Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
273/19.5GCVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS A ANIMAIS
BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP20240306273/19.5GCVFR.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A atual posição do Plenário do Tribunal Constitucional relativamente ao crime de maus-tratos a animais, expressa no acórdão n.º 70/2014, de 23-01, votado por maioritária, é a de que o bem jurídico protegido tem dignidade constitucional, permitindo a criminalização das condutas ali previstas, e a lei se encontra suficientemente determinada, permitindo dar cobertura ao princípio da tipicidade do direito penal, corolário do princípio da legalidade.
II - A exigência que uma condenação penal pressupõe é a de um juízo de certeza, por oposição a um juízo de mera probabilidade. É a certeza, não absoluta, mas para além de toda a dúvida razoável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 273/19.5GCVFR.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2

Sumário:

....................................

....................................

....................................

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular n.º 273/19.5GCVFR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2, por sentença datada de 15-03-2023, foi decidido, entre o mais:

«A) Não julgar inconstitucional o art. 387.º n.1 do CP na redacção dada pela L.69/2014, de 29.08;

B) Absolver o arguido AA pela prática de um crime de maus tratos a animais, p.p. art. 387.º n.3 do CP na redacção dada pela L. 39/2020, de 18.08;

C) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de maus tratos a animais, p.p. art. 387.º n.1 do CP na redacção dada pela L.69/2014, de 29.08, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, fixando-se o quantitativo diário em €8,00 (oito euros);

D) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos art.ºs 153.º n.º1 e 155.º n.º 1 alínea a) do Código Penal na pena de 90 (noventa) dias de multa, fixando-se o quantitativo diário em €8,00 (oito euros);

E) Em cúmulo das penas de multa referidas em C) e D), condenar o arguido na pena única de 137 (cento e trinta e sete) dias de multa à taxa diária de 8,00€ (oito euros);

Mais decide o Tribunal julgar os pedidos de indemnização deduzidos parcialmente procedentes por provados e em consequência

F) Condenar o demandado AA a pagar à demandante BB a quantia de €250,40 (duzentos e cinquenta euros e quarenta cêntimos) a título de danos patrimoniais e €250,00 (duzentos e cinquenta) a título de danos não patrimoniais,

G) Condenar o demandado AA a pagar ao demandante CC a quantia de €400,00 (quatrocentos euros) título de danos não patrimoniais, absolvendo-se o demandado do mais peticionado pelos demandantes».


*

Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua absolvição do crime por que foi condenado, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«A. O arguido veio condenado por sentença datada de 15 de Março de 2023, que o condenou, pela prática de um crime de morte e maus tratos a animais p. e p. pelo artigo 387.º n.º 1 do C.P. na redação dada pela lei 69/2014 de 29.08 na pena de 95 dias de multa à taxa diária de 8,00€, e pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153.º n.º 1 e artigo 155.º n.º1 alínea a) do CP, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 8,00€, sendo que em cúmulo das penas referidas, foi o mesmo condenado na pena única de 137 dias à taxa diária de 8,00€.

B. Em consequência dessas condenações, foi, ainda arguido, condenado a pagar a título de indeminização civil a pagar à assistente mulher a quantia de 250,40€ a título de danos patrimoniais e 250,00€ a título de danos não patrimoniais e ao assistente homem a quantia de 400,00€ a título de danos não patrimoniais, e, ainda, nas custas do processo.

C. Relativamente à condenação do arguido pela prática de um crime de morte e maus tratos a animais p. e p. pelo artigo 387.º n.º1 do C.P. dada pela redação da Lei 69/2014 de 29.08, analisável à luz dos presentes autos atentos a data da alegada prática dos fatos, 31 de Julho de 2019 repare-se que até à entrada em vigor da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, inexistia qualquer tipo de tutela criminal a incidir sobre os animais.

D. Ora, à data da alegada prática dos fatos de morte e maus tratos a animais, o artigo 387.º do C.P. na redação da Lei n.º 69/2014 de 29 de Agosto é inconstitucional.

E. Pelo que ao ter julgado o artigo 387.º n.º 1 como constitucional, o Tribunal a quo violou assim deliberadamente e de forma grosseira o quadro constitucional vigente.

F. Nomeadamente por violação dos artigos 18.º, 27.º, 29.º e 62.º da Lei Fundamental, Constituição da República Portuguesa.

G. O conceito de animais de companhia previsto no n.º 1, do artigo 389.º, do Código Penal, afigura-se indefinido, indeterminado e, consequentemente, problemático, à luz do princípio jurídico-constitucional da legalidade criminal, vertido na letra do artigo 29.º n.º 1, 2, 3 e 4, - primeira parte, da Constituição da República Portuguesa.

H. O n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, sustenta o princípio jurídico-constitucional do “direito penal do bem jurídico” que determina, de forma ligeira, que para haver criminalização a conduta deve ser dotada de dignidade penal, isto é, a norma tem de estar condicionada à tutela de um bem jurídico-penal, e, além de legítima, a intervenção penal tem que revelar-se necessária, ou seja, o interesse tutelado não pode ser devidamente acautelado por qualquer outro ramo. Daí que se afirme o caráter subsidiário da intervenção penal.

I. No entanto, inexiste um conceito fechado de bem jurídico digno de tutela penal, verificando-se, apenas, uma multiplicidade de definições apresentadas pela doutrina, incapazes de definir, sem margem para dúvidas, a fronteira entre o que pode, ou não, ser legitimamente criminalizado. Sendo assim, a Constituição da República Portuguesa deverá servir de quadro referencial à determinação dos bens jurídico-penais, devendo estes ser associados a uma referência, explícita ou implícita, na ordem Constitucional.

J. O legislador (ordinário) nunca teve intenção na criação de normas incriminatória, com base numa ideia de equiparação entre o Homem e os animais de companhia, de tal modo que estes últimos sejam reconhecidos como seres merecedores de valor em si mesmo. não é pelo facto de reconhecermos a essência aos animais de companhia que estes se equiparam ao Homem para efeitos de merecimento de tutela penal. Aliás, outra conclusão afigura-se destituída de sentido.

K. Sendo, por isso, de recusar a equiparação entre Homens e animais de companhia, para efeito de reconhecimento de valor aos animais, assim como rejeitamos a atribuição, pelo legislador, de valor aos animais de companhia, em si mesmos considerados.

L. O legislador(ordinário) não pretendeu atribuir aos animais o mesmo valor que é reconhecido ao Homem.

M. Assim, mesmo que hipoteticamente tivessem respaldo constitucional os bens jurídicos vida e integridade física do animal de companhia, a norma incriminatória p. e p. pelo artigo 387.º do C.P. continuaria inquinada de inconstitucionalidade, por violação do princípio jurídico-constitucional implícito da proporcionalidade das sanções penais, possível de se extrair dos artigos 18.º, n.º 2 e 2.º da Constituição da República Portuguesa, mais concretamente, por lesão dos subprincípios da exigibilidade (para assegurar tal proteção, existiam outros meios menos onerosos dos quais se poderia lançar mão, ao invés do recurso ao Direito Penal) e da proporcionalidade em sentido restrito (inexistia uma justa medida entre os meios legais restritivos e a lesão dos bens jurídicos vida e integridade física do animal de companhia, estando em causa a adoção de medidas legais restritivas excessivas em relação aos fins obtidos). Estaria em causa a descrição de uma conduta destituída de ofensividade para os bens jurídicos vida e integridade física do animal de companhia, uma vez que só de forma mediata estes(hipotéticos)bens jurídicos seriam postos em perigo.

N. Como se não fossem suficientes as objeções apresentadas para a conclusão da imprestabilidade do entendimento estudado, saliente-se que tais perspetivas não explicam a tutela penal exclusiva da categoria dos animais de companhia. E, em relação ao entendimento de Neumann, é óbvio que o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, determina a construção de uma sociedade solidária por e para os Homens. Isso não significa, todavia, que tenha sido intenção do legislador constituinte a referência aos animais neste âmbito.

O. Nestes termos, por todas as razões enunciadas, sempre será de recusar a perspetiva que afirma a dignidade jurídico-penal das normas incriminatórias dos artigos 387.º e 388.º do Código Penal, por tutela dos bens jurídicos bem-estar, vida e integridade física dos animais de companhia.

P. Não é, de todo, desejável um Direito Penal de base moralista ou de ética social, sob pena de se cair no cúmulo de considerar-se propenso à violação da vida e/ou integridade física do Homem, um cientista que utiliza um animal como instrumento de estudo. Veja-se, também, um outro sentido - um Ser Humano dedicado aos animais não significa necessariamente que seja atencioso para com os Homens, conhecendo nós, até, no quotidiano, indivíduos que coabitam no lar com um animal de companhia, sendo incapazes de coabitar com outros Seres Humanos. Portanto, não nos parece defensável que a lesão da integridade física (humana) decorra tipicamente da conduta do agente que maltrata um animal de companhia. Em suma, esta teoria perde a sua utilidade, na medida em que a proteção dos bens jurídicos identificados pela construção (vida e integridade física humanas, e património) revela-se demasiadamente remota para se afigurar legítima a intervenção do direito penal, violando-se, consequentemente, o princípio jurídico-constitucional do “direito penal do bem jurídico”.

Q. Repare-se que, não obstante se reconhecer importância aos sentimentos na formação de bens jurídicos, a elaboração de tipos penais que visem a sua tutela acaba por violar o princípio jurídico-constitucional da legalidade criminal, por ausência de taxatividade na descrição da matéria proibida, já que os sentimentos são, invariavelmente, elementos internos, íntimos, passiveis de avaliação apenas através de um juízo casuístico. Não é pelo facto de o Homem sentir empatia por um animal maltratado que a conduta deve ser alvo de tutela criminal, sob pena de se abrir as portas do Direito Penal ao indesejado Moralismo.

R. Da análise de todos os entendimentos e perspetivas doutrinárias e jurisprudenciais que buscam a resolução do problema da identificação do bem jurídico tutelado nas incriminações da morte, maus-tratos e abandono de animais de companhia, extraímos a ausência de caminho escolhido e de consequente, posição consolidada acerca do tema. Esta multiplicidade de teses só demonstra a incerteza e insegurança que dominam a matéria entre nós e coerentes com as críticas identificadas, não poderemos deixar de concluir, imperativamente, pela ausência de bem jurídico dotado de dignidade penal que legitime tais incriminações, dada a dificuldade em isolar um bem jurídico com valia constitucional, falhando, consecutivamente, o primeiro pressuposto do princípio jurídico-constitucional do “direito penal do bem jurídico”. É evidente que não está constitucionalmente consagrado um “direito” ou “interesse”, titulado pelos animais de companhia, ou pelo Homem, cuja salvaguarda justifique a restrição dos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, à liberdade e ao livre desenvolvimento da personalidade, vertidos, respetivamente, nos artigos 1.º, 27.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa.

S. Pela ausência de bem jurídico-penal, imediatamente é violado o princípio referido e teremos, obviamente, que concluir pela inconstitucionalidade material de tais incriminações e consequente, nulidade das normas incriminatórias, dada a manifesta violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

Caso o supra concluído, não colha provimento por parte deste Venerando Tribunal ad quem, o que não se concebe nem concede, sempre se dirá que o Tribunal a quo incorreu em grave e clamoroso erro de julgamento acerca da matéria de fato dada como assente e não assente.

T. O recorrente sindica os fatos assentes nos números 2), 7), 8), 9), 13) e 15) dados como provados, que, no seu entendimento, atentos a prova produzida em sede de Audiência, deveriam constar no elenco dos fatos dados como não provados.

U. Em sentido inverso, os fatos constantes das alíneas j) e l) dos fatos dados como não provados pelo Tribunal a quo deveriam constar do elenco dos fatos provados.

V. O que, e nesta sede recursiva, se visa obter, uma vez que é gritante o erro de julgamento levado a cabo pelo Tribunal a quo.

W. Quanto aos fatos assente nos números 2), 7), 8), 9), 13) e 15) não ficou provado que tenha sido o arguido na data dos alegados fatos a praticar o disparo da arma de pressão, tendo tal disparo atingido a gata da assistente.

X. Inexiste nos autos qualquer prova testemunhal visual e/ou audível que impute ao arguido a prática dos fatos.

Y. O que existe são meras suposições e juízos de probabilidade, tanto é que nem só o arguido era o único utilizador. Mas para tanto, o que se aqui releva é uma total ausência de PROVA.

Z. Juízos esses inadmissíveis em sede de Processo Penal, que se quer, justo, verdadeiro, legal, e real, não se podendo o mesmo satisfazer com meras probabilidades populares.

AA. Como igualmente, não se provou que o arguido tenha dirigido quaisquer expressões que configurassem a prática de um crime de ameaça agravada, uma vez que não se verificou e/ou verifica o preenchimento dos elementos subjetivos e objetivos do seu tipo legal.

BB. Tanto é que, é desconhecida ao arguido qualquer uso ou porte de arma de fogo, e portanto, idónea a provocar medo, receio ao alegado destinatário das expressões em crise.

