Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5625/22.0JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE AGRAVADO
CÚMULO JURÍDICO
CONSTRUÇÃO DE PENA ÚNICA
Nº do Documento: RP202402075625/22.0JAPRT.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, em especial contra crianças e jovens, atentam contra valores juridicamente protegidos de natureza pessoal de alto grau de relevo, sendo objecto de clara reprovação geral, assumindo uma dimensão cada vez mais alarmante em termos comunitários, atenta também a proliferação da respectiva ocorrência.
II - São pressupostos basilares do cúmulo jurídico a uniformidade subjectiva (que todos os crimes tenham sido cometidos pelo mesmo arguido), a coerência temporal (que o arguido os tenha praticado antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer um), e a coesão sancionatória (que as penas parcelares em que o arguido foi condenado sejam da mesma natureza, nos termos do art. 77º/3 do Cód. Penal).
III - No exercício de compressão das (aqui 441) penas parcelares em concurso, não é adequado o apelo a qualquer regra de ponderação de fórmulas aritméticas, traduzida no fraccionamento pré–estabelecido das penas parcelares, e adição matemática dos fragmentos das mesmas assim extraídos para construção da pena única aplicada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5625/22.0JAPRT.P1
Tribunal de origem: Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto :

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) nº 5625/22.0JAPRT que corre termos no Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 2, em 29/09/2023 foi depositado Acórdão, cujo dispositivo é do seguinte teor:

«VII - Dispositivo

Em face de todo o exposto, deliberam os juízes que compõem o Tribunal Coletivo, julgar a acusação deduzida parcialmente procedente por provada e, em consequência:

1. Condenam o arguido AA como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo, de 441 (quatrocentos e quarenta e um) crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punível pelos arts. 172º, nº 1 al. b) e 177º, nºs 1 al. b), 3 e 8 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão por cada um deles e ainda na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 6 (seis) anos, por cada um deles, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 6 (seis) anos, por cada um deles;

2. Operando o cúmulo jurídico das respetivas penas principais parcelares, condenam o arguido na pena principal única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;

3. Operando o cúmulo jurídico das penas únicas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, condenam o arguido na pena acessória única de 10 (dez) anos.

4. Operando o cúmulo jurídico das penas únicas de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores condenam o arguido na pena acessória única de 10 (dez) anos.

5. Condenam o arguido AA nas custas do processo, fixando-se em 3Uc a taxa de justiça (art. 513º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas processuais, incluindo a respetiva tabela III anexa).

6. Consideram parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado contra o arguido AA e condenam-no a pagar a BB a quantia de €234,95 (duzentos e trinta e quatro euros e noventa e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros desde a data de notificação do arguido até efetivo e integral pagamento.

7. Custas cíveis por demandante e demandado fixando-se as mesmas na proporção do decaimento de 1/3 e 2/3 respetivamente – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que as partes disponham;

8. Determina-se, após trânsito em julgado, a restituição ao seu proprietário do frasco de medicamentos apreendido, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.. »

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 30/10/2023, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões :

(…)

2. Salvo o devido respeito pelo douto acórdão proferido, entendemos que o mesmo viola de forma grave princípios fundamentais do direito substantivo e processual penal e que são fundamento de recurso (Artº 410º nº 1 e nº 2 aI. b) do C.P.P. O douto acórdão proferido condena com:

- Erro notório na apreciação da prova - e

- Com violação do principio "in dúbio pro Reo"

3. O âmbito do presente recurso limita-se concretamente ao número de crimes - 441 crimes de abuso sexual de menos dependente agravado - considerados provados e pelos quais o Arguido/Recorrente veio condenado.

Quanto á determinação do número de crimes cometidos e do erro notório na apreciação da prova decorre do douto acórdão que :

4. "(.. .) não se mostrou possível concretizar especificamente o número de vezes que aconteceu essa prática reiterada ao longo do tempo. No entanto, referiu a vftíma BB que as mesmas aconteciam com uma frequência de, pelo menos, três vezes por semana, tendo-se iniciado em data não concretamente apurada, mas pelo menos em Janeiro de 2020 e se prolongado até à última semana de outubro de 2022. Chegando mesmo num crescendo a passar a ser mais frequente, às vezes, ocorrendo mais de que uma vez por dia”. E acrescenta,

“Assim, por razões de segurança jurídica, do princípio da legalidade e da defesa dos direitos do arguido, deve ser tida por provada a prática de tais ilícitos, pelo menos, por três vezes por semana. Nesse sentido, apura-se que no ano de 2020, tal conduta se prolongou durante 52 semanas; no caso de 2021, durante as 52 semanas; e durante o ano de 2022, durante 43 semanas. Em suma, face à impossibilidade de especificar o número de vezes que ocorreram tais práticas, mas existindo a referência de que, pelo menos, ocorriam três vezes por semana, o arguido praticou 441 crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, nos termos do artigo 172.º, número 1, alínea b) do Código Penal”.

5. Desta fundamentação resulta claramente que, o tribunal a que, atendeu exclusivamente ás declarações vagas e imprecisas da ofendida e no período temporal decorrido desde o primeiro ato de natureza sexual - janeiro de 2020 e outubro de 2022 - para determinar o número de crimes, não considerando nessa determinação, os contextos em que os mesmos decorreram; não considerando a avaliação da possibilidade objetiva - avaliada por um homem médio - de efetivamente ser possível terem ocorrido nos moldes sentenciados, e não dando qualquer valoração ás declarações do arguido, sem prejuízo de quanto a estas se aplicar a livre apreciação da prova.

6. O tribunal a quo, condenou o Arguido/Recorrente na prática de 441 crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, através de uma simples operação matemática fundada exclusivamente nas declarações da Ofendida, alegando ainda que dessa forma se cumpririam quer a segurança jurídica quer o principio da legalidade quer a defesa dos direitos do Arguido.

7. Entendemos haver impossibilidade objetiva da prática do número de crimes analisado pelo contexto familiar, social e temporal em que os atos decorreram e de acordo com os factos dados como provados:

A Ofendida vivia com a mãe, com o Arguido e com a companheira deste; Os atos ocorriam dentro da residência que coabitavam;

No quarto do arguido e no quarto da ofendida; Por vezes no interior do veículo marca BMW;

Na residência, não obstante a presença de outras pessoas na habitação;

A ofendida começou a namorar com o CC em setembro de 2022 e tinham relações; O Arguido tinha á data 59 anos de idade;

O Arguido debate-se com prolemas de saúde sendo diabético e insuficiência cardíaca;

Embora não seja facto assente, não podemos descurar que, o período de tempo considerado nos presentes autos, inclui o período pandemia Covid com as inerentes medidas governamentais que incluíram como é do conhecimento geral, nomeadamente Estado de Emergência decretado em março de 2020, e sucessivamente prolongado até abril de 2021, com iguais e sucessivas decisões de confinamento obrigatório.

8. Não se compreende como era possível contatos e atos sexuais em tão grande número nomeadamente mais do que uma vez ao dia, com a presença de outras pessoas em casa; nem mesmo se compreende como eram possíveis sendo a Ofendida estudante e frequentando as respetivas aulas.

No contexto e circunstâncias dadas como provadas, nenhum homem de formação média, e usando a lógica mais elementar, consideraria o indicado número como possível e por ser assim, entendemos que o tribunal condenou com erro notório na apreciação da prova ao determinar o número de crimes pelos quais condenou o arguido uma vez que, no contexto e circunstâncias dadas como provadas, nenhum homem de formação média, e usando a lógica mais elementar, consideraria o indicado número como possível.

Quanto à violação dos direitos do Arguido :

9. Igualmente entendemos que o tribunal violou os direitos do Arguido, e com isso, os princípios basilares do nosso direito penal, não atribuindo qualquer credibilidade á sua posição no processo que, confessou a prática do ilícito, desde o primeiro confronto com os autos, e que assumiu que os mesmos ocorriam com uma média de frequência de 3 vezes por mês;

10. Não se entende, nem se aceita em nome da segurança jurídica que, um tribunal, assumindo que não conseguiu concretizar especificamente o número de vezes que a prática ilícita ocorre ao longo do tempo, aceite e condene o Arguido exclusivamente pelas declarações vagas e imprecisas da ofendida, e acrescenta-se impossíveis de concretizar no contexto social e familiar como o que nos autos está devidamente plasmado.

11. Entendemos que o bom senso e os princípios legais deveriam ter ditado uma dúvida razoável quanto ao número de crimes efetivamente cometido e nessa parte, a dúvida do quantum, deveria ter funcionado a favor do Arguido como legalmente se impõe.

12. Por tudo quanto se expôs, dando integral cumprimento á segurança jurídica, ao principio da legalidade e aos direitos do Arguido - nomeadamente o principio in dúbio pro Reo - deveria o douto acórdão ter considerado, como praticados os crimes que o Arguido confessou, numa média de 3 vezes por mês, o que, considerando o período de tempo decorrido levaria á prática pelo Arguido de 96 crimes.

13. E em consequência, deverá a sua pena, ser proporcionalmente reduzida ao número de crimes que o arguido confessou ter cometido, e em face disso, ser-lhe aplicada uma pena nunca superior a 5 anos prisão.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, propugnando pela improcedência do mesmo nos seguintes termos:

Do texto da decisão agora em crise não vislumbramos qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do C.P.P., nomeadamente o invocado erro notório na apreciação da prova, pois que, não se retirou de qualquer um dos factos dados como provados uma conclusão logicamente inaceitável, nem se deu como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, nem se retirou de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, nem da análise dos factos provados se detectou que qualquer um deles seja incompatível ou contraditório com outro dado de facto provado ou não provado contido no texto da decisão recorrida.

Ao que nos parece, para o recorrente, este vício mostra-se verificado relativamente aos factos dados como provados, por não ter sido produzida - no seu entendimento - prova que permitisse ao tribunal concluir daquela forma no que ao número de crimes cometidos se refere.

Tudo o que se possa traduzir na discussão da avaliação da prova, por via da análise do texto da decisão, mas não seja reconduzível a um erro notório na apreciação da prova, ou a uma manifesta violação das regras da experiência comum na formação da convicção do Tribunal plasmada na decisão recorrida, só poderá ser sindicável por via da impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 412º, nº 3, do CPP, e não já com fundamento no art.º 410º, nº 2, al. c), do CPP.

É essa a pretensão do recorrente.

Ou seja, o que verdadeiramente pretende querer invocar é que se verifica um erro de julgamento, ao dar-se como provada a factualidade ocorrida, tal como se fez constar dos factos dados como provados, por entender não ter sido produzida prova suficiente que, criteriosamente apreciada, permitisse ao tribunal a quo dar como provados os factos que fundamentaram a decisão de direito.

Comecemos então por dizer que o recorrente não impugna a decisão da matéria de facto, com fundamento no disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) e b), do C.P.P., porquanto não especifica nenhum concreto meio de prova, nomeadamente, tendo sido a mesma gravada, com o sentido previsto no nº 4 do mesmo artigo e indicando concretamente as passagens em que fundasse a impugnação.

O que fez foi propor uma nova e diferente avaliação da prova produzida, no sentido que julga ser o mais adequado e fê-lo apenas com base no texto da própria motivação da decisão de facto recorrida e nos meios de prova aí referidos, pretendendo alterar os factos dados como provados, no que ao número de crimes praticados se refere, através de uma apreciação da prova que entende ser a mais correta, para desse modo ver aplicado o princípio in dubio pro reo.

No entanto, não tendo sido apresentado recurso sobre a decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 412º, nºs 3 e 4 do C.P.P., nos termos já acima referidos, só por via do erro notório na apreciação da prova seria alcançável o por si pretendido.

Não se verificando o erro notório na apreciação da prova, tal como já anteriormente assinalamos, nada mais poderá ser apreciado.

Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso apresentado pelo arguido.

Igualmente inconformado com aquela decisão, dela recorreu também, em 24/10/2023, o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

a) Nos presentes autos foi o arguido condenado pela prática de 441 (quatrocentos e quarenta e um) crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punível pelos arts. 172º, nº 1 al. b) e 177º, nºs 1 al. b), 3 e 8 do Código Penal.

b) Por cada um deles foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão e, operando o cúmulo jurídico das respetivas penas principais parcelares, foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

c) A nossa divergência prende-se quer quanto à medida encontrada para cada pena parcelar, quer quanto à pena única aplicada, em sede de cúmulo jurídico.

d) Na determinação da medida da pena de cada um dos crimes, o Tribunal colectivo, considerou as exigências de prevenção especial medianas.

e) E, considerou ainda, que a ilicitude dos factos é mediana, face às demonstradas circunstâncias da atuação do arguido que, dentro do quadro dos tipos legais que se pune, não sendo despiciendas, não assumem uma extrema gravidade.

f) Não se concorda com as mencionadas considerações, porquanto, nem as exigências de prevenção especial são medianas, mas sim elevadas, nem a ilicitude dos factos é mediana, mas sim elevada, assumindo os factos uma extrema gravidade.

g) O arguido praticou 441 crimes de abuso sexual agravados, aproveitando-se do facto de coabitar com a menor e a propósito de um “pacto” com ela realizado, o que sucedeu de janeiro de 2020 a outubro de 2022, traduzindo-se tais crimes na prática de relações sexuais de cópula, sexo oral e de masturbação, tal como foi dado como provado.

h) Esses actos criminosos ocorreram desde que BB tinha 14 anos de idade e até aos seus 17 anos de idade, tendo o arguido, tal como foi dado como provado, se aproveitado da relação de proximidade que tinha com BB, intitulando-se de “médium" e portador de poderes espirituais, levando a que a mesma fizesse um pacto com ele, para que isso lhe trouxesse coisas boas e dizendo-lhe que, caso não fizesse o que ele mandasse, acarretaria consequências negativas para o seu bem-estar e saúde e da sua progenitora.

i) O arguido não usou preservativo em qualquer das situações acima descritas, mesmo sendo portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e, devido à pressão que era exercida pelo arguido, BB vendo-se sem saída, desesperada e sem poder para contrariar os desmandos de AA, tentou por termo à vida, ingerindo comprimidos, em dia não concretamente apurado, mas no mês de junho de 2022.

j) Os factos são graves, não se podendo concordar com a afirmação do tribunal no sentido de que não assumem uma extrema gravidade.

k) A ilicitude dos factos em causa atinge igualmente um grau elevado atento ao modo da sua execução, a intensidade e duração dos actos praticados - a reiteração deste tipo de conduta ao longo de sensivelmente dois anos e 9 meses -, a imposição do seu ascendente sobre a vítima que consigo vivia para forçar a satisfação da sua líbido à custa da intimidade e autodeterminação sexual da vítima, a execução dos actos a propósito de um alegado “pacto” que fez com a mesma (tal como foi dado como provado), o aproveitamento da circunstância de a ofendida ser menor, inexperiente, indefesa, incapaz de oferecer resistência e viver consigo, as consequências que tais actos tiveram para a saúde física e psíquica da vítima.l) As exigências de prevenção geral são elevadas.

m) Embora o arguido tenha confessando parcialmente os factos, desculpabilizou-se na alegada convicção de que os actos sexuais, sendo consentidos, não eram crime, nunca revelou um pensamento activo e estruturado suficientemente convincente sobre a sua real vontade e capacidade de mudança, carecendo aliás, conforme o salienta claramente o relatório social, de intervenção terapêutica especializada, visando uma maior regulação emocional e comportamental e interações que respeitem a liberdade e auto determinação sexual e não mostrou qualquer arrependimento, tendo levado a cabo os crimes por cerca de dois anos e nove meses.

n) No acórdão recorrido deveria ter-se atendido, para além da intensidade do dolo (directo) – aos fins e motivos que determinaram a conduta do arguido, ao muito elevado grau de ilicitude, atenta a sua reiteração e à forma como os actos foram praticados, assumindo estes elevada gravidade – vd. os factos n.ºs 4 a 22, 24 a 30, da matéria de facto provada -, à não interiorização da gravidade e desvalor das suas condutas, ao não abandono voluntário das práticas sexuais com a vítima que consigo vivia e a falta de manifestação de arrependimento.

o) A favor do arguido foi considerada a falta de antecedentes criminais. Mas, se desta circunstância não resulta qualquer elemento que contribua para a agravação da pena, também, não se extraem motivos que devam ser atendidos no sentido da sua atenuação.

p) O que releva, com particular acuidade é o modo de execução dos actos e das circunstâncias em que foram praticados, postos em evidência na motivação da matéria de facto e na fundamentação da decisão recorrida, ser uma criança de 14 anos, a quem o arguido a propósito de um pacto ordenava a consumação de actos sexuais, pois que caso não o fizesse algo de mal sucederia com a sua família, bem como as circunstâncias de os factos terem sido praticados na casa de morada da família e na ausência da progenitora da vítima, tendo o arguido o cuidado de se certificar que esta se encontrava ausente de casa, não podendo a vítima se socorrer de outra pessoa que a pudesse proteger. Acresce que o arguido nunca usou preservativo, apesar de saber estar infectado com HIV, circunstância que impõe uma maior severidade na apreciação da conduta do arguido, já de si, extremamente censurável.

q) O acórdão recorrido merece, a nosso ver, censura quanto às penas parcelares aplicadas ao arguido, por cada um dos crimes em concurso – 2 anos, bem perto do seu limite mínimo que era de um ano e 4 meses -, devendo, ao invés, dosear-se a pena parcelar para cada um dos crimes em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

r) Em sede de cúmulo jurídico de penas, são de ponderar nomeadamente a gravidade dos factos dados como provados, demonstrativa da sua personalidade.

s) Ora, a pena de concurso tem como limite mínimo a pena mais elevada das parcelares e a máxima, sem exceder 25 anos, a soma aritmética de todas elas - art.° 77.° n.° 2, do CP, que tanto pode resultar de uma mera acumulação material, em exacerbação dela, pelas circunstâncias do caso, como de uma sua redução, quedando-se na parcelar mais elevada ou num distanciamento desta, mas sempre, sobretudo na pequena e média criminalidade, evitando-se que se atinja aquele limite máximo, de 25 anos.

t) São as seguintes as penas parcelares a considerar no caso em apreço: 441 crimes a que corresponderá, caso a pretensão do MP venha a ser acolhida, a pena de três anos e seis meses de prisão por cada um deles.

u) A pena única a aplicar ao arguido, deverá situar-se nos seguintes limites: entre os 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, como limite mínimo (pena parcelar mais elevada), e os 25 (vinte e cinco) de prisão, como limite máximo legalmente admissível - art. 77º nº2 do C.P..

v) A extrema gravidade da actuação do arguido, plasmada nos factos dados como provados e no número de crimes cometidos, na forma como o foram, no longo período em que foram levados a cabo, sem a utilização de preservativo e sendo o arguido portador de HIV, permitem-nos concluir que o arguido tem uma manifesta inclinação criminosa, não se tratando de um delito ocasional, sendo elevada a ilicitude do conjunto dos factos, não podendo ser esquecida que a pena a encontrar em sede de cúmulo há-de ter efeito no comportamento futuro do arguido.

w) Os factos dados como provados apresentam-se numa relação de continuidade, formando um complexo delituoso de acentuada gravidade.

x) O arguido não confessou integralmente os factos nem se mostrou arrependido, não obstante ter abusado sexualmente da menor/jovem durante cerca de 2 anos e 9 meses, sem protecção e sabendo ser portador de HIV, o que demonstra estarmos perante um ilícito global de elevada gravidade, revelador de uma personalidade mal-formada, desprovida de qualquer valor ético, com manifesta propensão para o crime.

y) Tudo isto reflete, inequivocamente, uma personalidade profundamente dissociada do direito e nenhuma atenuante ocorre em seu favor.

z) Entendemos que a pena única a aplicar deve situar-se nos 15 anos de prisão, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.

aa) Mostra-se, assim também, erradamente doseada a pena única aplicada ao condenado.

bb) Foram violados os artigos 40º, 70º e 71º, n.ºs 1 e 2 e 77º, todos do Código Penal.

Pelo exposto, deverá o acórdão recorrido ser revogado, substituindo-se por outro que condene o arguido na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes, e na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o arguido AA, propugnando pela improcedência do mesmo nos seguintes termos:

O recurso interposto pelo MP em concreto está delimitado á determinação da medida da pena relativamente :

a) ao quantum das penas parcelares - 2 (dois) anos de prisão -, quer, quanto,

b) à pena única - 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão - aplicada em sede de cúmulo jurídico.

Entendemos nessa parte e como aliás alegamos em sede de recurso igualmente interposto pelo arguido, e limitado à não concordância com o número de crimes - 441 - pelos quais foi condenado, que esteve bem o tribunal no que concerne à determinação da dosimetria das penas parcelares e igualmente na determinação da pena única em sede de cúmulo jurídico, não merecendo no nosso modesto entendimento qualquer reparo o douto acórdão proferido.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, pronunciou–se tão só quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público, propugnando pela procedência do mesmo referindo que «Concorda-se, assim, na íntegra com o conteúdo do recurso apresentado, que aqui se dá por reproduzido».

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.


*

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


*


II. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

 O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre :

II.i. Do recurso do arguido AA :

1. saber se se verifica no Acórdão recorrido o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal, e com relação à contabilização do número de actuações típicas criminais pelos quais o arguido foi condenado ;

2. saber se pelo tribunal a quo foi violado os princípio do in dubio pro reo.

II.ii. Do recurso do Ministério Público :

3. saber se as medidas concretas das penas parcelares em que o arguido vem condenado se mostram desadequadas por defeito.

4. saber se a medida concreta da pena única em que o arguido vem condenado se mostra desadequada por defeito.


*

Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.

 

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância :

« II. Fundamentação

II.1 Factos provados

1. BB (doravante, BB) nasceu a ../../2005;

2. O arguido AA e a companheira deste, DD, fruto de uma relação de amizade existente com EE, progenitora de BB, passaram a residir na habitação daquela desde setembro de 2019, inicialmente numa casa situada na rua ..., Porto, e, desde data não concretamente apurada do ano de 2020, numa habitação situada na Avenida ..., em ..., Vila Nova de Gaia;

3. (…)

4. