Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8607/21.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
ATUALIZAÇÃO DA RENDA
Nº do Documento: RP202402088607/21.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ocupação durante todo o tempo do contrato sem qualquer oposição pelo senhorio, muito decisivamente desde o princípio do arrendamento caracteriza um âmbito ou objecto mediato do contrato para além ou para lá da descrição da casa arrendada no contrato, que não apenas uma situação de tolerância.
II - A existência de uma acção mediante a qual o senhorio retoma a posse de alguns dos anexos, mantendo-se a Ré no uso ou gozo do anexo cuja ocupação ainda mantém, como do pátio, é decisiva no sentido da demonstração de um fundamento contratual para a ocupação.
III - Ainda quando não tendo os AA ou a Ré junto os termos de uma tal acção aos autos, mas tendo resultado prova quanto à desocupação, em dado momento, pela Ré de parte dos espaços por si ocupados, mantendo-se o uso pela Ré do anexo, tem de inferir-se que a ocupação por aquela Ré vem a ser fundada no contrato de arrendamento (inicial) ou quando menos no alargamento do objecto deste aquando da acção versada…
IV - A não junção de certidão dos termos da acção não obsta a esta prova por presunção judicial ou natural, que permite a afirmação de que o anexo e pátio ocupados pela Ré se integram no âmbito do contrato de arrendamento, infirmando, pois, a ocupação abusiva ou não titulada…
V - O procedimento de actualização da renda por iniciativa do senhorio sempre pressupõe ou implica a menção e a junção, na respectiva comunicação, de todos os elementos e documentos enumerados no art.º 30º do NRAU (requisitos de ordem substancial), sem os quais, diga-se, não é possível uma esclarecida tomada de posição (resposta) por parte do destinatário/arrendatário, nos termos e para os efeitos do art.º 31º do NRAU.
VI - Totalmente ineficaz a comunicação de actualização do valor da renda no caso dos autos, por falta de indicação do valor patrimonial correspondente à parte do imóvel objecto do contrato de arrendamento em causa, sendo o critério (1/2 do valor patrimonial total do imóvel) utilizado absolutamente aleatório e destituído de suporte legal.
VII - Tudo se passando como se não tivesse sido feita a comunicação, não ocorrendo uma alteração válida da renda, a Ré continuou a pagar a retribuição devida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 8607/21.6T8VNG.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível de Gaia – J4

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida

2º Adjunto: João Maria Espinho Venade


*

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA e mulher BB propuseram acção declarativa contra CC, peticionando: a) Seja declarada a resolução do contrato de arrendamento urbano celebrado entre Autores e Ré, b) Seja a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue aos Autores livre de pessoas e bens, bem como repor a situação dos anexos e pátio anteriores à sua ocupação abusiva; c) Seja a Ré condenada ao pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano até ao efectivo e integral pagamento.

A Ré contestou, dando nota de que é bem distinto o valor da renda, por via da ineficácia, mediante oposição por si, à comunicação de aumento do valor da renda a que apelam os AA, sendo que que vem depositando na sua totalidade o valor da renda em vigor, todos os meses. Mais invoca que as divisões e logradouro por si ocupados sempre fizeram parte do objecto do contrato de arrendamento, razão pela qual não está obrigada a restituí-los.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou improcedente na sua totalidade a acção.

É desta decisão que vem interposto recurso, formulando os recorrentes as seguintes conclusões:

1. Os Recorrentes não concordam com a decisão proferida, tanto por razões de ordem formal, como por razões de ordem material.

2. No que respeita à questão da resolução por falta de pagamento da renda, relativamente à fundamentação jurídica, a sentença conclui que foi celebrado um contrato de arrendamento entre as partes, seguindo-se um sobrevoo pelo regime da locação e concluindo que o fundamento legal da pretensão dos Recorrentes é a resolução por falta de pagamento de rendas.

3. Quanto à subsunção das normas jurídicas ao caso sub judice, a sentença em crise resume-se ao seguinte:

4. Cumpre, antes de mais, esclarecer que os Recorrentes nunca negaram que a Recorrida tenha pago mensalmente a quantia de 41,34 €. Aliás, para além das declarações de parte do Recorrente, AA, mencionadas na sentença  quanto a esta matéria, foram os próprios Recorrentes que, ao abrigo do princípio da cooperação, vieram aos autos juntar o comprovativo do depósito da quantia de 41,34 €, no mês de Maio de 2021, na conta dos Recorrentes, que esta alegava na sua contestação que se tratava da renda relativa ao mês de Junho de 2021 e cujo comprovativo se havia extraviado.

5. O que é entendimento dos Recorrentes é que, por força do procedimento por si iniciado com o envio da missiva remetida à Recorrida (junta aos autos com a contestação, sob documento n.º 7) a comunicar a sua intenção de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU e de actualizar a renda, o valor de renda a pagar pela Recorrida era de 70,00 € mensais e que esses – não subsistem dúvidas – não eram pagos pela Recorrida.

6. Dos autos constam as missivas trocadas entre os Recorrentes e a Recorrida quanto ao procedimento necessário à transição do contrato de arrendamento para o NRAU e à actualização da renda.

7. Da sentença recorrida resulta que:

8. O que não resulta da fundamentação jurídica da sentença é o que representa juridicamente a “carta dos autores datada de 08/01/2019”; se, nos termos da legislação aplicável ao caso, existe a obrigatoriedade de que a “carta” “fosse acompanhada da caderneta predial” e qual a norma e o diploma que o determina.

9. Da sentença recorrida resulta, ainda, que:

10. O que não resulta da fundamentação jurídica da sentença é se existe um critério legal para alcançar o referido valor, a identificação desse critério, qual a legislação que o prevê e o motivo pelo qual o Tribunal entende que os Recorrentes não o respeitaram.

11. Da sentença recorrida resulta, por último, quanto a esta matéria:

12. Salvo melhor entendimento, afigura-se aos Recorrentes que não era tema de prova, em singelo, “que a renda se cifrasse em 70,00 €”. mas antes, como resulta do despacho saneador, era tema de prova saber se “Mercê das sucessivas renovações, a actualizações a renda atual cifra-se em €70 mensais.”

13. Ou seja, havia que fazer uma análise jurídica às sucessivas renovações e actualizações que permitisse concluir se a renda se cifrava em 70,00 € mensais.

14. Para tanto, era imperativo que essa análise jurídica passasse por avaliar a eficácia do procedimento iniciado pelos Recorrentes com o envio da missiva remetida à Recorrida (junta aos autos com a contestação, sob documento n.º 7) a comunicar a sua intenção de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU e de actualizar a renda e que decidisse sobre dois pontos. Em primeiro lugar, se operou validamente a transição do contrato para o NRAU e, em segundo lugar, se ocorreu validamente a actualização da renda.

15. Isto para concluir que, a partir do momento em que a Recorrida suscita a questão da transição do contrato de arrendamento para o NRAU e a actualização da renda, incontornável se tornou apreciar a sua eficácia e consequências, à luz da legislação aplicável,

16. E, no caso de concluir pela sua ineficácia, indicar qual teria sido o caminho correcto a percorrer.

17. Para além disso, resulta alegado pela Recorrida que o anterior senhorio já havia feito a actualização da renda ao abrigo do NRAU. Novamente, não é feito na sentença recorrida nenhum enquadramento jurídico quanto a essa matéria, nem apreciada a sua relevância jurídica para o caso dos autos.

18. Do exposto, resulta que não foi indicado um único fundamento jurídico que sustente a sentença recorrida, que é absolutamente omissa nessa parte, o que, naturalmente, impede os Recorrentes de sindicar a bondade da mesma.

19. É, portanto, manifesta e óbvia a ausência total de fundamentação quanto a este respeito.

20. O Tribunal a quo, com o devido respeito, veio dizer que a comunicação enviada pelos Recorrentes à Recorrida é ineficaz, “because i said so”, furtando-se a indicar um único normativo legal que o sustentasse.

21. Tudo isto dificulta, ou mesmo impossibilita, de foram irremediável e absolutamente notória, a tarefa dos Recorrentes em apresentar uma defesa estruturada, não sabendo (nem tendo como saber!) em concreto os fundamentos que suportam a decisão, para que a possam contradizer.

22. Destarte, pelos motivos expostos, a fundamentação da sentença sob censura se revela gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito, encontra-se a mesma ferida de nulidade, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, b) do Código do Processo Civil, que aqui expressamente se argui.

