Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2207/24.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: REGISTO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO LEGAL DE PROPRIEDADE
ILISÃO
Nº do Documento: RP202509222207/24.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A presunção resultante do registo não dispensa a verificação da existência de um título aquisitivo idóneo.
II - Demonstrando, como está, que a autora não apresentou título aquisitivo idóneo do direito de propriedade sobre o veículo, mas apenas um contrato de cessão de créditos, a presunção resultante do registo de propriedade em nome da autora fica ilidida.
III - Logo, a autora não logrou provar o primeiro requisito da ação de reivindicação — a titularidade do direito de propriedade sobre a coisa.
IV - O registo automóvel em nome da autora, fundado num contrato de cessão de créditos, não constitui meio bastante para provar a aquisição da propriedade do veículo reivindicado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 2207/24.6T8VNG.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I.RELATÓRIO

1.A... SA, ..., matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Lisboa sob o NIPC ..., com sede na Avenida ..., ..., Lisboa,instaurou acção com processo comum contra

AA, contribuinte n.º ..., titular do cartão de cidadão... n.º ..., válido até 21 de junho de 2031, com domicílio na Rua ... ..., ... Vila Nova de Gaia,

Pedindo:

1.Que se considere a Autora como dona e legítima proprietária do veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), com o n.º de certificado de matrícula ...;

2.Que se considere ilegítima a posse do Réu e se ordene a restituição veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), com o n.º de certificado de matrícula ..., em óptimo estado de conservação e de utilização;

3.Que se condene o Réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, em valor não inferior a €100,00 mensais, por cada dia de incumprimento da obrigação de restituir o veículo, contabilizado a partir da Sentença que vier a ser proferida.

Para tanto, a autora alega que é a proprietária do veículo automóvel que identifica e que o réu detém o veículo em seu poder sem título bastante.

2.O réu apresentou contestação, sustentando que os seus pais compraram o veículo a 22 de Maio de 1996, com reserva à Financeira Locadora B..., S.A., desde então o utilizaram e, após o seu óbito, passou o réu a utilizá-lo, invocando a aquisição por usucapião com base em posse adquirira pela prática reiterada de actos materiais.

O réu, em reconvenção, pediu o seguinte:

- Que a autora/reconvinda seja condenada a reconhecer o réu/reconvinte como dono e legítimo possuidor, proprietário do veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ... “, com a matrícula ..-..-GQ, que o possui na convicção de o ter adquirido por sucessão mortis causa dos seus pais e, posteriormente, na falta de justo título, há já mais de 10, 20 e 28 anos, por usucapião, à vista de toda a gente, de boa fé e sem oposição;

- Que seja anulado o registo de propriedade do veículo automóvel na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa a favor da reconvinda;

- Que seja anulado o cancelamento da matrícula e alterado oficiosamente o registo de propriedade do veículo automóvel em causa a favor do reconvinte, por o ter adquirido por usucapião, como de verdadeiro proprietário se trate.

3.A autora replicou, e, entre o mais, impugnou a factualidade alegada pelo réu para sustentar os factos alegados com vista à demonstração de actos de posse suscetíveis de conduzir à aquisição por usucapião do veículo, alega que os pais do reu incumpriram o contrato de locação financeira ficando a dever à locadora, requerendo a condenação do réu por litigância de má fé, por saber que o pai fora apenas locador financeiro do veículo.

4.Findos os articulados foi proferido despacho saneador que admitiu a reconvenção e decidiu julgar improcedente a exceção da ilegitimidade passiva do réu.

5. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância de todas as formalidades legais e foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a.Reconhecer a propriedade da autora sobre o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), matrícula ..-..-GQ, com o n.º de certificado de matrícula ...;

b.Condenar o réu na restituição à autora do veículo automóvel descrito em a., em bom estado de conservação e de utilização;

c.Absolver o réu do demais contra si peticionado.

d.Condenar a autora e o réu no pagamento das custas processuais na medida dos respectivos decaimentos, que fixo, para a autora, em 5% e, para o réu, em 95% (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

II.Julgar a reconvenção inteiramente improcedente e, em consequência, absolvo a autora dos respectivos pedidos.

III.Julgar não verificada a litigância de má fé do réu.

6.Inconformado, o réu interpôs recurso, pelo qual, entre o mais, pediu a junção de três documentos que anexou[1], e impugnou a decisão de facto e o direito, conforme conclusões que se reproduzem:

A) Encontram-se incorretamente julgados os factos dados como provados nos pontos elencados em (2. Encontra-se inscrita a favor da autora, no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), matrícula ..-..-GQ, com o n.º de certificado de matrícula ..., pela Ap. .... 3. Foi inscrita a favor da C..., S.A., que incorporou a B....,no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o referido veículo automóvel, pela Ap. .... 4. Encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap. ...-06-1996 e a respectiva extinção a 23-03-2009. 11. A sociedade C..., S.A., cedeu à autora crédito sobre o pai do réu com o valor de € 11.050,00, respeitante ao veículo automóvel com a matrícula ..-..-GQ.), na matéria de facto na Sentença proferida com a fundamentação e motivação explicada (… )

Daí que se mostre necessária a desvalorização dos documentos nºs 1 da P.I. e nº 1 da Réplica assumidos pelo Tribunal a quo pois que se encontram desacompanhados de outros meios de prova para absoluto convencimento, contrariamente ao que os documentos nºs 1, 2 e 3 ora juntos, revelam.

Não cuidou o Tribunal a quo de motivar a matéria de facto explicando a natureza, a data e o valor da locação ainda em divida ou mesmo, a que título se extinguiu a locação em 23-03-2009 e no trato sucessivo teria forçosamente de figurar essa forma, muito antes de 11/03/2014 do contrato de cessão de créditos.

E por isso, deve ser dado como não provados, os factos dados por provados elencados por insuficiente motivação e de prova no caso em análise.

B) Quanto aos factos dado por provados elencados em 4. Encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap. ...-06-1996 e a respectiva extinção a 23-03-2009, e em 11. A sociedade C..., S.A., cedeu à autora crédito sobre o pai do réu com o valor de €11.050,00, respeitante ao veículo automóvel com a matrícula ..-..-GQ.)

Da matéria de facto relativamente à natureza e valor da divida de 11.050,00€ em 11/03/2014 ou em 14/03/2014 dada a inexistência da prova que não foi produzida e, a prova da declaração bancária do Banco 1... SA, da agência bancária de Vila Nova de Gaia, deve ser suficiente para dar como não provados, os pontos elencados em 4. e 11. dos factos provados, tendo como certo que a autora não adquiriu a divida do BB, por a mesma ter sido cumprida anteriormente, mediante prestações debitadas e domiciliadas na conta bancária ... de depósitos à ordem, referente ao contrato de locação nº ..., da empresa B... SA, com inicio em 25/05/1996 e fim em 25/05/2000.

C) Ainda quanto ao facto dado por provado elencado em 4. Encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap. ...-06-1996 e a respectiva extinção a 23-03-2009.

Da matéria de facto relativamente à natureza da extinção da locação, conforme ... e que se refere a autora, não foi suficientemente apurado, para dar como provado e apurar se a extinção da locação se deveu à autora e não ao invés, porque tinha já ocorrido o pagamento da divida, cumprindo-se o pagamento das mensalidades contratadas entre 25/05/1996 e 25/05/2000, referente ao contrato de locação nº ..., da empresa B... SA..

D) Quanto à restante matéria de facto, a douta Sentença deu como não provados na sua fundamentação de facto os pontos elencados em (A. Desde 22/05/1996, o pai do réu, BB, e a sua mãe, CC, e, após o seu óbito, o réu, passaram a apresentar o referido veículo automóvel às Inspeções Técnicas Periódicas, até ao cancelamento pela autora da matrícula. B. O réu, como já o fazia o seu pai, e depois a sua mãe, têm pago o Imposto Único de Circulação, reparações mecânicas, prémios de seguro de responsabilidade civil e portagens respeitantes ao referido veículo automóvel. C. Os pais do réu e, após o seu óbito, o réu sempre se consideraram proprietários do referido veículo automóvel.).

Encontrando-se incorretamente Julgados estes factos na Sentença proferida pelo Tribunal a quo da Decisão da matéria de facto com a fundamentação fáctica aí explanada.

Pelos factos supra acima invocados e pela apreciação dos documentos nºs 1 da P.I. e da Réplica e dos nºs 1, 2 e 3 correspondentes às declarações juntas quer do Banco 1... SA, delegação de Vila Nova de Gaia, quer da D... - centro de inspeções de veículos automóveis de ..., Vila Nova de Gaia e ainda da informação de DDE... de veículos automóveis de ..., Vila Nova de Gaia, os factos acima invocados devem ser suficientes para dar como provados os pontos elencados em A, B e C dos factos não provados,

Tendo como certo que era o recorrente como já o faziam os seus pais que conduziam o veículo em causa, o mantinham, o apresentavam às reparações e inspeções técnicas obrigatórias, suportando o imposto de circulação de veículo e as despesas com as reparações.

Pelo que quanto aos pontos A, B e C dos factos dados por não provados pelo Tribunal a quo pela prova aludida, devem os mesmos ser valorados e dado como factos provados, sendo revista a douta Decisão nesta parte por outra Decisão correta.

E) Por se mostrar necessária a alteração da douta Decisão do Tribunal a quo por outra Decisão mais correta que considere não provados, os concretos factos provados naquela elencados e que considere factos provados, os concretos factos não provados naquela elencados, refutando a fundamentação nesta parte da douta Sentença, implicando necessariamente a alteração da douta

Decisão do Tribunal a quo por outra Decisão mais correta, mostrando-se assim inadequada a interpretação do Tribunal a quo quanto a matéria de Direito adequável à interpretação, quanto à forma e à aquisição da propriedade do veículo automóvel, considerando que o contrato de locação financeira nº... com inicio em 25/05/1996 e fim em 25/05/2000 foi cumprido na totalidade, mediante o pagamento das prestações debitadas na conta bancária ... de depósitos à ordem, na qual participava o AA, ora recorrente, percebendo-se sem quaisquer dúvidas que a autora, ora recorrida, não comprou em 11/03/2014 a divida do veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), matrícula ..-..-GQ, com o n.º de certificado de matrícula ..., por a mesma ter sido liquidada dentro dos prazos contratados e ter ocorrido a Extinção de Registo de Locação em 23-03-2009.

F) A douta Decisão do Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1252º, 1253º, 1255º, 1257º, 1258º, 1259º, 1260º, 1261º, 1263º, 1272º, 1287º, 1288º, 1295º, 1296º, 1298, 1316º e 1317, do Código Civil.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente Recurso, revogando a douta Sentença, substituindo-se por outra Decisão e a final, - Ser a recorrida condenada a reconhecer o recorrente como dono e legítimo possuidor, proprietário do veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ... “, com a matrícula ..-..-GQ que o possui na convicção de ter sido cumprido o contrato de locação financeira pelo pagamento de todas as prestações, debitadas e domiciliadas na conta bancária ... de depósitos à ordem de outra Unidade Orgânica distinta do Banco 1... S.A., referente ao contrato de locação financeira nº..., da empresa B... SA., com inicio em 25/05/1996 e fim em 25/05/2000;

- Ser anulado o registo de propriedade do veículo automóvel na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa a favor da recorrida;

- Ser anulado o cancelamento da matrícula e alterado oficiosamente o registo de propriedade do veículo automóvel a favor do recorrente;

7.A autora contra-alegou, insurgindo-se contra a admissão dos três documentos em sede de recurso.

