Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1116/22.8T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FUNDADO NA PRÁTICA DE CRIME
DEDUÇÃO PERANTE O TRIBUNAL CIVIL
Nº do Documento: RP202402191116/22.8T8VLG.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito do direito processual penal, encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do CPP).
II - O facto de no momento em que é deduzida a acusação o lesado não estar em condições de poder quantificar os danos conhecidos, não constitui motivo para deduzir em separado o pedido de indemnização, com fundamento no art.º72º/1/d) CPP. O que releva para efeito de aplicar a norma é o desconhecimento dos danos em toda a sua extensão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Princ.Adesão-1116/22.8T8VLG.P1

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SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

                     I. Relatório

                     Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, ao abrigo do art.º 72º d) do Código de Processo Penal e 10º n.º 3 b) do Código de Processo Civil, em que figuram como:

                     - AUTORA: AA, maior, casada, reformada, portadora do contribuinte n.º ...58, residente na Travessa ..., ... - Ap...., ..., ... ... – Valongo; e

                     - RÉ: BB, maior, divorciada, desempregada, portadora do cartão de cidadão n.º ...48, com morada na Travessa ..., ... - Ap...., ..., ... ... - Valongo,

veio a autora pedir a condenação da  ré no pagamento da quantia de € 10.000,00 (€ 7.500,00 e € 2.500,00), por todos os danos (patrimoniais e não patrimoniais), sofridos em resultado da verificação dos factos ilícitos que descreve na petição.

                     Alegou para o efeito que Autora, e Ré são vizinhas, desde 2007, o que deu origem ao desenvolvimento de uma forte amizade e cumplicidade, que extrapolava os meros laços comuns de vizinhança. Devido à amizade que foram construindo, ao longo dos anos, eram presença assídua em ambas as habitações.

                     O marido da Autora é portador de elevado grau de incapacidade (95%), doente tetraplégico, pelo qual necessita de auxílio constante, sendo este dividido entre a Autora e um centro de dia que frequenta de 2ª a 6ª Feira. Esta situação de constante desgaste, de cuidar do seu marido, foi se repercutindo na sua saúde, tornando-se progressivamente mais débil, o que levou a que sofresse um enfarte.

                  Como consequência da incapacidade e necessidade de constante auxílio do marido da Autora, era comum a Ré frequentar a casa desta, não apenas para os habituais encontros e convívio, entre amigas, mas também para auxiliar nas diversas tarefas respeitantes aos cuidados do marido.

                    Para facilitar o acesso à sua habitação, a Autora forneceu à Ré, sua vizinha, em momento anterior a Novembro de 2016, as chaves da mesma, para que esta pudesse assistir o seu marido na sua ausência. Foi no âmbito desta relação de cumplicidade que a Autora, para além de fornecer e confiar as chaves da sua habitação, confidenciou também, durante uma conversa em sua casa, que tinha na sua posse algumas joias e bens de algum valor, tanto monetário como sentimental, descrevendo com exatidão o local onde guardava tais objetos. Estes bens mais valiosos, eram compostos por joias que a Autora tinha adquirido, ao longo dos anos ou recebido por parte de familiares, nutrindo, desta forma, um sentimento especial por estas peças, por serem recordações de familiares e de pessoas, das suas relações próximas, que haviam já falecido.

                     Mais alegou que a ré ao saber da existência destas joias, mostrou-se imediatamente interessada nelas, tendo confidenciando que também ela já teria tido peças de ouro, mas que acabou por vender, para fazer face às suas dificuldades económicas.

                     A Autora guardava as joias numa manteigueira dentro do frigorífico, tinham como último propósito servir como poupança, à qual poderia recorrer em caso de necessidade.

                     Após esta conversa entre a Autora e a Ré, que não sendo possível precisar a data concreta em que ocorreu, mas seguramente antes de Março de 2017, a Autora encontrou uma cruz em ouro, no balcão da cozinha e desconfiada com o episódio descrito e agravado pelo desaparecimento de garrafas de vinho, líquidos de limpeza e outros bens de reduzido valor económico, decidiu, ainda em Março de 2017, verificar se se encontravam as joias no local habitual.

