Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1910/20.4T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
Nº do Documento: RP202110041910/20.4T8PNF.P1
Data do Acordão: 10/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, pressuposto processual já considerado, pacificamente, verificado, em termos tabelares, no despacho saneador, bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1910/20.4T8PNF.P1
Processo do Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 3

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, S.A.
Recorrido: C…- SUCURSAL EM PORTUGAL

B…, S.A., com sede na Rua …, …, ….-…, em …, Paredes, veio intentar a presente ação declarativa, com processo comum, contra C…- SUCURSAL EM PORTUGAL, com sede na Rua … n.° .., …. - … em Lisboa, pedindo a condenação desta a:
1) Reconhecer que celebrou com a A. um contrato de seguro titulado pela apólice n .° ………, através do qual a A. transferiu para a R. os riscos emergentes de incêndio para o imóvel sito na rua …, n.° .., … em …, Paredes;
2) Reconhecer que, no dia 7 de maio de 2018, ocorreu um incêndio no dito imóvel objeto do contrato de seguro;
3) Reconhecer que esse imóvel constituía o objeto segurado do contrato referido em a).
4) Reconhecer que, na data do incêndio, o contrato de seguro supra identificado se encontrava válido e vigente;
5) Proceder à reparação do imóvel, construindo-o de raiz, tal e qual se encontrava antes de ter ocorrido o acidente, até ao valor de um milhão de euros;
Ou, subsidiariamente,
6) Pagar à autora a quantia de um milhão de euros, a título de indemnização pelos danos sofridos pelo Incêndio no identificado imóvel, por força da autora ter transferido por contrato escrito para a ré o risco emergente de danos provocados por incêndio, e titulado pela apólice ……….
Ou ainda subsidiariamente,
7) Pagar à autora a quantia de 650.000,00€ a título de indeminização pela destruição do imóvel acima descrito, alegando, para tanto, que celebrou com a Ré um contrato de seguro e os danos por si sofridos com o incêndio que se verificou.
Regularmente citada, a ré contestou, impugnando factos e declinando qualquer responsabilidade perante a autora com base no contrato de seguro invocado pela mesma e no que respeita aos danos verificados no imóvel, alegando que a autora não era e não é a proprietária desse imóvel, não tendo sido ela a sofrer os danos que naquele imóvel se verificaram por força do incêndio.
Mais alega que a questão da propriedade do imóvel foi, efetivamente, litigiosa, mas encontra-se definitivamente resolvida através da sentença proferida no processo melhor identificado na contestação, no qual a aqui autora foi parte, sendo-lhe oponível o respetivo caso julgado formado por aquela decisão.
Pugna pela improcedência total da ação já no despacho saneador.
A autora apresentou-se a exercer o contraditório relativamente às exceções suscitadas na contestação.
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Realizou-se audiência prévia, onde se julgou não ser a presente ação repetição da ação n.°2564/17.0T8PNF e se proferiu saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar procedentes os pedidos deduzidos na petição inicial sob os pontos 1 a 3 e, em consequência:
a.1.) condena-se a ré a reconhecer que celebrou com a A. um contrato de seguro titulado pela apólice n .° ………, através do qual a autora transferiu para a ré os riscos emergentes de incêndio para o imóvel sito na rua …, n.° …, … em …, Paredes;
a.2.) condena-se a ré a reconhecer que no dia 7 de maio de 2018, ocorreu um incêndio no dito imóvel objeto do contrato de seguro;
a.3.) condena-se a ré a reconhecer que esse imóvel constituía o objeto segurado do referido contrato;
b) julgar todos os restantes pedidos deduzidos na petição inicial manifestamente improcedente e, em consequência, absolve-se a ré dos mesmos.
Custas da acção a cargo da autora e da ré, na proporção do decaimento que se fixa em 95% para a autora e 5% para a ré.
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Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, pugnando por que seja dado provimento ao recurso e seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que declare que a recorrente “possui legitimidade para formular os pedidos contra a recorrida”, apresentando as seguintes
CONCLUSÕES:
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A Ré respondeu, pugnando pela improcedência das conclusões das alegações do recurso, dado, desde logo, nenhum dano resultar ter a mesma sofrido (no imóvel) e, por isso, de nenhum dano seu haver para lhe ser ressarcido.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- Da legitimidade ativa e da viabilidade das pretensões de reparação/indemnização.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão (transcrição):
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comercialização de mobiliário e carpintarias de madeira.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre outros, à contratualização de contratos de seguro.