Acresce que

23. Na petição inicial, os Recorrentes alegam, entre o mais, a seguinte causa de pedir: 12.º Acresce que, com a Pandemia a Ré foi invadindo sem qualquer autorização ou permissão do senhorio o pátio, com vasos de plantas, invadiu os anexos do prédio para os quais não tem qualquer autorização do Senhorio ou lhe foi dado de arrendamento no contrato, colocou uns cadeados nas portas e basicamente fez uma muralha de plantas, colocou umas chapas e uma janela para que o Senhorio não tivesse acesso aos mesmos. // 13.º Apesar de várias vezes avisada pelos autores para remover as plantas e abrir as portas dos anexos a mesma não o faz. // 15.º Portanto a Ré ocupa sem qualquer autorização, ou titulo que legitime aqueles anexos e da ocupação do pátio de acesso comum à casa que habita e à casa onde habitam os Senhorios, vide fotos juntas aos autos.

24. Concluem a acção, peticionando que fosse a Recorrida condenada a repor a situação dos anexos e pátio anteriores à sua ocupação abusiva.

25. Sucede que a sentença é absolutamente omissa quanto à situação do pátio, não lhe dispensando uma mísera linha.

26. A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido, reportando-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir.

27. Como se expos, não se trata in casu da falta de apreciação crítica de um argumento invocado pelos Recorrentes mas de o Juiz não ter resolvido esta questão, que os Recorrentes submeteram à sua apreciação.

28. É, pois, tendo em consideração a violação do disposto no artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, que a sentença recorrida está ferida de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que aqui expressamente se argui.

Sem prescindir,

29. Cremos que a douta sentença recorrida advoga soluções, quanto à matéria de facto, sobre as questões que foram submetidas a julgamento absolutamente inaceitáveis, pelo que importa corrigi-las.

30. É nosso entendimento que o Tribunal a quo não efectuou uma criteriosa e cuidada apreciação da prova validamente junta aos autos e produzida em julgamento.

31. No nosso caso, verifica-se claramente a existência de erro de apreciação relativamente ao ponto 12) da matéria de facto não provada, atenta a prova produzida.

32. Bem como, pior ainda, a absolvição num sentido, com base num facto dados como não provado, e cuja consideração deveria ter conduzido a decisão oposta,

33. Ora, a convicção do julgador, só, não basta, nem poderia bastar. Exige-se que tenha suporte na lógica, nos factos, nos elementos de prova. O que, claramente, não se verificou nos presentes autos.

34. Nesse sentido, em prol da verdade e da justiça, impõe-se a reapreciação da prova produzida, designadamente, da prova testemunhal gravada.

35. Destarte, entende a recorrente que a matéria de facto controvertida merecia decisão diversa da prolatada, havendo concretos meios de prova produzidos que impõem essa modificação.

36. Assim, a respeito da matéria de facto controvertida, decidiu o Tribunal recorrido dar como não provada a seguinte factualidade:

37. A sentença em crise incorre num erro absolutamente inegável, que, como de seguida se exporá, é o culminar de uma sucessão de erros que o Tribunal foi cometendo ao longo do processo e que – almeja-se – tenha sido o último.

38. Os Recorrentes constataram que o contrato de arrendamento que havia sido junto com a petição inicial não era referente ao arrendamento entre os Recorrentes e a Recorrida, tendo, prontamente, informado o Tribunal do lapso e juntado o contrato correcto.

39. Embora a autoria da petição inicial não pertença à signatária deste recurso, resultava evidente que a junção daquele contrato se tratou de um lapso, revelado no contexto processual.

40. Assim, e também por que os Recorrentes ainda dispunham de prazo para alterar o seu requerimento probatório até 10 dias após a prolação do despacho saneador, estes procederam, de imediato, à junção do contrato de arrendamento celebrado entre os Recorrentes e a Recorrida, objecto dos presentes autos.

41. O requerimento a juntar o contrato de arrendamento foi notificado à Recorrida, não tendo a mesma impugnado o documento, nos termos dos artigos 415.º, n.º 1, e 427.º do CPC, pelo que o reconheceu como verdadeiro, aceitou o seu teor, bem como o sentido e alcance que os Recorrentes pretenderam atribuir-lhe.

42. Já após os Recorrentes terem junto aos autos o contrato de arrendamento correcto (requerimento com a referência Citius 32583224, de 17/06/2022), foi proferido despacho saneador (com a referência Citius 442379361, datado de 21/11/2022), no qual, para o que aqui releva, o Tribunal deu por assente que:

43. Se é verdade o facto assente no ponto 1), não puderam os Recorrentes deixar de reclamar do ponto 4) dos factos dados como assentes no despacho saneador.

44. De facto, o direito ao arrendamento que foi atribuído à Recorrida não era, nem é, o referido em 1) daquele despacho; esse direito de arrendamento, como resulta do texto do documento, trata-se do arrendamento que existiu entre os Recorrentes e o anterior proprietário do imóvel, para arrendamento da sua própria residência; o direito ao arrendamento que foi atribuído à Recorrida era o que se refere no contrato de arrendamento, entretanto, junto com o requerimento com a referência Citius 32583224, de 17/06/2022.

45. Ora, há, desde logo, duas situações distintas a assinalar aqui:

46. Em primeiro lugar, como se disse, resulta do texto do contrato junto como o n.º 4 da petição inicial, que o mesmo foi celebrado entre os Recorrentes e o anterior proprietário do imóvel e não com a Recorrida ou com o seu ex-marido,

47. Pelo que, estava o Tribunal em condições de perceber que o contrato junto com a petição inicial nunca poderia sustentar o ponto 4) dos factos dados como assentes no despacho saneador.

48. Em segundo lugar – repete-se – refere-se ao facto de os Recorrentes já terem, na data em que foi proferido o despacho saneador, procedido à junção do contrato de arrendamento objecto dos autos, o qual, já havia sido notificado à Recorrida, que, por não o ter impugnado, o aceitou.

49. Também por esta razão, tinha o Tribunal elementos para concluir que o contrato junto com a petição inicial nunca poderia sustentar o ponto 4) dos factos dados como assentes no despacho saneador,

50. Estando, inclusivamente, em condições de dar como assente a existência do contrato de arrendamento objecto dos presentes autos.

51. Embora, como se disse, os Recorrentes tivessem rectificado nos autos o seu erro e juntado o contrato de arrendamento correcto antes da prolacção do despacho saneador, ainda assim, aquando da prolacção do despacho saneador, o Tribunal desconsiderou-o e incorreu em erro.

52. Contudo, porque entenderam que foram quem, na verdade, deu azo a tal confusão (por terem juntado o contrato errado na petição inicial), no lugar de chamar a atenção do Tribunal para o erro em que havia incorrido, os Recorrentes optaram por, na alteração do requerimento probatório, voltar a invocar o seu lapso e voltar a juntar o contrato de arrendamento correcto, e, ainda, por reclamar do despacho saneador, suportando a taxa de justiça devida, tudo isto sem sequer terem mencionado os erros em que o Tribunal, entretanto, também incorreu e que  foram os que, na realidade, originaram a necessidade de reclamar do despacho saneador.

53. Mas, naturalmente, que isto foi uma postura de complacência que presidiu apenas à conduta dos Recorrentes, já que, apesar do exposto, o despacho que recai sobre a reclamação dos Recorrentes tem o seguinte teor: “Visto. Julga-se que esta é primeira vez que se assiste a uma ação de despejo que é intentada com base num contrato de arrendamento que é junto à petição inicial, embora posteriormente, já depois de proferido o despacho saneador, virem os autores dizer que se enganaram no contrato de arrendamento, alegando que não é aquele que juntaram, mas um outro.”.

54. Talvez por o Tribunal estar mais preocupado em proferir despachos a fazer juízos de valor sobre um erro que os Recorrentes, pronta e humildemente, corrigiram, tenha persistido no seu próprio erro…

55. Quanto à reclamação contra o despacho saneador, veio o Tribunal proferir despacho, decidindo que iria alterar o facto da matéria assente que descreve o contrato de arrendamento, no início da audiência, recorrendo à ajuda das partes, mais ordenando a notificação da Recorrida para informar se tinha o original do contrato de arrendamento, conforme peticionado pelos Recorrentes e admitindo a prestação de declarações e depoimento de parte, pedidos pelos Recorrentes.