8.Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:

i.Se devem ser admitidos os três documentos juntos com o recurso.

ii.Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.

iii. Apreciar e decidir do mérito do recurso.

III.Questão Prévia relativa à pretendida junção de três documentos.

3.1 Da junção de três documentos.

Quid iuris?

Conforme é jurisprudência maioritária dos Nossos Tribunais Superiores:

Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.

No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.

Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.

No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.

Sobre esta hipótese alertam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, que “[a] jurisprudência tem entendido que a junção de documentos às alegações de recurso, de um documento potencialmente útil á causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” E continuam: “[n]o que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.

Resulta daqui que não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas.

No caso dos autos o recorrente junta três documentos:

1.Documento contendo declaração do Banco 1..., de 15/05/2025 que se reporta ao contrato de locação financeira nº... da B..., S.A., iniciado em 25/05/1996 e fim em 25/05/2000 com informação adicional de que todas as prestações foram debitadas na conta nº ..., da qual participava o recorrente (doc. 1 );

2. a informação de 14/05/2025 da D... – Centro de Inspeções, na Rua ..., ..., em ... (Lic. IMT ...) de que o veículo de matricula ..-..-GQ se apresentou e realizou as inspeções periódicas entre os anos de 2007 e de 2022 fazendo-se transportar o recorrente (doc. 2 );

3. a declaração da E... de DD, com sede na Rua ..., ... de que entre os anos de 2010 e de 2022 prestou serviços no veículo de matrícula ..-..-GQ apresentando, conduzindo e pagando os serviços, o recorrente (doc.3 ).

Posto isto, atentemos no caso dos autos:

Os três documentos juntos com as Alegações de Recurso não foram juntos com a Petição Inicial, não foram juntos num qualquer outro requerimento posterior apresentado pelo ora Recorrente, nem sequer na Audiência de Discussão e julgamento.

Os documentos datam de 15 de maio de 2025 (declaração bancária), 14 de maio de 2025 (D...) e o terceiro documento não tem qualquer data (declaração de serviços prestados).

Todavia, analisados os documentos resulta que os três documentos apresentados nas Alegações poderiam ter sido entregues, querendo, no articulado próprio para o efeito ou até 20 dias antes da data de realização da Audiência final, uma vez que os factos que os documentos pretendem fazer prova são anteriores à propositura da apresentação da ação, e no caso, não foi a sentença recorrida que criou necessidade de junção de determinado documento.

E como é sabido a junção de documentos às alegações de recurso só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância «criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes não contavam» (Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115.º, pág. 95.)”.

Na verdade, além de inexistir qualquer superveniência que legitime a apresentação dos novos documentos, considerando que objetivamente os factos que os documentos pretendem fazer prova são anteriores à propositura da apresentação da acção, por outro lado, e subjetivamente, era do conhecimento do Recorrente a existência de um contrato de locação financeira, pelo que, poderia ter junto a documentação em prazo.

Inexiste qualquer razão atendível (nem a mesma foi alegada) para a entrega dos documentos após o prazo estipulado para o efeito, considerando que os documentos n.º 1, 2 e 3, juntos com as Alegações de Recurso, foram claramente solicitados após a Sentença e por outro lado referem-se a factos relevantes para a defesa do réu.

Em consequência do exposto, não admitimos os documentos juntos com as alegações, determinando­se o respetivo desentranhamento e devolução à Recorrente, com custas do incidente pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2(duas ) UCs.

IV.FUNDAMENTAÇÃO.

4.1. Reproduz-se a decisão sobre a matéria de facto da sentença recorrida:

A.Factos Provados.

1.A Autora é uma sociedade anónima que tem por objeto Construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, aquisição, gestão e cessão de créditos, podendo praticar todas as atividades conexas e prestar serviços de consultoria e assessoria em todas aquelas áreas, conforme certidão permanente com o código de 4716-2768-1458, válida até 12 de outubro de 2024.

2.Encontra-se inscrita a favor da autora, no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...” (...), matrícula ..-..-GQ, com o n.º de certificado de matrícula ..., pela Ap. ....

3.Foi inscrita a favor da C..., S.A., que incorporou a B... SA., no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o referido veículo automóvel, pela Ap. ....

4.Encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap. ...-06-1996 e a respectiva extinção a 23-03-2009.

5.Encontra-se inscrito no registo automóvel, a 8.6.2022, o cancelamento em 27.5.2022 da matrícula do referido veículo automóvel.

6.O Réu contactou a Autora a 13/06/2023, após o cancelamento da matrícula, por não conseguir efectuar a inspecção periódica, através de e-mail.

7.O réu tem em seu poder o referido veículo automóvel, assim como o respectivo Livrete e Título do Registo da Propriedade.

8.O réu e sua mãe continuaram a circular com o referido veículo após a extinção do registo da locação, sem oposição.

9.BB faleceu em 01/05/1997 e CC em 10/12/2019.

10.Do título de registo de propriedade do referido veículo, em poder do réu, consta como proprietária inscrita do mesmo, desde 11.6.1996, a sociedade B... SA., e, como locatário financeiro, com a mesma data, o pai do réu, com início em 25.5.1996 e fim em 25.5.2000.

11.A sociedade C..., S.A., cedeu à autora crédito sobre o pai do réu com o valor de € 11.050,00, respeitante ao veículo automóvel com a matrícula ..-..-GQ.

B – Factos não provados

A.Desde 22/05/1996, o pai do réu, BB, e a sua mãe, CC, e, após o seu óbito, o réu, passaram a apresentar o referido veículo automóvel às Inspeções Técnicas Periódicas, até ao cancelamento pela autora da matrícula.

B.O réu, como já o fazia o seu pai, e depois a sua mãe, têm pago o Imposto Único de Circulação, reparações mecânicas, prémios de seguro de responsabilidade civil e portagens respeitantes ao referido veículo automóvel.