CC. O crime de ameaça tem de ser futuro e de forma séria, por forma a provocar inquietação e constrangimentos em relação á autodeterminação e liberdade das pessoas – o que efetivamente não aconteceu porque o Recorrente nunca se abeirou do Assistente.

DD. Aliás, resulta claramente, que o arguido cruzou-se com o mesmo e sequer o reconheceu, pois como é emigrante, só esporadicamente é que permanece em território Nacional, não tendo qualquer relação com os vizinhos em geral.

EE. E tanto assim o é, que o assistente continuou a fazer a sua vida normal, nunca tendo sentido receio de qualquer concretização por parte do arguido.

FF. Assim, e em suma, deverão os pontos sindicados da matéria dada como provada, migrar para o elenco da matéria não provada, e em sentido oposto, deverão os pontos j) e l) migrar para a matéria de fato provada.

GG. Por existência clara de erro de julgamento por parte do Tribunal a quo.

Mesmo que assim não se entenda,

HH. Sempre se teria e terá de lançar mão do princípio do in dubio pro reu, uma vez que não foi feita prova cabal e devidamente esclarecida quanto ao autor da prática dos fatos condenados.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.ªs Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, farão, deverá o presente recurso colher provimento, e deverá:

a) Ser julgado inconstitucional o artigo 387.º n.º 1 do C.P. da redação da Lei 69/2014 de 29 de Agosto vigente à data da prática dos alegados fatos, por violação clamorosa dos artigos 18.º, 27.º, 29.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Por via da requerida/alegada inconstitucionalidade deverá:

aa) o arguido ser absolvido do crime de morte e maus-tratos a animais de companhia pelo qual veio condenado, com a legais cominações que daí resultarem.

Caso o supra peticionado não mereça provimento, o que não se concebe, sempre deverá:

b) Ser absolvido o arguido da prática dos crimes de maus-tratos animais e ameaça agravada pelos quais veio condenado por total ausência de prova, com as demais consequências que daí advierem.

Só assim se fazendo a mais reta e Sã Justiça a que tão bem estamos habituados».


*

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, aduzindo em apoio da sua argumentação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O bem jurídico protegido no crime de maus tratos a animais de companhia é a vida e a integridade física do animal de companhia

2. O fundamento constitucional encontra-se ínsito no art.º 66.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “ambiente e qualidade de vida” que, contempla a proteção dos animais, os quais são elementos ambientais concretos absolutamente imprescindíveis para o livre e saudável desenvolvimento da personalidade dos homens de hoje;

3. A declaração de inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, proferida no Ac. n.º 867/2021 do TC, não tem força obrigatória geral, só produzindo efeitos no processo em que foi proferida;

4. O artigo 387º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto é materialmente constitucional;

5. A propósito da prova testemunhal sempre se dirá que a hermenêutica judicial de um meio de prova de cariz testemunhal, pressupõe sempre e acima de tudo a convocação de um princípio fundamental, ou seja, o princípio da imediação e da oralidade. A apreciação do Tribunal foi rigorosa, abrangente e dissecou todas as supostas incongruências ora apontadas pelo arguido, concluindo por fim, que da análise de toda a prova produzida, resulta a prática dos factos por parte da arguido e a sua subsequente condenação;

6. As razões da discordância do arguido relativamente à forma como o tribunal recorrido decidiu a factualidade em apreço, prendem-se com a leitura que o mesmo faz de partes selecionadas dos meios de prova para, a partir de tais elementos, substituir a sua própria convicção à do tribunal a quo, concluindo pela ausência de prova suficiente quanto aos factos impugnados;

7. No caso concreto, resulta da fundamentação da motivação da decisão de facto, que o Tribunal a quo se norteou pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica, que registou de uma forma escorreita e proficiente;

8. Constata-se que a decisão do tribunal recorrido se encontra devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentaram a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar como credíveis os factos em apreço e, portanto, como provados, permitindo antever o processo lógico ou racional subjacente à convicção do julgador;

9. Em face da prova produzida, não restam quaisquer dúvidas que o arguido praticou factos integradores do crime de ameaça agravada, não bastando pincelar dúvidas aleatórias para ludibriar uma decisão baseada em princípios de normalidade e sustentada nas regras da experiência comum;

10. O recorrente apela ao princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário da sua apreciação da prova, sendo que, em momento algum resulta da sentença recorrida que relativamente aos factos provados e objeto dos autos, o Tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra aquele ou demonstrou qualquer dúvida na formação da sua convicção;

11. Os vícios vertidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apenas podem ser invocados e correspondentemente apreciados, se resultarem do próprio texto da decisão. Apenas se verificando a ocorrência deste vício, quando a decisão jurídica extravasa os limites conferidos pela matéria de facto dada como provada;

12. O Tribunal a quo efetuou uma análise profunda e absolutamente imparcial de toda a prova produzida em audiência e, que, redundou, forçosamente, na conclusão da prática dos factos imputados ao arguido na douta acusação, conforme já demonstrado supra.»


*

Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acolher a argumentação do Ministério Público junto do Tribunal recorrido.

*

Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foi apresentada resposta.

*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

*

II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

- Inconstitucionalidade do art. 387.º do CPenal, na redacção dada pela Lei 69/2014, de 29-08, nomeadamente por violação dos arts. 18.º, 27.º, 29.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa;

- Erro de julgamento em sede de matéria de facto, com violação do princípio in dubio pro reo.

Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):

«II – FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 31/07/2019, pelas 15h40, o arguido AA encontrava-se na sua residência, na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, onde tem uma espingarda de pressão de ar, vulgarmente chamada de chumbeira.

2. Em hora não concretamente apurada, mas compreendida entre 15.45h – 16h45 do mesmo dia, o arguido realizou pelo menos um disparo atingindo na barriga a gata de BB.

3. Após o referido em 2. do mesmo dia, BB chegou à sua residência e encontrou a sua gata, “...”, deitada imóvel em cima da cadeira na varanda, onde a mesma costumava estar deitada, com ferida sangrante na barriga, com um buraco, tendo sujo de sangue o espaço envolvente, por sangrar pelo buraco da barriga e pela boca.

4. Por via disso, a BB levou a gata ao médico veterinário A... de B... Unipessoal, Ld.ª, encontrando-se a gata “com visíveis sinais de dor, taquicardia e taquipneia”.

5. Após ter sido prestado tratamento médico-veterinário, com cirurgia de urgência, constatou-se que a gata foi atingida por projéctil de chumbo, que lhe perfurou a pele e o intestino, tendo trespassado todo o abdómen e se alojou junto a uma costela do lado oposto ao da perfuração, com perfuração do duodeno em dois locais distintos (entrada e saída do projectil), tendo sofrido hemorragia grave.

6. A gata teve de ser submetida a tratamentos tendo ficado internada desde 31.07 a 03.08.2019, recuperando depois da intervenção das lesões sofridas.

7. No dia 02/08/2019, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 19h30/20h, o arguido AA dirigindo-se ao CC disse em tom de voz elevado “se tens colhões eu também tenho”, “tens dinheiro, (…) eu também tenho”, que era pior do que um cigano, quando gato lá tornasse a passar era “pumba”, ia gato, ia dono, ia tudo, com a caçadeira.

8. Agindo da forma descrita, o arguido tinha a vontade livre e a perfeita consciência de estar a ofender o corpo e a saúde da gata de BB e de causar à mesma dores e lesões, bem sabendo que a gata é um bicho de estimação e que desse modo causava sofrimento ao animal.

9. O arguido agiu de forma livre voluntária e consciente, e quis com tais expressões significar que mataria CC com o uso de uma caçadeira, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal.

10. Ao actuar das formas supra descritas o arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal vigente.


-

Mais se provou que:

11. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade, é emigrante, trabalha na construção civil auferindo o vencimento de €1.600,00, despendendo com alojamento €400,00. Em Portugal vive com a esposa em casa pertença desta. Tem filhos, já maiores.

12. O arguido não possui quaisquer antecedentes criminais registados.


-

13. Aquando do referido em 2. e 3. a assistente ficou assustada, com receio de não chegar a tempo à Clínica veterinária para a salvar, pensando que perderia a sua gata.

14. Com a assistência médica à gata a assistente despendeu €250,40.

15. O assistente ao ouvir o referido em 7. sentiu receio pela sua concretização.


-

16. O arguido quando se encontra em Portugal, designadamente nos períodos de Páscoa, Verão e Natal, reside na morada referida em 1..

17. A distância que medeia entre a habitação referida em 1. e a dos assistentes é de pelo menos 50 metros.

18. Entre as habitações referidas em 17. existe a habitação da irmã do assistente DD.

19. Os assistentes habitam no n.º120 da Rua ....


-

FACTOS NÃO PROVADOS

a) No dia referido em 1. o arguido encontrava-se no quintal perto do seu galinheiro, a fazer disparos.

b) O referido em 2. ocorreu entre as 15h40 e as 15h44 e entre as 16h46 e as 17h, tendo a assistente chegado a casa a essa hora.

c) O projéctil alojou-se na pele.

d) O referido em 7. ocorreu pelas 15h.

e) Aquando do referido em 7. o arguido disse ao assistente as seguintes palavras: “Pensas que és rico”, “se tiveres tomates, eu também tenho tomates, andas a fazer queixa sem justificação, não sabes com quem te meteste, sou como os ciganos, estás fodido, da próxima vez que apanhar o gato, mato-o e o dono leva também, dizes que foi com chumbinhos, da próxima vez vai com a caçadeira…”, “Já foste”,

f) Aquando do referido em 7. o arguido disse ao assistente que o gato lhe tinha causado um prejuízo superior a € 1.000,00 (mil Euros).

g) A gata era considerada um elemento da família da assistente.

h) Nada apagará os momentos de sobressalto e angústia vividos pela assistente.

i) A gata fazia companhia à assistente nas tarefas diárias.

j) O arguido sequer conhece o assistente, sequer o reconhece no caso de os mesmos, por alguma eventualidade, se cruzassem.

k) A distância entre as habitações referidas em 7. é superior a 50 metros.

l) O arguido nas mesmas condições de espaço não tem qualquer ângulo ou vista livre de uma habitação para outra.


-

O mais constante da acusação, pedidos de indemnização e contestação, não figura da decisão supra, por se tratar de matéria genérica, conclusiva, de direito ou sem interesse para a boa decisão da causa.

-

MOTIVAÇÃO

Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.

Assim, enunciados os factos, cumpre apreciar criticamente as provas, não bastando uma mera enumeração dos meios de prova, sendo necessária “ a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal” - cfr. Ac. TC nº680/98, de 02.12, in http://www.Tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980680.html, por forma a resultar claro para os destinatários a compreensão do porquê da decisão e do processo lógico - mental que permitiu alcançar a decisão proferida.

Na fixação da matéria de facto, a convicção do Tribunal formou-se por apelo à análise crítica e conjugada e concatenada da prova produzida.

Concretizando:

Desde logo e no que se refere à factualidade provada em 1. o Tribunal atendeu às declarações do arguido, que admitiu tal factualidade, crendo-se no mesmo neste estrito particular, não só na medida em que as suas declarações vão corroboradas pelo depoimento de EE (esposa do arguido), mas bem assim porquanto tratando-se de factualidade que lhe é desfavorável não se vê que o mesmo tivesse interesse em faltar à verdade nesta parte.

