto de acordar o menor e de alertar a vizinha? Numa discussão dessa natureza, em que é evidente o estado de grande exaltação, é mais provável o arguido ter-se limitado a conduzir calmamente o menor para o quarto – como ele quis fazer crer – ou ter “espetado” com ele no quarto, como disse a assistente – entendida esta expressão no seu sentido comum, de o ter tirado dali com brusquidão e rapidez? Também no que respeita à agressão, que a assistente descreveu (adiante vermos em pormenor se o fez com exagero) remetendo até por mais de uma vez para o exame médico, não vemos como se possa concluir que quis exacerbar o seu relato para fazer crer que se tratou de uma “selvática investida”, como dito na sentença. A assistente nunca usou essa expressão a descrição que fez dos factos também não a consente.
Concordamos com a afirmação feita na sentença de que a assistente faltou à verdade num aspecto do seu depoimento, ao negar que o sofá da foto nº 1 de fls. 229 é o mesmo que aparece nas restantes fotos. Na nossa interpretação, como num primeiro momento a assistente tinha referido que se aleijou quando foi empurrada contra o sofá e que este tinha um friso em madeira nas costas acolchoadas, ao ser confrontada com a fotografia, onde se percebe que essa descrição não é correcta, para que o seu depoimento não fosse desacreditado, quis manter o que tinha dito antes, sem se aperceber que ao fazê-lo estava a causar o descrédito que queria evitar. Adiante veremos a relevância deste aspecto em conjunto com outros na avaliação da veracidade dos factos da acusação em relação a este acontecimento.
Não há depoimentos de vítimas de crimes absolutamente imparciais e imunes à contaminação pelos sentimentos. Por definição a vítima tem no processo um interesse pessoal antagónico ao da pessoa acusada, sobretudo quando estão em casa agressões físicas praticadas num contexto de conflitualidade familiar que levou uma relação duradoura ao desfecho da separação. Não se pode exigir a uma pessoa que se dispa dos seus sentimentos e memórias quando revive uma situação traumatizante em tribunal e em frente do agressor. É também preciso ter em conta que as pessoas não são todas iguais, não têm todas a mesma instrução e educação, a mesma capacidade de compreender as perguntas e de se expressar verbalmente. Há pessoas que falam mais alto, que são menos pacientes e que tendem até a exagerar nessas atitudes quando são interrompidas ou quando lhes parece que não estão a merecer credibilidade. Depois, também não se pode ignorar que nenhum depoimento é totalmente espontâneo. As pessoas sabem que vão a tribunal e sobre o que vão falar, têm os seus próprios estereótipos sobre o que é uma audiência, querem dizer o que sabem, querem que acreditem nelas e preparam-se mentalmente para isso. Não é raro que alguém, mesmo estando a depor com verdade sobre os factos essenciais, tenda a exagerar no relato dos elementos circunstanciais para reforçar a sua credibilidade, ou até que chegue a mentir ou entrar em contradições quando sente que a sua honestidade está a ser objecto de dúvida ou é questionada de forma mais veemente. Todos estes aspectos têm de ser tidos em conta quando se analisa um depoimento e quando se avalia a sua credibilidade. Mais importante do que rotular um depoente com os adjectivos da credibilidade ou da falta dela, é avaliar se o que é dito é verosímil e se tem corroboração noutros meios de prova; isto é, a credibilidade deve aferir-se mais em função do conteúdo do que da forma do depoimento.
Pensamos não haver fundamento para dizer que o depoimento da assistente não merece qualquer credibilidade. Avaliação que, de resto, contém ela própria sinais de alguma contradição, na medida em que também houve matéria que se deu como provada com base nesse depoimento. Mas, independentemente disso, não encontramos nem na forma nem na substância do depoimento elementos de tal maneira cruciais que nos levem a subscrever aquela conclusão. Até porque, como veremos mais à frente, alguns factos relatados pela assistente foram dados como não provados mas a nosso ver têm corroboração suficiente noutras provas.
No que respeita ao depoimento da testemunha D…, o tribunal considerou-o de pouquíssima credibilidade e verosimilhança, com base na conclusão de que se trata de um caso de “alienação parental” e de antagonismo provocado em relação ao pai. Não retirámos desse depoimento uma impressão tão fulminante que permita invalidar a sua credibilidade.