56. Notificados desse despacho, vieram os Recorrentes requerer a sua rectificação, nos termos dos artigos 614.º, n.º 1 e 613.º n.º 2 e 3, ambos do CPC, para o que aqui releva, no sentido de ser apreciada a requerida notificação da Recorrida para apresentar a comunicação de actualização de renda ao abrigo do NRAU, que na contestação alegava ter recebido do seu antigo senhorio.

57. Sobre tal requerimento recaiu novo despacho – pelas contas dos Recorrentes, o terceiro ferido de “lapso” – com o seguinte teor:

58. Requerimento de 13/02/2022: Tanto quanto se consegue perceber, o documento que os autores pretendem que os réus juntem, foi por estes junto com a contestação (documento n.º 3, embora nele se tenha feito constar ser o documento 7), razão pela qual não se justifica estar a solicitar aos réus que o voltem a juntar.”.

59. Novamente, vieram os Recorrentes esclarecer que o documento a que se referia o despacho se trata da comunicação para transição do contrato de arrendamento para o NRAU e actualização de renda, enviada à Recorrida pelos actuais senhorios, ou seja, os Recorrentes dos presentes autos, AA, e mulher, BB, sendo o documento que os Recorrentes pretendiam que a Recorrida juntasse a comunicação de actualização de renda que esta confessava ter sido já efectuada ao abrigo do NRAU pelo seu primitivo senhorio – DD, e a que se refere no artigo 8.º da contestação.

60. Após este novo esclarecimento, veio o Tribunal – pela primeira vez no processo, reconhecendo o seu lapso – deferir o requerido pelos Recorrentes.

61. Ainda, na sequência do pedido dos Recorrentes para que a Recorrida fosse notificada para vir juntar o original do contrato de arrendamento, considerando que, aquando da compra do referido imóvel, os vendedores apenas disponibilizaram aos Recorrentes (ali compradores) cópia do mesmo e que, de tal documento, não é possível extrair, sem margem para dúvidas, o valor da renda mensal, e que se previa que a Recorrida pudesse ter, em seu poder, o outro original do mesmo documento, veio a Recorrida aos autos informar que não tinha em sua posse o original do contrato de arrendamento. Em face de tal informação, os Recorrentes requereram que fosse ordenado à Autoridade Tributária para vir aos autos juntar cópia do contrato de arrendamento objecto dos autos, mais requerendo que, no caso de a AT não dispor de cópia do referido contrato de arrendamento, lhe fosse ordenado que viesse aos autos juntar todo e qualquer documento ou informação de que dispusesse relacionado com aludido contrato.

62. Embora o Tribunal a quo tivesse determinado que fosse requerida a informação solicitada (despacho com a referência Citius 445828883, de 01/03/2023), não foi dado cumprimento ao despacho ou, pelo menos, não o foi com o conhecimento dos Recorrentes.

63. Não se pode, pois, dizer que é com surpresa que, apesar de o contrato de arrendamento ter sido junto aos autos em dois momentos diferentes (requerimento com a referência Citius 32583224, de 17/06/2022, e requerimento com a referência Citius 34067292, de 05/12/2022), se constata que a sentença afirma, por quatro vezes, que o mesmo não foi junto.

64. Porém, é o próprio Juiz que, durante as declarações de parte do Recorrente AA, afirma que tem que ler o contrato porque não o sabe de cor e não dispõe do mesmo, uma vez que actualmente tudo se processa electronicamente: (Das declarações de AA, ficheiro 20230621155357_16068680_2871623, de 00:01:12 a 00:02:52: Meritíssimo Juiz: Mas no contrato de arrendamento diz isso? Que tem direito à casa, que tem dois..? (…) // Meritíssimo Juiz: Pronto, eu tenho que o ler porque eu não sei de cor e não tenho aqui nada porque é tudo electrónico.

65. Como resulta evidente, não há como contornar a importância de um contrato de arrendamento escrito, numa acção que o tem como objecto, como é o caso da acção de despejo,

66. Sendo que a sentença sustenta toda a sua fundamentação, sobretudo quanto à reposição da situação dos anexos, no facto de o contrato de arrendamento não ter sido junto aos autos, o que, como já se viu, não corresponde à realidade.

67. Se acompanharmos o raciocínio seguido pelo Tribunal, verificamos que a razão pela qual não é possível esclarecer a questão dos espaços que foram arrendados à Recorrida, em particular quanto aos anexos que se discute que a Recorrida ocupa, é o facto de o contrato de arrendamento não estar junto aos autos e, por essa razão, não se conseguir confirmar se tais espaços constam do contrato ou não.

68. Seguido o mesmo raciocínio a contrario, temos que: se o contrato de arrendamento estivesse junto aos autos, era possível confirmar se tais espaços, em particular os anexos que se discute que a Recorrida ocupa, constavam do contrato e, assim, esclarecer a questão dos espaços que foram arrendados à Recorrida.

69. Compulsado o contrato de arrendamento, verifica-se que o contrato de arrendamento celebrado entre DD (antigo proprietário) e o EE (ex-marido da Recorrida) é relativo “a casa três divisões”,

70. No depoimento que prestou, a Recorrida afirmou o seguinte, quanto ao objecto do contrato de arrendamento: (Do depoimento de CC, ficheiro 20230621155357_16068680_2871623, de 00:01:03 a 00:01:52) Mandatária do Autor: Quantas quantas… Descreva-me a casa. A casa quantas divisões tem? // Brizelinda Silva: Tem dois quartos, sala, cozinha e um quarto de banho.

71. Nas declarações que prestou, o Recorrente afirmou o seguinte quanto ao objecto do contrato de arrendamento (Das declarações de AA, ficheiro 20230621155357_16068680_2871623, de 00:01:12 a 00:02:52) Meritíssimo Juiz: Mais ou menos um ano. Se eu estiver a dizer alguma asneira o senhor corrija-me, está bem? (imperceptível) Tem um portão, tem um pátio, do lado direito a sua casa, do lado esquerdo é a sua cunhada, é assim não é? Olhe o senhor sabe-me dizer o que diz no contrato? Os dois contratos estão escritos, foram escritos, é um documento escrito. O que é diz o contrato da sua cunhada? // AA: (imperceptível) …que tem direito à casa do primeiro andar: tem dois quartos, uma sala, uma cozinha e as casas de banho.

72. Para o que aqui releva, o contrato de arrendamento em causa nos autos prevê que os outorgantes fazem o contrato de arrendamento relativo a casa três divisões, o que, como vimos, é corroborado pelo depoimento da Recorrida e pelas declarações do Recorrente, AA.

73. Concluindo, se seguirmos o raciocínio do Tribunal a quo, conseguindo-se afirmar que não constam do contrato de arrendamento quaisquer anexos ou outros espaços, podemos concluir que os mesmos não integram o objecto do contrato.

74. Por todo o exposto, deveria o facto 12), dado como matéria não provada, ser dado como provado [12) A ré invadiu o pátio do terreno vizinho ao seu locado, ocupando uns anexos, colocando uns cadeados nas portas umas chapas na janela, impedindo o acesso do senhorio.] e, consequentemente, ser a Recorrida condenada a repor a situação dos anexos e pátio anteriores à sua ocupação abusiva, conforme peticionado na inicial.

Caso assim não se entenda,

75. Em face do exposto, não é despiciendo o facto de não ter sido dado cumprimento ao ordenado pelo Tribunal a quo no sentido de se notificar a AT para vir juntar cópia do contrato de arrendamento objecto dos autos ou, no caso de não dispor de cópia do referido contrato, para vir juntar todo e qualquer documento ou informação de que dispusesse relacionado com aludido contrato.

76. De facto, aquando da prolacção da sentença, afirmou o Tribunal a quo, que o contrato de arrendamento objecto da acção não se encontrava nos autos e, por essa razão, o Tribunal não ficou devidamente esclarecido quanto à reposição da situação dos anexos e pátio anteriores à sua ocupação abusiva.

77. Assim, só pode concluir-se que o Tribunal a quo omitiu a realização de uma diligência que, no seguimento do raciocínio adoptado na sentença, revela-se essencial para justa composição do litígio e que não se realizou.

Sem prescindir,

78. Resulta da sentença recorrida que, apesar de a comunicação remetida pelos Recorrentes à Recorrida (a manifestar a intenção de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU e actualizar a renda) referir que em anexo segue a caderneta predial, por esta não ter sido junta ao processo juntamente com a comunicação, não ficou demonstrado que esta a acompanhou, fazendo com que a comunicação dos senhorios se tenha de considerar ineficaz.

79. Sucede que, como a própria sentença refere, constava do texto da comunicação o envio da caderneta em anexo, tendo ambas as partes aceite isso como verdadeiro.