Quanto à factualidade constante em 2. a convicção do Tribunal assentou em face da conjugação das declarações do arguido que admitiu usar a chumbeira para praticar tiro, no que foi corroborado pelas declarações da assistente e depoimentos das testemunhas DD e ainda FF e EE. A isto somou-se o facto de ter resultado ainda das declarações do arguido – no que se fez fé porquanto corroboradas pelas declarações da assistente e depoimento de EE, esposa do arguido e ainda GG, sua cunhada – que o mesmo possuía no quintal da casa onde vive um galinheiro com vários animais, designadamente galinhas e patos, sendo que ao seu quintal afluem vários gatos. Bem assim, das declarações da assistente resulta que por vezes a sua gata ia para o quintal do arguido, tendo ainda a testemunha DD confirmado que a gata passava os terrenos, no que se faz fé, tendo em conta as regras da experiência e a natureza do animal em causa. Acresce a isto que se tomou ainda em linha de conta o depoimento da testemunha DD prestado perante OPC (poucos dias após os factos, tendo por isso memória mais vívida do que à data da audiência) do qual resulta confidência da esposa do arguido à testemunha no sentido de o arguido atingir a gata pelo facto de a mesma aceder ao seu quintal e andar atrás dos animais que o arguido lá tem. De resto, o Tribunal deu maior credibilidade nesta parte a esta versão do depoimento da testemunha DD, na medida em que o mesmo foi corroborado pelas declarações da assistente em juízo, que nesta parte prestou declarações de modo espontâneo, escorreito, na qual se fez fé, não obstante o Tribunal ter em conta o seu interesse no desfecho dos autos, mas que nesta parte não beliscou a sua credibilidade. O Tribunal não descura o facto de a testemunha EE ter negado a realidade relacionada com conflitos por causa dos animais, contudo, não se fez fé na mesma, em face do demais circunstancialismo já apontado (ter o arguido arma de chumbo, a gata ter sido atingida por chumbo, o facto de o arguido ter animais em galinheiro, mormente patos e galinhas, o facto de a gata se passear pelos terrenos e nomeadamente do arguido, andando atrás daqueles animais, fazendo crer no incómodo do arguido perante o comportamento da gata para com os seus animais, a curta distância entre as habitações, sendo certo que a testemunha EE, face à qualidade de esposa do arguido, tem necessariamente – ainda que de modo indirecto – interesse no desfecho da causa, sendo “natural” que não queira prejudicar o mesmo). De resto, das declarações dos assistentes mais resultou o lapso de tempo durante o qual se ausentaram de casa no dia em causa e o estado em que encontraram a gata aquando do regresso, no que se fez fé, face ao modo circunstanciado como prestaram declarações nesta parte, corroborando-se mutuamente. Mais se teve em consideração o depoimento da testemunha HH, que esclareceu a natureza do objecto que atingiu o animal e local, tendo confirmado o teor do seu relatório de fls. 113, bem assim tendo esclarecido da capacidade de resiliência de animais da natureza da gata quando atingidos, nomeadamente capacidade de deslocação até ao seu local de referência, na qual se fez fé, atento o modo circunstanciado e revelador de ciência quanto aos factos sobre os quais prestou depoimento e bem assim tendo em conta a natureza da sua actividade e conhecimentos académicos e científicos, não se vendo que tenha interesse em faltar à verdade, indo de encontro aos vestígios de sangue percepcionados pela assistente no exterior de sua casa.

De modo que, ainda que a actuação do arguido não tenha sido percepcionada directamente por nenhuma das pessoas inquiridas e o mesmo tenha negado a factualidade imputada, certo é que tal não afasta a convicção do Tribunal quanto à autoria pelo mesmo do comportamento dado por provado, em face da demais prova já apontada, mais a mais, em face do seu comportamento posterior face ao assistente, reforçando assim a convicção do Tribunal.

De resto, não sendo pessoas de relações próximas também não se vê razão para os assistentes imputarem ao arguido os comportamentos nos termos em que o fizeram, não fosse a sua actuação nos termos dados por provados.

Quanto ao local onde a gata costuma estar e foi encontrada, bem assim se atendeu às declarações dos assistentes, uníssonos neste particular, nos quais nesta parte bem assim se fez fé, sendo que quanto ao nome atribuído à mesma o Tribunal atendeu ao depoimento da testemunha FF, na qual neste particular se fez fé, em face da razão de ciência invocada e modo espontâneo como prestou depoimento neste particular.

No sentido da convicção do Tribunal concorreram ainda as declarações da assistente, quanto ao modo como – chegando a cada – verificou os vestígios de sangue por casa e o estado em que encontrou o animal, sendo que quanto ao estado deste as suas declarações vão corroboradas pelas declarações do assistente e ainda depoimento da testemunha DD ainda o depoimento da médica Veterinária e relatório e fotos de fls. 113 dos autos principais e fls. 23 a 26, facturas de fls. 76 dos autos principais de que o Tribunal também se socorreu para dar como provada a factualidade constante de 4. a 6., mais considerando o depoimento de DD, credível também quanto ao transporte do animal ao veterinário e bem assim depoimento da testemunha FF, na medida em que revelou razão de ciência quanto à convalescença do animal.

No que concerne à factualidade constante em 7. a convicção do Tribunal assentou na apreciação conjunta e concatenada e crítica das declarações dos assistentes, conjugada com os depoimentos das testemunhas DD e FF. É certo que a testemunha FF não logrou referir as expressões dirigidas pelo arguido ao assistente, contudo avançou com a natureza das mesmas (ameaças) e a quem se dirigiam (gato e assistente), indo assim ao encontro das declarações dos assistentes e da sua progenitora, DD. Quanto a estes, no essencial corroboraram-se mutuamente, identificando o arguido como autor de tal facto e circunstanciando no tempo e lugar a sua actuação. Bem se sabe que não foram absolutamente uníssonos nas expressões, contudo, não se pode dizer que tal conduza ao seu descrédito, antes concorrendo para a credibilidade dos mesmos, sendo sinal de que previamente à diligência não concertaram as suas declarações/depoimento. De resto, não se pode bem assim olvidar que a dinâmica do sucedido e o tempo decorrido não concorram para unicidade dos depoimentos e declarações, sendo até conforme às regras da experiência algum desencontro, sem prejuízo de no essencial confluírem, razão pela qual se lhes atribuiu credibilidade, não colhendo assim a versão do arguido ao negar bem assim tais factos.

Foi também apelando às regras da experiência e livre apreciação, tendo em conta a demais prova já referida supra, que resultaram provados os factos relacionados com o elemento subjectivo respectivo (factos 8. a 10.)

Para prova das condições sócio económicas do arguido o Tribunal teve em conta as suas declarações, credíveis neste particular, as quais foram ademais corroboradas pelos depoimentos das testemunhas EE, GG e II, nos quais quanto a esta matéria não se vê razões para nos mesmos não crer.

A ausência de antecedentes criminais resultou do CRC.


-

Quanto às consequências da actuação do arguido na pessoa dos assistentes o Tribunal teve em conta as respectivas declarações, as quais vão de encontro ao normal a acontecer das coisas em situações da natureza daquela em apreço, e por isso são conformes às regras da experiência e que por isso se mostraram credíveis à luz da livre apreciação (não obstante não se olvidar o respectivo interesse no desfecho da causa, como já referido, mas que não é bastante para pôr em causa a sua credibilidade neste particular). Quanto ao montante despedido com a assistência à gata o Tribunal socorreu-se das facturas constantes de fls. 76 e depoimento da testemunha HH e relatório de fls. 113.

No que se refere à configuração do local (local de habitação dos assistentes, distância entre a habitação destes e do arguido e habitação de permeio) o Tribunal teve em conta, na estrita medida da factualidade dada por provada, as declarações de arguido, assistentes, testemunhas DD, FF, EE e GG e ainda tendo em conta as fotos juntas com a contestação.


-

Os factos não provados resultaram assim em virtude de falta, insuficiência de prova ou mesmo prova produzida em sentido contrário.»

Vejamos.

Inconstitucionalidade do art. 387.º do CPenal, na redacção dada pela Lei 69/2014, de 29-08, nomeadamente por violação dos arts. 18.º, 27.º, 29.º e 62.º[2] da Constituição da República Portuguesa

A primeira questão que o recorrente suscita respeita à inconstitucionalidade da norma incriminatória prevista no art. 387.º do CPenal, relativa a maus tratos a animais de companhia.

Invoca o recorrente que a lei que protege de maus tratos os animais de companhia foi declarada inconstitucional, a 05-05-2022, pela terceira vez em oito anos.

O recorrente chama à colação o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 867/2021, de 10-11, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade do art. 387.º do CPenal na redacção dada pela Lei 69/2014, de 29-08, por violação dos arts. 27.º e 18.º da CRP, por inexistência de fundamento constitucional bastante na actual redacção da Constituição da República Portuguesa para a protecção jurídica pretendida.

Mais refere que, mesmo que se considerasse possível identificar no texto constitucional um bem jurídico com suficiente tangibilidade para suportar uma incriminação por maus tratos a animais, a norma do art. 387.º do CPenal padece ainda de inconstitucionalidade, por violação da exigência de lei certa ou do princípio da tipicidade penal ínsitos no art. 29.º da Constituição da República Portuguesa.

Neste caso, apela ao texto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 843/2022, através do qual se decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal , igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.»

Em causa estará, especifica o recorrente, a amplitude e falta de concretização do conceito de animal de companha, mas também a falta de descritivo da própria conduta de maus tratos em si, posto que «o destinatário “comum” deste preceito legal não poderia “ler esta norma e saber, sem mais, quando poderá (ou não), v.g., infligir dor ou sofrimento (pressupondo que são algo de diverso no âmbito deste crime) a um animal sem cometer este crime».

Alega ainda que «uma vez que o artigo do 387.º do Código Penal foi julgado inconstitucional pelos acórdãos números 867/2021 e781/2022, juízo que foi posteriormente reafirmado pelo presente Acórdão (n.º 843/2022) e tendo transitado em julgado todas decisões, o Ministério Público (…) promoveu o processo de fiscalização abstrata sucessiva, para que o Tribunal Constitucional aprecie, com vista a eventual declaração com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma em causa, porquanto foi julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos (…). Por sua vez, caso o Tribunal Constitucional (TC) venha a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral do artigo 387.º, do Código Penal, observar-se-ão os efeitos previstos no artigo 282.º da CRP23, não havendo lugar à aplicação daquela norma.»

Esta questão foi suscitada junto do Tribunal recorrido e foi apreciada na sentença sob escrutínio como questão prévia à apreciação do mérito da causa nos seguintes termos:

«DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO N.º 1 DO ART. 387.º CPNA REDACÇÃO DADA PELA L. 69/2014 DE 29.08.

Uma vez determinada a norma à luz da qual apreciar a conduta imputada ao arguido, põe-se a questão da sua (in)constitucionalidade (ainda que apreciações feitas tendo por objecto o n.º 3 na redacação actual sejam bem assim pertinentes, dado que a alteração no tempo apenas contendeu com a moldura nos limites mínimos e não com o objecto propriamente dito).

Pugna o arguido pela inconstitucionalidade da norma, por violação do disposto nos arts. 18.º, 26.º, 27.º e 29.º da CRP.

A questão tem sido objecto de estudo na doutrina e na jurisprudência, incluindo por banda do Tribunal Constitucional.

Com efeito, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a matéria:

- no Ac. 867/2021 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210867.html), tendo aí o Tribunal decidido : “a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição”, por entender que “essa criminalização não encontra suporte bastante na vigente redação da Constituição da República Portuguesa,”;

- no Ac. 781/2022 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220781.html) tendo aí o Tribunal decidido: “a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição;”

- no Ac. 843/2022 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220843.html), tendo aí o Tribunal decidido: a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto;”.

Porém, a questão suscitou discussão mesmo no seio do Tribunal Constitucional, como se pode depreender do teor dos acórdãos tirados (que não são uníssonos quanto aos fundamentos da inconstitucionalidade) e bem assim dos votos de vencido.

A este propósito veja-se o voto de vencido do Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro José António Teles Pereira, à qual adere o Conselheiro José João Abrantes no último dos acórdãos citados.

Bem assim é profusa a jurisprudência sobretudo dos Tribunais da Relação, vg.:

- Ac TRE de 07.06.2002, P.299/17.3PBELV.E1, in www.dgsi.pt, que assim sumaria:

“I. O crime de maus tratos a animais de companhia, previsto no artigo 387.º do Código Penal (na redação da Lei n.º 69/2014 de 29 de agosto) é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição: a) Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição; b) E por a descrição típica do ilícito apresentar um nível de indeterminação dos seus elementos objetivos, incompatível com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição.”

- Ac. TRP de 19.10.2022 P. 10/20.1GEVFR.P1, in www.dgs.pt, sumariando nos seguintes termos:

“I – Os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime de “Morte e maus tratos de animal de companhia” (artigo 387º, números 3 e 4, do Código Penal) são o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais de companhia.

II – A garantia do bem-estar animal não foi, ainda, objeto de ponderação expressa por parte do legislador constitucional português.

III – O direito internacional e o direito da União Europeia (UE), recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, também não oferecem tutela suplementar ao bem-estar animal relativamente aos decorrentes da própria Constituição

IV – Não existindo suporte constitucional bastante para criminalizar as condutas (ou omissões) tipificadas no artigo 387º, 3 e 4, do Código Penal, esta norma é materialmente inconstitucional, por violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, não podendo ser aplicada.”;

- Ac. TRE de 18.06.2019 P. 90/16.4GFSTB.E1.E1, in www.dgsi.pt, cujo sumário é do seguinte teor:

I – O bem jurídico protegido pelo artigo 387.º do Código Penal não reside na integridade física e na vida do animal de companhia. É sim um “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém”.

II – O tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia não é inconstitucional.”

- Ac. TRC de 26.10.2022, P. 190/20.6T9SEI.C1, in www.dgsi.pt, assim sumariando:

I – O bem jurídico tutelado pelo artigo 387.º do CP não reside na vida, integridade

física ou bem-estar dos animais de companhia. Recai sim num imperativo civilizacional, decorrente da percepção de que os direitos humanos se afirmam através da aceitação de deveres para comos demais titulares de direitos, ou seja, para com a sociedade em geral. II – “Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem (e são) afectados pelas suas decisões e acções..

III – O tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia não padece de inconstitucionalidade material.

Vejamos.

Nos termos do disposto no art. 18.º n.º 2 da CRP “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”

Por seu turno, para o que importa resulta do art. 26.º n.º 1 da lei fundamental que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”.