A testemunha tinha 11 anos de idade. Evidentemente que conhece os motivos da separação dos pais e que os experiencia penosamente. Por viver com a mãe e ter algum afastamento em relação ao pai é muito natural que também se coloque de certa maneira na posição de vítima e ao lado da mãe. Por mais que o tribunal se esforce para a colocar à vontade, é absolutamente normal que uma criança daquela idade fique ansiosa e nervosa. O ambiente do tribunal é de certa maneira atemorizante e podemos imaginar o que pensa uma criança que entra naquele espaço de formalidade e solenidade. A opção – que não nos compete questionar – de conduzir um depoimento com interrupções frequentes para esclarecer os pormenores que iam surgindo, em vez de o deixar correr fluidamente até ao fim e guardar para depois esses esclarecimentos, acabou a nosso ver por perturbar ainda mais a testemunha. Essa perturbação tornou-se particularmente evidente quando, a propósito de ter ou não falado com a mãe sobre o que haveria de dizer, se deram sinais de dúvida sobre o que estava dizer com expressões como “tens a certeza?” ou “diz a verdade!”.
Não nos parece estranho que o depoimento da testemunha reproduzisse o relato que a sua mãe viria fazer depois. Não acreditamos e pensamos que ninguém acredita que uma mãe não procure explicar ao filho de 11 anos de idade o que vai fazer em tribunal e que não procure ter a certeza de que ele sabe o que vai dizer. Por isso, o facto de o menor ter procurado “contar a sua história” e de procurar fazê-lo de acordo com o guião que tinha preparado não significa necessariamente que esteja a mentir de uma ponta à outra do depoimento. Na nossa avaliação, dizer-se que o menor se mostrou avesso a qualquer pedido de esclarecimento é exagerado. O que aconteceu foi que se impacientou com as interrupções que muitas vezes não o deixavam chegar com uma frase ao fim e que contrariavam o seu plano de dizer aquilo para que se tinha preparado mentalmente. Poderá mesmo ter pensado que não ia ter essa oportunidade e sentido frustração por isso. Nessas circunstâncias o tribunal deve saber destrinçar o que é credível e resulta da vivência directa daquilo que possa ter sido sugerido ou incutido pela mãe, não apenas pela forma do depoimento mas sobretudo pela sua substância.
Tirando aquela questão de o menor ter ou não falado previamente com a mãe, o que ele acabou por admitir mas que a nosso ver era desnecessário ter esmiuçado com tanta insistência e com prejuízo para a espontaneidade do depoimento, não se encontram inconsistências ou contradições relevantes no depoimento. O menor queria “contar a sua história”, contou-a de maneira parecida com o que fez a mãe, admitimos que com a memória avivada previamente por ela, mas para nós o que deve relevar é se essa “história” tem sentido e se é corroborada por outras provas.
Vamos então ver em concreto ponto a ponto se procede este fundamento de recurso.
Quanto ao primeiro facto controvertido, terá ocorrido no dia 25 de Março e consistido num insulto dentro do automóvel. O facto foi dado como não provado por não ter havido outra prova de suporte para além dos depoimentos da assistente e da testemunha D…, que a Sra. Juiz considerou não credíveis pelas razões referidas.
A assistente disse: ia dentro do carro e eu por mexer nos botões do carro, ele começou logo a insultar dizendo “que eu era uma puta, que era isto, que andava com os cornos espetados e que nem os podia ver”. A testemunha D… disse resumidamente que uma vez a mãe estava a mexer no rádio do carro e o pai começou a insultá-la, tendo a mãe ficado chateada mas não disse nada. Este episódio faz parte dos denunciados pela assistente à polícia, referenciado ao dia em causa, como consta no auto de notícia de fls. 3.
O arguido negou esta imputação de forma vaga e evasiva. No entanto, resulta de várias passagens das suas declarações que existiram várias situações de confronto entre ele e a assistente e a admissão implícita de que houve insultos da sua parte. Quando perguntado sobre agressões, respondeu “agressões? mais até verbais!” e mais adiante, referindo-se a insultos, respondeu “frontalmente nunca lhe disse nada sem motivo!”. Para além disso, como resultou dos depoimentos das testemunhas J…, K… e L…, militares da GNR, eram comuns os confrontos emergentes da má relação no casal e a apresentação de denúncias e presença da polícia. Tudo isso nos diz que as vezes em que o arguido dirigiu palavras daquelas à assistente foram mais que as que se provaram.
Ora, neste contexto, perguntamos nós, que razão séria existe para dizer que não é verdadeiro este relato da assistente, corroborado pelo seu filho? O confronto era permanente. Já se provou que noutros momentos o arguido chegou a agredir a assistente e a insultá-la. Ele próprio deu a entender que havia da sua parte agressões verbais e que nunca insultou sem motivo. O arguido era uma pessoa com personalidade problemática. Caso se tratasse de uma denúncia “inventada” pela assistente, então seria normal que os factos denunciados fossem de maior gravidade, pois a intenção persecutória que estaria por trás dessa atitude seria mais facilmente concretizada.
Sendo assim, face ao depoimento da assistente, a única forma de dar este facto como não provado não é dizendo que há uma dúvida mas sim afirmando que ela fez uma denúncia falsa contra o arguido, que faltou à verdade em julgamento e que disse ao filho para mentir. Na nossa interpretação da prova não tem sentido levantar essa hipótese e como tal consideramos que este facto se provou.
No que respeita ao segundo facto controvertido, o tribunal deu como provado que na sequência de uma discussão o arguido empurrou a assistente e de forma não determinada, a atingiu com duas pancadas no tórax, para lhe tirar o telemóvel. Mas não deu como provado que o empurrão tivesse sido contra a cama, que tivesse sido desferido um soco no tórax e que lhe tivesse apertado o pescoço com ambas as mãos. O critério do tribunal foi o de dar relevância aos depoimentos da assistente e do filho apenas na parte que considerou corroborada pelo exame médico-legal. Pensamos que a análise da prova não consente esta aceitação restritiva da veracidade dos depoimentos. Fica-nos, aliás, a dúvida sobre a razoabilidade de cindir um depoimento considerando que é credível na parte em que se refere a pancadas mas já não é quando chama a essas pancadas um murro ou quando se refere também a um apertão de pescoço.
Na ficha de admissão da assistente no hospital (fls. 49) consta que ela se queixava de dores por ter sido empurrada contra a parede e cama, socada no tórax e de tentativa de estrangulamento. Na avaliação feita pelos médicos ficou a constar que a assistente manifestava dores no tórax e apresentava equimoses, dores cervicais, dor na deglutição e na palpação no pescoço. Fez RX à cervical, dorso e tórax. O relatório pericial do IML não constatou as lesões no pescoço mas deu como certo o que consta no referido documento hospitalar.
A assistente relatou os factos de forma semelhante ao que consta na acusação. O seu depoimento foi corroborado pelo do filho, que disse que foi ao quarto quando ouviu a mãe aos gritos e viu o pai bater na mãe. A testemunha E… viu-lhe hematomas no peito mas não se recordava se também tinha no pescoço. A testemunha F… ouviu o barulho de discussão e depois um grande estrondo. Daí a pouco apareceu a assistente na sua casa, toda desalinhada, com roupa de dormir e com marcas e hematomas no peito. A testemunha G… soube da agressão, encontrou-se com a assistente e viu-lhe marcas no pescoço e no peito.
O arguido admitiu que foi tirar o telemóvel à assistente à força, que esteve em cima dela e lhe bateu com o cotovelo no peito, mas não que tivesse dado murros ou apertado o pescoço. Mas as mensagens de telemóvel que mandou posteriormente à assistente (fls. 125 a 228) confirmam que ele a agrediu em alguma ocasião. À mensagem “quem ama não bate” ele respondeu “nunca pensei fazer isso”, “nem sei como aconteceu” e “arrependo-me do mal que te fiz”.
O tribunal desvalorizou o depoimento da assistente pelas razões referidas. Não mencionou o depoimento da testemunha G… que viu marcas no pescoço e peito da ofendida. Sobre o depoimento da testemunha F…, afirmou que exacerbou a descrição das lesões ao dizer que a assistente estava toda negra no peito e tinha um lanho ao lado da mama esquerda, o que não é compatível com o exame médico e a documentação hospitalar. Não vemos porquê. Estar negra e ter um lanho no peito são formas comuns de designar as equimoses no tórax que estão anotadas na ficha de admissão no hospital.
A menos que houvesse razão para afirmar que a assistente foi ao hospital queixar-se de dores que não tinha e que conseguiu enganar os médicos e as pessoas que a viram nesse dia, não pode haver dúvida de que a agressão ocorreu da forma descrita na acusação. O que o arguido admitiu ter feito não é suficiente para as marcas que a assistente apresentava e que incluíam lesões no pescoço à entrada do hospital e vistas por testemunhas. Apenas não se pode dar como provado que o apertão no pescoço foi com as duas mãos porque se o arguido estava a tentar tirar o telemóvel à força isso indica que uma das mãos estaria ocupada com esse gesto e a outra foi usada para apertar o pescoço e diminuir a resistência da assistente.
Quanto ao terceiro e quarto facto controvertidos, que se referem a insultos e a um empurrão contra o sofá noutra ocasião, o tribunal deu tudo como não provado. Considerou que o depoimento da assistente não foi credível porque foi apanhada a mentir quanto às fotos do sofá.