80. Para além disso, como também refere a sentença, a caderneta já se encontrava junta ao processo como documento n.º 2 da petição inicial,

81. Pelo que, tendo as partes aceite que a caderneta havia acompanhado a carta, e já constando a mesma dos autos, não se vislumbrava qualquer motivo para a mesma ser novamente junta e para que o Tribunal pudesse concluir desconhecer “se realmente a acompanhava”.

82. De mais a mais, se para o Tribunal tal questão se afigurava determinante para a decisão da causa, sempre poderia ter questionado as partes sobre essa matéria, o que não fez!!!

83. Destarte, fez o Tribunal um errado julgamento de facto com a consequente errada aplicação do direito.

Noutra ordem de considerações,

84. Entendeu o Tribunal a quo que o facto de não se demonstrar que a comunicação remetida pelos Recorrentes à Recorrida a comunicar a intenção de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU e de actualizar a renda foi acompanhada da caderneta predial determina a ineficácia da comunicação, uma vez que, por se tratar de um prédio único, com uma única descrição predial e inscrição matricial, não se consegue validar o critério dos Recorrentes para alcançarem o valor da renda.

85. Ora, os Recorrentes são conhecedores do entendimento que perfilha que, sob pena de ineficácia de tal comunicação, o senhorio tem o ónus de enviar ao arrendatário uma cópia da caderneta predial urbana da qual conste o valor matricial do local arrendado (calculado nos termos do artigo 38.º do CIMI), requisito não observado se, da caderneta predial enviada, apenas constar o valor patrimonial da totalidade do imóvel, e não, devidamente discriminado, o valor das partes susceptíveis de utilização independente que o compõem, incluindo, a que está locada à Ré.

86. Há, porém, que distinguir, aqui, duas situações: a transição para o NRAU e a actualização da renda.

87. Se se pode compreender que a falta do envio da caderneta predial ao arrendatário da qual conste, devidamente, discriminado, o valor matricial das partes susceptíveis de utilização independente que o compõem, incluindo, a que está locada ao arrendatário, já não se pode aceitar que a falta de tal elemento determine a ineficácia de toda a comunicação.

88. E quanto a esta mesma matéria, no âmbito dos arrendamentos para fins não habitacionais, foi uniformizada jurisprudência, pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão relatado em 15/06/2023 por Maria da Graça Trigo, no âmbito do processo n.º 10383/18.0T8LSB.L1.S1-A.

89. A questão controvertida apreciada no recurso consistiu em saber se a eficácia da comunicação do senhorio ao arrendatário da transição do contrato para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), sem actualização da renda, depende da exigibilidade de todos os requisitos previstos no artigo 50.º do NRAU, particularmente dos requisitos das respectivas alíneas b) e c).

90. Assim, considerou-se ser de uniformizar jurisprudência no sentido em que “Nos arrendamentos para fins não habitacionais, celebrados antes do Decreto- Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, o locador que pretenda promover a transição do contrato para o NRAU, sem actualização da renda, não está obrigado à indicação do valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do CIMI, nem à junção da cópia da caderneta predial urbana, como previsto nas alíneas b) e c) do artigo 50.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro

91. Embora o aresto em causa respeite a arrendamentos para fins não habitacionais, menciona o seguinte: “De forma a corrigir a situação de desactualização das rendas dos contratos não habitacionais celebrados antes da vigência do Decreto-Lei n.º 257/95 de 30 de Setembro, a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto (mantida na versão da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, aplicável in casu) veio permitir a transição para o NRAU de tais contratos e a actualização das respectivas rendas por iniciativa do senhorio, o que foi consagrado no artigo 50.º e seguintes do NRAU, em termos semelhantes ao regime do artigo 30.º do mesmo diploma respeitante aos contratos de arrendamento habitacional.

Para os contratos sem duração limitada – anteriores ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e ao regime do Decreto-Lei n.º 257/95 – valem as regras transitórias dos artigos 27.º a 29.º do NRAU, maxime a regra do artigo 28.º, na parte em que este preceito determina a aplicação do regime previsto no artigo 26.º; o eixo nuclear da reforma de 2012 consiste na possibilidade de tais contratos, inicialmente vinculísticos, poderem passar a um regime aberto, não vinculístico, decorridos certos prazos e com sujeição a uma actualização extraordinária da retribuição mensal, diversa da actualização ordinária prevista nos artigos 1077.º do Código Civil e 24.º do NRAU, estando essa mudança dependente da iniciativa do senhorio e do respeito por determinados requisitos formais.

92. Ou seja, tal entendimento é passível de ser aplicado aos contratos de arrendamento para fins habitacionais, mutatis mutandis.

93. Na interpretação do sentido e alcance do proémio do artigo 30.º do NRAU, decorre que a norma regula em conjunto dois aspectos dos contratos de arrendamento anteriores ao NRAU: a transição para o NRAU e a actualização da renda.

94. A opção pela criação de um regime comum para estas duas situações denota a convicção, por parte do legislador, de que é frequente elas se verificarem em simultâneo – de que, frequentemente, o senhorio tem a intenção de, através daquela comunicação, realizar ao mesmo tempo a transição do contrato para o NRAU e a actualização do valor da renda – o que é incontestável. E é verdade que a lei é concebida, de facto, para regular os casos mais frequentes.

95. Não obstante, é preciso não perder de vista que se trata de duas situações distintas e independentes e que uma das situações pode ocorrer sem a outra,

96. Que isto é admissível comprova-o, de certa forma, a própria lei, ao prever, a propósito da resposta do arrendatário àquela comunicação do senhorio, numa norma autónoma, que aquele venha a “pronunciar-se quanto ao tipo ou à duração do contrato propostos pelo senhorio” - cfr. artigo 31.º, n.º 3, al. c), do NRAU.

97. Põe-se, assim, o problema de saber se se justifica aplicar sempre todo o regime disposto na norma ou se é possível dispensar-se algum/alguns dos requisitos exigidos na norma.

98. Equaciona-se esta hipótese contrariando aquilo que literalmente resulta da lei em homenagem ao princípio da prevalência da materialidade sobre a forma.

99. Há, com efeito, que pôr a hipótese de a criação deste regime único ser imputável a meras razões de conveniência ou comodidade e, na realidade, não se pretender uma aplicação inflexível, cega ou excessivamente rigorosa da norma (i.e., independentemente da situação em concreto).

100. Em apoio desta posição, seria possível convocar argumentos de ordem e valor diversos, por exemplo, o disposto no artigo 9.º do Código Civil.

101. Naturalmente, a conclusão pela admissibilidade desta dispensa depende da utilidade que eles tenham na situação em causa: só poderá dispensar-se algum dos requisitos se for manifesto que ele é destituído de sentido naquele preciso contexto.

102. Ora, para efeitos da transição do contrato para o NRAU, não são indispensáveis certas indicações mencionadas no artigo 30.º do NRAU.

103. Assim é, desde logo, não é imprescindível indicar o valor da renda [cfr. al. a)]. E o mesmo vale para a indicação do valor do locado constante da caderneta predial urbana [cfr. al. b)] e a cópia desta caderneta [cfr. al. c)], que são, seguramente, elementos relevantes para a fixação do (novo) valor da renda mas não para a transição do contrato para o NRAU.

104. De tudo isto resulta que, ainda que não cumpra as exigências definidas no artigo 30.º, als. b) e c), do NRAU, a comunicação apresentada pelos Recorrentes, é plenamente eficaz para efeitos de transição do contrato para o NRAU, junto da arrendatária e ora recorrida.

105. Ora, para efeitos de transição para o NRAU, não existe justificação material para a indicação do valor do locado e a junção da cópia da caderneta predial urbana.

106. Quer dizer, estas exigências estão funcionalizadas à actualização da renda. Para além dessa função, não se destinam a proteger qualquer interesse, privado ou público, pelo que podem e devem ser dispensadas no momento em que é apreciada apenas a validade da transição para o NRAU.

107. Deste modo, o artigo 30.º do NRAU permite ao senhorio, ainda que prescindindo das especiais condições legalmente previstas para a actualização da renda, obter a transição para o NRAU do contrato de arrendamento para habitação.

              Contra-alegou a Ré, pugnando pelo acerto da decisão e pela não verificação dos vícios aduzidos.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C) são as seguintes as questões a tratar:

- da nulidade da sentença por falta de fundamentação;

- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

- do erro notório na apreciação da prova;

- do erro de julgamento da matéria de facto e, nesta sede, (eventualmente), da insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto,

sendo que a propugnada alteração da matéria de facto sempre implicando uma decisão distinta da questão jurídica.