C.Os pais do réu e, após o seu óbito, o réu sempre se consideraram proprietários do referido veículo automóvel.

4.2 Da Impugnação da decisão de facto:

4.2.1

O recorrente impugna os seguintes factos provados:

a) O ponto 2 da matéria dada como provada («Encontra-se inscrita a favor da autora, no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo ...(...), matrícula ..-..-GQ,comon.º de certificado de matrícula ..., pela Ap. ...»);

b) O ponto 3 da matéria dada como provada («Foi inscrita a favor da C..., S.A., que incorporou a B... SA., no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o referido veículo automóvel, pela Ap. ...»);

c) O ponto 4 da matéria dada como provada

(«Encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap.... e a respectiva extinção a23-03-2009»);

d) O ponto 11 da matéria dada como provada («A sociedade C...,S.A., cedeu à autora créditosobreopaidoréucomovalorde€11.050,00,respeitanteaoveículo automóvel com a matrícula..-..-GQ»).

E impugna os seguintes factos não provados:

A. Desde 22/05/1996, o pai do réu, BB, e a sua mãe, CC, e, após o seu óbito, o réu, passaram a apresentar o referido veículo automóvel às Inspeções Técnicas Periódicas, até ao cancelamento pela autora da matrícula.

B. O réu, como já o fazia o seu pai, e depois a sua mãe, têm pago o Imposto Único de Circulação, reparações mecânicas, prémios de seguro de responsabilidade civil e portagens respeitantes ao referido veículo automóvel.

C. Os pais do réu e, após o seu óbito, o réu sempre se consideraram proprietários do referido veículo automóvel.)

.Quanto ao específico modo de ser da impugnação da matéria de facto o recorrente impugna a matéria de facto convocando para reapreciação os documentos nº 1 da P.I. e nº 1 da Réplica, os documentos nº 4 e 5 da Contestação..

Serão assim esses documentos que serão reapreciados, com o esclarecimento de que a certidão do registo automóvel foi apresentada no dia seguinte àquele da instauração da acção, concretamente, dia 8.03.2024, uma vez que existiu lapso na junção do requerimento 1 da petição inicial, o qual, não correspondia ao documento pretendido juntar.

Por outro lado, é desconsiderada a alegação do recorrente na parte em que refere: “ (e também por via da reapreciação da prova gravada ainda que esta reapreciação devesse merecer uma interpretação subtil quanto ao depoimento das testemunhas muito desvalorizado mas prova essa desnecessária, dada a confrontação dos documentos nºs 1, 2 e 3 ora juntos )”, porquanto não traduz o cumprimento do disposto no art . 640º do CPC relativo aos requisitos de convocação de depoimentos gravados, sendo certo que o recorrente manifestamente não identifica as testemunhas, nem refere os concretos segmentos com referência aos concretos pontos de facto que impugna.

Acresce que não serão convocados para reapreciação os documentos juntos com o recurso e que não foram por nós admitidos.

Nestes termos, admitimos a impugnação da decisão de factos com relação aos factos indicados e com a reapreciação dos documentos junto a 08.03.2024, doc nº 1 da Réplica, documentos nº 4 e 5 da Contestação.

Apreciando e decidindo:

Quanto aos factos vertidos nos pontos 2, 3, 4 e 11 dos factos provados, da alegação recursória vertida resulta que o recorrente entende que a certidão do registo automóvel junta no dia 08.03.3024, o documento nº1 da réplica, correspondente a um contrato de cessão de créditos celebrado entre a C..., S.A e a autora, não são suficientes para julgar provados aqueles factos.

Que dizer?

Antes de mais, importa esclarecer que o recorrente na contestação –reconvenção não alegou quaisquer factos relativos a uma eventual aquisição do veículo a favor de seus pais ou a seu favor por cumprimento do contrato de locação financeira.

Apenas alegou factos que na sua versão seriam suscetíveis de lhe permitir adquirir o veículo dos autos por usucapião com base no decurso do tempo.

Assim, não relevam as considerações do recorrente na parte em que alega que o tribunal a quo não explicou a natureza, a data e o valor da locação em dívida, o modo de extinção da locação, nem na parte em que alega que a extinção da locação teria de constar do registo antes do contrato de cessão de créditos.

Factos Provados impugnados.

Ponto 2.

Posto isto, reapreciamos a certidão de registo automóvel junta a 08.03.2025 e o contrato de cessão de créditos junto com a réplica do qual faz parte uma lista dos créditos cedidos, os documentos nºs 4 e 5 da contestação.

Relativamente ao facto nº2 impõe-se referir que está junta aos autos certidão do registo automóvel., da qual resulta que a propriedade do veículo está inscrita em nome da autora.

Assim, a existência desse registo é facto objectivo e documentalmente provado, sendo certo que a validade do título de aquisição não é questão de facto, mas de direito, a apreciar em sede de mérito da sentença.

Assim, não improcede nesta parte a impugnação de facto.

Ponto 3

Nesta parte, relativamente ao facto nº3 impõe-se referir que está junta aos autos certidão do registo automóvel., da qual resulta que a propriedade do veículo foi inscrita a favor da sociedade C..., S.A., no registo automóvel, por compra e venda, sobre o referido veículo automóvel, pela Ap. ...»).

Dessa certidão não resulta que a sociedade C..., S.A. incorporou a B... SA..

Não foram juntos pela autora –recorrida documentos que provem esse segmento do ponto 3.

Pelo exposto, decide-se suprimir esse segmento do ponto 3 dos factos provados que passa a constar dos factos não provados.

Procede assim parcialmente a impugnação nesta parte.

Do ponto 4.

Relativamente ao ponto 4 dos factos provados impõe-se referir que está junta aos autos certidão do registo automóvel., da qual resulta provado que encontra-se inscrita no registo automóvel a locação do referido veículo automóvel pela Ap. ...-06-1996 e a respectiva extinção a23-03-2009.

Assim, a existência desse registo é facto objectivo e documentalmente provado.

Assim, não improcede nesta parte a impugnação de facto.

Ponto 11.

Nesta parte, importa referir que na réplica a autora juntou cópia de documento elaborado na língua inglesa denominado “non- performing loan assignment and asset transfer agreement”

Reproduzindo-se aqui a primeira página:

E não obstante não estar traduzido esse documento, conforme preceituado nos arts 133º e 134º do CPC, certo é que, o réu não o impugnou e que esse documento é inteligível para este tribunal.

Pelo que, o recorrente não pode aproveitar esta fase de recurso para impugnar o valor probatório desse documento que não impugnou em tempo.

E na medida em que não existe qualquer prejuízo para o réu, decidimos valorar esse documento como meio de prova do seguinte facto: A sociedade C..., S.A., cedeu à autora crédito sobre o pai do réu com o valor de € 11.050,00, respeitante ao veículo automóvel com a matrícula ..-..-GQ.

Improcede, assim, nesta parte a impugnação da decisão de facto.

.Quanto aos factos não provados, importa enfatizar que o recorrente não convocou a reapreciação de quaisquer depoimentos de testemunhas em concreto, limitando-se a convocar a reapreciação dos documentos atrás referidos, sendo que na contestação para o que releva, indicou os documentos nºs 4 e 5:

- Livrete do veículo automóvel (Doc. 4 );

- Título de Registo de Propriedade (Doc. 5 ).

Ora estes documentos, por si, não permitem julgar provados os factos ora impugnados.

Como bem referiu o tribunal a quo:” o título de registo de propriedade que o réu tinha em seu poder (documento 5 da contestação), não consta o pai do réu como proprietário, mas sim uma empresa de leasing, figurando o pai do réu apenas como locador”

Assim, os meios de prova convocados não nos permitem criar a convicção de que os pais do réu e este sempre se consideraram proprietários do veículo.

Improcede, assim, também nesta parte a impugnação da decisão de facto.

Concluindo:

A impugnação da decisão de facto procede parcialmente, na parte em relativa ao ponto3 dos factos provados, o qual, passa a ter a seguinte redacção:

Ponto 3:

Foi inscrita a favor da C..., S.A., no registo automóvel, a aquisição do direito de propriedade, por compra e venda, sobre o referido veículo automóvel, pela Ap. ...»)

E adita-se aos factos não provados que não está provado que a C..., S.A incorporou a B... SA..

4.3. Do Mérito do Recurso:

A .Relativamente ao segmento da sentença recorrida, na parte relativa à procedência dos pedidos formulados pela autora.

4.3.1.A autora afirma-se proprietária do veículo com a matrícula ..-..-GQ, por isso pretendendo a sua restituição, o mesmo acontecendo com o réu, afirmando ter adquirido a propriedade sobre tal veículo por sucessão hereditária, dada a compra de tal veículo pelo seu falecido pai, e ainda por usucapião.

A presente ação tem natureza de reivindicação, prevista no artigo 1311.º, n.º 1, do Código Civil, mediante a qual o titular do direito de propriedade pode exigir de quem detenha a coisa sem título legítimo a sua restituição.

E como é sabido, para a ação de reivindicação proceder, o autor deve demonstrar:

Que é proprietário da coisa; Que a coisa está na posse de outrem; Que o detentor não tem título que legitime essa posse.

A acção de reivindicação pressupõe uma situação material incompatível com o direito, por a coisa reivindicada se encontrar, não sob o poder do proprietário ou de quem a detenha com a sua autorização, mas sim sob o poder de terceiro, sendo, pois, proposta pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor não proprietário.

Assim, o pedido próprio desta acção é o do reconhecimento judicial da propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e a consequente restituição do que lhe pertence, emergindo a causa de pedir dos factos aquisitivos do respectivo direito de propriedade pelo reivindicante.

Para tanto, não basta demonstrar a existência da aquisição derivada, alegando e provando, por exemplo, que celebrou contrato de compra e venda da coisa, porquanto a compra não é constitutiva, mas apenas translativa, do direito de propriedade. Em contrapartida, impõe-se ao reivindicante provar que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário e nos anteriores (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, III, pág. 115).

Compete ainda ao reivindicante provar que a coisa reivindicada se encontra na posse ou na detenção do demandado, competindo a este, se for o caso, provar que é titular de um direito que legitime a recusa da restituição (artigo 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Ora, no caso dos autos a autora não invocou factos de onde resulte a aquisição originária do direito de propriedade sobre o veículo.

Invocou – e provou - a existência de inscrição registral da aquisição a seu favor.

Assim, no caso em análise, a autora fundamenta a sua qualidade de proprietária em dois elementos:

1.o registo automóvel em seu nome, decorrente de contrato de cessão de créditos e que segundo ela foi celebrado com a locadora financeira;

2.a própria cessão de créditos junta aos autos.

4.3.2.Da Eficácia do registo automóvel e presunção iuris tantum

Como é também sabido, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial — aplicável ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel — o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Trata-se, contudo, de presunção juris tantum (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil), suscetível de ser ilidida mediante prova em contrário. O registo não tem natureza constitutiva, mas apenas declarativa ou enunciativa: não cria o direito, antes publicita a sua existência com base em título que o legitime.

Estabelece-se aqui uma presunção juris tantum, o que significa que quem tem a seu favor o registo beneficia da presunção de que o direito lhe pertence, escusando de provar o facto que a ela conduz (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil).

Todavia, embora a certidão de registo junto aos autos demonstre a inscrição da autora como titular do direito de propriedade sobre o veículo, importa verificar se existe título aquisitivo válido que justifique essa inscrição.