A assistente disse em suma que o filho estava no banho e que o arguido começou a insultá-la, dizendo que ela tinha cara de puta e ia espetar com ela numa casa de putas. Então quando a assistente foi à sala buscar o telefone, ele empurrou-a contra o sofá, onde bateu com as costas na parte dura de madeira. Foi à polícia nessa noite com o filho de pijama. A testemunha D… disse no essencial que um dia estava a tomar banho com aporta aberta e viu o pai atirar a mãe contra o sofá e depois ouviu-o dizer “a tua mãe é uma puta”.
O arguido negou este episódio.
Nesta parte concordamos com a sentença quando refere que a prova destes factos não é suficientemente convincente. Esta situação foi denunciada pela assistente à polícia na tarde do dia seguinte (auto de fls. 30) e não, como afirmado por ela, nessa noite acompanhada pelo filho vestido apenas com o pijama. Este pormenor é importante porque revela uma grande incongruência num aspecto que dificilmente a assistente esqueceria. Por outro lado, como detectado pela Sra. Juiz, ao ser confrontada com uma inconsistência no seu depoimento, na medida em que não se percebia como é que podia aleijar-se nas costas batendo num sofá acolchoado, a assistente não falou a verdade e procurou iludir o tribunal sobre as características desse móvel, mesmo quando confrontada com a evidência das fotografias. Acresce que em relação a estes factos não existe qualquer elemento de prova corroborante, pois a perícia médico-legal feita dois dias depois foi inconclusiva por ausência de sinais de lesões.
Neste caso a existência de elementos de contradição directa com o depoimento da assistente – a ida à GNR e a semelhança do sofá – e a inexistência de outra prova corroborante, para além do depoimento um pouco vago do filho, impedem que se possam ter como provados estes factos.
No que diz respeito ao quinto facto controvertido, de que o arguido dirigiu à assistente as palavras “este carro vai para cinzas e tu vais junto com ele”, as razões porque o tribunal não o considerou provado são apenas aquelas referidas à falta de credibilidade do depoimento da assistente em tudo o que não está acompanhado por outra prova corroborante.
Pensamos que esta decisão não está certa. Referindo-se aos conflitos naquele período, a assistente disse: “mandou dois murros no meu carro e disse este carro vai para cinzas e tu vais junto com ele”. Nenhum esclarecimento lhe foi perguntado sobre este facto. Ao arguido também não foi perguntado se disse isto.
Temos quanto a este facto uma posição idêntica em relação à que manifestamos sobre o primeiro. Há prova abundante sobre os conflitos e insultos. Não acolhemos a conclusão de que o depoimento da assistente não merece credibilidade senão nos segmentos em que foi corroborado por outras provas. Também não nos parece razoável considerar que se a assistente decidisse “inventar” factos falsos contra o arguido não o fizesse com a imputação de factos mais graves do que estas expressões que no contexto geral dos acontecimentos nem sequer assumem grande relevância. Consideramos portanto também provado este facto.
Por fim, resta ver o sexto facto controvertido. Se expurgarmos dele aquilo que é meramente conclusivo, o facto é este: o arguido sabia que actuando da forma descrita causava à assistente sofrimento físico e psicológico e que perturbava a sua tranquilidade no lar e na presença do filho menor de idade. Ora, a parte que é mais relevante ficou provada na sentença sob o ponto g): o arguido sabia que devia respeito e consideração à assistente, sua mulher e mãe do seu filho e que actuando da forma descrita lhe infligia dores no corpo e lesões físicas e ofendia a sua honra e consideração, não se coibindo assim de agir no interior da residência daquela.
Tirando as diferenças de redacção, que não são muito importantes, vemos que há no facto não provado apenas um segmento que não consta no facto provado mas que efectivamente ficou sobejamente demonstrado pela prova e foi inclusivamente aceite pelo arguido como verdadeiro. Trata-se da afirmação de que os factos provados ocorreram na presença do filho menor do casal. Consideramos pois provado também este facto.
Concluindo esta parte, a sentença é modificada no que respeita à decisão da matéria de facto provada, à qual se adita o seguinte:
f.1) No dia 25 de Março de 2015, no interior do veículo automóvel do casal, onde também se encontrava o filho do casal, e porque a assistente mexeu no botão do volume do rádio, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: "tu és uma puta" e "tu andas enfeitada com uns cornos há muito tempo e não queres ver";
f.2) No circunstancialismo descrito na alínea d) dos factos provados, o arguido empurrou a ofendida contra a cama, deu-lhe um soco no tórax e apertou-lhe o pescoço;
f.3) Em data não concretamente apurada, entre os dias 28 de Março e 19 de Maio de 2015, o arguido deu uma pancada no automóvel da ofendida e dirigiu-lhe as palavras "este carro vai para as cinzas, e tu vais junta com ele";
g.1) O arguido não se coibiu de agir do modo descrito na presença do filho menor do casal.