Relativamente à liberdade e segurança, estatui ainda o art. 27.º CRP que

“1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.

2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.”.

Para o que importa, resulta ainda do art. 29.º da CRP que “1 - Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.

4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.”.

Para o que importa, entendemos bem assim a questão se coloca desde logo com a perspectiva acerca da determinação do bem jurídico protegido pela norma prevista no n.º 1 do art.387.º CP na redacção aplicável à data dos factos nos termos já apontados supra.

Não obstante não se desconhecer outros entendimentos, como tem vindo a ser defendido pelo Tribunal em decisões anteriores, sufraga-se quanto a esta matéria entendimento defendido por Teresa Quintela de Brito (em Crimes Contra Animais: os novos Projectos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, nº 4, Jul-Dez 2016, p. 104), cit Ac. TRE de 18.06.2019, P.90/16.4GFSTB.E1.E1, inwww.dgsi.pt, segundo o qual o bem jurídico protegido pela norma consiste num “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.

Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções”.

Este entendimento é bem assim acolhido no Ac. TRC de 26.10.2022 supra referido.

Assim sendo, e identificado o bem jurídico nestes termos, não se vê, como se defende nos citados Ac´s TRE de 18.06.2019, P.90/16.4GFSTB.E1.E1 e TRC de 26.10.2022, P. 190/20.6T9SEI.C1 (que acompanhamos) qualquer incompatibilidade com a Constituição.

Bem assim não se vê colha o argumento da falta de densificação da norma penal que permita concluir pela sua inconstitucionalidade, por violação do p. da legalidade ínsito no art. 29.º da CRP.

De facto, a este propósito acompanhamos o entendimento vertido pelo Sr. Juiz Conselheiro José António Teles Pereira - à qual adere o Conselheiro José João Abrantes no - seu voto de vencido no Ac. TC 843/2022 [no qual a norma foi julgada inconstitucional (apenas) por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1 da CRP e não já com fundamento no art. 18.º n.º 2], e que pela sua clareza aqui reproduzimos:

“Fazendo uso das palavras do Acórdão n.º 590/2012: “[…]

O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.

[…]”.

O controlo da constitucionalidade, em matéria de violação do princípio da legalidade criminal, implica, pois, um equilíbrio delicado, designadamente em sede de fiscalização concreta, passando por não interferir com a tarefa de interpretação e aplicação do direito levada a cabo pelo tribunal recorrido – a ele não se substituindo o Tribunal Constitucional –, verificando apenas se o dado imutável expresso no resultado alcançado ultrapassou os limites impostos pela Lei fundamental. Como se assinala no Acórdão n.º 587/14:

“[…]

[M]uito embora a opção por um modelo de controlo normativo tenha visível respaldo na Constituição, não resultando exclusivamente de uma solução legal nem tampouco de uma interpretação jurisprudencial, certo é que há que conjugar esta impostação com as demais regras e princípios constitucionais. Na verdade, se a Constituição consagra, no seu artigo 29.º, n.º 1, o princípio da legalidade criminal, extraindo-se do âmbito de proteção de tal normativo a proibição de aplicação analógica de normas incriminadoras, uma interpretação sistemática do texto constitucional aconselha a que esse momento hermenêutico se converta num ‘pedaço’ de normatividade integrante do objeto de controlo. Daqui não resulta que o Tribunal Constitucional haja de escrutinar qualquer processo hermenêutico que, em matéria penal ou processual penal, venha a ser adotado a nível infraconstitucional. O iter metodológico seguido pelo tribunal recorrido no apuramento do sentido normativo da norma permanece insindicável, não cabendo ao Tribunal Constitucional repassá-lo, mas apenas verificar se foram ultrapassados os limites constitucionais a que esse iter está sujeito em matéria penal, concretamente, a proibição da analogia in malam partem.

[…]”.

Dito de outro modo, ao Tribunal Constitucional cabe apenas verificar, nesta sede – e como repetidamente tem afirmado a sua jurisprudência –, se a norma aplicada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as consequências jurídicas do crime. Nas palavras do Acórdão n.º 729/2014:

[…]

[O] recurso de constitucionalidade é um instrumento de fiscalização da constitucionalidade das leis, ou das interpretações que os tribunais, fazendo operar os critérios que regem o processo hermenêutico (artigo 9.º do Código Civil), delas extraem, e não um acrescido meio de sindicância da bondade do julgado, ainda que por intermédio de parâmetros constitucionais de apreciação.

[…] (sublinhado acrescentado).

O princípio da legalidade criminal apresenta-se, pois, como “[…] garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita […]” (Acórdão n.º 500/2021). Um dos seus corolários é o designado princípio da tipicidade, a que se refere a exigência de lei certa, significando “[…] que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição tipica dos factos puníveis” (novamente, Acórdão n.º 500/2021, sublinhado acrescentado).

Como se assinala no Acórdão n.º 76/2016: […]

A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado n sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2ª ed. pág. 770).

Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito.

[…]

Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).

Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.

[…] (sublinhado acrescentado).

4.2. Em face do exposto, encaremos a norma penal, no que respeita à ação típica (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “sem motivo legítimo”) e ao objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”).

Recentemente, o Acórdão n.º 340/2022 confirmou a Decisão Sumária n.º 211/2022 que, considerando a questão simples, não julgou inconstitucional a norma contida no artigo 152.º, n.º 1, do CP (violência doméstica), designadamente, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP, no segmento relativo a “maus tratos físicos ou psíquicos”. Os fundamentos desta decisão foram os seguintes:

“[…]

Como assinala Nuno Brandão, ‘A tutela penal especial reforçada da violência doméstica’, in Revista Julgar, n.º 12 (setembro-dezembro de 2010), pp. 19/20:

[…]

A identificação dos comportamentos que podem ser reconduzidos ao conceito de maus tratos encontra-se relativamente estabilizada entre nós.

Devem estar em causa atos que pelo seu carácter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima. A circunstância de uma certa ação poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respetiva situação ambiente e da imagem global do facto.

Entre a multidão de ações que à partida podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e em regra também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, só para citar os exemplos mais correntes, mesmo que se não comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Mas entram ainda na esfera dos maus tratos físicos agressões de vários tipos que as mais das vezes são excluídas do âmbito do ilícito-típico das ofensas corporais, como empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos.

Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, a privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.

[…] (sublinhados acrescentados).

Maus tratos, enfim, ‘identificam-se com violência, podendo esta consistir em qualquer atentado contra a vida, a integridade física ou psíquica, a liberdade de uma pessoa ou qualquer comportamento (pode ser por omissão) que comprometa gravemente o desenvolvimento da personalidade da pessoa atingida’ (M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal: parte geral e especial, 2.ª edição, Coimbra, 2015, p.649).

Note-se que não se trata, apenas, de uma estabilização do conceito jurídico – o mau trato físico ou psíquico tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de muito fácil apreensão. Ou seja, a noção de ‘maus tratos físicos ou psíquicos’, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida. O seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal.

Designadamente, o conceito apresenta-se suficientemente definido para incluir, sem qualquer esforço interpretativo, a conduta de quem pratica os factos provados sob os pontos 8.º a 10.º e 12.º a 21.º da matéria de facto fixada no acórdão recorrido (por referência à numeração da sentença de primeira instância), por cuja prática o ora recorrente foi condenado (fls. 379).

Não cabendo ao Tribunal Constitucional (re)apreciar se os factos que preencheram a norma foram estes ou outros, mas apenas – como vimos – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa e se este sentido se apresenta suficientemente definido na previsão normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão “maus tratos físicos psíquicos” é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para os seus destinatários compreenderem o conjunto de condutas proibidas e, em particular, para incluir, sem equívocos, a interpretação segundo a qual pratica o crime correspondente quem age conforme agiu o ora recorrente [um pouco à semelhança do que, em questões aproximadas, o Tribunal teve já oportunidade de afirmar a propósito das previsões de ‘constranger’ no artigo 164.º, n.º 2, do CP (Acórdão n.º 260/2019) e de ‘praticar cópula’ no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma (Acórdão n.º 34/2022)].

Constitui, pois, um conceito indeterminado compatível com o princípio da legalidade criminal. Vale isto por dizer que se trata, para os efeitos ora relevantes, de lei certa.

Não ocorre, então, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.

2.4. Resulta do atrás referido, ainda, que a interpretação e concreta aplicação da norma do artigo 152.º, n.º 1, do CP, no segmento relativo a ‘maus tratos físicos ou psíquicos’, se inscreve – dir-se-ia que se inscreve confortavelmente – na normal tarefa hermenêutica dos tribunais penais compatível com o artigo 29.º, n.º 1, da CRP, sem que tenha ocorrido outorga ao julgador de poderes de estatuição normativa que pertencem ao espaço legislativo. O legislador realizou integralmente a sua função legislativa ao estabelecer o preceito nos termos assinalados e a tarefa que deixou ao julgador não estende a função de julgar. Dito de outro modo, não ocorre qualquer violação dos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP.

Ressalvadas as óbvias diferenças entre humanos e animais com a suscetibilidade de experimentar sofrimento e tendo presente que o artigo 387.º, n.º 3, do CP parece prever apenas expressamente os maus tratos físicos, não é difícil concluir que, também aqui, a noção de “maus tratos”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida e que “[…] o seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal” (último acórdão citado). Os destinatários da norma terão presente, designadamente, que não podem infligir sofrimento físico – por exemplo, causar dor – a um animal de companhia. Trata-se de um conceito indeterminado, mas determinável, compatível com o princípio da legalidade criminal, como o é nos artigos 152.º e 152.º-A do CP.

Não é diversa a conclusão face ao segmento “sem motivo legítimo”. O legislador, ciente de que a interação entre seres humanos e animais é juridicamente complexa e que o sacrifício de animais pode acontecer para satisfação de interesses humanos de elevado valor (por exemplo, a alimentação e a investigação científica, com o que implicam de atividades preparatórias do uso principal dos animais), sendo estes especialmente regulados, pretendeu deixar consignada uma cláusula geral – cláusula que tem tanto de indeterminado como qualquer remissão genérica para causas de justificação. Complementando a exclusão expressa de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial e de factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos (artigo 389.º, n.º 2, do CP, conjugado com os diplomas disciplinadores das atividades em causa, designadamente, o Novo Regime de Exercício da Atividade Pecuária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 81/2013, de 14 de junho, a Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, quanto às atividades previstas no seu artigo 3.º), ficam, deste modo, ressalvados os factos que correspondam a qualquer “motivo legítimo”, que, podendo estar previsto em legislação extravagante, o legislador dificilmente poderia conter em remissão exaustiva (v., por exemplo, os artigos 11.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, em anexo ao Decreto n.º 13/93, de 13 de abril, 31.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, 3.º e 6.º da Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, e 19.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, atendendo, ainda, às limitações impostas pela Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto). A referência à legitimação será, possivelmente, redundante (o que é legítimo ou lícito não faz incorrer o agente em responsabilidade criminal), mas a redundância – que aqui até é tributária de um propósito delimitador – não é, nem gera, indeterminabilidade.

A circunstância de a previsão legal não ser isenta de dúvida em casos situados na periferia da hipótese não torna a norma indeterminada. As dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo. Em situações de fronteira, é discutível e discutido o exato momento da morte, relevante nos crimes contra a vida, o limiar de dor ou desconforto físico penalmente relevante nos crimes contra a integridade física, a justificação de certas condutas típicas nesta última categoria de crimes ao abrigo do poder-dever de correção, o engano socialmente aceitável para o crime de burla, a fronteira entre o mero incumprimento contratual e certos crimes contra o património, para citar apenas alguns exemplos. Assim, à semelhança do que antes se referiu, também aqui se dirá que as críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, por vezes caricaturais (aludindo a insetos, répteis, animais raros, animais de trabalho ou a atos de duvidosa dignidade penal), se resolvem interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas e à adequação social, entre outros.

Designadamente, a dúvida sobre se certos animais entram ou não no círculo da proteção penal não significa a indeterminabilidade da norma, desde que a incerteza interpretativa deixe salvaguardado, como é o caso, um núcleo claro e distinguível de conduta proibida. Nesse plano se resolverão, ainda, outras dúvidas interpretativas não descaracterizadoras dos traços fundamentais da conduta proibida [por exemplo, até que ponto os conceitos de “lar” e de “residência” são equivalentes (v., a propósito, o artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, o artigo 1.º, n.º 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, supra citada, e o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro) ou se a norma penal protege animais detidos por quem não tem uma residência fixada].

