Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
117/20.5T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
COMUNHÃO DE HABITAÇÃO
VÁRIAS RESIDÊNCIAS
SEPARAÇÃO DE ECONOMIAS
Nº do Documento: RP20220407117/20.5T8VLG.P1
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ação proposta pela Segurança Social a pedir que se declare que não existia união de facto entre a Ré e o falecido configura uma ação de simples apreciação negativa, tal implicando a inversão do ónus da prova (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).
II - União de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
III - A comunhão de habitação é um elemento integrante da vivência em comum, podendo revelar-se em mais do que uma residência.
IV - Se o falecido e a Ré, no decurso da sua relação, que se manteve por cerca de dezasseis anos, dormiam todos os dias juntos, a circunstância de o fazerem alternadamente nas residências que cada um dispunha, não afasta a existência de comunhão de habitação.
V - Pode existir vida em comum com separação de economias.
V.I - Apesar de se desconhecer como era efetuado o apoio mútuo em termos de rendimentos e despesas, provada a comunhão de leito, mesa e habitação, deve improceder o pedido da Segurança Social no sentido de não se reconhecer a alegada união de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 117/20.5T8VLG.P1


Sumário.
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1). Relatório.
Instituto de Segurança Social/Centro Nacional de Pensões, IPISS/CNP, sito na Avenida ..., ..., Lisboa, propôs contra
AA, residente na Rua ..., ..., ...
Ação declarativa de simples apreciação, sob a forma de processo comum, pedindo que seja julgada não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré e o beneficiário falecido, BB, à data da morte deste.
O sustento do pedido do Autor consiste em que a Ré não manteve uma comunhão de vida, análogo à vivida por cônjuges, pelo que não tem direito a receber qualquer apoio.
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A Ré contestou, pugnando pela improcedência da ação.
Foi convidada a aperfeiçoar o seu articulado no que respeitava à concretização da vivência com o falecido, o que fez, apresentando novo articulado.
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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar improcedente a ação.
Inconformado, recorre o Autor, formulando as seguintes conclusões:
«1. Dos factos dados como provados, resulta que como a Ré tinha e tem um andar próprio seu, sito na Rua ..., em ..., alternavam a sua pernoita, ora na residência do entretanto falecido BB, sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e que era arrendada, ora no acima referenciado andar pertença da Ré;
2. Nunca por isso a Ré tendo alterado a respetiva morada fiscal;
3. Porém, a douta sentença aqui recorrida veio surpreendentemente a julgar a ação improcedente, sendo que a questão que versa o presente recurso versa sobretudo sobre estes factos.
4. E é aqui precisamente o nosso ponto de discórdia.
5. Consideramos, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, com base na Lei, doutrina e vasta jurisprudência emanada pelos Tribunais Superiores que, dos factos dados como provados, não existe qualquer partilha de recursos e projeto de vida em comum…
6. E, como tal, a relação existente entre a recorrida e o beneficiário falecido não pode configurar, salvo melhor opinião, qualquer situação de união de facto.
7. Ora, Senhores Desembargadores, a razão de ser destas prestações por morte está prevista no n.º 1 do artigo 4.º do D.L. nº 322/90 de 18.10 quando estabelece que as “As pensões de sobrevivência são prestações pecuniárias que têm por objectivo compensar os familiares de beneficiários da perda de rendimentos de trabalho determinada pela morte deste.”
8. Por outro lado, dispõe o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio que “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.” Ou seja, o que se pretende é compensar a perda de rendimentos daqueles que vivam em situações análogas às dos cônjuges provocada pela morte do beneficiário.
9. Isto porque os cônjuges ou aqueles que vivam numa situação análoga à dos cônjuges têm uma situação de economia comum, ou seja, têm despesas do agregado que são pagas com os rendimentos de ambos e a perda desses rendimentos pode ser devastadora para a parte sobreviva.
10. Na realidade, o conceito de “união de facto” ou de vivência “em condições análogas às dos cônjuges” – expressões do artigo 2020.º, nº 1 do Código Civil, na sua anterior redação – tem de ser preenchido por via da alegação e prova de factos concretos que caracterizem o modo de vida próprio dos cônjuges, como sejam, a partilha da mesma habitação, cama, mesa e economia: tem que haver um esforço conjunto, a contribuição para as despesas comuns, colaboração na vida quotidiana.