4.3.3 .Do contrato de cessão de créditos

Posto isto, o contrato junto aos autos tem por objeto uma cessão de créditos, e, na versão da autora, a cedente, C..., S.A que incorporou a B... SA., locadora titular de créditos sobre os locatários financeiros, cedeu à autora os créditos que a locadora era titular sobre os locatários financeiros, pais do réu.

Estabelece o artigo 577º do C Civil: (Admissibilidade da cessão)

1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

2. A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.

A cessão de créditos consiste num contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na mera substituição do credor originário por outra pessoa (cessionário), sem acarretar a substituição da obrigação antiga por uma nova, sem acarretar a substituição da obrigação antiga por uma nova.

Desta forma, mantêm-se inalterados todos os elementos da relação obrigacional, com excepção da titularidade do direito de crédito, isto é, o direito à prestação transfere-se do cedente para o cessionário, adquirindo este o poder de exigir a prestação, em seu nome e no seu próprio interesse, ocorrendo uma transferência do lado activo da relação obrigacional.

Trata-se de um negócio de causa variável, que pode ter por base uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação «pro solvendo» ou um negócio de garantia em favor de outro crédito[2] (cfr., por exemplo, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, Almedina, 7.ª ed., 1999, p. 299 e segs).

Já a cessão da posição contratual, prevista nos arts. 424.º e segs. do CC, constitui uma forma de circulação da relação contratual, operando a transferência, por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cedido), para um terceiro (cessionário), do complexo de direitos e obrigações, isto é, das posições activas e passivas advindas da celebração de contrato.

O efeito típico principal desta cessão de contrato consiste na transferência da posição contratual, com a extinção subjectiva da relação contratual relativa ao cedente e passando todas as situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, a figurar na titularidade do cessionário.

Por isso, são três os protagonistas da cessão da posição contratual, dado que a sua perfeição exige o consentimento de três sujeitos: o contraente que transmite a sua posição (cedente); o terceiro que a adquire (cessionário) e a contraparte do cedente no contrato originário, que passa a ser contraparte do cessionário (cedido).

A cessão da posição contratual distingue-se da cessão de créditos, na medida em que «ao contrário desta, tem por conteúdo a totalidade da posição contratual, o conjunto dos seus direitos e obrigações, transferindo-se para o terceiro cessionário os direitos e obrigações indissociáveis da posição contratual do cedente, sem que se trate de um somatório de créditos e dívidas transmissíveis, isoladamente, que se associaram para efeitos de transmissão. Quando do contrato somente resultam créditos para uma das partes e dívidas para a outra, não pode falar-se em cessão da posição contratual ou do contrato, mas antes em cessão de créditos ou em assunção de dívidas, porquanto para que se esteja em presença daquela primeira figura importa que do contrato derivem créditos e débitos para ambas as partes, pois que só quanto a estes contratos se pode estar perante a transferência de um complexo unitário, constituído por direitos e obrigações da parte cedente» (cfr., acórdão da RC de 17.04.2007, in www.dgsi.pt).

Quanto à natureza do direito cedível através da cessão de créditos, compreende a generalidade dos direitos de crédito na livre disponibilidade do cedente, na malha ampla da liberdade contratual proclamada no artigo 405.º, n.º 1, do CC, ressalvadas as exceções proibitivas constantes da lei (v.g. nos artigos 579.º, 581.º e 2008.º do CC) ou as convencionadas pelas partes, como decorre do disposto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 577.º. E a cessão pode incidir tanto sobre créditos presentes, vencidos ou não, como sobre créditos futuros, desde que determináveis, nos mesmos termos em que é permitida a constituição de obrigações sobre coisas futuras (artigos 211.º e 399.º do CC)[3]

Relativamente ao momento em que se produz a eficácia translativa do contrato de cessão de créditos, a doutrina tem divergido entre duas orientações: uma, denominada teoria da eficácia translativa diferida, segundo a qual a cessão só se torna eficaz, quer em relação às partes, quer em relação ao devedor ou a terceiros, após a sua notificação ao devedor; outra, designada por teoria da eficácia translativa imediata, no sentido de que a cessão teria efeito translativo imediato, tanto entre as partes como em relação a terceiros.

Na doutrina nacional, Antunes Varela, convocando a orientação pre-conizada por Vaz Serra, na linha da solução consagrada no direito alemão, sustenta que, diversamente do anteriormente estabelecido no artigo 789.º do Código Civil de 1867, em virtude do princípio da consensualidade dos contratos estabelecida no artigo 408.º do CC atual se deve considerar o contrato de cessão de créditos submetido à eficácia imediata do negócio, quer em relação às partes quer no respeitante a terceiros, independentemente da notificação do devedor prescrita no artigo 583.º, n.º 1, do mesmo Código (CC de 1966), ficando a eficácia diferida apenas ressalvada quanto ao devedor e ao sucessivos adquirentes do crédito, respetivamente nos ter-mos específicos daquele artigo 583.º e do artigo 584.º.[4]

Por seu lado, Menezes Leitão, começando por afirmar que “em relação a terceiros, a cessão produz efeitos independentemente de qualquer notificação”, ainda assim afasta-se da solução tida por mais rígida de Antunes Varela, no caso de dupla alienação do crédito, procurando conciliar o artigo 583.º, n.º 2, com o artigo 584.º, no sentido de considerar que da redação deste último normativo decorre “a prevalência de créditos, não com base na prioridade do negócio abstracto, mas na notificação que venha a ser realizada ao devedor ou na aceitação da cessão por ele emitida.”[5]

De qualquer modo, no caso dos autos, mostra-se irrelevante para a economia da questão recursória tomar posição a propósito, uma vez que o réu no essencial, o que argumenta é que a referida cessão de créditos não é modo legítimo de aquisição do direito real sobre os bens entregues pelo locatário financeiro ao locador financeiro, concretamente, decidir se através do contrato de cessão de créditos a cedente transferiu para a autora o direito de propriedade sobre o veículo que está a ser detido pelo réu.