3.2. Preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica
O arguido foi acusado por um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nºs 1 als. a) e 2, 4 e 5 do CP.
O tribunal considerou que os factos provados integram antes um crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143º nº 1 do CP. Entendeu-se que apenas se provou uma agressão física com contida violência e consequências físicas e que por mais de uma vez, o arguido apelidou a assistente de puta e lhe disse que se andava a mostrar aos homens, no decurso das frequentes discussões entre o casal e que, consequentemente, tais factos, para mais praticados no contexto de discussões conjugais de contornos não apurados, não são suficientes para atingir o elemento especializador do crime de violência doméstica, que consiste na adopção de comportamentos atentatórios da dignidade da vítima, com actos reiterados ou expressivos causadores de sofrimento físico, psíquico ou sexual. Embora reconhecendo que os actos praticados pelo arguido afectaram o corpo e o bem-estar da assistente, o tribunal não viu neles gravidade ou seriedade subsumível ao conceito de maus tratos do crime de violência doméstica.
Aquilo que se provou ter acontecido (na sentença e com as alterações que introduzimos na matéria de facto) foi sinteticamente o seguinte: no dia 25MAR2015, no automóvel, porque a assistente mexeu no rádio, o arguido disse-lhe que ela era uma puta e que andava enfeitada com uns cornos há muito tempo e não queria ver; três dias depois, de manhã, no quarto do casal, para lhe retirar o telemóvel, empurrou-a contra a cama, deu-lhe pancadas e um soco no tórax e apertou-lhe o pescoço; depois de 27MAR2015, em datas não apuradas, mais do que uma vez, no decurso das frequentes discussões no casal, o arguido chamou-lhe puta e disse-lhe que se andava a mostrar aos homens; noutra ocasião, entre 28MAR2015 e 19MAI2015, deu uma pancada no automóvel da assistente e disse-lhe que aquele carro ia para as cinzas e que ela ia junta com ele. Estes factos ocorreram na presença do filho menor do casal.
Temos agora de ver se a assistente tem razão quando defende que o crime praticado pelo arguido foi o de violência doméstica.
Naquilo que releva para o nosso caso, o crime consiste na acção, reiterada ou não, de infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, ao cônjuge, na presença de menor e no domicílio comum.
Não há unanimidade na doutrina e na jurisprudência sobre o bem jurídico protegido pela incriminação. Como pode ser visto mais em detalhe no estudo de Catarina Fernandes (Manuel Pluridisciplinar Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Abril de 2016, Centro de Estudos Judiciários, páginas 84 a 106[1]), a posição dominante na doutrina e na jurisprudência tem considerado que a norma protege a saúde, entendida esta como o bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem – no caso que nos importa – a dignidade pessoal do cônjuge. No entanto, outros autores e jurisprudência assinalam que a esfera de protecção da norma se dirige aos valores da “dignidade humana”, da “integridade pessoal”, da “integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual e a honra” ou a “integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade”.
Aceitamos que a razão da incriminação autónoma da violência doméstica não está na preservação da comunidade familiar ou conjugal, pois isso revelaria uma opção por uma concepção tradicional de família muito aquém do objecto de protecção pretendido pelo legislador. Contudo, não deixa de estar contemplada na norma como fundamento da tipificação a tutela de bens jurídicos inerentes a uma relação familiar, afectiva ou de coabitação. Isso decorre claramente da integração do vocábulo “doméstica” na própria denominação do crime, da definição da necessidade de certas relações entre o agente e a vítima, da agravação pela prática do crime no “domicílio comum”, da natureza das penas acessórias previstas para o crime e do confronto com o crime de maus tratos, do artigo 152º-A, em que a definição da acção ilícita é em grande parte comum mas o tipo é distinto em função de diferentes qualidades das vítimas.
Pensamos portanto que o bem jurídico tutelado pela norma, justificativo de uma protecção mais intensa do que aquela que é dada noutros tipos incriminadores em que cada um dos actos típicos poderia integrar-se, não pode ser visto separadamente do maior desvalor associado à violação da integridade pessoal, num conceito amplo que abranja a saúde física e psíquica, a dignidade e a liberdade, praticada no âmbito daquelas relações de natureza familiar, afectiva ou de coabitação. O acréscimo de protecção justifica-se precisamente porque a autonomização deste crime tem em conta a maior censurabilidade da conduta e o maior perigo de lesão de bens pessoais em contextos relacionais com aquela natureza.
Não podemos ter dúvidas de que um episódio de agressão física, vários de insultos e um de ameaça, praticados num período de aproximadamente dois meses, podem ser considerados suficientemente relevantes para integrar o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos. O ponto é saber se tais actos, praticados contra a pessoa do cônjuge, na presença do filho e no domicílio e veículo automóvel do casal, apenas atingem os direitos pessoais protegidos pelas normas que incriminam as ofensas à integridade física, as injúrias e as ameaças, ou se os atingem de forma acrescida por terem ocorrido no contexto da relação conjugal.
A circunstância de se ter provado que a agressão física foi praticada na sequência de uma discussão no casal e de que parte dos insultos também ocorreu no decurso dessas discussões frequentes é importante mas não é decisiva. Caso se tivessem apurado que houve agressões e insultos recíprocos, pensamos que isso seria suficiente para impedir a qualificação dos actos praticados pelo arguido como crime de violência doméstica. Não seria possível nesse caso identificar a assistente na qualidade de vítima, que pressupõe uma relação de desigualdade ou subjugação (ver o acórdão do TRP, de 9JAN2013[2]). Simplesmente não foi isso que se provou. E do facto de os actos terem ocorrido em contexto de discussão conflituosa não se pode retirar qualquer conclusão sobre uma eventual responsabilidade ou provocação da assistente.
Temos de dizer que a punição dos actos praticados pelo arguido como crime de ofensa à integridade física, como se se tratasse apenas de uma agressão para a qual tivesse sido indiferente a relação conjugal que está na base do acréscimo de tutela dado pelo artigo 152º do CP, nos parece ficar aquém do seu desvalor jurídico.
O arguido chamou puta à mulher e disse-lhe que ela andava enfeitada com uns cornos há muito tempo e não queria ver. Noutras ocasiões, disse-lhe que ela era uma puta e que se andava a mostrar aos outros homens. Estes insultos têm uma óbvia carga ofensiva da honra da assistente. Mas não são só isso. Remetem também para aspectos próprios do relacionamento que têm a ver com a fidelidade conjugal. Chamar puta, dizer que uma pessoa tem cornos ou que se mostra a outros homens não tem outro significado que não seja esse.
Depois, os actos de agressão física – empurrão, pancadas e murro no peito e apertão no pescoço – ocorreram quando o arguido queria à força tirar o telemóvel da assistente. A motivação deste acto não foi a mera ofensa à integridade física. Há aqui também uma tentativa de exercício de autoridade e de subjugação da vontade, uma vez que a privação de um instrumento de comunicação como o telefone naquelas circunstâncias só podia visar impedir que a assistente exercesse a sua liberdade de comunicar com quem entendesse, fosse para pedir ajuda fosse para outra finalidade qualquer.
Noutra ocasião, o arguido deu uma pancada no automóvel da assistente e disse-lhe que aquele carro ia para as cinzas e que ela ia junta com ele. Estas palavras têm um conteúdo ameaçador e não são mais do que uma manifestação de despeito e de vingança pelo desfecho da relação conjugal num sentido contrário ao desejado pelo arguido.
Todos estes actos foram praticados em momentos e espaços próprios da comunidade conjugal, ou no domicílio comum, ou no automóvel e sempre na presença do filho menor.
O arguido actuou sabendo que devia respeito e consideração à assistente e que os actos por si praticados lhe infligiam dores no corpo, lesões físicas e ofensas à sua honra e consideração e que o fazia no interior da residência comum e na presença do filho menor.
Actuou de forma livre, voluntária e consciente, ciente da ilicitude do seu comportamento.
A imagem global que nos dá este encadeamento de acções do arguido, todas ligadas entre si pelo elo comum da relação conjugal com a assistente, aponta de forma nítida para uma ofensa à integridade pessoal do cônjuge do arguido e num plano mais amplo do que o mera somatório de violações cumulativas do direitos à saúde, honra e liberdade. É pois nosso entendimento que os actos praticados pelo arguido integram o crime de violência doméstica agravado imputado na acusação, previsto no artigo 152º nºs 1 al. a) e nº 2 do CP.
Em resultado do que acabámos de afirmar, a sentença recorrida não se poderá manter e temos de determinar a pena adequada.
O crime é punível com prisão de 2 a 5 anos.
O artigo 40º do CP consagra como objectivo primordial da pena a prevenção criminal, nas vertentes da prevenção especial positiva, que consiste no objectivo de ressocializar a pessoa que violou bens jurídicos com tutela penal e deve ser motivada pela sanção a adoptar um modo de vida normativo, conformado com o respeito por esses valores; da prevenção especial negativa, que significa a necessidade de garantir que o agente do crime se abstém de outras práticas criminosas no futuro e também da prevenção geral positiva, que consiste na protecção da confiança da comunidade na validade da norma jurídica proibitiva de comportamentos e especialmente na efectividade da sua força coerciva.