11. Por outro lado, a união de facto requer exclusividade, exigida pela vivência “em condições análogas à dos cônjuges”, visa-se uma “ficção de casamento” para que a lei lhe atribua relevância jurídica. Para tal é necessário que a relação seja vista, para aqueles que rodeiam os membros da união de facto e com eles convivam, como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas.
12. A caracterização destas situações estáveis, consolidadas, notórias, de convivência de casa e pucarinho exige como elemento essencial a comunhão de residência, a comunhão de habitação.
13. A jurisprudência aponta no mesmo sentido. Veja-se, por exemplo, por recente Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ, n.º 7/2017, de 11/05/2017, ao afirmar na sua fundamentação que: “no que concerne à união de facto pode dizer-se, reflectindo uma realidade evidente, que ela se constitui quando duas pessoas se "juntam" e passam a viver em comunhão de leito, mesa e habitação”. disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/
14. Ora, a Ré tinha residência em ... e o falecido em ..., resultando assim que cada uma pagava as contas relacionadas com a sua habitação e que não resultando da prova que houvesse um contributo fixo ou variável para despesas comuns do casal, para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.
15. Resulta, pois que tinham uma relação de grande afetividade e de grande cumplicidade mas o que não resultou provado é que vivessem numa relação em tudo análoga à dos cônjuges já que não tinham uma vida em comum, não partilhavam casa nem responsabilidades, apenas bons e por vezes maus momentos, sendo certo que a partilha da mesma habitação é essencial para a existência de uma situação de união de facto.
16. Não resultou provada qualquer economia comum, pelo que, em face dos factos dados como provados resulta assim que cada um deles assumia, como regra, as suas próprias despesas mais significativas, cada um deles geria o seu próprio património, as contas bancárias, as despesas correntes, não havia, pois (independentemente sequer do período tempo que partilhassem a mesma habitação, mesa e leito), entre eles um projeto de vida em comum, uma comunhão plena de vida, uma partilha diária consistente de rotinas, de encargos, como é próprio dos cônjuges, não obstante o relacionamento afetivo que vinham mantendo ao longo dos anos e que perdurou até à morte daquele.
17. Aliás, ainda recentemente no âmbito do processo n.º 19076/18.8T8LSB.L1, no recente Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, num processo semelhante ao presente caso, em que quer a recorrida, quer o beneficiário falecido mantinham uma relação afetuosa, mas cada um tinha a sua residência, diz no seu sumário o seguinte:
“O que é realmente essencial para afirmar que duas pessoas vivem em união de facto, é estar demonstrado que elas têm um projeto de vida em comum, análogo à dos cônjuges. Tal projeto é caracterizado por uma comunhão plena de vida, concretizada em comunhão de mesa, leito e habitação.”
18. A dada altura é referido no citado acórdão o seguinte: “O tribunal recorrido, concluiu pela procedência da ação, porquanto, entendeu que no caso em apreço, existem muitas reticências relativamente ao facto de poder ser entendido que o relacionamento entre o falecido e a aqui R. tivesse tido a subsistência de uma união de facto, desde logo pela inexistência de uma verdadeira casa de morada e de uma contribuição de cada um mesmo que tacitamente acordada por ambos, para um projeto de vida comum. Será de sufragar este entendimento? Entendemos que sim”.
19. Ora, o anteriormente relatado, afasta a possibilidade de poder aceitar-se a existência de uma economia comum, elemento essencial para se concluir pela união de facto, - comunhão de vida nos aspetos essenciais da vida de ambos os intervenientes, como se estes fossem casados.
20. Na verdade, não resulta destes factos a existência de uma comunhão plena de vida, no sentido exposto, não tendo ficado assente qualquer facto de onde se possa extrair essa comunhão.
21. Daqui resulta que não se pode concluir que existisse entre ambos uma comunhão plena de vida, tal como exigida pela lei, e sem prejuízo do relacionamento intimo e afetivo que mantinham.