4.3.4.Insuficiência o contrato de cessão de créditos

Feitas estas considerações importa apreciar e decidir sobre a questão essencial recursória, isto é, apreciar e decidir se a cessão de créditos dos autos é modo válido de aquisição do direito de propriedade sobre os bens entregues pelo locatário financeiro ao locador.

Na versão da autora, esta é cessionária do crédito que a anterior locadora financeira era titular sobre os pais do réu.

No caso dos autos, através do contrato referido no n.º 11 dos factos provados, resulta que a cedente apenas transferiu para a cessionária- autora os créditos de que era titular.

Fernando de Gravato Morais, em Manual da Locação Financeira, Almedina, 2006, aborda de forma detalhada e impressiva os contornos e regime da figura, também por vezes designada como leasing, variam consoante os países e têm evoluído no tempo.

No mesmo manual, o autor aponta ainda a existência de várias modalidades e formas de locação financeira e um conjunto de figuras próximas, como a locação, a locação operacional, o renting, a locação com opção de compra, a locação-venda, a venda a prestações com reserva de propriedade e o aluguer de longa duração (ALD).

A actual definição de locação financeira no ordenamento jurídico português consta do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho:

“Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

O autor citado, Fernando de Gravato Morais, considera que da noção e do regime deste tipo contratual emergem os seguintes elementos constitutivos da locação financeira:

A indicação, pelo locatário ao locador, previamente à conclusão do contrato, da coisa a comprar ou a construir e do respectivo fornecedor;

O dever do locador de adquirir a coisa ao fornecedor;

O dever do locador de conceder temporariamente o gozo da coisa ao locatário;

A obrigação do locatário de pagar uma renda;

A faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato.

Após analisar o conteúdo da locação financeira e referir as várias posições doutrinárias sobre a sua natureza, aquele autor conclui qualificando a locação financeira como um contrato de crédito com características específicas, em que a função creditícia se opera através da disponibilidade de um bem e em que o propósito fundamental do locador é o reembolso do valor mutuado.

Resulta desse regime que no caso da locação financeira, o direito de propriedade sobre os bens locados permanece na esfera jurídica da locadora até que ocorra a transmissão por título adequado (compra e venda, dação em cumprimento, etc.).

E existindo cessão dos créditos derivados dos contratos de locação, sem mais, essa cessão não determina a transferência da propriedade dos bens locados, mas apenas a transmissão do direito de propriedade dos direitos de crédito (rendas, prestações, etc.) emergentes desses contratos.

4.4..Consequências na ação de reivindicação

Daqui resulta que, não obstante o registo da propriedade em nome da autora, o título que serviu de base a essa inscrição — contrato de cessão de créditos — é juridicamente insuficiente para operar a transmissão da propriedade sobre o veículo.

A presunção resultante do registo não dispensa a verificação da existência de um título aquisitivo idóneo.

Demonstrando, como está, que a autora não apresentou título aquisitivo idóneo do direito de propriedade sobre o veículo, mas apenas um contrato de cessão de créditos, a presunção resultante do registo de propriedade em nome da autora fica ilidida.

Logo, a autora não logrou provar o primeiro requisito da ação de reivindicação — a titularidade do direito de propriedade sobre a coisa.

Em consequência, não pode proceder o pedido de restituição do veículo, uma vez que falta o pressuposto essencial da legitimidade substantiva da autora enquanto proprietária.

O registo automóvel em nome da autora, fundado num contrato de cessão de créditos, não constitui meio bastante para provar a aquisição da propriedade do veículo reivindicado.

Pelos fundamentos expostos, o recurso de apelação interposto pelo réu procede na parte na parte relativa ao segmento da sentença recorrida que julgou procedente a ação.

B.Relativamente ao segmento da sentença recorrida, na parte relativa à improcedência dos pedidos reconvencionais.

Este segmento do recurso, como vimos, estava dependente totalmente do provimento da impugnação da decisão de facto, relativa aos factos não provados, o que, não se verificou, pelo que, acolhe-se a fundamentação da sentença recorrida, na parte em que afastou com suporte em fundamentação jurídica bastante, a reconvenção, aqui reproduzindo-se o essencial:

“O réu alega que adquiriu o veículo por sucessão hereditária, após o óbito dos pais. Alega ainda a aquisição originária pela via da usucapião.

Para que o réu pudesse herdar o veículo, necessário seria que o mesmo existisse, à data do óbito, no património dos pais.

Contudo, a compra do veículo pelos pais ou qualquer outro meio de aquisição derivada do veículo não se encontra demonstrada, constando apenas o pai do título de registo de propriedade do veículo que o réu juntou ao processo como locatário financeiro, com data de 11 de Junho de 1996, mencionando-se como período de locação 25-5-1996 a 25-5-2000, constando a empresa de leasing como proprietária. Da certidão do registo automóvel consta ainda a extinção do registo da locação em 23 de Março de 2009.

De acordo com o artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho), locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.

Ora, para além de tal contrato apenas conferir ao locatário um direito pessoal de gozo sobre o respectivo objecto, inexiste qualquer evidência de que o réu e sua mãe (pois então o pai do réu já falecera) tem exercido a opção de compra, pagando o preço contratualmente previsto. Ora, findo o contrato sem que seja exercida pelo locatário a faculdade de compra, o locador por dispor do bem (artigo 7.º do citado diploma legal).

De todo o modo, a aquisição derivada não seria suficiente para provar a titularidade do direito de propriedade, sendo necessária alegação e prova dos factos constitutivos da aquisição originária da coisa reivindicada.

A este propósito, o réu alega e prova que os pais e ele próprio têm circulado no veículo desde o ano de 1996 sem qualquer oposição, não tendo feito prova da apresentação por si e pelos pais do veículo ao longo dos anos a inspecção técnica periódica e do pagamento do IUC, de reparações, de prémios de seguro e portagens.