Considerações semelhantes valem, mutatis mutandis, para o conceito de “animal de companhia” como sendo aquele que é “detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e ainda qualquer animal sujeito a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC – o registo obrigatório abrange, atualmente, cães, gatos e furões – v. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho), com exclusão dos animais cuja detenção seja proibida (v., por exemplo, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e os artigos 13.º e ss. do Decreto-Lei n.º 121/2017, de 20 de setembro). Não há nada de essencialmente indeterminado neste conceito, que é de fácil apreensão aos destinatários das normas, sendo as dúvidas, uma vez mais, passíveis de solução nos termos gerais da interpretação de normas no plano infraconstitucional. Difícil de entender e de justificar seria uma especiosa imposição ao legislador, no sentido de mais fina concretização, em busca da qual, provavelmente, seria maior o risco de contradição e incoerência do que, propriamente, a possibilidade de alcançar maior clareza o precisão do referido conceito.”.

Em face do exposto, improcede a alegada inconstitucionalidade do n.º1 do art. 387.º na redacção aplicável aos autos e dada pela L. 69/2014 de 29.08.»

Vejamos.

Decorre à evidência da antecedente apreciação que a questão colocada não é pacífica, estando bem clarificadas pelo Tribunal a quo as várias posições que têm sido adoptadas pela jurisprudência sobre o assunto.

Tratando-se de apurar da eventual desconformidade do art. 387.º do CPenal com a Constituição da República Portuguesa, mostra-se relevante, acima de tudo, apurar a posição assumida pelo Tribunal Constitucional, entidade a quem incumbe, em definitivo, a declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral.

Como se dá nota na decisão recorrida, o Tribunal Constitucional já apreciou em momento anterior àquela, por três vezes[3], em acórdãos votados pelas Secções, a inconstitucionalidade do art. 387.º do CPenal, seja na vertente da dignidade constitucional do bem jurídico protegido, seja na da determinação da lei penal, tendo decidido no sentido afirmativo, nos termos já especificados na sentença recorrida.

No acórdão do TC n.º 867/2021[4], de 10-11-2021, da 3.ª Secção, foi decidido que «mostra-se inevitável concluir pela inexistência de fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, previstos e punidos no artigo 387.º do Código Penal. Não exprime este juízo de inconstitucionalidade uma visão segundo a qual a Constituição da República Portuguesa sempre se oporá, por incontornáveis razões estruturais, à criminalização de uma conduta como essa. Exprime simplesmente uma visão segundo a qual essa criminalização não encontra suporte bastante na vigente redação da Constituição da República Portuguesa, que é aquela que se impõe ao Tribunal Constitucional como parâmetro de avaliação das normas aprovadas pelo legislador. Juízo diverso implicaria que este Tribunal se substituísse ao poder constituinte, exorbitando da esfera de competências que por esse mesmo poder lhe foram outorgadas».

Esta decisão teve por fundamento a inconstitucionalidade alicerçada na violação dos arts. 27.º e 18.º, n.º 2, da CRP, por se entender que o bem jurídico protegido pela norma (art. 387.º do CPenal, na redacção introduzida pela Lei 69/2014, de 29-08), não tem dignidade constitucional bastante – a expressão utilizada é inexistência de fundamento constitucional – para permitir a criminalização de condutas tidas por ofensivas do mesmo.

Porém, dos cinco juízes que votaram a decisão, apenas três consideraram esse fundamento correcto, posto que os outros dois entenderam que a norma desrespeitada era o art. 29.º, n.º 1, da CRP, por insuficiente determinação das condutas proibidas pela norma legal.

Assim, para a Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa, não há qualquer problema com a dignidade constitucional do bem jurídico protegido, que não radica na protecção do «direito fundamental ao ambiente (artigo 66.º), nem poder legitimar-se (…) a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e/ou de qualquer direito não escrito identificável a partir dele», antes «tem em vista a proteção direta desta categoria de animais» (de companhia).

Segundo defende no voto de vencida, «a proteção penal do bem-estar dos animais companhia encontrará a sua justificação, não tanto (ou não apenas) na circunstância de estes pertencerem, em regra, à categoria dos animais sencientes - isto é, animais com «capacidade de sentir, perceber ou de ter consciência, ou de experimentar a subjetividade» (Alexandra Reis Moreira, “Perspetivas quanto à aplicação da nova legislação”, Animais: deveres e direitos, p. 154, nota 1, disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_animais_deveres_direitos_2015.pdf), como são todos os mamíferos, as aves e os polvos cefalópodes (Declaração de Cambridge sobre a Consciência, de 7 de julho de 2012) -,  mas sim, e decisivamente, no tipo de relação que com eles estabeleceu o homem: ao retirá-los do seu circuito natural de vida, «trazendo-os ao convívio da sociedade [e] tornando-os dela dependentes» (Natália de Campos Grey, 2010, Dever fundamental de proteção aos animais, disponível em http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/4106/1/425135.pdf), o homem sujeitou os animais em que procurou companhia (e com os quais estabeleceu uma interação tendencialmente recíproca) a um processo de contínua vulnerabilização, diminuindo radicalmente a possibilidade de os mesmos proverem ao respetivo bem-estar com independência e autonomia.

É justamente nesta relação de dependência existencial, caracterizada por uma espécie de posição de garante perante o bem-estar dos animais que o homem converteu em sua companhia, que há de revelar-se a conexão do crime tipificado no n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na versão ora considerada, com a ordem axiológica jurídico-constitucional.»

E acrescenta: «[n]o segmento final do seu artigo 1.º (…) a Constituição vincula a República - e, consequentemente, o próprio Estado - a empenhar-se na «construção de uma sociedade [...] solidária». Isto é, na edificação de «uma ordem referenciada através de momentos de solidariedade e de co-responsabilidade de todos os membros da comunidade uns com os outros» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 200-201), mas também - não há hoje razões para o não afirmar - dos membros da comunidade para com aqueles animais que aqueles colocaram na sua direta dependência, para «seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1, do Código Penal). É por isso que a «relação de cuidado-de-perigo» em que se funda a ordem penal, apesar de continuar a ser fundamentalmente uma relação «entre homens e mulheres em comunidade», há de poder compreender também a especial forma de relatio que o homem estabeleceu com aquela categoria de animais (no sentido oposto, cf. José de Faria Costa, “Sobre o objeto da proteção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito penal não iliberal”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, janeiro-fevereiro de 2013, p. 171), sem com isso incorrer - e é o que aqui importa - no risco de se desvincular da ordem axiológica subjacente à ordenação unitária da vida política e social expressa na Constituição.

Perante o princípio do direito penal do bem jurídico, a legitimidade da criminalização dos maus tratos a animais de companhia reside precisamente aqui. Na circunstância de os momentos de solidariedade pressupostos pelo tipo de sociedade que a Constituição encarrega o Estado de promover não excluírem, antes acomodarem, a valorização pela ordem jurídico-penal da relação de cuidado-de-perigo em que o homem ficou investido perante os animais que colocou na sua dependência, legitimando assim a limitação por via penal do chamado «anything goes» - expressão usada por R. G. Frey para designar a posição que defende a possibilidade de “fazermos o que quisermos” com os animais (“Animals”, The Oxford Handbook of Practical Ethics, ed. Hugh LaFollette, 2003, reedição de 2009, p. 167 e ss.); ou, numa formulação mais próxima, a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre animais de companhia, por via da imposição a quem com eles interage de um dever de abstenção da prática de atos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários e/ou de forma impiedosa ou cruel.»

Na sua perspectiva, o problema da inconstitucionalidade da norma reside na violação do princípio da legalidade penal, de que é corolário o princípio da tipicidade, «[t]endo em conta o acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada - «qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1) -, quer do conteúdo da ação proibida - «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» a animal que se encontre naquelas condições, «sem motivo legítimo» (artigo 387.º, n.º 1) (…)».

Assumindo idêntica avaliação, o Senhor Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro também afasta o entendimento de que o crime de maus tratos a animais de companhia se pode fundar «no dever de tutela de dois bens jurídicos cuja ressonância constitucional é isenta de dúvida – a propriedade e o ambiente», defendendo também que existe fundamento constitucional para uma «tutela penal directa e individual» aos animais de companhia.

Na concepção de direito constitucional que defende, «é um equívoco reduzir os «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» aos enunciados no texto constitucional, como se os valores constitucionais exprimissem um catálogo fechado de decisões provindas de uma autoridade suprema num estado de hibernação política de que acorda esporadicamente, em vez de se tomarem os casos de consagração expressa de direitos ou interesses como manifestações, concretizações ou refrações da dignidade da pessoa humana em que radica a legitimidade de toda a ordem constitucional e que outorga natureza propriamente fundamental a determinados direitos e interesses. O próprio texto constitucional indica claramente que o catálogo de direitos constitui um sistema com respiração axiológica e aberto ao devir histórico, quer através do disposto no n.º 1 do artigo 16.º («os direitos consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional»), quer em virtude da aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, imposta pelo artigo 17.º, aos direitos fundamentais de «natureza análoga».

Se isto vale para os direitos fundamentais, não há razão alguma para que não valha igualmente para os «interesses constitucionalmente protegidos», nomeadamente o bem-estar dos animais individualmente considerados, animais esses que, segundo a elegante definição hoje consagrada no artigo 201.º-B do Código Civil, são «seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza». Não se trata aqui de nenhuma inversão da relação de prioridade entre normas constitucionais e legais, mas de explorar plenamente a abertura do sistema de direitos fundamentais e as virtualidades heurísticas da evolução da ordem jurídica, assim como de interpretar o texto constitucional de acordo os princípios próprios dessa forma de interpretação.

Daí que se possa dizer, sem reservas de maior, que os direitos e interesses constitucionalmente protegidos não se resumem àqueles que sejam objeto de referência num preceito constitucional, antes incluindo também aqueloutros que, recolhidos nas demais fontes jurídicas ou deduzidos de princípios fundamentais, se reconduzem ao radical axiológico da dignidade da pessoa humana que o artigo 1.º da Constituição proclama solenemente como base da República Portuguesa.»

Porém, acrescenta, essa protecção que reconhece do bem-estar dos animais não se reconduz ao valor da dignidade da pessoa humana por via da salvaguarda da dignidade dos próprios agentes, nem por via de se «estender aos animais a dignidade que o artigo 1.º da Constituição reconhece aos seres humanos (…)».

E esclarece: «[a] dignidade da pessoa humana opera, pois, não apenas como um princípio de ordem na relação do indivíduo com as outras pessoas – do respeito que os indivíduos se devem mutuamente como entes livres, iguais e infungíveis −, mas também como um princípio de ordem na relação da pessoa humana com os demais seres sencientes – uma assunção da responsabilidade do ser humano pelos animais cujos interesses só ele tem a capacidade de reconhecer e por atenção aos quais tem a possibilidade de se orientar.

Por isso, uma república baseada na dignidade da pessoa humana − no estatuto superior desta como criatura de valores − não pode deixar de se preocupar com o bem-estar dos animais e de outorgar a estes a proteção jurídica correspondente.»

Não obstante a posição de princípio no sentido de defender a legitimidade da punição criminal de maus tratos a animais de companhia, não a considerando contrário ao art. 27.º, n.º 1, da CRP, defende o Senhor Conselheiro no voto de vencido em análise «que a norma que consta do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na redação aplicável nos autos, é inconstitucional por uma outra razão: por violar a exigência de lei certa ou o princípio da tipicidade em matéria penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.»

De acordo com a sua posição a lei é indeterminada quanto ao conteúdo da acção, quanto ao alcance da expressão motivo legítimo, apresentada como cláusula de delimitação negativa do facto punível, e quanto ao objecto do crime.

Posteriormente, no acórdão do TC n.º 781/2022[5], de 17-11-2022, também da 3.ª Secção, voltou a ser decidido julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, tendo presente agora a redacção introduzida pela Lei 39/2020, de 18-08, sem modificações face à redacção anterior relativamente à previsão da conduta relevante na sua forma simples (não agravada).

Contudo, segundo este mesmo aresto, a introdução, pela Lei 39/2020, de 18-08, na redacção do n.º 1 do art. 387.º do CPenal, da incriminação da morte «contribui para o entendimento de que a tutela que o legislador ordinário pretende proporcionar aos animais no Título VI da Parte Especial do Código Penal tem natureza individualística, não constituindo uma manifestação da tutela holística do ambiente consagrada no artigo 66.º da Constituição.»

Por remissão para a fundamentação do acórdão n.º 867/2021 (do mesmo relator), volta a ser salientado que «uma proteção dos animais como a prevista no artigo 387.º do Código Penal é de caráter individualístico, enquanto uma proteção do ambiente como a prevista no artigo 66.º da Constituição é de caráter holístico.»

Este aresto voltou a ser votado pelos mesmos três juízes que votaram o acórdão n.º 867/2021 e teve voto de vendido dos Senhores Conselheiros Joana Fernandes Costa e Gonçalo Almeida Ribeiro nos termos dos votos de vencido apostos naquele primeiro acórdão.

Posteriormente, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, foi votado o acórdão n.º 843/2022[6], de 20-12, que julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.

Se nos anteriores arestos foi a ausência de dignidade constitucional do bem jurídico protegido que fundamentou a decisão de inconstitucionalidade do art. 387.º do CPenal, por violação dos arts. 27.º e 18.º, n.º 2, da CRP, agora foi a violação do princípio da legalidade, com assento no art. 29.º, n 1, da CRP, que justificou a declaração de inconstitucionalidade, à semelhança do que era defendido nos votos de vencido a que se fez referência no âmbito dos acórdãos n.ºs 867/2021 e 781/2022.

Mas também nesta Secção a solução não foi pacífica.

O aresto, de acordo com a definição da própria relatora, tinha duas questões a que se impunha dar resposta:

«- o saber se esta incriminação visa tutelar algum bem jurídico constitucionalmente protegido (e qual);

- o apurar se a consagração legal deste crime viola o princípio da legalidade, nas suas várias vertentes, em especial no que diz respeito ao princípio da tipicidade da lei penal, resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).»

No que concerne à primeira questão, o Tribunal Constitucional, em consonância com os votos de vencido apostos nos anteriores acórdãos, admitiu, embora com muito menos convicção do que se espelhou nos votos de vencido supramencionados, a cobertura constitucional para a protecção do crime de maus tratos a animais, entendendo que «[e]m ambos os casos, partindo-se do mesmo preceito constitucional (o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana […] e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”), mas acentuando distintos segmentos – num caso a solidariedade e os deveres que dela decorrem, no outro a dignidade da pessoa humana –, procurou-se preencher a amplitude e indeterminação típica das normas abertas ou cláusulas gerais constitucionais de acordo com a evolução da própria sociedade portuguesa e as modificações do específico substrato axiológico inerente à mesma, permitindo acolher a referida transformação social no sentido de tutelar o bem-estar animal.

E mais adiante, acrescentou: «[o] princípio fundador da dignidade da pessoa humana, entendido desta forma e por referência ao presente contexto sociocultural, permite concluir que essa dignidade só é realizada, atualmente, se existir também um dever do próprio ser humano de causar o menor dano possível aos animais que nos rodeiam, especialmente àqueles que nos fazem companhia, que integravam originalmente a fauna selvagem e que há muito tempo passaram a fazer parte, como elemento vivo e atuante, das nossas casas e vidas, assim se construindo uma sociedade mais solidária e com um legado de respeito por todos os animais a transmitir para as gerações futuras, deixando essa solidariedade interpessoal sempre necessária em qualquer comunidade estender-se e abranger igualmente os animais que são mais importantes para todos nós.

Mas não deixou de realçar que era «a custo, numa leitura atualista e dinâmica do texto constitucional, que o bem jurídico ‘tutela do bem-estar dos animais de companhia’ ainda encontra arrimo em normas constitucionais, como as que se referem à dignidade da pessoa humana, à solidariedade ou à proteção do ambiente – a custo, uma vez que qualquer interpretação atualista do texto constitucional sempre terá como limite o princípio da certeza jurídica, sendo certo que não há propriamente consenso, entre nós, de onde derivar a tutela jurídico-constitucional dos animais de companhia –, consubstanciando a criminalização dos maus tratos a animais uma restrição a direitos fundamentais da pessoa humana, dificilmente, numa ponderação de bens em conflito, o interesse dos animais, assegurado de forma tão ténue a nível constitucional, se imporá.»

Esta específica decisão foi votada pela Senhora Conselheira relatora, naturalmente, e pelos Senhores Juízes Conselheiros Pedro Machete (subscrevendo a posição sustentada pela Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa no voto de vencida no acórdão 867/2021), José João Abrantes e José António Teles Pereira, estes dois embora discordando da fundamentação, nos termos da declaração de voto apresentada pelo último e à qual aderiu o primeiro, na qual em síntese foi considerado que «a discussão da legitimação da incriminação de maus tratos a animais de companhia tem o seu campo no direito e na Constituição que é, mas tende a nem sequer questionar (e bem, como veremos) que essa incriminação sempre corresponderia a uma constelação axiológica consensual na sociedade, culturalmente fundada, e, nesse sentido, já corresponde à Constituição que, se não é, poderia ser, ou que – como aqui sucede – até já o é, numa construção interpretativa coerente com o seu sentido. É assim que “[…] a restrição da ideia de bem jurídico às «condições de existência e desenvolvimento do indivíduo na comunidade» […] passa ao lado da circunstância de cada grupo humano conhecer (e necessitar!) de múltiplas normas de conduta, culturalmente radicadas, nas quais não estão em causa «bens» mais ou menos sólidos […]”, como sucede com o tipo de evidenciação (da existência de um «bem») propiciada por “[…] interesses individuais (vida, integridade corporal, liberdade, etc.)» e, por isso, aí se concluiu que «ao contrário do entendimento maioritário desta 1.ª Secção, não vejo que a inserção da incriminação em causa no quadro jurídico-constitucional atual se faça “a custo”. Essa inserção faz-se sem grande dificuldade – embora não tão facilmente como seria perante uma previsão objetivamente expressa no texto da Lei Fundamental –, desde que a Constituição se interprete nos moldes supra apontados, que nada têm de incerto ou arbitrário.»

Votou contra o entendimento respeitante a esta questão o Senhor Conselheiro João Pedro Caupers.

Relativamente à segunda questão, o aresto em análise começa por remeter para a apreciação do princípio da legalidade penal, com assento constitucional, desde logo, no art. 29.º, n.º 1, da CRP, realizada nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 20/2019 e 572/2019, dos quais ressalta a ideia fundamental de que o princípio da tipicidade visa fundamentalmente proporcionar aos indivíduos a possibilidade de conhecerem as condutas que podem praticar sem incorrerem numa pena, o significado geralmente atribuído às palavras previstas na lei constitui uma referência central para ponderar a suficiente determinação desta. Por isso, os comportamentos proibidos, «para constituírem crimes, têm de ser (...) definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma», devendo permitir «identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor», impondo-se o recurso à noção de «bonus pater famílias» para se reportar ao destinatário da norma penal e beneficiário primacial do princípio da tipicidade

Dito de outro modo, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima». Ou, precisando, o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição encerra a exigência de que «a caracterização do ilícito típico seja levada a um tal ponto que torne possível aos destinatários da norma incriminadora conhecer os elementos, objetivos e subjetivos, que integram a infração e, através da apreensão, por essa forma, do elenco tanto dos valores protegidos como dos comportamentos proibidos pelo ordenamento jurídico-penal, exercerem, de forma consciente e esclarecida, a respetiva liberdade de autodeterminação».

Na síntese encontrada pela Senhora Conselheira relatora, «o princípio da legalidade penal acolhido na CRP encontra o seu fundamento na tutela da liberdade individual, a qual implica para o legislador ordinário o dever de formular as normas penais de forma clara e precisa, tanto no que se refere à delimitação dos factos que constituem crime, como no que respeita às próprias sanções associadas aos crimes concretamente tipificados. É fundamental, em suma, que os cidadãos, destinatários naturais e normais das normas penais, saibam, sem margem para incertezas ou erros, quais as condutas penalmente lícitas e quais as que estão penalmente vedadas.»

Na análise que realiza ao conceito de animal de companhia o Tribunal Constitucional não encontra a necessária determinabilidade. E quanto às condutas abrangidas pela previsão morte e maus tratos entende que «para a interpretação e preenchimento deste tipo-de-ilícito, recorrer aos múltiplos acórdãos e doutrina relativos ao crime de maus tratos/violência doméstica e a outros crimes afins – “Trata-se de conceitos indeterminados que se encontram desenvolvidos na Doutrina e na Jurisprudência no âmbito dos crimes contra as pessoas (…), tanto mais que «o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial que lhes é dado vale, mutatis mutandis, para os animais, pois o sofrimento é igual, só se altera a espécie da vítima que, aliás, é em regra especialmente vulnerável”(…). Mas, acrescenta, «trata-se de opção discutível, quanto mais não seja porque se afigura sobremaneira problemático transpor, mesmo que com adaptações e alguma cautela, a doutrina e jurisprudência relativas ao crime de maus tratos/violência doméstica para este crime, dado que esse tipo-de-ilícito é bem mais descritivo e pormenorizado. É que, explica, «o n.º 3 do artigo 387.º utiliza a fórmula mais genérica “infligir dor, sofrimento” e completa-a com uma fórmula ainda mais genérica: “ou quaisquer outros maus tratos físicos”. Acresce a isto que o paralelismo traçado entre violência doméstica e violência contra animais de companhia pode sugerir uma paridade entre a dignidade humana e a dignidade animal (a qual sempre se depararia com a dificuldade lógica de equiparar os seres humanos aos animais), que, com toda a certeza, não resulta da Constituição, não podendo sequer ser defendida por quem admite uma tutela constitucional indireta ou reflexa dos animais.

No acórdão, justifica-se ainda que «as dúvidas são ainda maiores quando se procura apurar o que seja um “motivo legítimo”, que parece ser um elemento negativo do tipo-de-ilícito, delimitando, portanto, pela negativa, a respetiva fattispecie».

Assim, em síntese conclusiva, foi considerado, «na esteira dos dois votos de vencido já amplamente mencionados, que esta norma penal não cumpre as exigências mínimas de determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade acolhido no artigo 29.º, n.º 1 da CRP, concluindo-se, assim, pela sua inconstitucionalidade, devendo, por esse motivo, improceder o presente recurso de constitucionalidade.»

Também relativamente a esta segunda questão a solução não foi pacífica, tendo sido votada pela Senhora Conselheira relatora e pelos Senhores Juízes Conselheiros Pedro Machete e João Pedro Caupers.

Os Senhores Conselheiros José João Abrantes e José António Teles Pereira votaram vencidos, nos termos da declaração de voto apresentada pelo último e à qual aderiu o primeiro, na qual se explicitou, após alusão ao paralelismo verificado face ao crime de violência doméstica (art. 152.º, n.º 1, do CPenal), já julgado não inconstitucional por violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP, no segmento relativo a “maus tratos físicos ou psíquicos” (acórdão do TC n.º 340/2022), que «[r]essalvadas as óbvias diferenças entre humanos e animais com a suscetibilidade de experimentar sofrimento e tendo presente que o artigo 387.º, n.º 3, do CP parece prever apenas expressamente os maus tratos físicos, não é difícil concluir que, também aqui, a noção de “maus tratos”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida e que “[…] o seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal” (último acórdão citado). Os destinatários da norma terão presente, designadamente, que não podem infligir sofrimento físico – por exemplo, causar dor – a um animal de companhia. Trata-se de um conceito indeterminado, mas determinável, compatível com o princípio da legalidade criminal, como o é nos artigos 152.º e 152.º-A do CP.

Idênticas conclusões foram extraídas relativamente ao segmento sem motivo legítimo e ao conceito de animais de companhia.

A este propósito afirmou-se no referido voto de vencido que «[o] legislador, ciente de que a interação entre seres humanos e animais é juridicamente complexa e que o sacrifício de animais pode acontecer para satisfação de interesses humanos de elevado valor (por exemplo, a alimentação e a investigação científica, com o que implicam de atividades preparatórias do uso principal dos animais), sendo estes especialmente regulados, pretendeu deixar consignada uma cláusula geral – cláusula que tem tanto de indeterminado como qualquer remissão genérica para causas de justificação.

(…)

A circunstância de a previsão legal não ser isenta de dúvida em casos situados na periferia da hipótese não torna a norma indeterminada. As dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo. (…) Designadamente, a dúvida sobre se certos animais entram ou não no círculo da proteção penal não significa a indeterminabilidade da norma, desde que a incerteza interpretativa deixe salvaguardado, como é o caso, um núcleo claro e distinguível de conduta proibida.

(…)

Considerações semelhantes valem, mutatis mutandis, para o conceito de “animal de companhia” como sendo aquele que é “detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e ainda qualquer animal sujeito a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia  (SIAC – o registo obrigatório abrange, atualmente, cães, gatos e furões – v. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho), com exclusão dos animais cuja detenção seja proibida (v., por exemplo, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e os artigos 13.º e ss. do Decreto-Lei n.º 121/2017, de 20 de setembro). Não há nada de essencialmente indeterminado neste conceito, que é de fácil apreensão aos destinatários das normas, sendo as dúvidas, uma vez mais, passíveis de solução nos termos gerais da interpretação de normas no plano infraconstitucional. Difícil de entender e de justificar seria uma especiosa imposição ao legislador, no sentido de mais fina concretização, em busca da qual, provavelmente, seria maior o risco de contradição e incoerência do que, propriamente, a possibilidade de alcançar maior clareza ou precisão do referido conceito.

Mais se entendeu que «as dúvidas expressas no acórdão da maioria (v. o seu ponto 17.), que se destinam a ilustrar a indeterminabilidade do tipo legal, não são qualitativamente diversas daquelas a que se fez referência supra, ou seja, são dúvidas interpretativas a que, em maior ou menor grau, se abre a interpretação de qualquer tipo legal e resolvem-se com as “válvulas de escape” já conhecidas do direito penal (seja pelas particulares regras de interpretação da lei penal, seja pelas ideias de necessidade, não danosidade, adequação social, entre outras).