3. No âmbito e prossecução dos seus objetos sociais, a autora celebrou com a ré um contrato de seguro do tipo multiriscos e do ramo "Indústria Segura", titulado pela apólice de seguro n.° ………, nos moldes vertidos na proposta de seguro infra referida, na apólice de seguro e no conteúdo das respectivas condições gerais, especiais e particulares impressas no documento n.° 1 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. O referido contrato de seguros teve início em 10 de dezembro de 2012, por um período de um ano, tendo por base a proposta de seguro junta como Doc. n° 1 com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, composta por oito páginas e devidamente assinada pelo representante da segurada.
5. E foi sendo renovado automaticamente por iguais períodos de um ano.
6. Nessa altura, a "B…" tinha a sua sede na Rua …, …, …, Paredes, e o acordo de seguro foi celebrado pelo capital de Eur. 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
7. E a firma denominava-se "B…, LDA.".
8. Até 7 de Maio de 2018 o contrato sofreu várias alterações e este contrato substituiu a apólice n° ………, encontrando-se em vigor 7 de Maio de 2018.
9. E destinava-se - à data da proposta de seguro - a cobrir riscos relativos ao imóvel e respectivo conteúdo do estabelecimento comercial/fábrica sita na Rua …, …, …, Paredes.
10. Nas condições acordadas, previa-se, entre os riscos cobertos, o de "Incêndio, Raio e Explosão".
11. A proposta de seguro apresentada continha uma parte onde se questionava a "Qualidade em que propõe o seguro", mas as quadrículas respeitantes a esta informação não foram preenchidas pela segurada, ficando omissas.
12. A referida apólice sofreu doze alterações no total, até o momento da sua anulação, em fins de 2018.
13. Entre outras, em 2 de Agosto de 2017, a autora solicitou à ré alteração do capital do imóvel para o limite de € 1.000.000,00, imóvel esse que agora se situava na Rua …, n° …, …, Paredes, e ainda o recheio desse imóvel com o capital limite de € 600.000,00, tudo nos moldes vertidos no doc. n° 2 e 3 juntos com a contestação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
14. Tal imóvel está inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob artigo U-1142 -D, e descrito na conservatória de registo predial de Paredes, freguesia … sob a descrição 1238/20140130-D, e encontrava-se sujeito ao regime da propriedade horizontal, tendo sido criadas as fracções A), B), C), D) e E), com as seguintes permilagens: Fracção A): 82, 174, Fracção B): 46, 675, Fracção C): 545, 415, Fracção D): 230, 415, Fracção E): 32, 87, Fracção F): 62, 451.
15. O referido imóvel e a referida fracção D) tem a propriedade registada a favor da firma "D…, S.A.", por via da Apresentação n° . de 27 de Junho de 2008.
16. Os valores referidos em 13 resultaram da negociação entre a autora e a ré e sobre os quais foi, desde aquela data, calculado o prémio de seguro que a autora pagava à ré, prémios esses que a autora pagou sempre que se venceram durante a vigência do contrato.
17. Na dita apólice a autora é identificada pela R. como "TOMADOR DE SEGURO".
18. De acordo com as condições especiais do contrato, nomeadamente da cláusula 3.a, o contrato de seguros cobria os riscos de incêndio (alínea 1), garantindo o pagamento da indemnização pelos danos causados aos bens segurados em consequência de incêndio, ou de meios empregues para o combater e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente (alínea 2.1.a) - (documento 3 -condições gerais e especiais).
19. Sendo que é definido como incêndio a "combustão acidental, com desenvolvimento de chama, estranha uma forma normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que pode propagar pelos seus próprios meios" - (alínea b) do n.° 2 da cláusula 3.a das aludidas condições especiais).
20. No processo declarativo n.° 564/17.0T8PNF, que correu os seus termos no J2 do Juízo Central Cível de Penafiel, Comarca de Porto Este, e que era autora D…, S.A., e a ré reconvinte B…, LDA., foi proferida sentença, transitada em julgado 13/07/2020, com o teor vertido na certidão junta aos autos com o requerimento da ré com a referência 37463697), que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
21. No dia 7 de maio de 2018, ocorreu um incêndio, na fracção autónoma com a letra D do descrito prédio, sito na Rua …, …, …, Paredes, onde a autora tinha instalada a sua fábrica de mobiliário.
22. Tendo esta área ficado completamente inapta para a atividade industrial da A. ou outra indústria, sendo que o efeito destruidor do calor (superior a 700 graus centígrados) afetou todo o imóvel, deformando todas as estruturas de suporte.