A)  Das nulidades da sentença

Resulta do disposto no art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando “os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”

Por seu turno, sancionando o incumprimento desta injunção, prescreve o art. 615º, n.º 1, al. b), do C. P. Civil que é nula a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Na realidade, não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz[1]. Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objetivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto[2].

Todavia, ao nível da fundamentação de facto e de direito da sentença, como é lição da doutrina e da jurisprudência, para que ocorra esta nulidade “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” (nosso sublinhado).[3] Neste sentido, que é o tradicionalmente perfilhado, referia J. Alberto dos Reis[4], a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão, que importa proceder-se à distinção cuidadosa entre a “falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.” (sublinhado nosso). Vide, ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 609; e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, págs. 221-222.

De todo o modo, no actual quadro constitucional (art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas (cfr. art. 154º do C. P. Civil), parece que também a fundamentação de facto ou de direito gravemente insuficiente, isto é, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório.[5]

Feitas estas considerações, de todo o modo, no caso em apreço, é nosso entendimento que não ocorre manifestamente a invocada nulidade por falta de fundamentação de facto e/ou de direito.

Com efeito, do teor da decisão recorrida é perfeitamente possível alcançar o quadro factual e jurídico subjacente ao sentido decisório contido na mesma decisão, nomeadamente é possível alcançar, sem particular esforço, que o Juiz a quo definiu concretamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, discriminando ainda a factualidade não considerada provada, apreciando ainda os meios probatórios produzidos, designadamente do ponto de vista documental e testemunhal.

Subsequentemente, na mesma decisão, subsumiu a factualidade assente ao Direito, fundamentando juridicamente a decisão em causa, concluindo fundadamente pela improcedência da acção.

Porque tal ocorre, e nesta perspetiva, a fundamentação constante da decisão recorrida é a bastante para a decisão que ali era suposto ser proferida, sendo certo que é perfeitamente claro o enquadramento factual tido por assente e considerado relevante pelo tribunal de 1ª instância, assim como o quadro normativo aplicável e subjacente à decisão, permitindo, pois, aos respetivos destinatários exercer, de forma efetiva e cabal, a sua análise e a sua crítica, suscitando a sua reapreciação, como ora sucede nesta instância.

Não pode, pois, sustentar-se que a sentença em crise seja nula por falta de fundamentação de facto e de direito, pois que os pressupostos de facto e de direito que conduziram ao sentido decisório acolhido na mesma sentença se mostram nela evidenciados de forma objetiva, lógica e racional.

Os recorrentes  podem, naturalmente (e fazem-no também, em termos que logo denotam estar a decisão fundamentada), discordar do sentido decisório acolhido na sentença em apreço ou até considerar a fundamentação do mesmo insuficiente ou errónea, designadamente no que se refere à fundamentação ou motivação da decisão da matéria de facto (o que contenderá com a decisão de mérito e que pode conduzir à sua revogação ou alteração), mas não podem sustentar, de forma procedente, que a decisão em crise é nula por falta de fundamentação, sendo que, conforme o exposto, apenas a absoluta ausência ou grave deficiência de fundamentação (de facto e/ou de direito) – de forma que impeça o destinatário de alcançar o quadro factual e jurídico subjacente à decisão em crise – pode levar ao decretamento da nulidade da decisão.

Destarte, neste segmento, improcede a apelação.


*

Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Esta previsão legal está em consonância com o comando do art. 608º, n.º 2 do C. P. Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Importa, no entanto, não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.

De facto, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objeto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido pressuposto pelo citado art. 608.º, n.º 2 do C. P. Civil. Assim, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Neste sentido, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis, refere este Ilustre Professor, que “uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.(…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.[6] (nosso sublinhado).

Este entendimento tem, como é consabido, sido corroborado, há muito, pela jurisprudência que sempre o acolheu defendendo que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, porquanto o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos invocados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se “sobre as questões que devesse apreciar” ou sobre as questões de que não podia deixar de tomar conhecimento”. Vide, neste sentido, por todos, Ac. STJ de 08.02.2011, proc. n.º 842/04.8TBTMR.C1.S1, relator Moreira Alves; Ac. STJ de 21.10.2014, proc. n.º 941/09.0TVLSB.L1.S1, relator Gregório Silva Jesus; Ac. STJ de 22.11.2015, proc. n.º 24/09.2TBMDA.C2.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Ac. STJ de 07.07.2016, proc. n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1.S1, relatora Ana Luísa Geraldes, e Ac. STJ de 04.05.2017, este já citado, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objeto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respetiva causa de pedir – cfr. art. 581º, n.º 4, do C. P. Civil, que consagra o denominado princípio da substanciação) e das exceções deduzidas. Terá, pois, de apreciar e decidir as todas as questões trazidas aos autos pelas partes – pedidos formulados, exceções deduzidas, … – e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.

A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas. Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou “error in iudicando”, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.

Certo também que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie o requerido, pois que o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.

De todo o modo, a sentença não deixa de se constituir como um acto jurídico não negocial, ao qual são aplicáveis, nos termos e para os efeitos do art. 295º do CC, as regras gerais da interpretação jurídica e, desde logo, a doutrina da impressão do destinatário, sendo o labor interpretativo alcançável bem assim do contexto da decisão/despacho e respectiva fundamentação.

Quando se tenham presentes estas directrizes, o contexto da decisão, os termos da absolvição e, decisivamente, o facto havido como não provado sob 12, impõe-se concluir que a questão do pátio ou terreiro foi objecto de juízo, o mesmo concernente ao dos anexos.

Cremos que, in casu não existe qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida, improcedendo outrossim, neste âmbito, a apelação apresentada.


*

Mais se reconduzem os recorrentes a “erro notório na apreciação da prova”… O erro notório na apreciação da prova é um vício típico do processo penal, no art. 410º, n.º 2 do CPP, constituindo-se como um vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos. Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

No processo civil, o que está previsto é uma nulidade da sentença, na alínea c) do artigo 615º, n.º 1, reconduzível à oposição entre os fundamentos e a decisão e alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível.

A nulidade, por aplicação do art. 615.º, n.º 1, al. c), 2.a parte, fundada em «ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível», implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adoptada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico, considerados os factos adquiridos processualmente e visto o decisório in totum.

Nada disto sucede, no caso, sendo que a argumentação recursiva não caracteriza qualquer ininteligibilidade da decisão, mas uma pura e simples discordância quanto ao julgamento da matéria de facto.

Não enferma a decisão recorrida de qualquer nulidade, por conseguinte.


B)  Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A questão que importa agora dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.

Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes[7] o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”.[8] Neste sentido, mais recentemente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 14 de novembro, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65.

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior. Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos[9].

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, os recorrentes, cumprindo os apontados requisitos formais[10], pretendem a alteração da factualidade dada como assente e não assente, de modo que a factualidade havida por indemonstrada sob 10) a 12) seja havida como demonstrada, a determinar, assim, a procedência da acção.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelos recorrentes, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.

Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[11], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.

Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.

Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova[12], princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil.[13]

De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).

Como refere Miguel Teixeira de Sousa[14], a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.

Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha. Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.

Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.[15]

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.[16]

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pelos recorrentes.

É a seguinte a matéria de facto provada e não provada.

1) Por escrito datado de 1 de julho de 1978 DD deu de arrendamento a AA uma dependência com duas divisões no Lugar ..., em ..., Vila Nova de Gaia, pelo prazo de um ano, mediante o pagamento da renda mensal de 2.500 escudos, tudo conforme termos do documento n.º 4, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2) Mostra-se atualmente registado a favor dos autores a aquisição, por compra, do prédio urbano sito em ..., em Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1.ª Conservatórias do Registo Predial de Vila Nova de Gaia

3) Por o terem adquirido a DD.

4) Por contrato de arrendamento celebrado em 1976, DD deu de arrendamento ao ex-marido da ré EE pelo menos uma casa que fica no mesmo prédio referido em 1).

5) Ficando, na perspetiva de quem entra pelo portão ali existente, a casa em que habita a ré do lado esquerdo e a casa em que habitam os autores do lado direito.

6) O direito ao arrendamento referido em 4) foi atribuído à ré no processo de divórcio litigioso n.º 4712/15.6 6T8VNG do Tribunal de Família de Vila Nova de Gaia, J2, sendo nesse local que ainda reside.

