Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1544/18.3T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RP202104291544/18.3T8STS.P1
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Da conjugação das normas do corpo do n.º3 do art.º 239.º e da al. b), i) do mesmo n.º3 resulta que o rendimento disponível do insolvente deve ser calculado mensalmente e que a entrega desse rendimento dever ser feita logo que é recebida.
II – A aplicação à quantia recebida pelo insolvente a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho da impenhorabilidade de 2/3 fixada no n.º1 do art.º 738.º do CPC (com os limites máximo e mínimo previsto no n.º3 desse preceito), apenas tem razão de ser se o insolvente não tiver outros rendimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1544/18.3T8STS.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1379
Insolvência – Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3

I.
Nos autos de insolvência, em que é insolvente B…, por despacho de 18.06.18, foi-lhe concedida a exoneração do passivo restante, tendo o rendimento indisponível sido fixado em 1,5 SMN.
Em 01.08.19, o Fiduciário apresentou relatório anual, no qual afirmou que a insolvente não lhe fez qualquer entrega, por os rendimentos auferidos terem sido inferiores ao estipulado na sentença de exoneração do passivo restante.
Em 31.07.20, o Fiduciário apresentou segundo relatório anual, no qual afirmou que a insolvente não lhe fez qualquer entrega, mas que foi notificada para entregar o valor de € 606,15, que ultrapassou o fixado na sentença de exoneração do passivo restante.
Em 06.08.20, a insolvente requereu que fosse determinado que nada tinha a entregar, na medida em que os rendimentos anuais não excederam a quantia de € 10,800 (900 X 12 meses) ou, caso assim não entenda, que fosse autorizada a pagar a referida quantia em prestações de € 50,00.
Aquele requerimento foi indeferido por despacho de 17.11.20.

A insolvente recorreu daquele despacho, formulando as seguintes

CONCLUSÕES
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
Com interesse para a decisão do recurso, está provado o seguinte facto:
No mês de Julho de 2019, a insolvente auferiu a quantia líquida de € 1.506,15, correspondente ao valor do seu vencimento, acrescido do valor da compensação recebida pela cessação de contrato de trabalho. (relatório do Fiduciário de 31.07.20, aceite pela insolvente nas conclusões de recurso)

Têm também interesse para a decisão do recurso os elementos que constam do ponto I.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação da apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – é a seguinte:
- Se a insolvente não tem de entregar ao Fiduciário a quantia de € 606,15.

Como se refere no ponto 45 do Preâmbulo do DL 53/04, de 18.03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem – o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…) é agora também acolhido entre nós, através do regime da "exoneração do passivo restante".
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento desta.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afectará os montantes recebidos ao pagamento aos credores. No termo deste período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
Afirma Assunção Cristas[1] que o artigo 235.º introduz uma medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular ao permitir que, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos.
O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique vinculado a essas obrigações até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir 20 anos (artigo 309.º do CC)[2].
O pedido de exoneração do passivo restante tem de ser formulado pelo devedor nos termos previstos no artigo 236.º; devendo constar desse pedido, além do mais, a declaração de que se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (n.º 3 do preceito).
A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que tenha sido proferido o despacho referido no artigo 239.º, no qual o juiz declare que aquela exoneração só será concedida uma vez cumpridas pelo devedor as obrigações ali previstas (artigo 237.º, al. b).
O artigo 239.º, n.º 2 determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
O critério para definição do rendimento disponível encontra-se definido no nº 3 do citado artigo 329.º.
Segundo aquele preceito, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º, cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz:
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Finalmente, há que notar que a violação, por parte do insolvente, com dolo ou negligência grave, das obrigações impostas pelo artigo 239.º pode levar à cessação antecipada do procedimento de exoneração (artigo 243.º, n.º 1), à recusa de exoneração definitiva (artigo 244.º, n.º 2) e à revogação da exoneração (artigo 246.º).
As obrigações impostas ao devedor pelo n.º 4 do artigo 239.º são obrigações acessórias, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida a cessão do rendimento disponível[3].
Por isso, ao fazer a declaração prevista no n.º 3 do artigo 236.º, o devedor está ciente do cumprimento das obrigações acima referidas, pelo que é na formulação do pedido de exoneração do passivo restante, formulado no requerimento de apresentação à insolvência, que tem de alegar os factos e oferecer as provas suficiente à fixação pelo juiz da quantia necessária para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar – também, por força da aplicação das regras do artigo 303.º, n.º 1 do CPC, pois que o pedido de exoneração do passivo restante constitui um incidente do processo de insolvência[3].