Tendo em conta que o nº 2 do referido artigo 40º limita a pena à medida da culpa, o que devemos fazer em primeiro lugar é determinar esse limite máximo. O arguido actuou com dolo directo, com conhecimento da ilicitude e com liberdade de determinação e actuação de acordo com essa avaliação. Uma actuação culposa não influenciada por factores extraordinários deve ser tida como mediana.
As exigências de prevenção geral são importantes, em face da danosidade social do crime, da sua frequência e da intenção preventiva que o legislador pôs na previsão autónoma e agravada deste crime. No entanto, as exigências de prevenção especial são diminutas. O arguido não tem antecedentes criminais. Está social, pessoal e profissionalmente inserido, com um modo de vida normativo e conforme aos valores sociais. Não há conhecimento da subsistência de uma situação de risco para a assistente depois da separação do casal.
Tendo em conta a multiplicidade de actos passíveis de enquadrar o crime de violência doméstica, a ilicitude da acção do arguido não é elevada. Apesar de haver uma pluralidade de actos, a sua gravidade é menor e as consequências físicas e psicológicas do crime parecem estar minimizadas ou mesmo ultrapassadas.
O arguido admitiu a sua responsabilidade parcialmente, embora em medida pouco relevante para se poder daí concluir que está arrependido do crime.
O artigo 71º nº 1 do CP dispõe que a determinação da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e que deve atender aos factores do caso, previstos nomeadamente no seu nº 2. Ponderando os factores supra expostos, afigura-se-nos ajustada a pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
Não vemos razão suficiente para não suspender a execução da pena ao abrigo do disposto no artigo 50º do CP. A ausência de condenações anteriores e a inserção social e profissional do arguido permitem fazer neste momento um prognóstico favorável sobre o atingimento das finalidades preventivas e ressocializadoras da pena, apenas pela censura resultante da condenação e pela ameaça da privação de liberdade.
O Ministério Público qualificou juridicamente os factos da acusação por referência também aos números 4 e 5 do artigo 152º do CP. Trata-se, portanto, de um pedido de condenação nas penas acessória de proibição de contactos, proibição de uso e porte de armas e obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, sobre o qual o arguido teve plena oportunidade de exercer o contraditório.
Estas penas acessórias são especialmente adequadas naqueles casos em que existem elementos que deixem antever um risco sério do arguido se poder aproximar da vítima e de isso poder conduzir a perigo para a mesma. No caso parece-nos que isso não se verifica. O mau relacionamento em cujo contexto ocorreu o crime foi pontual e ocorreu há mais de um ano e seis meses. Não resulta do processo nem resultou da prova qualquer indício que leve a supor que os actos do arguido se possam repetir. Não há referência sequer ao uso de armas. Por estas razões, consideramos que seria desproporcional aplicar qualquer das penas acessórias ali previstas.

3.3. Arbitramento de indemnização
O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do CPP e do artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16SET, pediu que fosse arbitrada a favor da assistente uma indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais causados pelo crime, a pagar pelo arguido, no montante de 2.500 euros, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido.
Na sentença recorrida considerou-se que o caso não justificava o recurso a tal instituto excepcional e reservado a situações mais graves, em que seja necessário acautelar os interesses das vítimas mais frágeis.
A assistente pediu no recurso que essa indemnização seja arbitrada.
Naquilo que agora interessa, o artigo 21º da referida lei, sob a epígrafe “direito a indemnização…” dispõe que “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro do prazo razoável” e que “para o efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Por sua vez aquele artigo 82º-A, sob a epígrafe “reparação da vítima em casos especiais”, dispõe que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”.
A maioria da jurisprudência tem entendido que no caso de condenação pelo crime de violência doméstica, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, pois nessa situação as particulares exigências de protecção da vítima resultam da opção legislativa constante da Lei nº 112/2009. Só não será assim se a vítima expressamente se opuser a esse arbitramento. Podem consultar-se entre outros os acórdãos do TRC, de 29MAI2014 (processo 232/12.9GEACB.C2) e do TRL, de 16SET2015.
(Processo 67/14.4S2LSB.L1-3) no endereço www.dgsi.pt. Muito embora nestas decisões estivessem em causa o vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre tal questão e não exactamente sentenças em que a questão tivesse sido apreciada e se tivesse concluído que o arbitramento da indemnização não é obrigatório, a verdade é que esta tese encontra bom apoio no texto da lei, visto a norma prever que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A (sublinhado nosso).