7) A renda que a ré pagava aos autores era de 41,34€

8) A ré tem pago mensalmente aos autores a quantia de 41,34€, não tendo qualquer valor mensal em falta

9) A ré nasceu a ../../1954.

3.2 Matéria de facto não provada

10) Mercê das sucessivas renovações e atualizações a renda atual cifra-se em 70€ mensais

11) A ré não pagou as rendas a partir de abril de 2021

12) A ré invadiu o pátio do terreno vizinho ao seu locado, ocupando uns anexos, colocando uns cadeados nas portas umas chapas na janela, impedindo o acesso do senhorio.


*

Desde logo, evidencia-se um erro de julgamento quanto à menção errónea à falta de junção do exemplar escrito do contrato de arrendamento.

Este foi junto, constando dos autos sob documento n.º 1 com o requerimento sob a referência 34067292, de 05.12.2022, acompanhada esta junção bem assim da declaração fiscal daquele mesmo arrendamento…

Nessa medida, caberá alterar em conformidade a aquisição probatória do contrato de arrendamento, em conformidade com o teor daqueles documentos efectivamente juntos, alterando-se o facto provado sob 4) nos seguintes termos:

4) Por contrato de arrendamento celebrado em 01 de Maio de 1976, DD deu de arrendamento ao ex-marido da ré EE uma ali identificada casa de três divisões que fica no mesmo prédio referido em 1), nos termos do contrato junto sob documento n.º 1 com o requerimento sob a referência 34067292, de 05.12.2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


*

A consideração deste contrato e dos seus termos determina, como pretendem os recorrentes, que se tenha de haver como provado agora que a Ré ocupa, sem título ou abusivamente, o pátio do terreno vizinho ao seu locado e uns anexos?

Ou a necessidade de produção de outra prova, ordenada nos autos, mas não lograda, examinada e considerada, como pretendem subsidiariamente os recorrentes?

Desde já se adianta que a junção pela autoridade tributária de qualquer cópia do contrato originário na sua posse se apresenta manifestamente inútil, posto que o contrato está nos autos e bem assim o estão os termos da participação fiscal, em total consonância, pelo que imprestável a junção de meios de prova redundantes.

Ainda quando se reconheça a relativa imprecisão técnica na caracterização da matéria de facto, muito fruto do modo como vinha alegada a causa de pedir na petição inicial, adiante-se que não se tem por determinante que a identificação no contrato do objecto do arrendamento ao então marido da Ré (uma casa de três divisões) infirme a aquisição, por presunção judicial ou natural, de o arrendamento abranger também precisamente o anexo que resultou inequivocamente estar a ser ocupado pela Ré e o pátio…

Não se evidencia, pois, a existência de um erro de apreciação relativamente ao ponto de facto impugnado e, no que interessava, quanto ao objecto mesmo do arrendamento… Patenteia-se é uma indesejável confusão entre matéria de facto e de direito, que se impõe corrigir.

De todo o modo, muito ao invés da demonstração pretendida pelos recorrentes, ouvida a prova, depoimento de parte do recorrente marido incluído, não se pode chegar a outra conclusão se não aquela a que chegou o M.mo Juiz recorrido.

Na verdade, a ocupação pela Ré (casada com o arrendatário originário e após a atribuição do direito no divórcio) do anexo (e pátio, como se infere) é-o desde a ocasião do início do arrendamento… Era-o até de mais espaços ou anexos, ocupação entretanto cessada, alegadamente, por via de uma acção judicial instaurada pelo primitivo senhorio e antecessor dos AA… Ora, se a ocupação durante todo o tempo do contrato sem qualquer oposição pelo senhorio,  muito decisivamente desde o princípio do arrendamento[17] [não sendo comum, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência que os actos ou comportamentos “abusivos” sejam imediatos, antes se iniciando mediante o aproveitamento de uma inacção que carece de ser testada ou “descoberta”]  já caracterizaria um âmbito ou objecto do contrato para além ou para lá da descrição da casa arrendada no contrato (essa sim decisiva à identificação, porquanto existente uma outra casa apta a ser arrendada, como de resto o foi), que não apenas uma situação de tolerância; a existência de uma acção, tal como trazida aos autos pelo Autor marido, mediante a qual o senhorio retoma a posse de alguns dos anexos, mantendo-se a Ré no uso ou gozo do anexo cuja ocupação ainda mantém, como do pátio, é decisiva no sentido da demonstração de um fundamento contratual para a ocupação…

Ora, não tendo os AA junto os termos de uma tal acção aos autos, mas tendo-se-lhe referido o A. marido nos termos que se aludiram (confirmados pela Ré), e tendo resultado prova quanto à desocupação, em dado momento, pela Ré de parte dos espaços por si ocupados, mantendo-se o uso pela Ré do anexo, tem de inferir-se que a ocupação por aquela Ré vem a ser fundada no contrato de arrendamento (inicial) ou quando menos no alargamento do objecto deste aquando da acção versada… A não junção de certidão dos termos da acção não obsta a esta prova por presunção judicial ou natural, que permite a afirmação de que o anexo e pátio ocupados pela Ré se integram no âmbito do contrato de arrendamento, infirmando, pois, a ocupação abusiva ou não titulada…

Como invocar a parcimónia dos termos do contrato ou até o que alegadamente terá sido referido pelo primitivo senhorio (como terá ele justificado a falta de título e a manutenção da ocupação após a acção relatada?), quando a realidade de mais de 40 anos “desmente” o abuso ou ilícito e antes se encaminha para uma ocupação titulada?

Claro que este juízo determinará, infra, a necessidade de alteração da matéria de facto, mas num sentido bem contrário à pretensão dos recorrentes.

De resto, convocável ademais um outro argumento, relacionado já com o ónus da prova, visto o pedido deduzido no que importa à ocupação “abusiva”… Pese embora o esforço probatório na audiência de julgamento o tenha sido quase todo dirigido à questão da ocupação titulada ou abusiva, certo é que o que vem pedido é o despejo do imóvel e a reposição dos espaços ocupados no estado anterior, concomitante ou simultânea com a entrega do mais arrendado[18]… Ora, ainda quando uma tal ocupação abusiva ou para além do contrato se pudesse constituir como causa de resolução (e sempre muito discutível numa situação com a do contorno dos autos, da perspectiva agora da gravidade da violação – relevo do incumprimento - e da inexigibilidade da manutenção do contrato, critérios legais exigidos para o preenchimento do incumprimento resolutório), em causa, então, um facto constitutivo do direito à resolução do contrato, por culpa da inquilina, a provar, consequentemente, de acordo com as regras gerais, pelos AA…

Nessa medida, novamente o princípio de prova constituído pelo teor literal do contrato se vê contraditado, de forma não escamoteável, pela ocupação duradoura e sem oposição do senhorio, em termos de não demonstrarem os AA que o anexo e pátio ocupado estão excluídos do objecto do arrendamento, sendo a ocupação abusiva.

Quanto agora ao problema da falta de pagamento (parcial) da renda, reconheça-se novamente o menor rigor técnico na destrinça entre matéria de facto e matéria de direito, novamente por via do modo como os AA mesmos configuraram a acção.

Assim, também nessa sede se impõe uma alteração da matéria de facto, a partir já da comunicação pelos AA junta sob documento nº 8 com a contestação, a resposta da Ré e os termos dos documentos juntos, como referidos nos factos pertinentes.

É que a questão da “eficiência” do comunicado aumento da renda se constitui, inteiramente, como uma questão de direito, cuja sede vem a ser a da discussão do aspecto jurídico da causa.

Impõe-se a expurgação da matéria de facto das conclusões, nomeadamente jurídicas, que ali foram feitas constar, muito embora, ao invés de se evidenciar qualquer erro de julgamento da matéria de facto, tenha de concluir-se pela correcta análise da prova pela 1ª instância, traída pela infelicidade da tradução/redacção.

Assim, a matéria de facto a considerar, com as alterações/modificações que se impõem é a seguinte:

1) Por escrito datado de 1 de julho de 1978 DD deu de arrendamento a AA uma dependência com duas divisões no Lugar ..., em ..., Vila Nova de Gaia, pelo prazo de um ano, mediante o pagamento da renda mensal de 2.500 escudos, tudo conforme termos do documento n.º 4, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2) Mostra-se atualmente registado a favor dos autores a aquisição, por compra, do prédio urbano sito em ..., em Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1.ª Conservatórias do Registo Predial de Vila Nova de Gaia

3) Por o terem adquirido a DD.