                     Para sua grande surpresa, verificou que faltava:

a) 1 fio em ouro

b) 3 pulseiras em ouro

c) 2 pares de argolas em ouro iguais

d) 1 par de argolas em ouro pequenas

e) 1 alfinete comprido em ouro com brilhantes

f) 1 par de brincos com brilhantes

g) 2 pares de brincos em ouro

h) 1 par de argolas em ouro

i) 3 anéis em ouro

                     Mais referiu que resolveu a confrontar a ré com o desaparecimento das joias, dando, deste modo, uma via de resolução pacífica e demonstrando compreensão pela situação económica adversa que a Ré atravessava. A ré negou por completo a autoria do furto dos bens referidos, não deixando alternativa, por parte da Autora, a não ser a de apresentar queixa junto das autoridades competentes.

                     A Autora apresentou queixa que deu origem ao Processo Comum Singular n.º 176/17.8 GBVLG que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal de Valongo - Juiz 1.

                    No processo consta do elenco dos factos provados que a Ré retirou e integrou

no seu património, os seguintes bens:

a) 1 fio de ouro

b) 3 pulseiras em ouro

c) 2 pares de argolas em ouro iguais

d) 1 par de argolas em ouro pequenas

e) 1 alfinete comprido em ouro com brilhantes

f) 1 par de brincos com brilhantes

                     Ficou também provado que a Ré, nos dias 07/11/2016, 02/12/2016, 14/12/2016, 06/01/2017 e 06/02/2017, dirigiu-se ao estabelecimento comercial “A..., Lda.” e “B...”, onde vendeu diversos artigos em ouro, alguns dos quais pertencentes à Autora.

                     Mais se provou que a Ré, nos dias 19/12/2016 e 21/01/2017, dirigiu-se ao estabelecimento comercial “B...”, pertencente a CC, onde vendeu diversos artigos em ouro, alguns dos quais pertencentes à Autora.

                     Alegou que na ré foi condenada por um crime de furto de simples, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 570,00 (quinhentos e setenta euros).

                     Não foi possível, tanto na data do encerramento do inquérito, como na data da prolação da sentença, apurar o valor dos objetos, razão pela qual se lançou mão da presente ação. Valor esse nunca inferior a € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

                     Mais alegou que apenas se conseguiu provar o furto de algumas joias, sendo que ficaram por provar o furto de dois pares de brincos em ouro, um par de argolas em ouro e três anéis em ouro, que a Autora constatou faltarem, por altura da apresentação da queixa.

                     Refere que esta delicada situação acarretou um enorme sofrimento para a Autora, que de uma assentada se viu privada da sua melhor amiga, como, simultaneamente, viu o seu património reduzido.

                     O comportamento da Ré despertou na Autora uma forte desconfiança por quem a rodeia, uma vez que se a própria amiga, a quem confiou as suas chaves da sua habitação e, principalmente, os cuidados do seu marido, a atraiçoou desta forma. Amiga que era presença diária em sua casa, com quem dividia as refeições, presença assídua nas comemorações familiares, tendo sempre a porta aberta de sua casa para a receber. Por fim, o furto das suas joias não significou apenas a redução do seu património e, consequente, desaparecimento das suas poupanças, que só por si acarretou uma enorme pressão e stress sobre si, tendo em consideração a situação débil de saúde do casal, mas também o desaparecimento de memórias e sentimentos, que se encontravam intrinsecamente ligadas aos objetos, visto que grande parte deles tinham sido passados por entes queridos até chegarem a si, como que por tradição familiar.

                     Este episódio provocou uma enorme tristeza na Autora, que para além de passar a viver numa constante suspeita e preocupação, que nem o passar do tempo apagou, entrou numa autêntica espiral depressiva. Viu também o seu nome arrastado para uma situação em que nada o dignifica, sendo tema de conversa constante na vizinhança, o que lhe provoca forte vergonha e embaraço, danos que considera merecem ser compensados com uma indemnização no montante de € 2 500,00.