23. Mesmo as paredes mais distantes do foco de incêndio, construídas em betão armado, por força da dilatação do aço provocada pelo calor e posterior contração com o arrefecimento, provocou fissuração das mesmas.
24. Também o pavimento do pavilhão, composto de betão armado, com malha de aço, apresenta danos em toda a sua extensão, por força do calor provocado incêndio.
25. A área restante de cerca de 2.400 m2, ficou seriamente danificada pelo calor, em termos estruturais, perigando a segurança do mesmo, e prejudicando tecnicamente a sua recuperação.
26. Tornando inapto o imóvel para a sua afetação à indústria da A. ou qualquer outra atividade industrial.
27. Aquando da verificação do sinistro a autora comunicou de imediato à ré a sua ocorrência.
28. Nessa sequência, após demoradas diligências de apuramento, a ré pagou à autora a quantia de 430.179,36€ a título de indemnização pelos danos ocorridos no acervo/recheio do imóvel, tendo a ré emitido o recibo respetivo que a autora assinou, pagamento que a ré efectuou por conta da apólice n.° ……….
29. Bem como comunicou à A. que no que "respeita aos danos do edifício, o processamento da indemnização está dependente da resolução de uma questão legal e jurídica, entre a B… e o suposto proprietário do imóvel, D…, SA".
30. Em 16 de agosto de 2018, a autora reuniu com representantes da ré tendo sido elaborada ata dessa reunião nos moldes do documento n.° 11 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
31. Tendo a ré pelos seus representantes declarado por escrito (em ata) que "(...) o valor fica dependente da resolução litigiosa existente com a respetiva proprietária do edifício, o qual não mereceu concordância dos representantes da B…, SA".
32. O imóvel objeto ficou totalmente destruído pelo incêndio, sendo certo que a sua recuperação, não sendo impossível, é economicamente inviável, desaconselhada e impondo-se a demolição das ruínas que subsistiram no local.
33. O referido imóvel, mercê da ação do incêndio ruiu em cerca de 40% da sua área, cerca de 1.600m2, ficando a restante área também seriamente afetada pelo incêndio.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Legitimidade e viabilidade das pretensões de reparação/indemnização
Julgou o Tribunal a quomanifestamente improcedentes” os pedidos (5, 6 e 7), de reparação do imóvel e indemnizatórios (subsidiariamente formulados).
Fê-lo por entender que “a autora só teria legitimidade substantiva (…) se (…) tivesse sofrido na sua esfera patrimonial o dano verificado no imóvel em causa.
E tendo em conta que a autora não era à data do sinistro nem é actualmente a proprietária do imóvel nem da fracção "D" que o integra, a mesma não sofreu na sua esfera patrimonial o dano que o seguro em causa cobre” [1].

Bem deixa claro, o Tribunal a quo que “seria ilegítimo que a autora pudesse ficar indemnizada por via do contrato de seguro de um dano que não teve - só é possível perder o imóvel de que se é proprietário ou usufrutuário -, em prejuízo da proprietária do mesmo. Assim, como seria ilegítimo que, com base no mesmo dano - destruição de um mesmo imóvel -, a ré seguradora fosse obrigada a pagar duas vezes o valor desse imóvel com o limite do capital seguro, independentemente de se tratar do mesmo contrato de seguro ou de dois contratos de seguro com o mesmo objecto celebrado por entidades diferentes.
Assim, entende-se que, por falta de legitimidade substantiva, a autora não tem direito a exigir para si as pretensões indemnizatórias deduzidas no seu pedido sob os n.°s 5, 6 e 7, pois que apenas as poderia exigir a favor do terceiro proprietário do imóvel, o que claramente não fez e não quer.
Por fim e quanto aos demais argumentos utilizados pela autora, os mesmos não obstam às conclusões a que chegamos e, apenas, poderiam relevar no âmbito de eventual responsabilidade pré-contratual ou contratual, o que está fora do âmbito do objecto do presente litígio, nunca podendo determinar a legitimidade substantiva para a autora reclamar para si as pretensões indemnizatórias deduzidas nos autos”.
Insurge-se a Autora contra a decisão, assim fundamentada, concluindo pela sua “legitimidade para formular os pedidos contra a recorrida”, indicando como violado o art. 30º, do CPC, entendendo que ao julgar que a recorrente não possui legitimidade processual a sentença violou o art. 406º, do Código Civil, advindo-lhe a legitimidade para demandar de ter celebrado o contrato de seguro.