Já na pendência deste processo no Tribunal da Relação do Porto, por acórdão n.º 70/2024 aprovado em sessão do Plenário do Tribunal Constitucional, de 23-01-2024, foi decidido não declarar a inconstitucionalidade da norma que prevê a incriminação de maus tratos de animais de companhia.

Esta decisão foi tomada no âmbito de um processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com origem num pedido de generalização de anteriores julgamentos de inconstitucionalidade, apresentado pelo Ministério Público (artigo 82.º da LTC), tendo o Plenário analisado os fundamentos que estiveram na base de diversas decisões anteriores que julgaram o tipo de crime de maus tratos de animais de companhia inconstitucional (fiscalização concreta).

Por isso, a análise e decisão recaiu sobre as duas questões já sobejamente identificadas.

Quanto à questão de saber se existe ou não um bem jurídico protegido com dignidade constitucional que suporte a incriminação da morte e maus tratos de animais de companhia, foi afirmado que a tutela da defesa do bem-estar animal faz parte da Constituição material e integra o conjunto de valores com reflexo na Lei Fundamental.

E no que concerne à violação do princípio da legalidade, na vertente da tipicidade criminal, a decisão foi igualmente de não inconstitucionalidade.

A decisão proferida é do seguinte âmbito e teor:

«a) não declarar a inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto; e

b) não declarar a inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.»

Mais uma vez a solução encontrada não foi unânime, como seria de esperar atentas as decisões antecedentes e as declarações de voto aí explicitadas.

Contudo, esta decisão, votada em Plenário, ao contrário das anteriores que foram votadas nas Secções, representando, por isso, uma posição parcial do Tribunal Constitucional sobre o assunto, reflecte o entendimento do conjunto dos Juízes Conselheiros que aquele compõem sobre esta matéria, e que é no sentido da não inconstitucionalidade do tipo penal em análise tendo em consideração as duas vertentes por que foi sendo analisada nos vários arestos mencionados.

Foi relator o Senhor Conselheiro José António Pires Teles Pereira, que, como já observamos do anterior acórdão n.º 843/2022, assumiu aí idêntica posição.

Relativamente à questão da dignidade constitucional do bem jurídico protegido o Senhor Conselheiro Relator observou que «[p]erante as posições em debate quanto à (in)existência de um bem jurídico que possa suportar a incriminação, a verdadeira cisão verifica-se entre os que entendem que ele inexiste em sede constitucional e os que entendem que existe. Entre os últimos, há quem o encontre no artigo 1.º da CRP (declaração de voto transcrita em 2.2.1., supra), quem o localize no artigo 66.º da CRP (declaração de voto referida em 2.2.4., supra) e quem o retire do “segmento final do artigo 1.º – sem correspondência, aliás, na Lei Fundamental de Bona –, no qual Constituição vincula a República – e, consequentemente, o próprio Estado – a empenhar-se na «construção de uma sociedade […] solidária” (declaração de voto transcrita em 2.2.2., supra). Não obstante, todas estas posições reconhecem um bem jurídico com acolhimento constitucional – importa, pois, aferir se a concordância neste ponto tem implicações para a presente decisão.

E avançando para a resposta a encontrar, esclareceu que «a solução para o problema em análise passa, essencialmente, por um eixo agregador que se forma em torno da ideia de Constituição material, decorrente de uma “interpretação alternativa da soberania popular […] de ordem material” (…). Nesta perspectiva, «[c]omo parte integrante do conjunto dos valores que deste modo se agregam na Constituição da República Portuguesa, encontra-se, pois, para lá (ou, de outra perspetiva, antes) da Constituição formal, o valor da proteção da vida (enquanto existência física) e da integridade física dos animais de companhia, individualmente considerados, exprimindo a ideia de que “[…] nas nossas sociedades de Estado de Direito, a proibição da crueldade sobre os animais tem a dignidade de proteção constitucional que lhe advém do facto, de reconhecimento incontestável, sobretudo nas últimas décadas, de constituir uma justa exigência moral e de bem-estar numa sociedade democrática” [Jorge Reis Novais, “Restrições a direitos fundamentais, maus-tratos a animais e Constituição”, in João Carlos Loureiro (org.), Constituição, política de direitos fundamentais – Estudos em homenagem ao Doutor Vieira de Andrade, vol. I, Coimbra, 2023, p. 332].»

Por isso, «[a]ssim perspetivada a questão, o dissenso em torno da localização do fundamento da norma incriminatória na Constituição formal constitui um manto, também ele formal, que cobre um consenso quanto à efetiva existência desse apoio na Constituição material. Dito de outro modo, a maioria da formação que integra o Plenário na presente decisão integra-se em alguma das posições descritas no item 2.4.2., supra – com o sentido expresso nas declarações em que as mesmas se manifestaram –, reconhecendo que a Constituição acolhe os interesses protegidos pela norma contida no artigo 387.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto.

É, pois, a substância desse consenso – que apela à materialidade do valor constitucional, presente na essência da Lei Fundamental, transcendendo (na justa medida em que tal se mostra possível) a forma (ou fórmula) encontrada para a sua positivação literal – que prevalece e dá forma ao sentido da presente decisão.

Terminou concluindo que «não se prefiguram razões que obstem à admissibilidade da norma penal ora em causa (o artigo 387.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto) por falta de previsão constitucional dos interesses ou valores tutelados pela incriminação.»

E no que concerne à questão da determinabilidade da norma, o acórdão em análise perfilha o entendimento de que «ao Tribunal Constitucional cabe apenas verificar, nesta sede – e como repetidamente tem afirmado a sua jurisprudência –, se a norma aplicada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as consequências jurídicas do crime.»

Afirma-se, por isso, que «[o] princípio da legalidade criminal apresenta-se, pois, como “[…] garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita […]” (Acórdão n.º 500/2021). Um dos seus corolários é o designado princípio da tipicidade, a que se refere a exigência de lei certa, significando “[…] que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição típica dos factos puníveis” (novamente, Acórdão n.º 500/2021, sublinhado acrescentado). Como se assinala no Acórdão n.º 76/2016:

(…)

Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito

Nesta esteira, encarando «a norma penal, no que respeita à ação típica (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “sem motivo legítimo”) e ao objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”)», à luz das apontadas exigências, entendeu o Tribunal Constitucional – tal como já constava do voto de vencido do Senhor Juiz Conselheiro, aqui relator, no acórdão do TC n.º 843/2022, de 20-12 – que «[r]essalvadas as óbvias diferenças entre humanos e animais com a suscetibilidade de experimentar sofrimento e tendo presente que o artigo 387.º, n.º 3, do CP parece prever apenas expressamente os maus tratos físicos, não é difícil concluir que, também aqui, a noção de “maus tratos”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida e que “[…] o seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal” (último acórdão citado).

(…)

Trata-se de um conceito indeterminado, mas determinável, compatível com o princípio da legalidade criminal, como o é nos artigos 152.º e 152.º-A do CP.»

Idênticas conclusões foram extraídas relativamente ao segmento sem motivo legítimo e ao conceito de animais de companhia.

A este propósito afirmou-se no acórdão em apreço – tal como já constava do voto vencido supramencionado –, que «[o] legislador, ciente de que a interação entre seres humanos e animais é juridicamente complexa e de que o sacrifício de animais pode acontecer para satisfação de interesses humanos de elevado valor (por exemplo, a alimentação e a investigação científica, com o que implicam de atividades preparatórias do uso principal dos animais), sendo estes especialmente regulados, pretendeu deixar consignada uma cláusula geral – cláusula que tem tanto de indeterminado como qualquer remissão genérica para causas de justificação.

(…)

Considerações semelhantes valem, mutatis mutandis, para o conceito de “animal de companhia” como sendo aquele que é “[…] detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e ainda qualquer animal sujeito a registo no SIAC (o registo obrigatório abrange, atualmente, cães, gatos e furões – v. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho), com exclusão dos animais cuja detenção seja proibida (v., por exemplo, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e os artigos 13.º e ss. do Decreto-Lei n.º 121/2017, de 20 de setembro).

(…)

Não há nada de essencialmente indeterminado neste conceito, que é de fácil apreensão aos destinatários das normas, sendo as dúvidas, uma vez mais, passíveis de solução nos termos gerais da interpretação de normas no plano infraconstitucional. Difícil de entender e de justificar seria uma especiosa imposição ao legislador, no sentido de mais fina concretização, em busca da qual, provavelmente, seria maior o risco de contradição e incoerência do que, propriamente, a possibilidade de alcançar maior clareza ou precisão do referido conceito.

E sublinha-se, por fim, que «a circunstância de a previsão legal não ser isenta de dúvida em casos situados na periferia da hipótese não torna a norma indeterminada. As dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo. (…) Designadamente, a dúvida sobre se certos animais entram ou não no círculo da proteção penal (…) não significa a indeterminabilidade da norma, desde que a incerteza interpretativa deixe salvaguardado, como é o caso, um núcleo claro e distinguível de conduta proibida. Nesse plano se resolverão, ainda, outras dúvidas interpretativas não descaracterizadoras dos traços fundamentais da conduta proibida [por exemplo, até que ponto os conceitos de “lar” e de “residência” são equivalentes (…) ou se a norma penal protege animais detidos por quem não tem uma residência fixada].

O Tribunal Constitucional concluiu, em face do exposto, que «não há fundamentos bastantes para afirmar a indeterminabilidade da norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 3, do CP.»

Sendo esta a posição maioritária do Plenário do Tribunal Constitucional e não tendo este Tribunal de recurso razões para pôr em causa a avaliação ali efectuada, que aqui se assume, não pode proceder nesta parte o recurso apresentado.

Mostra-se evidente das decisões referidas, sintetizadas neste último acórdão n.º 70/2014, de 23-01, que a questão da dignidade constitucional do bem jurídico protegido pelo crime de maus tratos a animais de companhia é a que pulveriza mais a argumentação de suporte, mas ao mesmo tempo é sinal de que o fundamento constitucional para a possibilidade de criminalização das condutas em causa pode ser encontrado em várias normas da Constituição da República Portuguesa e, segundo o entendimento expresso no acórdão, na sua leitura harmonizada e integrante do conjunto dos valores materiais, espelho da soberania popular, que no actual momento existencial se agregam no texto fundamental.

O tema da verificação da necessária tipicidade das normas questionadas apresenta-se mais bipolarizada, e por essa via mais simplificada, aderindo-se em termos abstractos à posição que fez vencimento.

E em concreto também não se verificam, em nosso entender, dúvidas quanto ao enquadramento das condutas em causa nestes autos – efectuar disparo de espingarda de pressão de ar que atinge na barriga a gata da vizinha, tendo o projéctil de chumbo utilizado perfurado a pele e o intestino, trespassando todo o abdómen, perfurando o duodeno em dois locais, alojando-se junto a uma costela do lado oposto da perfuração, com intenção de ofender o corpo e saúde do animal e de causar ao mesmo dores e lesões, sabendo que era animal de estimação e que desse modo lhe causava sofrimento – no âmbito da previsão do art. 387.º, n.º 1, do CPenal, na redacção dada pela Lei 69/2014, de 29-08.

O caso dos autos não se encontra em qualquer zona de fronteira do sentido comum da previsão da norma, sendo quanto a nós pacífico que se verificam os elementos objectivos e subjectivos do crime.

Nenhuma razão se verifica, pois, para censurar nesta parte a decisão recorrida.


*

Erro de julgamento em sede de matéria de facto, com violação do princípio in dubio pro reo.

É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto podem os recorrentes seguir um de dois caminhos: ou invocam os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresentam uma impugnação alargada, que lhes permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.

Em qualquer das opções impõe-se aos recorrentes o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado.

No caso em apreço, o recorrente optou por esta segunda via, posto que argumentou com remissão para vários meios de prova e para a leitura conjugada que dos mesmos fazia.

Ora, resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.

As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o Tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, o que, na verdade, não é raro, pois habitualmente, em julgamento, estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.

E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto (alargada) têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[7]:

«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».

II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.

Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[8]:

«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.

II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto da impugnação da matéria de facto apresentada pelo arguido.

Ora, logo no início deste segmento da impugnação, o recorrente começa por demonstrar que não está a invocar qualquer erro de julgamento, antes a colocar em causa a convicção formada pelo Tribunal a quo.

Esta atitude mostra-se claramente reflectida na invocação de que «[o] Tribunal a quo mal valorou certos depoimentos dos assistentes e suas testemunhas parciais, consigo comprometidas, em detrimento das declarações do arguido e testemunhas de defesa, limitando-se, o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, a enveredar pelo caminho mais fácil, anuindo na história dos fatos ficcionados pelos assistentes e testemunhas por si apresentadas, munidos de interesses puramente económicos», seguida da afirmação de que «[o] Recorrente e com o devido respeito por V.ªs Ex.ªs entende que, atentos ao depoimento por si prestado, de forma livre e voluntária, sem quaisquer omissões, pautadas pela efetiva verdade dos factos ocorridos e dos quais vem iniquamente acusado e condenado, deveria de ter sido outro o entendimento na decisão do Tribunal a quo, considerando, impreterivelmente, que as suas declarações merecem e mereciam a valoração rigorosa a que estamos habituados – e que, por ora, não sucedeu, – pelo menosprezo integral das declarações por si prestadas.»