Em sentido inverso, de que o que resulta da lei não é a obrigação de fixar indemnização mas apenas de se ponderar a sua atribuição nos termos daquele artigo 82º-A, mantendo-se a necessidade de verificar o requisito da existência de particulares exigências de protecção da vítima, pronunciou-se o acórdão do TRE, de 24MAI2016 (processo 253/14.7PBVR.E1) disponível no mesmo endereço electrónico. Esta tese tem também apoio forte no texto legal, pois o nº 1 do mencionado artigo 21º dispõe que à vítima é reconhecido o direito a obter uma decisão de indemnização e não o direito a ser indemnizada (sublinhado nosso).
Do nosso ponto de vista, a solução interpretativa adequada está a meio caminho entre as duas teses referidas.
Ao determinar que, para o efeito da lei que reconhece à vítima do crime de violência doméstica o direito a obter uma decisão de indemnização, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, o sentido da lei é o de considerar que em relação às vítimas deste crime é reconhecida a existência de particulares exigências de protecção. Trata-se de uma opção legislativa que os tribunais apenas poderiam sindicar se houvesse violação de comandos constitucionais. Isso significa que no caso de condenação, se não houver oposição expressa do titular do direito correspondente, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição de uma indemnização, não podendo negá-la com o argumento de que a vítima não beneficia de particulares exigências de protecção.
No entanto, daí não decorre a obrigatoriedade de se arbitrar uma indemnização a todo o custo. Será necessário que se verifiquem ainda os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar. Se não houver dano, ou porque não há prejuízo patrimonial ou porque o prejuízo não patrimonial não tem expressão que justifique a tutela do direito, ou se a equidade ou a culpa do lesado determinarem a exclusão do direito, então o tribunal não arbitrará indemnização. Seria a nosso ver absurdo que a lei obrigasse a indemnizar nessas situações em que os pressupostos da responsabilidade civil não estão preenchidos.
Desta forma, não temos de declarar que a assistente beneficia de particulares exigências de protecção. Pelo simples facto de ter sido vítima de crime de violência doméstica, a lei atribui-lhe esse estatuto. O que temos é de apurar qual o valor da indemnização adequada pelos danos não patrimoniais – só esses estão em causa – face aos factos que se provaram.
Resulta do disposto no artigo 496º nºs 1 e 3 do Código Civil que os danos não patrimoniais são indemnizáveis se pela sua gravidade merecerem a tutela do direito e que a indemnização será fixada em montante equitativo, tendo em atenção o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e a repercussão que possa ter o pagamento nos seus patrimónios e as demais circunstâncias do caso relevantes para integrar os critérios de razoabilidade, prudência e justiça.
Os danos não patrimoniais sofridos pela assistente a considerar e que resultam dos factos provados são as lesões e dores que determinaram um período de três dias de doença, os naturais incómodos por causa das deslocações ao hospital e aos locais onde se realizaram as perícias médico-legais, também os incómodos das deslocações à polícia e ainda o normal constrangimento e humilhação resultantes do facto de os actos terem sido praticados com conhecimento dos vizinhos e na presença do filho menor. Todos estes danos têm suficiente gravidade para justificar a tutela jurídica e o correspondente direito a indemnização.
A culpa do arguido foi mediana. No entanto, temos de considerar que os actos ocorreram na sequência de conflitos verbais, em que é de aceitar como razoável algum tipo de participação da assistente.
Por outro lado, nada se sabe sobre a situação económica da assistente. Mas sabemos que o arguido tem um emprego com salário modesto e suporta despesas importantes. Só a renda de casa consome quase 1/3 do vencimento.
Pensamos que o valor da indemnização pedida pelo Ministério Público é exagerado, em face dos factores acima referidos. Tendo em conta a culpa não significativa do arguido, o grau de contribuição da vítima, por mais ligeiro que tenha sido, a pouca importância das lesões sofridas e o facto de a assistente estar delas totalmente curada e por fim a circunstância de o arguido ser pessoa com uma situação económica modesta, parece-nos equitativo arbitrar a indemnização de 500 euros.
A esta indemnização acrescem os juros de mora à taxa supletiva das dívidas civis, contados desde a notificação deste acórdão, nos termos dos artigos 804º, 805º nº 1 e 806º do Código Civil.
Procede portanto o recurso nos termos referidos e fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em conceder provimento ao recurso e em revogar a sentença recorrida, cujo dispositivo passa a ser o seguinte:
- Condena-se o arguido B… por um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nºs 1 als. a) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, com execução suspensa por igual período;
- Condena-se ainda o arguido a pagar à assistente a indemnização de quinhentos euros, acrescida de juros de mora a contar desde a notificação deste acórdão.

Sem custas.

Porto, 15 de Dezembro de 2016
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
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[1] http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf
[2] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7668ac958eaa774680257b02004cb0f0?OpenDocument