                     Considera tempestiva a ação porque uma vez iniciado o procedimento criminal com a notícia do crime (de furto simples, previsto no art.º 203º do Código Penal), o prazo de prescrição de 5 anos (aplicável por força das disposições conjugadas dos artigos 498.º n.º 3 do Código Civil e 118.º n.º 1 al. c) do Código Penal) apenas começou a correr, nos termos do art.º 306.º n.º 1 do Código Civil, com o desfecho do inquérito, portanto, com a dedução da acusação contra a arguida nos sobreditos autos, momento a partir do qual o direito pôde ser exercido na ação civil. O prazo de prescrição, iniciou no dia 02 de Julho de 2018, data da prolação da acusação pública, apenas se verificando o seu termo no dia 02 de Julho de 2023.

                     Mais considera que embora os factos descritos já tenham sido julgados em sede penal, sabendo a Autora que seria esse o local indicado para apresentar pedido de indeminização civil, os factos são suscetíveis de configurar a exceção da alínea d) do n.º 1 do artigo 72º do Código de Processo Penal, porque aquando da acusação apresentada não era possível apurar o valor das joias furtadas pela Ré, tendo sido atribuído um valor meramente indicativo, superior a € 5.000 (cinco mil euros), considerando que no momento da acusação os danos ainda não eram conhecidos, em toda a sua extensão, visto que não tinha sido apurado um valor sequer aproximado e real dos objetos furtados.

                     Mais alegou que aos danos patrimoniais decorrentes da subtração do património da Autora há que ter também em conta os danos não patrimoniais que advieram das ações da Ré perante o furto de objetos com um forte valor sentimental, que são parte integrante da história e tradição familiar da Autora.

                     As joias furtadas tinham sido passadas de geração em geração, até chegar à posse da Autora, constituindo uma fonte de recordações e memórias dos seus antepassados e pessoas mais queridas. Aquando da acusação a Autora não tinha conhecimento que as joias já teriam sido vendidas e, consequentemente, perdido o seu rasto, não sendo, portanto, praticável na altura calcular os danos que a perda destes objetos poderia trazer. A dor e sofrimento que a perda dos objetos, veio a intensificar-se, alastrando-se no tempo até aos dias de hoje, após a confirmação da impossibilidade da recuperação dos objetos, que apenas surgiu em sede de julgamento.

                     Mais alegou que as joias tinham também como função de servir de poupança, com o intuito de fazer face a qualquer emergência, prática comum em várias famílias portuguesas. Os danos referentes à dor e sofrimento de ter perdido os bens de elevado valor sentimental e, principalmente, a pressão crescente de governar a sua vida e os cuidados de saúde do seu marido, sem essa almofada financeira, são danos de difícil previsão aquando da acusação penal. O passar do tempo apenas trouxe uma maior intranquilidade e tristeza, não só pela questão financeira e sentimental das joias, mas também por ver ainda o seu nome associado para um episódio tão marcante e desprestigiante.


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                     A Ré citada, veio contestar, defendendo-se por exceção.

                     Invocou a caducidade do direito da Autora para intentar a presente ação por ter já corrido o processo-crime, no âmbito do qual deveria ter deduzido, por imposição legal, o pedido que agora deduz nesta ação.


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                     Realizou-se tentativa de conciliação.

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                  Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

                 “Pelo exposto, julgo verificada a invocada caducidade do direito de ação da Autora e, consequentemente, absolvo a Ré do pedido.

                 Custas pela Autora, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.

                 Nos termos do disposto nos artigos 297.º, 305.º, n.º 4 e 306.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, fixo o valor da causa em 10.000,00 € (dez mil euros)”.


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                     A Autora veio interpor recurso da sentença.

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                  Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:

                    1º O objeto do presente recurso, prende-se com a surpreendente decisão proferida pelo tribunal a quo, com a qual não se pode concordar, porquanto, como passaremos mais uma vez a demonstrar, não se verifica a caducidade para o exercício do direito invocado na presente lide judicial.