Ainda assim, o recorrente acrescenta também que o Tribunal a quo «julgou com base em juízos ou meras suposições de probabilidade assentando a sua convicção de que o Recorrente/arguido foi sem dúvida a pessoa que com toda a certeza, praticou os factos de que foi acusado e, erradamente, condenado.»

Contudo, lida a fundamentação de facto que o Tribunal recorrido fez consignar na sentença recorrida, e ouvida a prova produzida para melhor compreensão da fundamentação, que podia estar relatada de forma mais interligada entre si, o que vemos é que o Tribunal a quo conjugou elementos de prova directa com elementos de prova indirecta, recorrendo a presunções judiciais para chegar à conclusão que o recorrente foi o autor dos crimes que se demonstrou terem sido praticados.

Ora, a convicção judicial pode formar-se a partir de prova indiciária. Aliás, o Tribunal Constitucional já proferiu juízo de não inconstitucionalidade do art. 125.º do CPPenal na interpretação segundo a qual a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal[9].

A maioria das provas, mesmo as directas, não atinge o patamar da certeza absoluta que o recorrente erige como imposição para a sua condenação.

A exigência que uma condenação penal pressupõe é a de um juízo de certeza, por oposição a um juízo de mera probabilidade. É a certeza, não absoluta, mas para além de toda a dúvida razoável.

Este entendimento mostra-se reflectido no princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido com assento no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos em concreto.

O recorrente impugna os pontos 2) (em hora não concretamente apurada, mas compreendida entre 15.45h – 16h45 do mesmo dia, o arguido realizou pelo menos um disparo atingindo na barriga a gata de BB) e 8) (agindo da forma descrita, o arguido tinha a vontade livre e a perfeita consciência de estar a ofender o corpo e a saúde da gata de BB e de causar à mesma dores e lesões, bem sabendo que a gata é um bicho de estimação e que desse modo causava sofrimento ao animal) da matéria de facto, invocando que não se provou que tenha sido o autor do tiro que atingiu a gata da assistente.

Para fundamentar a sua alegação, invoca que ninguém conseguiu afirmar que foi o recorrente o autor dos factos, transcrevendo depois passagens das suas declarações em julgamento e bem assim das do assistente CC e dos depoimentos das testemunhas DD e FF.

Mas o Tribunal a quo foi o primeiro a afirmar na sua fundamentação que a actuação do arguido não foi percepcionada directamente por nenhuma das pessoas inquiridas e que o arguido negou a factualidade imputada.

Por isso, de nada servem em termos de infirmação dos factos provados os segmentos selecionados e transcritos pelo arguido no seu recurso.

Importa é perceber se a fundamentação do Tribunal a quo, em conjugação com a prova aí indicada, é suficiente para sustentar a sua convicção de que o recorrente agiu nos termos descritos, desde logo, nos pontos 2) e 8) da matéria de facto provada.

E a verdade é que o conjunto da prova produzida através das declarações dos assistentes e dos depoimentos das testemunhas DD e FF, aos quais foi conferida credibilidade, permite colocar o arguido a dar tiros de pressão de ar no seu no quintal no dia dos factos; evidenciar que esse comportamento não foi acontecimento único, tendo ocorrido por várias vezes; que a sua companheira uns dias antes “avisou” a testemunha DD (vizinha dos assistentes e do arguido) de que se o companheiro – o aqui recorrente – apanhasse a gata da assistente no seu quintal lhe dava um tiro; que a gata da assistente ia para o quintal do arguido onde este tinha criação, ocorrendo, assim, motivo objectivo para o descontentamento do arguido; que no dia a seguir aos acontecimentos relacionados com a gata essa mesma testemunha chamou a GNR porque o arguido andava aos tiros no quintal; que nos dias a seguir ao ferimento da gata a assistente ficou com medo de vir para a zona exterior da sua casa, pois o arguido disparava a sua pressão de ar, atingindo a chapa na zona limítrofe do quintal; que dois dias após o incidente com a gata o arguido dirigiu ao assistente as expressões consignadas no ponto 7 da matéria de facto provada, avisando que se o gato lá tornasse a passar era “pumba” e ia gato e ia dono, com a caçadeira (e não pressão de ar).

Resulta ainda do depoimento da testemunha HH a natureza do objecto que atingiu a gata, consentâneo com a espingarda de pressão de ar do arguido.

E não foram relatados outros conflitos a propósito da gata.

O conjunto destes factos, à luz das regras de experiência comum, permite concluir com a certeza necessária em direito penal, que não é absoluta, mas está longe de ser uma mera probabilidade, que o arguido foi o autor dos factos descritos nos pontos de facto provados 2) e 8) e que estes acorreram os termos aí descritos, tal como se consignou e justificou na sentença recorrida.

E esta avaliação afasta igualmente o argumento do recorrente de que o Tribunal a quo devia ter feito operar o princípio in dubio pro reo.

Nem a decisão recorrida revela que o Tribunal a quo em algum momento ficou em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada impugnada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provados ou como não provados os pontos de facto impugnados, nem se reconhece que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.

De seguida, o recorrente impugna a factualidade consignada nos pontos 7), 9), 13) e 15) da matéria de facto provada.

Mais uma vez, recorrendo a segmentos das gravações das suas próprias declarações, das da assistente BB e do depoimento da testemunha DD, procurou simplesmente, e de forma genérica, desacreditar a narrativa destas últimas, em especial da testemunha, rebatendo a leitura que o Tribunal a quo fez desta prova com a sua própria interpretação da mesma, avaliação que, como já se referiu não integra os fundamentos da impugnação da matéria de facto.

Curiosamente, o recorrente omitiu qualquer referência às declarações do assistente CC, visado com as condutas descritas nos pontos 7) (no dia 02/08/2019, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 19h30/20h, o arguido AA dirigindo-se ao CC disse em tom de voz elevado “se tens colhões eu também tenho”, “tens dinheiro, (…) eu também tenho”, que era pior do que um cigano, quando gato lá tornasse a passar era “pumba”, ia gato, ia dono, ia tudo, com a caçadeira) e 9 (o arguido agiu de forma livre voluntária e consciente, e quis com tais expressões significar que mataria CC com o uso de uma caçadeira, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal) da matéria de facto provada, e ao depoimento da testemunha FF que sobre esta matéria se pronunciaram, em coerência com a matéria de facto provada, esvaziando, também, por isso, o sentido útil da impugnação apresentada.

E concretamente quanto aos pontos 13) (aquando do referido em 2. e 3. a assistente ficou assustada, com receio de não chegar a tempo à Clínica veterinária para a salvar, pensando que perderia a sua gata) e 15) (o assistente ao ouvir o referido em 7. sentiu receio pela sua concretização) da matéria de facto provada, o recorrente apenas apela à sua subjectiva avaliação da prova e a duas curtas passagens das declarações dos assistentes. Numa, o assistente diz que nos dias seguintes continuou a fazer a sua vida normal e na noutra a assistente refere que quando chegou a casa não se apercebeu de imediato da situação da gata, pensando que as fezes e o sangue que viu à entrada eram de guerras do gato da vizinha.

Esta concreta alegação é uma total falácia, pois nem a manutenção da rotina diária impede que o assistente, ao ouvir o referido em 7), tenha sentido receio pela sua concretização, nem o facto de a assistente num primeiro momento não se ter apercebido do que se passou com a gata – como é normal, pois não é usual as pessoas chegarem a casa e terem os seus animais de estimação atingidos com chumbo – impede que num momento posterior tenha sentido que poderia perder a gata. Aliás, estes factos foram por ambos confirmados, o assistente entre 00:08:10 e 00:08:28 das suas declarações e a assistente entre 00:16:15 e 00:16:22 das suas declarações.

Por fim, o recorrente impugna a matéria de facto dada como não provada nas als. j) (o arguido sequer conhece o assistente, sequer o reconhece no caso de os mesmos, por alguma eventualidade, se cruzassem) e l) (o arguido nas mesmas condições de espaço não tem qualquer ângulo ou vista livre de uma habitação para outra) do elenco dos factos não provados, entendendo que a mesma devia ser dada como provada.

Quanto à al. j), mais uma vez, o recorrente procura valorizar apenas as suas próprias declarações e em contexto que nada contende com o facto que foi dado como não provado, já que não localizado temporalmente.

E relativamente à al. i) remete genericamente, por uma questão de celeridade processual, para as transcrições supra.

Ora, como se viu, a impugnação da matéria de facto provada tem requisitos exigentes, mostrando-se necessário que o recorrente explicite, perante a concreta prova que indica as razões por que se impõe uma alteração do ponto de facto em causa (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal).

E essa apreciação não foi feita, sendo certo que juízos de celeridade processual não derrogam a obrigação de cumprimento do apontado formalismo.

Conforme se observa da motivação supratranscrita, o Tribunal a quo sustentou que «[n]o que se refere à configuração do local (local de habitação dos assistentes, distância entre a habitação destes e do arguido e habitação de permeio) o Tribunal teve em conta, na estrita medida da factualidade dada por provada, as declarações de arguido, assistentes, testemunhas DD, FF, EE e GG e ainda tendo em conta as fotos juntas com a contestação.»

E o recorrente nada disse que pudesse derrogar essa justificação.

E valem aqui, para a impugnação da matéria de facto quanto aos pontos 7), 9), 13) e 15) dos factos provados e als. j) e l) dos factos não provados as considerações anteriormente efectuadas, a propósito dos pontos 2) e 8) dos factos provados, sobre o princípio in dubio pro reo, que nenhuma razão tem para operar em face da motivação realizada ou da prova produzida.

Duas notas finais.

Em primeiro lugar, importa salientar que o recorrente remata as suas alegações de recurso aludindo aos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, concretamente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova.

Ora, é pacífico o entendimento de que quando o recorrente invoca os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal deve ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, pois estão em causa defeitos que têm de resultar dessa mesma decisão, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Ora, como se viu, a argumentação do recorrente gravitou sempre à volta da prova produzida, fugindo, por isso, claramente ao escopo da previsão do art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, cuja invocação não pode, pois, relevar.

Em segundo lugar, embora nada refira nas suas conclusões, o recorrente alude nas alegações de recurso à não verificação de especial perversidade ou censurabilidade da conduta, não estando, por isso, configurado o crime de maus tratos a animais.

Contudo, no caso concreto, não está em causa a morte de animal de companhia, mas apenas a inflicção de dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia, sendo certo que só naquele caso (morte) e como elemento agravativo da moldura penal são de ponderar a especial perversidade ou censurabilidade da conduta.

Em suma, analisados os argumentos do recorrente e a prova indicada não encontramos aí fundamentos para alterar a decisão do Tribunal a quo.

Improcede, pois, também este segmento do recurso.


*

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça devida (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).


Porto, 06 de Março de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Castela Rio
José Quaresma
_________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] O recorrente deverá ter pretendido invocar o art. 66.º da CRP, que é analisado em acórdãos do Tribunal Constitucional a propósito desta questão, sendo certo que o art. 62.º da Lei Fundamental respeita ao direito de propriedade privada, que não tem sido expressamente trazido à discussão do tema dos maus tratos a animais, nem o recorrente aborda em que medida tal poderia ocorrer.
[3] Na verdade, como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2024, a que adiante aludiremos, «[o] juízo de inconstitucionalidade afirmado no Acórdão n.º 867/2021 foi, posteriormente, reiterado pelos Acórdãos n.ºs 9/2023 (neste caso, por referência à norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia contida no artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, na mesma redação, assentando a decisão principalmente no fundamento da indeterminabilidade do tipo legal) e 217/2023 e pelas Decisões Sumárias n.ºs 248/2022, 344/2022, 427/2022, 772/2022, 781/2022, 203/2023 e 251/2023. Acresce que (como melhor se verá adiante, na parte B/ desta decisão) idêntico juízo de inconstitucionalidade recaiu sobre a norma substancialmente equivalente do artigo 387.º, n.º 3, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, pelos Acórdãos n.ºs 781/2022 e 843/2022 (neste caso, assentando a decisão no fundamento da indeterminabilidade do tipo legal) e pelas Decisões Sumárias n.ºs 786/2022, 13/2023 e 14/2023.»
[4] Relatado por Lino Rodrigues Ribeiro, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Relatado por Lino Rodrigues Ribeiro, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[6] Relatado por Maria Benedita Urbano, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[9] Cf. acórdão n.º 521/2018, de 17-10-2018, relatado por Gonçalo Almeida Ribeiro e acessível in www.tribunalconstitucional.pt., aí se fazendo ainda referência ao acórdão n.º 391/2015 do mesmo Tribunal.