4) Por contrato de arrendamento celebrado em 01 de Maio de 1976, DD deu de arrendamento ao ex-marido da ré EE uma ali identificada casa de três divisões que fica no mesmo prédio referido em 1), nos termos do contrato junto sob documento n.º 1 com o requerimento sob a referência 34067292, de 05.12.2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido

5) Ficando, na perspetiva de quem entra pelo portão ali existente, a casa em que habita a ré do lado esquerdo e a casa em que habitam os autores do lado direito.

6) O direito ao arrendamento referido em 4) foi atribuído à ré no processo de divórcio litigioso n.º 4712/15.6 6T8VNG do Tribunal de Família de Vila Nova de Gaia, J2, sendo nesse local que ainda reside.

7) A ré tem pago mensalmente aos autores a quantia de 41,34€, na qual se cifrava a renda à data de 08 de Janeiro de 2019.

9) A ré nasceu a ../../1954.

10) Os AA remeteram à Ré,  que a recebeu, datada de 08 de Janeiro de 2019, a carta junta com a contestação sob documento nº 7, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual, para além do mais, fizeram constar o seguinte:

11) Respondeu a Ré aos Autores, a 16 de janeiro, dando nota de que a renda tinha sido actualizada pelo anterior senhorio já ao abrigo do NRAU, não podendo ser novamente actualizada; que não estava na comunicação dos Autores fundamentado sequer o cálculo do valor de renda actualizado (considerando que o prédio em causa é um prédio em propriedade total, sem divisões susceptíveis de utilização independente, nos termos do Doc 2 junto com a P.I.cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

A Ré respondeu, também, que nunca existiram obras no locado, que não tinha capacidade económica (o RABC é inferior a 5 RMNA), nem aceitava a passagem do contrato para duração limitada.

12) A Ré é reformada e recebe o CNP uma pensão, a qual, em Fevereiro de 2002 o era no montante mensal de 443,51 EUR, nos termos do documento sob o número 5 com a contestação.

13) A Ré ocupa o pátio do terreno vizinho ao seu locado e um anexo existente no imóvel, colocando uns cadeados nas portas e umas chapas na janela, impedindo o acesso dos senhorios, sendo que esta ocupação o é desde a data do início do arrendamento assente em 4) com o consentimento/assentimento do senhorio e desde data/ocasião não concretamente apurada mediante a integração no objecto do arrendamento já existente.


*

               Com interesse para a decisão apenas não se provou que a Ré ocupe outros anexos ou espaços a mais dos identificados sob 13), nem também que o senhorio primitivo tenha procedido à actualização da renda nos termos previstos no NRAU, por absoluta falta de prova destes factos, nessa parte cabendo-nos reconduzir à fundamentação mesma da sentença recorrida.

               C)

              Como adiantado, é nesta sede que caberá afrontar a questão jurídica do montante/valor da renda, posto que é à falta de pagamento do montante integral desta que reconduzem os AA, após a contestação e os termos desta, reconheça-se, o fundamento para a peticionada resolução do contrato.

               Ora, o regime jurídico do NRAU quanto à possibilidade de aumento da renda aplica-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15.10 (art.º 27º).

A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação: a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos; b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana; c) Cópia da caderneta predial urbana; d) Que o prazo de resposta é de 30 dias; e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte; f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32º; g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte (art.º 30º).

O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior (art.º 31º, n.º 1). O arrendatário, na sua resposta, pode: a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio; b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33º (…) (n.º 3). Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias: (…) b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36º (n.º 4). O arrendatário pode, no prazo previsto no n.º 1, reclamar de qualquer incorreção na inscrição matricial do locado, nos termos do disposto no artigo 130º do CIMI, junto do serviço de finanças competente (n.º 6). A reclamação referida no número anterior não suspende a atualização da renda, mas, quando determine uma diminuição do valor da mesma, há lugar à recuperação pelo arrendatário da diminuição desse valor desde a data em que foi devida a renda atualizada (n.º 7).

O DL n.º 287/2003, de 12.11, ao proceder à reforma da tributação do património (versão primitiva e subsequentes alterações), estabelece, nomeadamente: Os valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos objecto da avaliação geral são determinados por avaliação directa, nos termos dos artigos 38º e seguintes do CIMI (art.º 15º-D, n.º 1, aditado pela Lei n.º 60-A/2011, de 30.11).

Quando se proceder à avaliação de prédio arrendado, o IMI incidirá sobre o valor patrimonial tributário apurado nos termos do artigo 38º do CIMI, ou, caso haja lugar a aumento da renda de forma faseada, nos termos do artigo 38º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano, sobre a parte desse valor correspondente a uma percentagem igual à da renda actualizada prevista nos artigos 39º, 40º, 41º e 53º da referida lei sobre o montante máximo da nova renda (art.º 17º, [19]n.º 2 - na redacção conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02). Não tendo sido realizada a avaliação nos termos do n.º 2, no ano da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 (…), o valor patrimonial tributário de prédio ou parte de prédio urbano arrendado, por contrato ainda vigente e que tenha dado lugar ao pagamento de rendas até 31 de Dezembro de 2001, é o que resultar da capitalização da renda anual pela aplicação do factor 12, se tal valor for inferior ao determinado nos termos do artigo anterior (n.º 4). A partir do ano seguinte ao da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, 27 de Fevereiro, que aprova o NRAU, e enquanto não existir avaliação nos termos do artigo 38º do CIMI, o valor patrimonial tributário do prédio, para efeitos de IMI, é determinado nos termos do artigo anterior (n.º 5).

Tratando-se de prédios urbanos só em parte arrendados, cujos rendimentos parciais estão discriminados nas matrizes urbanas, aplicam-se os dois critérios a que se referem os artigos 16º e 17º à parte não arrendada e à parte arrendada, respectivamente, somando-se os dois valores para determinar o valor patrimonial tributário global do prédio (art.º 19º).

 Prevê o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis/CIMI (aprovado pelo DL n.º 287/2003, de 12.11 - “Anexo I”):

- O imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar (art.º 8º, n.º 1). Na situação prevista no art.º 81º o imposto é devido pela herança indivisa representada pelo cabeça-de-casal (n.º 5).

- As matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários (art.º 12º, n.º 1). Existem duas matrizes, uma para a propriedade rústica e outra para a propriedade urbana (n.º 2). Cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário (n.º 3). As matrizes são actualizadas anualmente com referência a 31 de Dezembro (n.º 4).

- A determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão: Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv em que: Vt = valor patrimonial tributário; Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização Cq = coeficiente de qualidade e conforto; Cv = coeficiente de vetustez (art.º 38º, n.º 1; cf., ainda, quanto aos referidos factores/coeficientes, os art.ºs 39º e seguintes).

- Quando um prédio faça parte de herança indivisa, é inscrito na matriz predial respectiva em nome do autor da herança com o aditamento 'Cabeça-de-casal da herança de...', sendo atribuído à herança indivisa, oficiosamente, o respectivo número de identificação fiscal pelo serviço de finanças referido no artigo 25º do Código do Imposto do Selo (art.º 81º, n.º 1).

- As matrizes urbanas devem especificar: a) O nome, identificação fiscal e residência dos proprietários, usufrutuários ou superficiários; b) A localização e nome do prédio, quando o tenha, confrontações ou número de polícia, quando exista; c) Descrição do prédio ou indicação da sua tipologia, quando esta exista; d) Os elementos considerados para o cálculo do valor patrimonial tributário do prédio; e) O valor patrimonial tributário (art.º 91º, n.º 1).

- A cada edifício em regime de propriedade horizontal corresponde uma só inscrição na matriz, excepto no caso previsto na parte final do n.º 1 do art.º 79º (art.º 92º, n.º 1). Na descrição genérica do edifício deve mencionar-se o facto de ele se encontrar em regime de propriedade horizontal (n.º 2). Cada uma das fracções autónomas é pormenorizadamente descrita e individualizada pela letra maiúscula que lhe competir segundo a ordem alfabética (n.º 3).

- O sujeito passivo, a câmara municipal e a junta de freguesia podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, nomeadamente com base nos seguintes fundamentos: a) Valor patrimonial tributário considerado desactualizado; b) Indevida inclusão do prédio na matriz; c) Erro na designação das pessoas e residências ou na descrição dos prédios; (…) h) Não discriminação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos por andares ou divisões de utilização autónoma; i) Passagem do prédio ao regime de propriedade horizontal; (…) (art.º 130º, n.º 3).