                    2º Não será correto afirmar-se que a Autora conhecia, ao tempo da acusação deduzida no processo-crime, os danos sofridos em toda sua dimensão.

                    3º O art.º 71.º do Código de Processo Penal consagra o princípio da adesão da ação civil à ação penal, tratando-se, como bem descreve a contestação da Ré e a sentença proferida, da consagração do regime do princípio da adesão obrigatária.

                     4º Embora parte dos factos descritos na petição inicial, já tenham sido julgados em sede penal, sabendo a Autora que seria esse o local indicado para apresentar pedido de indemnização civil, parece-nos que, o caso sub judice, se enquadra numa das exceções tipificadas no artigo 72º n.º 1 d) do Código de Processo Penal, norma esta que contempla 3 situações distintas:

1- Não haver danos ao tempo da acusação.

2- Não serem conhecidos danos ao tempo da acusação.

3- Não ser conhecida toda extensão dos danos ao tempo da acusação.

5º Todas estas situações a que faz alusão a alínea d), conforme decorre da lei, são de carácter alternativo e não cumulativo, tendo a causa de pedir e o pedido sido formulados com base no último segmento daquela alínea d): não ser conhecida toda a extensão dos danos ao tempo da acusação, no sentido de serem parcialmente desconhecidos.

6º É evidente que eram conhecidos danos, mas não toda a sua extensão, pelo que a Autora, de forma legítima, pretende que, de uma só vez, se proceda ao apuramento dos tais danos em causa.

7º Primeiramente, e como já mencionado supra, aquando da acusação apresentada não era possível apurar o valor das joias furtadas pela Ré, pois que, naquela altura, apenas ficou provado o furto de parte das joias, sendo desconhecido o paradeiro de outras.

8º Assim, aquando da acusação não foi possível determinar com exatidão o valor das joias furtadas, tendo sido atribuído um valor meramente indicativo, superior a € 5.000 (cinco mil euros), o que leva a concluir que, no momento da acusação, os danos ainda não eram conhecidos, em toda a sua extensão, visto que não tinha sido apurado um valor sequer aproximado e real dos objetos furtados.

9º Desta forma, aquando da acusação a Autora não tinha conhecimento que as joias já teriam sido vendidas e, consequentemente, perdido o seu rasto, não sendo, portanto, praticável, naquela altura, calcular os danos que a perda destes objetos poderia trazer.

10º Deste modo, e atendendo ao n.º 2 do artigo 564º do Código Civil, os danos futuros que não sejam previsíveis ou que não permitem o conhecimento na sua totalidade, a consequente indemnização deve ser remetida para decisão ulterior, reforçando a exceção do artigo 72º do Código de Processo Penal analisada supra.

11º É, assim, inconstitucional, a interpretação normativa do art.º 72º n.º 1 d) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a avaliação da parte dos danos conhecidos deve ser julgada em sede de penal, quando se pretende apurar, numa só ação, a real extensão de todos os danos, por violação do princípio do acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, nos termos a que alude o art.º 20º n.ºs 1 e 5 4 da Constituição da República Portuguesa.

 A decisão em crise, viola o disposto na conjugação dos artigos 72º n.º 1 d) do Código de Processo Penal, 498º n.º 2 e 564º n.º 2 do Código Civil e art.º 20º n.º 1 e 5, 2ª parte da Constituição da República Portuguesa, pelo que deverá ser substituída por uma outra, que ordene o prosseguimento dos autos, para a necessária produção de prova sobre a questão dos danos, cujo apuramento está em falta.


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A Ré apresentou resposta ao recurso, defendendo a manutenção do julgado.

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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

                 1. Delimitação do objeto do recurso

                     O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.

                      As questões a decidir:

                     - se estão reunidos os pressupostos para formular pedido de indemnização em separado, quanto aos danos de natureza patrimonial, com fundamento no art. 72º/1 d) Código Processo Penal;

                      - se a interpretação defendida na sentença viola o principio constitucional de acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva, nos termos do art. 20º/1/5 e 54º da Constituição da República Portuguesa.