Como se alcança dos elementos que constam do ponto I, o valor do rendimento mensal indisponível da insolvente foi fixado em 1,5 SMN.
O valor do SMN – agora com a designação de Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) – foi fixado, para o ano de 2019, em € 600,00, pelo DL 117/18, de 27.12.
O valor do rendimento mensal indisponível da insolvente, em Julho de 2019, ascendia, assim, a € 900,00 (€ 600,00 + € 300,00).
Está provado que no mês de Julho de 2019, a insolvente auferiu o rendimento líquido de € 1.506,15, correspondente à soma do seu vencimento e da quantia recebida a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho.
Deduzindo àquela quantia de € 1.506,15 o valor do rendimento indisponível da insolvente, obtém-se o valor de € 606,15 (€ 1.506,15 - € 900,00).
Aquele valor de € 606,15 corresponde, assim, ao valor do rendimento disponível da insolvente no mês de Julho de 2019.

Sustenta a insolvente que não está obrigada a entregar aquela quantia ao Fiduciário com base em dois argumentos:
- No ano de 2019, auferiu mensalmente, em média, quantia inferior ao rendimento indisponível que lhe havia sido fixado, devendo ser esta média que deve ser atendida para efeitos do cálculo da quantia a entregar ao fiduciário;
- A quantia recebida em excesso no mês de Julho de 2019 proveio de uma compensação pela cessação do seu contrato de trabalho, pelo que reveste a natureza de salário, sendo-lhe aplicáveis as regras da impenhorabilidade previstas no artigo 783.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

No que respeita à forma de cálculo do rendimento disponível a entregar ao fiduciário, concordamos com a posição assumida no Acórdão da RC de 28.03.17[5], citado no despacho recorrido, cuja fundamentação passamos a transcrever:
“(…).
O n.º 2 do artigo 239.º do CIRE estabelece que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário.
O n.º 3 do artigo 239.º do CIRE complementa a norma antecedente, traçando o perímetro do rendimento disponível.
Tal perímetro é o resultado da combinação do corpo do n.º 3 com as suas alíneas a) e b) e subalíneas i), ii), iii).
Para o caso interessa-nos o perímetro que resulta da combinação do corpo do n.º 3, com a alínea b), subalínea i), do citado preceito.
Desta combinação resulta o seguinte: dentro do perímetro do rendimento disponível cabem todos os rendimentos que advierem ao devedor, com exclusão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Vê-se, assim, que a norma da alínea b), subalínea i), concorre para a definição do rendimento disponível. E concorre pela “via da exclusão”, embora não seja uma norma de exclusão de rendimentos, no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor [como sucede por exemplo com a norma de exclusão da alínea a), do n.º 3]. O que ela exclui do rendimento disponível – qualquer que seja a sua proveniência – é uma parcela dos rendimentos que advenham ao devedor.
E fá-lo por respeito à dignidade dos devedores, enquanto pessoas humanas [artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa]. Socorrendo-nos das palavras de Luís A. Carvalho Fernandes João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, página 788, tal exclusão decorre “da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular”.
O contributo que tal norma dá para a definição do rendimento disponível não vai, no entanto, no sentido pretendido pelos recorrentes, ou seja, no sentido de que tal rendimento - que o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE considera cedido ao fiduciário - é o que se apurar no fim de cada ano do período da cessão.
Vejamos.
Sobre a natureza da cessão prevista no n.º 2 do artigo 239.º, seguimos o entendimento de que se trata de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, páginas 176 e 177].
Segue-se daqui que todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se necessariamente a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.
E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês.
Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo.
Daí que, embora nem o despacho inicial (que fixou, em dois salários mínimos nacionais, o montante que considerava razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar) nem o despacho posterior (que alterou tal montante para € 1.335,00), tenham afirmado expressamente que tais montantes eram mensais, é com este sentido que devem ser interpretadas tais decisões. De resto, assim as interpretaram os recorrentes e o fiduciário.
Cabe perguntar, no entanto, o que resulta de tais normas [as normas dos artigos 239.º, n.º 2, e 239.º, n.º 3, alínea b), i, ambos do CIRE], nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família?
A resposta é a seguinte:
Em primeiro lugar, em tais hipóteses, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos.
Em segundo lugar, não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família.
Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos.
Daí que não tenha amparo no artigo 239.º, n.º 2, e no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), ambos do CIRE, a pretensão dos recorrentes no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão e que tal rendimento seja constituído pela diferença entre os rendimentos totais obtidos em cada ano e o produto da soma, também em cada ano, do montante fixado pelo tribunal como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e da sua família.
De resto, se a interpretação dos recorrentes fosse válida, então o apuramento do rendimento disponível não deveria ser feito sequer anualmente; deveria ser feito ao fim do período da cessão, o que não tem qualquer amparo na lei.
Contra a interpretação do n.º 2 do artigo 239.º, combinado com o n.º 3 alínea b), i), do artigo 239.º afirmada por este tribunal, não vale a circunstância de o n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, conjugado o n.º 1, do artigo 61.º, impor ao fiduciário o dever de prestar anualmente informação a cada credor e ao juiz sobre a situação da exoneração do passivo restante nem a circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 241.º do CIRE, ser dever do fiduciário afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (alínea a)), ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas [alínea b)]; ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas [alínea c)] e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
É que as normas em questão dizem respeito exclusivamente ao estatuto e às funções do fiduciário, não dando resposta à questão suscitada pelos recorrentes.
(…).”.