Também não conseguiu provar que tanto ele como os pais sempre se consideraram os proprietários do veículo.

Antes de mais, relembre-se que a usucapião é um modo de aquisição originária do direito real correspondente a certa posse, desde que esta se prolongue pelo período legalmente fixado e seja pública e pacífica (artigos 1287.º e seguintes do Código Civil).

Em coerência com a exigência de uma posse pública e pacífica, estatui o Código Civil que os prazos da usucapião só se iniciam quando cessa a violência ou a posse se torna pública (artigo 1297.º), sendo que a posse é pacífica quando é adquirida sem violência e pública quando se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigos 1261.º e 1262.º).

A usucapião não é automática, antes assume um funcionamento potestativo, o que significa que o seu beneficiário deverá invocá-la, alegando e provando os respectivos pressupostos (artigos 1292.º e 303.º do Código Civil). Compete-lhe, designadamente, alegar e provar o uso pacífico do prédio, por si e, eventualmente, por antepossuidores, acompanhado da convicção de se comportar como titular do direito correspondente, de boa ou má fé, à vista de todos.

Os prazos exigidos para a duração daquela posse conducente à usucapião relativamente a móveis sujeitos a registo são mais ou menos longos, variando entre 2 e 10 anos, consoante haja ou não justo título e seu registo e a posse seja de boa ou de má fé (artigos 1298.º do Código Civil).

Como a usucapião opera com efeitos retroactivos, reportados ao início da posse, considera-se que o direito real constituído o foi no momento em que se iniciou a posse boa para a usucapião invocada (artigos 1288.º e 1317.º, alínea c), do Código Civil).

Acontece que o réu não conseguiu provar que o seu pai, a sua mãe ou ele próprio tenham adquirido a posse sobre o veículo nos termos do direito de propriedade.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil). Ora, a locação financeira de um veículo apenas confere ao locatário um direito pessoal de gozo e não um direito de real sobre tal bem, não tendo sido provado que o contrato, tendo sido cumprido, tenha dado lugar ao exercício pelo locatário financeiro da faculdade de compra.

O réu sustenta, a aquisição por prática reiterada, modo de aquisição da posse contemplado pelo artigo 1263.º, alínea a), do Código Civil. Todavia, os respectivos pressupostos não se encontram demonstrados, pois a reiteração exigida corresponde a um indicador da intensidade do acto material inicial da posse, acto que, mais do que repetido, tem que ter força bastante para ser percetível a constituição da situação. Ora, tendo o pai do réu começado a conduzir o veículo em 1996 com fundamento no contrato de locação financeira e mantendo-se apenas no tempo tal prática, não é a mesma susceptível de inculcar a actuação com a intenção do exercício do direito de propriedade.

Por outro lado, tendo-se constituído inicialmente simplesmente um direito pessoal de gozo sobre o veículo, nenhum facto foi alegado nem provado indiciador da existência de inversão do título da posse (artigo 1265.º do Código Civil).

Em conclusão, não tendo o réu provado a aquisição da posse nos termos do direito de propriedade sobre o veículo, claudica a invocação da aquisição originária de tal direito por usucapião, por falta de verificação dos respectivos pressupostos.”

Assim, não tendo o réu provado factos reveladores da aquisição por usucapião do veículo dos autos improcede o pedido reconvencional.

Considerando que o veículo foi locado ao pai do réu em 1996 para utilização do mesmo, apenas poderá exigir-se do réu a restituição do veículo em bom estado de conservação e não em óptimo ou impecável estado de conservação, o qual é próprio de um veículo novo.

Concluindo:

O recurso interposto pelo réu procede parcialmente, revogando –se o segmento da sentença recorrida que julgou a ação procedente e confirmando-se a parte restante.

Sumário.

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IV. DELIBERAÇÃO:

Nestes termos os juízes deste tribunal da Relação do Porto, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto e, assim, revogando o segmento da sentença recorrida que julgou a ação procedente, julgamos improcedente a ação instaurada, absolvendo o réu-recorrente dos pedidos contra si formulados, confirmando-se a parte restante.

Custas do recurso a cargo do autora- recorrida na parte em que a sentença recorrida foi revogada, e a cargo do réu na parte em que a sentença foi confirmada, condenando ainda o recorrente nas custas do incidente relativo aos documentos não admitidos, fixando-se a taxa de justiça em 2(duas) UCs.


Porto, 22.09.2025
Francisca Mota Vieira
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
Álvaro Monteiro
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[1] Documento contendo declaração do Banco 1..., de 15/05/2025 que se reporta ao contrato de locação financeira nº... da B..., S.A., iniciado em 25/05/1996 e fim em 25/05/2000 com informação adicional de que todas as prestações foram debitadas na conta nº ..., da qual participava o recorrente ( doc. 1 ), a informação de 14/05/2025 da D... – Centro de Inspeções, na Rua ..., ..., em ... ( Lic. IMT ... ) de que o veículo de matricula ..-..-GQ se apresentou e realizou as inspeções periódicas entre os anos de 2007 e de 2022 fazendo-se transportar o recorrente ( doc. 2 ), a declaração da E... de DD, com sede na Rua ..., ... de que entre os anos de 2010 e de 2022 prestou serviços no veículo de matrícula ..-..-GQ apresentando, conduzindo e pagando os serviços, o recorrente ( doc.3 ).
[2] Cfr. Por exemplo: Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, Almedina, 7.ª ed., 1999, p. 299 e segs ;Ana Taveira da Fonseca, in ário ao Código Civil, Direito das Obrigações- Das Obrigações em Geral, cometário ao art 577º CC, Universidade Católia Editora, , pgs 593 ess.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, Almedina, 7.ª ed., 1999, pag 316.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, acima citada, 1997, pp. 312-315.
[5] In Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 12.ª Edição, 2018, pp. 28-31.