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                   2. Os factos

                     Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.


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                  3. O direito

                     Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 10, insurge-se a apelante contra o segmento da sentença que julgou procedente a exceção.

                     A apelante defende que pelo facto de não estar quantificado na acusação o exato valor das joias furtadas, às quais foi atribuído um valor meramente indicativo de €  5000,00, nem ter conhecimento que as joias já teriam sido vendidas, perdendo o seu rasto, os danos não eram ainda conhecidos em toda a extensão, o que justifica a dedução em separado do pedido de indemnização.

                     Na decisão recorrida após enquadramento jurídico da exceção, com citação de jurisprudência atual, julgou-se improcedente a exceção, com os fundamentos que se passam a transcrever:

                     “Ora, na situação dos nos autos, tal qual acontecia na situação em análise no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a lesada – ora Autora – conhecia, ao tempo da acusação deduzida no processo-crime, os danos sofridos, em toda a sua dimensão, mostrando-se já todos eles ocorridos, conquanto não soubesse o seu valor exato, seja no que concerne às joias furtadas, seja no que concerne aos danos não patrimoniais invocados. Porém, trata-se de danos já sofridos, suscetíveis de concretização patrimonial.

                      Ora, o desconhecimento do concreto valor dos danos não é subsumível à exceção do princípio de adesão, antes impondo o respetivo exercício ao abrigo do invocado princípio da adesão, ou seja, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal ao regime processual penal.

                      Perante o teor da acusação deduzida no processo de natureza criminal e perante os factos alegados nesta ação, dúvidas não há que estamos perante os mesmos factos, perante factos que a lesada estava já em condições de alegar e se propor provar no âmbito do processo crime que correu termos, tendo até o Tribunal criminal se pronunciado sobre a eventual fixação de arbitramento à lesada, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal (que prevê que, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham), destacando que a ofendida deveria ter deduzido pedido de indemnização civil, para o que foi notificada, e não o fez.

                        O argumento da Autora para a dedução do pedido em separado respeita à extensão dos danos, que alega que desconhecia no momento da prolação do despacho de acusação.

                        Sucede que não são invocados quaisquer novos danos decorrentes dos factos imputados à arguida – ora Ré – na acusação pública deduzida. Ora, os danos são precisamente os mesmos e, embora a Autora alegue que no momento em que a acusação foi deduzida não era possível quantificá-los, cremos, salvo melhor opinião, que tais danos se mostravam já definidos, apenas havendo indeterminação quanto à sua quantificação, mas essa incerteza mantém-se no momento da instauração da presente ação, porquanto se mostra, como se mostrava, dependente de prova e até, no que concerne aos danos não patrimoniais, dependente de critérios de equidade.

                       Consequentemente, impõe-se julgar não verificada a invocada exceção, ou qualquer outra das enunciadas exceções legais, que permitiria à Autora deduzir o pedido de indemnização civil em momento posterior e separadamente do processo crime no âmbito do qual a Ré, aí arguida, foi julgada pela prática do(s) ilícito (s) criminal(ais) que originou(aram) os danos que constituem causa de pedir da presente ação”.

                     A questão a apreciar consiste em saber se, não tendo a Autora/apelante deduzido no âmbito do processo-crime, o pertinente pedido cível, o poderia fazer agora, em separado, perante tribunal cível, com fundamento no art.º 72º/1 d) Código de Processo Penal.

                     No âmbito do direito processual penal, encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art.º71.º do CPP).

                     O princípio de adesão obrigatória[2], com tradição no direito português (artigos 29.º, do CPP/1929, 12.º e 13.º, do DL n.º 605/75, de 3 de novembro), é justificado, desde logo, pelos fins penais e ainda, pela economia processual e uniformização de julgados.

                     A aludida adesão obrigatória tem, necessariamente, vantagens, importando economia processual, dado que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr mecanismos diferentes e em sede autónomas, outrossim, por razões de economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos, a par das razões de prestígio institucional, porquanto se evitam contradições de julgados.

                     Aprecia-se, pois, num só tribunal os mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspetiva penal, quer na perspetiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emerge a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido.

                     Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência, como disso dão nota, entre outros, os Ac. STJ 22 de novembro de 2018, Proc. 199/17.7T8TCS.C1.S1, Ac. STJ 30 de abril de 2019, Proc. 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1, Ac. STJ 23 de maio de 2019, Proc. 9918/15.5T8LRS.L1.S1( todos acessíveis em www.dgsi.pt).

                     Por força do princípio da adesão (art.º 71º do CPP), o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, podendo ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos nas diversas alíneas do artº 72º, nº1 do CPP e de acordo com a previsão do art.º 82º CPP.

                      Prevê o art.º 72º CPP:

 “1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;

b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;

c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;

d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;

e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;

f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido;

g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;

h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;

i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º

2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.

Nos termos do art.º 82º do CPP sob a epígrafe: “Liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis”, prevê-se:

1 - Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.

2 - Pode, no entanto, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no artigo seguinte.
3 - O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.”

                     Face ao princípio da adesão, pretendendo o autor deduzir em separado pedido de indemnização cível por factos que constituem ilícito criminal, nos termos do artigo 342º do CC, cabe-lhe o ónus de alegar e provar a existência de alguma das exceções do artigo 72º/1 CPP.

                     Para tanto, deve o autor, logo na petição inicial, alegar os factos em que se baseia a exceção ao princípio da adesão[3], sendo certo que só os factos com natureza criminal que de igual forma tenham sustentado ou sustentam o procedimento criminal relevam para este efeito[4].

                     No caso concreto, interessa de modo particular a exceção ao princípio da adesão prevista no art. 72º/1/d) CPP, por ser esse o fundamento invocado pela autora/apelante para deduzir em separado o pedido de indemnização.

                     Defende a apelante que no momento em que foi deduzida a acusação não tinha conhecimento do valor das joias furtadas, nem tinha conhecimento que já teriam sido vendidas, não sendo praticável calcular os danos que a subtração de tais objetos lhe poderiam trazer.

                     Na exceção do artº 72º/1/d) do CPP, prevê-se que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil quando não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão.

                     O Supremo Tribunal de Justiça tem interpretado esta norma no sentido de excluir do seu âmbito a mera quantificação dos danos, quando à data da acusação o dano é conhecido.

                     Refere-se no Ac. STJ 22 de novembro de 2018, Proc. 199/17.7T8TCS.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt):”[o] direito adjetivo civil permite a dedução de pedidos genéricos quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, sendo o pedido, nestes casos, concretizado através de liquidação em execução de sentença.

                    Reconhecendo-se que o lesado, ao tempo da acusação, conhecia os danos sofridos, em toda a sua dimensão, conquanto não soubesse o seu valor exato, tal situação não é subsumível à exceção do princípio de adesão, importando, isso, sim, o respetivo exercício, de modo obrigatório, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal.

               Não se pode confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, estas sim, razões que sustentam a exceção à regra da adesão obrigatória”.

                  O facto de no momento em que é deduzida a acusação o lesado não estar em condições de poder quantificar os danos conhecidos, não constitui motivo para deduzir em separado o pedido de indemnização, com fundamento no art.º72º/1 d) CPP. O que releva para efeito de aplicar a norma é o desconhecimento dos danos em toda a sua extensão.

                    O pedido de indemnização formulado pela autora/apelante, funda-se na prática de um crime de furto simples, em que a ré foi condenada, por sentença transitada em julgado, nos autos de processo comum com tribunal singular Proc. n.º 176/17.8 GBVLG que correu termos no Tribunal da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal de Valongo - Juiz 1. 

                     Atendendo aos fundamentos da petição, que se deixaram transcritos no relatório, conclui-se que na data em que foi deduzida acusação no processo-crime existiam os danos causados pela conduta ilícita da ré e estes eram completamente conhecidos pela autora-apelante e em toda a sua extensão.

                    Com a apresentação da participação a autora/apelante revela que tomou conhecimento do furto dos objetos e do dano patrimonial associado à privação de tais bens, pois não poderia admitir como possível que os viesse a recuperar dada a forma como foram subtraídos ao seu património. Ainda, que desconhecesse o valor real e efetivo dos objetos tinha seguramente uma ideia, pois nomeadamente alegou que serviam como um reforço do seu património para a eventualidade de algo imprevisto acontecer e carecer de dinheiro. Acresce que mesmo admitindo que não tinha um conhecimento efetivo do seu valor, nada impedia que deduzisse no processo-crime um pedido genérico a liquidar em execução de sentença.

                     Constata-se que o pedido formulado na petição inicial não diz respeito “à extensão dos danos desconhecida no momento da prolação do despacho de encerramento do inquérito”, na medida em que não consubstanciam mais danos provenientes de factos constantes da acusação pública, mas persistência dos mesmos danos - a subtração das joias -, cuja previsibilidade era possível quando foi deduzida a acusação pública, não sendo, eventualmente possível a sua quantificação.

                     A apelante não se insurgiu contra o segmento da sentença que se pronunciou sobre os danos morais, pelo que não mais cumpre reapreciar na decisão.

                     Não merece, pois, censura a sentença recorrida ao concluir que não tendo a autora/apelante deduzido no âmbito do processo-crime o pertinente pedido cível, em conformidade com o princípio da adesão (art.º 71.º, do C.P.P), e não se verificando as circunstâncias do artº.72.º, nº 1, al. d) do C.P.P., dentro do prazo previsto no art.º 77.º, do C.P.P., operou-se a caducidade do direito que a mesma pretende exercer, e por essa via, extinto, verificando-se a exceção perentória da caducidade do direito da autora, determinante da absolvição da réu do pedido (rtºs 298.º, nº 2; e 333.º, nº 1, do C.C.; e artºs 576.º, nºs 1 e 3; e 579.º, todos do C.P.C.).

                     Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 10.


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                     - Da inconstitucionalidade -

                      A apelante defende, ainda, que a interpretação do art. 72º/1 d) CPP acolhida no despacho viola os princípios constitucionais do acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva (art. 20º/1/4/5 da Constituição da Republica Portuguesa).

                     A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere o Professor GOMES CANOTILHO:

                     “O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[5].

                     Afigura-se-nos, porém, que a interpretação defendida, não contende com os princípios constitucionais enunciados.

                     A interpretação acolhida no despacho recorrido e no presente acórdão, garante o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, pois não se impede que o lesado venha exercer os seus direitos junto dos tribunais. Apenas se disciplina o modo de fazer, quando está em causa matéria de natureza criminal. O acesso à justiça e a tutela jurisdicional efetiva estão garantidos numa dupla vertente, porque não só se faculta a dedução de pedido de indemnização em sede de processo penal, como se permite em situações excecionais que o lesado venha exercer esse direito de forma separada junto da jurisdição cível. A criação de limites para assim proceder, constitui ainda uma manifestação do princípio de acesso ao direito, pretendendo desta forma tutelar-se a economia de meios e evitar a contradição de julgados.

                     Improcedem, também, nesta parte as conclusões de recurso.


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                  Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.

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                 II. Decisão:

                      Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.


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                    Custas a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

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Porto, 19 de fevereiro de 2024
( processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC )
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
[6]Juiz Desembargador-Relator
Teresa Fonseca
1º Adjunto Juiz Desembargador
Fernanda Almeida
2º Adjunto Juiz Desembargador

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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] MAIA GONÇALVES Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 121 e 122.
[3] Cf. Ac. Rel. Coimbra 24 de abril de 2007, P.6135/05 e Ac. Rel. Coimbra 03 de fevereiro de 2010, P.143/2008 (ambos acessíveis em www.dgsipt).
[4] Cf. Ac. Rel. Porto 05 de novembro de 2018, Proc. 2261/17.7T8PNF-A.P1 (acessível em www.dgsi.pt).
[5] J.J.GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, ( 7ª Reimpressão ) Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226.