22. Deste modo deveria o doutro Tribunal “A quo” julgar a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência não reconhecer a alegada união de facto entre a Ré AA e o beneficiário falecido BB.
23. Não o fazendo, violou os artigos 343º, n.º 1, 668º, 712º, nº2 do CPC, e 473º e segs. do CC, art.º 4º, n.º 1 do DL n.º 322/90, de 18/10, bem como art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001.».
Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que não reconheça a alegada união de facto.
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Contra-alegou a recorrida, pugnando pela manutenção do decidido.
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A questão a decidir é determinar se a requerida e o falecido viviam em união de facto.
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Resultaram provados os seguintes factos:
«a) No dia 27 de maio de 2019 faleceu BB, beneficiário do Instituto de Solidariedade e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões com o nº ..., no estado civil de divorciado;
b) Em consequência do falecimento do referido beneficiário, a Ré AA, invocando a sua qualidade de “unida de facto”, requereu junto dos serviços do A. em 27 de junho de 2018 as prestações por morte;
c) Instruiu esse seu pedido com os documentos exigidos pelo artº 2º-A, nº 4, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, republicada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto;
d) Dentre os documentos apresentados junto dos serviços do ora A., consta um documento emitido pela Junta de Freguesia ... e assinado pelo respetivo presidente, datado de 4 de junho de 2018, no qual se atesta, para efeitos de Segurança Social, que a ora Ré, AA, nascida a .../.../1946, com o bilhete de identidade nº ... e residente na Rua ..., ..., ..., em ..., “viveu em união de facto desde 2002 até à data de falecimento do seu companheiro, BB, identificado pelo Bilhete de Identidade nº ...), no dia 27/05/2018, conforme prova testemunhal”, em conformidade com o documento junto com a petição inicial como Doc. nº 2, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;
e) A Ré também preencheu e assinou uma declaração, sob compromisso de honra, de que viveu com o entretanto falecido beneficiário em condições análogas às dos cônjuges, no período de 08 de janeiro de 2002 a 27 de maio de 2018;
f) Na realidade, desde 8 de janeiro de 2002 a Ré e o BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama e tinham uma vida social em comum;
g) Comemoravam os respetivos aniversários juntos;
h) Sucede, porém, que como a Ré tinha e tem um andar próprio seu, sito na Rua ..., em ..., alternavam a sua pernoita, ora na residência do entretanto falecido BB, sita na Rua ..., ..., ..., em ..., e que era arrendada, ora no acima referenciado andar pertença da Ré;
i) Nunca por isso a Ré tendo alterado a respetiva morada fiscal;
j) Era o BB, que tinha carta de condução, quem levava e acompanhava a Ré às consultas médicas, interessando-se ambos mutuamente pela saúde e bem estar um do outro;
k) A Ré cozinhava para ambos, tratava da roupa de ambos e zelava pela limpeza, tanto da acima mencionada casa arrendada do falecido, sita em ..., quanto da sua própria casa, sita em ...;
l) Por todos quantos com eles contactavam eram reconhecidos como companheiros e faziam a vida em comum como se marido e mulher fossem, ajudando-se mutuamente na vida diária;
m) O falecido BB tinha sido funcionário da P..., que tem um sistema de ajuda na saúde próprio;
n) Apesar de a Ré nunca ter trabalhado na P..., a mesma, pelo facto de viver com aquele como se marido e mulher fossem, era também ela beneficiária desse regime próprio da P...;
o) O próprio cartão de Saúde emitido pela P... em 1 de janeiro de 2015 a favor da Ré foi remetido para a morada na Rua ..., ..., ..., em ..., dirigido à mesma;
p) Foi a Ré quem suportou o pagamento do funeral do falecido BB, tendo sido também a ela que a Segurança Social pagou o correspondente subsídio;
q) No Hospital ..., onde acabou por falecer, o BB referiu-se à Ré como sendo a sua companheira, pediu que a mesma fosse considerada como interlocutora de referência caso não estivesse em condições de exprimir as suas preferências e pediu que todos os seus pertences fossem entregues à mesma;
r) Também todas as reuniões com os médicos foram tidas com a ora Ré;
s) A Ré viveu com o BB e acompanhou-o até à data da sua morte, sem nunca qualquer familiar dele se ter aproximado, exceção feita a uma irmã, mas que só apareceu a visitá-lo quando ele estava internado no hospital e acabou por falecer;
t) Por testamento outorgado no dia 29 de julho de 1994 no Cartório Notarial da Maia, de que o documento junto aos autos a fls. 17 vº e 18 é fotocópia, o BB instituiu a Ré AA herdeira da quota disponível da sua herança.».