Pretende se revogue a decisão e se declare que a recorrente “possui legitimidade para formular os pedidos contra a recorrida”, o que, refira-se desde já, foi já considerado no despacho saneador.
Vejamos.
A legitimidade processual, “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” se não confunde com a mencionada na sentença recorrida, que de mérito conheceu, sendo a “denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido”[2]. Ao apuramento de ambas interessa, contudo, a consideração do pedido e da causa de pedir.[3].
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". A "parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular".[4].(…) Será, desta forma, apenas pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que há-de decidir-se das excepções dilatórias em causa - ilegitimidade activa e ilegitimidade passiva. (…) Ora, como já acima referimos, a legitimidade constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende que o tribunal conheça do mérito da causa, e profira, acerca dos pedidos deduzidos, uma decisão de fundo.
"Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto processual para o efeito".[5]”[6].
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1-2, se decidiu constituir “a legitimidade processual, … um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil”.
Numa interessante abordagem, julgou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015,[7] que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.
Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva”[8].
A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade[9]. Já a ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa.
Com efeito, uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância (cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil) e outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa[11]. Como se refere neste Acórdão “Assimilando Castro Mendes[12] esta última reporta-se às “condições subjetivas da titularidade do direito”, tratando-se de “uma figura diferente daquela que temos vindo estudando. Assim, se o tribunal conclui pela ilegitimidade, entra no mérito da causa (tal pessoa não tem o direito de anular o contrato; tal pessoa não é credora de perdas e danos; etc. …) e profere uma absolvição do pedido. Estamos em presença da legitimidade em sentido material. Saliente-se, porém, que é figura diversa daquela a que se referem os artigos 24º, 26º, 288º, 494º (do Código de Processo Civil de 1961) etc. …, e em que temos vindo falando – aquilo que designaremos sempre por legitimidade “tout court”, a legitimidade processual ou em sentido processual”.
Cumpre, pois, referir que, certo sendo que a legitimidade processual, adjetiva, foi, pacificamente, reconhecida, e logo em termos tabelares, no despacho saneador, entrou o Tribunal a quo na análise do mérito da causa, enveredando, então, pela ilegitimidade substancial da Autora e, consequentemente, absolvição da Ré dos pedidos em questão.
A legitimidade substantiva, substancial ou material, mero requisito da procedência do pedido, a não se verificar leva à improcedência do pedido.
E bem considerou o tribunal a quo, como exposto, nenhum dano ter a Autora demonstrado, pois que não sendo proprietária do imóvel, sequer usufrutuária, manifesta é, face ao que alega, a inviabilidade das pretensões acima referidas (5,6 e 7), nunca podendo os pedidos em causa proceder por nenhum dano gerado na sua esfera jurídica ocorrer.
Assim, tendo a autora invocado, como causa de pedir do pedido que deduz contra a ora apelante, factos que nenhum direito seu são suscetíveis de fundamentar, não é dotada de legitimidade substantiva. Bem se julgou, pois, verificar-se ilegitimidade substantiva para os referidos pedidos, o que, em nada contende, com a, anteriormente, já verificada legitimidade processual, o que se mantém.
Deste modo, é de manter o decidido.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativo invocado pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 4 de outubro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Mais motiva “A proprietária do imóvel e da fracção D é D…, S.A.", sendo na esfera jurídica desta que o dano se produziu, pelo que só ela poderá beneficiar da contraprestação do seguro em causa.
A autora invoca, ainda, que, à data do sinistro, era a promitente compradora do imóvel, entendendo que essa qualidade lhe confere legitimidade substantiva para reclamar para si a contraprestação do seguro.
Acrescidamente, no seu articulado de resposta, veio alegar que o sinistro inviabilizou a celebração do contrato prometido.
No entanto, o que resulta da acção judicial supra identificada e que resolveu definitivamente o litígio existente entre a autora e D…, S.A., é que as referidas entidades celebraram um contrato que, de acordo com a interpretação efectuada na sentença ali proferida, conferia à aqui autora a posição de promitente compradora da fracção D e não de todo o imóvel.
E resulta, ainda e de acordo com aquela interpretação, que esse contrato promessa foi incumprido pela referida D…, S.A., e a sua execução específica, pretendida pela ali ré e aqui autora, era impossível, não por causa do incêndio, mas sim por falta de licença de utilização da mencionada fracção. E, com esse fundamento, a sentença concedeu à aqui autora, ali ré, uma indemnização decorrente da resolução do contrato promessa fundada naquele incumprimento e nas respectivas consequências jurídicas.
Deste modo, não é certo dizer-se, tal como alega a autora, que o incêndio tornou impossível aquela execução específica.