Em conclusão: da conjugação das normas do corpo do n.º 3 do artigo 239.º e da al. b), i) do mesmo n.º 3 resulta que o rendimento disponível do insolvente deve ser calculado mensalmente e que a entrega desse rendimento deve ser feita logo que é recebida, não tendo acolhimento naquelas normas o entendimento de que esse cálculo deve ser anual.

E, face a tal conclusão, não tem relevância a natureza das quantias que integram o rendimento disponível do insolvente num determinado mês.
Pode entender-se que à compensação pela cessação de contrato de trabalho são aplicáveis as regras da impenhorabilidade previstas no artigo 738.º, n.ºs 1 e 3 do CPC.
É esse o entendimento expresso no Acórdão da RL de 20.09.12[6], citado pela insolvente nas conclusões de recurso, no qual se escreveu:
(…) a indemnização por despedimento visa compensar o trabalhador que vê cessada a relação de trabalho, atribuindo-lhe um valor calculado com base em um determinado número de dias de salário x determinado número de anos de serviço, cálculo este que tem sofrido alterações quer no número de dias a atribuir, quer no número de anos de trabalho.
Temos assim que o valor a calcular tem sempre por base o salário do trabalhador e o lapso temporal em que desempenhou funções para a entidade patronal.
Daí que, embora a indemnização não seja um valor a título de salário, é um valor que tem por base o salário e visa compensar o trabalhador pelo despedimento e assegurar-lhe um meio de subsistir economicamente durante algum tempo.
De outro modo, em caso de despedimento ilícito e não optando o trabalhador pela reintegração no local de trabalho, a sua subsistência económica ficaria posta em causa até encontrar novo trabalho.
Por ser assim, entendemos que as razões que subjazem à aplicação do disposto no regime do art.824º do Código de Processo Civil [actual artigo 738.º] estão também presentes no caso em apreço, pelo que se impõe aplicar tal regime, por analogia, nos termos do art.10º, nº2, do Código Civil, à indemnização devida por cessação do contrato de trabalho.
(…).”.
Mas a aplicação à quantia recebida pelo insolvente a título de compensação pela cessação de contrato de trabalho da impenhorabilidade de 2/3 fixada no n.º 1 do artigo 738.º do CPC (com os limites máximo e mínimo previstos no n.º 3 do mesmo preceito), tem a sua razão de ser se o insolvente não tiver outros rendimentos.
Se, no mês em que aquela compensação foi recebida, esta excedeu no todo ou em parte o rendimento indisponível do insolvente, passando a integrar, no todo ou em parte, o seu rendimento disponível, não há razão para aplicar as referidas regras da impenhorabilidade porque o sustento minimamente digno do insolvente já se encontra assegurado.
Como também se explicou no aresto da RL acima citado, e a própria insolvente refere nas suas conclusões de recurso, subjacente às normas do artigo 738.º está o respeito pelo princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de Direito, consagrados nas disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, al. a) e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se dá como exemplo o Acórdão n.º 96/04, de 11.02.04[7].
Ora, às normas do n.º 3, al. a), i) também está subjacente o princípio da dignidade humana (cfr. a fundamentação do Acórdão da RC de 28.03.17, acima transcrita).
E se, no mês em que o insolvente recebe a compensação pela cessação do contrato de trabalho, o seu rendimento indisponível já está assegurado, mostra-se salvaguardado o princípio da dignidade humana.
Fazer incidir sobre o rendimento disponível do insolvente as regras da impenhorabilidade previstas no artigo 738.º do CPC seria conceder ao insolvente um duplo benefício, em violação do disposto no artigo 239.º, n.ºs 2, 3, al. a) e 4, al. c).

A insolvente está, assim, obrigada a entregar ao Fiduciário a quantia de € 606,15, que constitui o seu rendimento disponível do mês de Julho de 2019.
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IV.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, e, em consequência:
- Confirma-se o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
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Porto, 29 de Abril de 2021
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Carlos Portela
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[1] Exoneração do Devedor Pelo Passivo Restante, em Themis, ed. especial, 2005, pág. 167.
[2] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 305.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., pág. 906.
[4] Acórdão desta Relação de 02.06.11, www.dgsi.pt. No mesmo sentido, ver os Acórdãos desta Relação de 06.03.12 e da RL de 20.06.13, também em www.dgsi.pt.
[5] www.dgsi.pt.
[6] www.dgsi.pt.
[7] DR-II, n.º 78, de 01.04.04.