Não resultou provado qualquer outro facto.
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2.2). De direito.
O recorrente Instituto de Segurança Social, pretende que se declare que a Ré e BB não viviam em união de facto, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 7/2001, de 11/05.
Está em causa uma ação de simples apreciação negativa (Ac. R. C. de 25/09/2018, processo n.º 162/16.5T8IDN.C1, www.dgsi.pt.), competindo assim à Ré a prova de que ocorria essa vivência em comum (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).
Nos termos do artigo 1.º, n.º 2, da citada Lei n.º 7/2001, de 11/05, a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
Os cônjuges, nos termos do artigo 1577.º, do C. C., visam constituir família mediante uma plena comunhão de vida a qual se regerá pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672.º, do C. C.).
Estando em causa uma vivência em conjunto livremente decidida, sem ser estabelecido um contrato escrito, tem que se ponderar, casuisticamente, se a relação entre as duas pessoas se pode considerar como vivendo em condições análogas a pessoas casados.
E, não prevendo a lei que os unidos estão obrigados a deveres tal como sucede com os casados entre si, não têm que ser observados, entre os membros da união, aqueles deveres acima referidos (Ac. R. P. de 13/06/2018, processo n.º 658/15.6T8GDM.P1, www.dgsi.pt).
Mas, estando o modo de vida dos unidos dependente da sua livre vontade, tal não significa que, se duas pessoas decidirem adotar uma comunhão de vida, ao cooperarem e auxiliarem-se mutuamente, não estejam também a manifestar sinais de que existe na realidade essa vida em comum.
Ou seja, se existe uma ajuda mútua entre os unidos, a nível pessoal e económico, isso pode servir para demonstrar que existe união de facto.
Naturalmente que é pressuposto desta união que a comunhão seja abrangente, aceitando-se que deve incidir no que se define de comunhão de leito, mesa e habitação (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 4.ª, página 62).
No que respeita à comunhão de leito e mesa, pensamos que não há qualquer questão a apreciar pois resulta provado que desde 8 de janeiro de 2002 a Ré e o BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama e tinham uma vida social em comum (f).
O recorrente questiona que exista uma comunhão de habitação.
Vejamos então.
Nos termos do artigo 1673.º, do C. C., temos que, em relação à coabitação no casamento:
. os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar (n.º 1);
. salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adotar a residência da família (n.º 2).
Temos então que, num casamento, os cônjuges devem escolher a sua residência de família, ou seja, aquele local onde centram a sua vida em comum e consideram o seu domicílio. Podem os membros do casal ter outras residências (por motivos profissionais ou de saúde, por exemplo) mas devem adotar aquela residência onde têm que viver (por isso é que, não havendo acordo na fixação da residência, a requerimento dos cônjuges, o tribunal decide qual é a residência de família (n.º 3, do citado artigo 1673.º).
É legalmente admitido ter duas residências alternadas (artigo 82.º, n.º 1, 2.ª parte, do C. C.), considerando-se que se está domiciliado em qualquer uma delas.
Para se verificar essa residência alternada, tem de ocorrer, em ambas, todo o circunstancialismo que se congrega naquela residência de família.
Como menciona Antunes Varela, in R. L. J. n.º 123, página 159, «essencial para que possa falar-se em residências alternadas, de acordo com o espírito da lei, é que a pessoa tenha nos vários lugares verdadeira habitação, casa montada ou instalada (e não simples quarto de pernoita ou gabinete de trabalho) e que a situação seja estável, goze de relativa permanência, e não haja simples morada ocasional, variável de ano para ano, ou de mês para mês ...»
No caso concreto, com interesse para a análise desta questão, já sabemos que desde 08/01/2002 que a Ré e BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama mas como a Ré tinha (e tem) um andar próprio seu, sito na Rua ..., em ..., alternavam a sua pernoita, ora na residência do entretanto falecido, sita na Rua ..., ..., ..., ..., e que era arrendada, ora no acima referenciado andar pertença da Ré, nunca por isso a Ré tendo alterado a respetiva morada fiscal (alíneas h e i);
k) A Ré cozinhava para ambos, tratava da roupa de ambos e zelava pela limpeza, tanto da acima mencionada casa arrendada do falecido, sita em ..., quanto da sua própria casa, sita em ....
Temos ainda que BB nasceu em .../.../1943 e faleceu em .../.../2019 e a Ré nasceu em .../.../1946.
Assim, quando se iniciou o relacionamento em causa, teriam então BB 59 anos e a Ré 56 anos; isto permite concluir que ambos já teriam uma vida estabilizada no que respeitava à sua residência, cada um com a sua própria – a Ré num imóvel sua pertença e o falecido num imóvel arrendado, tal como resulta provado -.
É certo que quando duas pessoas decidem encetar uma vida em comum, a ideia base é a de se ir viver juntos, implicando essa ideia a de existir uma mudança para um local onde se vai concretizar a vivência.
Se cada um decide continuar a viver na sua própria residência, essa vivência em comum já exclui o que será a fonte não só do estar-se junto como o de começar a desenvolver todos os outros aspetos de uma relação em comunhão como, por exemplo, a assunção de despesas com a manutenção da residência – se cada um tem a sua residência, é natural que cada um assuma as suas próprias despesas em relação à respetiva residência; se houver uma residência comum, ou mesmo duas, a tendência deverá ser a de se partilhar o custo com a sua manutenção pois é (são) usufruída(s) por ambos -.
O que resulta é que ambos (Ré e falecido), passando os dias juntos, acabavam por pernoitar nas duas residências, naturalmente ora numa ou noutra; com esta atuação, pensamos que não se deve concluir que essas pessoas não tinham uma comunhão de habitação pois havia essa comunhão, com a diferença que, em vez de se só numa habitação, era em duas.
Atendendo a já terem uma situação pessoal estabilizada, terão tido a intenção de estabelecer duas residências alternadas no sentido que já acima apontamos: passando os dias juntos e adotando uma postura semelhante às dos cônjuges – tomando refeições em conjunto -, no fim do dia, querendo adotar uma comunhão de leito, assumiram que qualquer um dos imóveis constituía a sua habitação para aí dormirem juntos.
Por isso, também existiu a apontada comunhão de habitação.
É certo que o material fáctico carreado poderia ser mais vasto, sabendo-se que, em cada residência, havia bens pessoais do outro membro ou que ambos custeavam as despesas de manutenção desses imóveis (despesas de água, eletricidade, gás, renda, amortização de empréstimo, pagamento de quotas de condomínio).
Ainda assim, apurou-se que a Ré procedia à limpeza de ambos os imóveis, o que mostra não só a sua cooperação no seio da união como o sentir que estava em causa um local a que também tinha ligação.
A questão da falta de alteração da morada fiscal da Ré (que manteve a da sua residência em imóvel próprio) acaba por não ser relevante pois, na nossa visão, o imóvel que lhe pertencia era efetivamente a sua habitação, tal como era a BB; note-se que não estão em causa pernoitas ocasionais mas sim pernoitas constantes (ainda que não diárias) durante cerca de dezasseis anos (de 08/01/2002 a 27/05/2018).
Uma última nota: a questão da comunhão de habitação pode, em determinadas situações, não ser tão essencial como, por exemplo, pensamos que o recorrente pretende fazer realçar. Se de todo o circunstancialismo se denota que duas pessoas comungam a sua vida em múltiplos aspetos, acabando por a residência ser algo que não assume muito relevo para a vida como um casal, pode entender-se que existe uma união de facto. No Ac. do S. T. J. de 23/09/2021, processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, www.dgsi.pt, numa situação de revisão de sentença estrangeira provinda do Brasil em que não era claro que existisse comunhão de habitação (inexigível no ordenamento brasileiro), acaba por se afirmar que e ainda que se deva reconhecer que a coabitação é um requisito indispensável à verificação de uma união de facto no direito português, a sua não verificação não atingiria qualquer resultado intolerável na nossa ordem jurídica, posto que verificada a vinculação recíproca pelos demais deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, tal como referidos no artº 1672º CCiv, sumariando-se que «III – Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa.».
No caso concreto, conclui-se, no entanto, que havia comunhão de habitação entre as pessoas em causa, o que já seria suficiente para concluir pela improcedência do recurso.
Mas o recorrente ainda suscita que não havia economia comum entre as mesmas pessoas.
No que respeita à vivência em comum quanto ao dever de assistência em relação a pessoas casadas, temos que:
. artigo 1674.º, do C. C. - o dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram
. artigo 1675.º, do C. C. - o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (n.º 1);
. artigo 1676.º, do C. C. - o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afetação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos (n.º 1).
Vivendo-se em comum, à partida, resultará uma repartição de despesas e proveitos entre os membros, por mais diminuta que possa ser (veja-se Ac. R. E. de 02/05/2019, processo n.º 94/14.1T8VRS.E1, no mesmo sítio). Se não houver qualquer contribuição entre os dois membros, sem se lograr descortinar se existe algum acordo, expresso ou tácito, nesse sentido, pode comprometer-se a conclusão que aquelas duas pessoas viviam em condições análogas às dos cônjuges.
Se cada um mantém separada a sua vida patrimonial, sabendo-se que, numa vivência em comum, essa separação é algo que pode ser difícil de suceder, exceto se não houver uma firme determinação nesse sentido, a conclusão da existência de união de facto pode encontrar dificuldades neste aspeto.
Ora, dos factos, nesta vertente de auxílio económico mútuo, não ressalta qualquer situação que nos permita concluir como era a vida em conjunto.
Mas, tal como no casamento, sob o regime de separação de bens (artigo 1735.º, do C. C.), em que cada um mantém, como próprio, o seu património, é de admitir que se possa estabelecer um tipo de vivência de facto em comum com essa semelhança até por, legalmente, não estarem obrigados ao dever de assistência.
Assim, a ausência de prova do modo como a Ré e BB dividiam os custos e rendimentos, não significa que não haja prova daquela tripla comunhão acima referida.
Por último, além dos factos acima referidos, tendo em atenção que se provou ainda que:
. comemoravam os respetivos aniversários juntos (alínea g);
. ambos se interessavam mutuamente pela saúde e bem-estar um do outro (alínea j);
. a Ré cozinhava para ambos e tratava da roupa dos dois (alínea k);
. por todos quantos com eles contactavam eram reconhecidos como companheiros e faziam a vida em comum como se fossem marido e mulher, ajudando-se mutuamente na vida diária (alínea l);
. a Ré suportou o pagamento do funeral do falecido (alínea p);
. no Hospital ..., onde acabou por falecer, BB referiu-se à Ré como sendo a sua companheira, pediu que a mesma fosse considerada como interlocutora de referência caso não estivesse em condições de exprimir as suas preferências e pediu que todos os seus pertences fossem entregues à mesma (alínea q) sendo que todas as reuniões com os médicos foram tidas com a ora Ré (alínea r);
. a Ré viveu com BB e acompanhou-o até à data da sua morte (alíneas),
pensamos que se demonstra uma intensa ligação entre estas duas pessoas, durante muitos anos e até ao fim da vida de um dos seus membros.
A existência dessa união passou a ser percetível para com quem convivia com os dois, incluindo os médicos que trataram de BB, pelo que não vemos que a circunstância de não dormirem juntos sempre na mesma habitação possa afastar a conclusão que viveram juntos, em união de facto, por cerca de dezasseis anos.[1]
Improcede assim o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pelo recorrente.
Registe e notifique.

Porto, 2022/04/07.
João Venade.
Paulo Duarte Teixeira.
Deolinda Varão.
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[1] Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, 3.ª edição, página 124, «fundamental é que os membros da união de facto vivam como sendo casados, em comunhão plena de vida, criando uma aparência de vida matrimonial».