- A apreciação das reclamações referidas no artigo anterior é da competência dos chefes de finanças da área de situação dos prédios (art.º 131º).

Quando se tenha presente o quadro legal sob referência, é  irrelevante, para efeitos de actualização da respetiva renda, a comunicação feita pelos AA à Ré, ainda quando nada se tenha apurado quanto ao envio com a comunicação da caderneta predial[20], posto que o valor fiscal apresentado para o cálculo do aumento proposto do valor da renda  se reporta a todo o prédio.

O processo de actualização da renda foi desencadeado pelos AA, que fundamentaram o cálculo do aumento proposto, como da missiva acima reproduzida resulta, considerando metade do valor patrimonial total do imóvel.

Para que a comunicação dos AA pudesse ter qualquer eficácia legal, era indispensável que, em cumprimento do citado art.º 30º al. b) da Lei n.º 6/2006, na redação introduzida pela Lei 31/2012 de 14.8, mantida pela Lei n.º 79/2014, de 19.12, nela tivesse sido indicado, que não foi, o valor do locado; ou seja: o valor patrimonial da individualizada parte do imóvel objecto do arrendamento, avaliado nos termos do art.º 38º e seguintes do CIMI e constante da caderneta predial urbana. Ora, não foi indicado pelos AA, ora recorrentes, na comunicação o valor patrimonial correspondente à parte do imóvel objecto do contrato de arrendamento em causa, sendo o critério (1/2 do valor patrimonial total do imóvel) utilizado na carta absolutamente aleatório e destituído de suporte legal.

Demostrada a falta de comunicação, por parte dos AA/senhorios à Ré/arrendatária, do valor patrimonial do locado, impõe-se concluir não terem aqueles cumprido o formalismo previsto no art.º 30º da citada Lei n.º 31/2014.  Daí que, não se revelando eficaz a comunicação, não ocorreu uma alteração do montante da renda.

Na verdade - esta a questão central -, os AA não indicaram à Ré o valor patrimonial da parte locada do prédio, o que era, e é, essencial para a validade/eficácia da comunicação prevista no art.º 30º, alíneas b) e c), do NRAU, antolhando-se evidente que o valor aventado e arbitrariamente indicado na comunicação não foi determinado segundo os procedimentos legalmente previstos e tendo presente toda a correspondente realidade predial.

Sobre toda a matéria, cf., de entre vários, os acórdãos da RC de 13.01.2015-processo 658/13.0TBCVL.C1 e do STJ de 20.12.2017-processo 2058/16.1YLPRT.L1.S1 [considerando-se, designadamente - entendimento não postergado pelo regime jurídico introduzido pela Lei n.º 79/2014, de 19.12 - : «(…) não é ao arrendatário que cabe reclamar, junto dos serviços de finanças, de qualquer incorreção na inscrição matricial do locado, nos termos do disposto no art.º 130º do CIMI. / É, antes, ao proprietário do prédio que cabe a tarefa de requerer, na Repartição de Finanças, o valor patrimonial individualizado do locado que deve figurar na caderneta predial, destinada a instruir o procedimento de actualização da renda relativa ao locado. / É que, tal como já se deixou dito, constitui condição para o senhorio exercer o direito de requer a atualização do valor da renda, a indicação, na carta que dirige ao arrendatário, do valor do locado constante da caderneta predial urbana, avaliado de acordo com o critério previsto no art.º 38º e segs. do CIMI, bem como a respectiva caderneta predial.»], publicados no “site” da dgsi.

Na doutrina, vide, nomeadamente, Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 4ª edição, Almedina, pág. 188 e Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano Anotado, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág.140, onde se refere: “Na sua comunicação, o senhorio tem plena liberdade para transmitir ao arrendatário o valor da renda pretendida, bem como a modalidade temporal que pretende que o contrato passe a ter, mas tem o ónus de enviar ao arrendatário, nessa comunicação, uma cópia da caderneta predial urbana da qual conste o valor do local arrendado (calculado nos termos do artigo 38º do CIMI)”.

Em conclusão, pese embora a alteração introduzida ao NRAU pela Lei n.º 79/2014, de 19.12, mormente quanto à nova redacção dada ao art.º 31º, afigura-se que o procedimento de actualização da renda por iniciativa do senhorio - considerando, ainda, o preceituado nos art.ºs 27º e 30 e seguintes do NRAU (arrendamentos para habitação) -, sempre pressupõe ou implica a menção e a junção, na respectiva comunicação, de todos os elementos e documentos enumerados no art.º 30º do NRAU (requisitos de ordem substancial), sem os quais, diga-se, não é possível uma esclarecida tomada de posição (resposta) por parte do destinatário/arrendatário, nos termos e para os efeitos do art.º 31º do NRAU.

Só depois de uma comunicação devidamente instruída poderá/deverá o arrendatário, no prazo de 30 dias (n.º 1 do art.º 31º do NRAU), declarar se aceita o valor da renda proposto pelo senhorio ou opor-se, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 33º (n.º 3) (obviamente, o conhecimento do valor matricial do local arrendado é um elemento relevante na tomada de decisão do arrendatário), ou, se assim o entender, reclamar de qualquer incorreção na inscrição matricial do locado junto do Serviço de Finanças, nos termos do disposto no art.º 130º do CIMI (n.º 6).

Totalmente ineficaz, pois, a comunicação de actualização do valor da renda de 31.10.2017 - tudo se passando como se não tivesse sido feita -, a que a Ré/arrendatária respondeu, como provado.

Não ocorrendo uma alteração válida da renda, a Ré continuou a pagar a retribuição devida.

Completamente destituída de sentido a invocação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 15.06.2023, já que, como resulta, nada tem a ver com a questão dos requisitos para a eficácia da comunicação do aumento da renda; apenas e só com a “transição para o NRAU”, que não é convocada para a decisão da resolução do contrato com base na falta de pagamento das rendas[21]

Tudo para concluir, pois, pela falta de razão dos Recorrentes quanto ao julgamento de improcedência total da acção.


III
- Por tudo o exposto, decide-se:
a) Conceder parcial provimento ao recurso no que importa ao julgamento da matéria de facto, alterando-se em conformidade com o que antecede;
b) Negar provimento à apelação, no mais, mantendo a absolvição da Ré dos pedidos deduzidos.

Custas da acção pelos AA e do recurso na proporção de 4/5 pelos Autores, sendo-o o restante pela Ré.

Notifique.


Porto, 08 de Fevereiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Aristides Rodrigues de Almeida
João Venade
_________________
[1] Neste sentido, J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 139.
[2] Sobre a fundamentação das decisões judiciais, vide, por todos, Ac. do STJ de 24.11.2015, Processo n.º 125/14.5FYLSB, relator Souto Moura, acessível em www.dgsi.pt. (além da demais jurisprudência citada neste aresto).
[3] Neste sentido, por todos, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 687.
[4] Ob. citada, Vol. V, pág. 140.
[5] Assim, a título meramente exemplificativo, Ac. do STJ de 02.03.2011, proc. n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, relator Sérgio Poças; e Ac. da Relação do Porto de 16.06.2014, proc. n.º 722/11.0TVPRT.P1, relator Carlos Gil., ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Ob. cit., pág. 143.
[7] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág.164.
[8] Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
[9] Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
[10] Sem prejuízo de as alegações de recurso e, decisivamente, as conclusões pecarem pela falta de concisão e objectividade, espelhando matéria absolutamente irrelevante ou inócua, da qual sequer os apelantes retiram qualquer efeito ou consequência, prejudicando, pois, a análise do essencial.
[11] Ob. citada, págs. 274 e 277.
[12] Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
[13] O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
[14] Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
[15] Por todos, o Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, acessível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609.
[17] As testemunhas da Ré, vizinhos, e o Autor marido mesmo foram unânimes quanto a esta circunstância ou facto: a Ré sempre ocupou os anexos, desde o início do contrato.
[18] Não vem subsidiariamente pedida a restituição dos anexos ocupados indevidamente…
[19] Que estabeleceu um regime transitório para os prédios urbanos arrendados.
[20] Mencionando-se o envio daquela na carta, não foi junta aos autos, sendo que a Ré não alegou não ter sido enviada/recebida e não foi produzida qualquer prova quanto a esse facto. Insusceptível de consideração, pois.
[21] Evidente ainda que a argumentação não é transponível para a situação do aumento da renda, precisamente porquanto, no que a esta respeita, a indicação do valor fiscal do imóvel ou parte deste arrendado a partir da qual é calculado o aumento respectivo é essencial, nos termos expostos, à posição do arrendatário…