Seja como for, a referida qualidade de promitente compradora, ainda que com a ocupação da coisa, não seria, em nosso entender e sem prejuízo de melhor entendimento, circunstância suficiente a conferir à autora o direito de obter para si a contraprestação do seguro.
Mesmo aceitando que a autora tinha já a qualidade de promitente compradora à data da última renovação do contrato de seguro e à data do incêndio, ainda assim continuaria a ser na esfera patrimonial do proprietário que se verificava o prejuízo da destruição do imóvel e não na esfera patrimonial do promitente comprador, que sobre o mesmo teria uma mera expectativa de aquisição. E mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, o hipotético prejuízo da autora não podia nunca corresponder ao valor de todo o imóvel, mas apenas da fracção D, pois só em relação a esta detinha a qualidade de promitente compradora.
E os eventuais prejuízos para os direitos da autora que adviessem da referida qualidade de promitente compradora, designadamente a título de benfeitorias (o que não se provou naquela outra acção), decorrentes da destruição do imóvel pelo incêndio, nunca estariam abrangidos pelo contrato de seguro accionado, pois o objecto desse contrato de seguro não era aqueles direitos, mas sim o imóvel.
Quando muito a referida qualidade de promitente compradora daria à autora um interesse legítimo na celebração do contrato de seguro nos moldes celebrados pela mesma, desde que tivesse assinalado como beneficiário do referido contrato a proprietária do imóvel, o que não assinalou.
Pois que se admite como normal que a promitente compradora tenha interesse em garantir, através de um contrato de seguro, o valor do bem que prometeu comprar (salvaguardando o risco da sua destruição), tendo, portanto, interesse jurídico na celebração de um contrato com cobertura dos danos do imóvel - neste caso apenas da fracção D -, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 43° n° 1 e 44° n°s 1, 2 e 3, da Lei do Contrato de Seguro.
Porém, independentemente de ter assinalado ou não que o beneficiário do seguro era pessoa diferente da autora - tomadora do seguro -, o que sabemos que não fez, sempre a beneficiária daquele contrato de seguro seria a empresa proprietária do imóvel e não a autora.
Pois que o segurador se encontra obrigado a pagar a indemnização "a quem for devida", nos termos do art. 102° da Lei do Contrato de Seguro, e não a outra entidade qualquer.
Neste tipo de seguro de danos, em caso de ocorrência do sinistro, tem de ser respeitado o denominado "princípio indemnizatório", consagrado no art. 128° da Lei do Contrato de Seguro - "A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro".
A significar que o segurado tem de sofrer um dano, um concreto dano.
Em relação ao seguro multi-riscos, o art. 125°, n.° 3, da LCS, estabelece que "(...) tem direito à prestação o proprietário ou o titular de direitos equiparáveis sobre a coisa".
O direito equiparável ao de proprietário é e pode ser o de usufrutuário, mas já não o do promitente comprador, ainda que com tradição da coisa.
Se o dano ocorre na esfera patrimonial de terceiro - proprietário ou usufrutuário, que não é parte no contrato de seguro -, o segurado ou o tomador do seguro só tem legitimidade substantiva de exigir a contraprestação a favor desse terceiro e não para si.
A tudo isto acresce que, por força da sentença proferida na supra identificada acção, o contrato promessa invocado pela autora foi resolvido e concedida àquela uma indemnização, pelo que a mesma nunca se poderá tornar proprietária da fracção D por via de uma execução específica daquele contrato promessa, a qual, de resto, havia ali sido pedida e foi julgada improcedente”.
[2] Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net (Relator: Araújo de Barros)
[3] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52
[4] Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1963, págs. 260, 261, 262
[5] Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 104. Acrescentam, aliás, os autores, em nota, que "a falta do pressuposto processual não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da acção, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo, sustando nomeadamente a produção de prova sobre os fundamentos do pedido".
[6] Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net,
[7] Proc. 505/07.2TVLSB.L1.S1, Relator: Helder Roque, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[8] Acórdão da Relação de Lisboa de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1-2, in dgsi.net
[9] Ac. RG de 11/1/2018, processo 2366/16.1T8VCT.G1 (Ana Cristina Duarte), in dgsi.net
[10] Cfr. Ac. anteriormente referido e Ac. RL de 3-10-2017, 20120/16.9T8LSB.L1-7 (Cristina Coelho)
[11] Ac. da RL de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1 -2 (relator:Ezagüy Martins)
[12] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, FDL, Lisboa, 1974, págs. 176, 177.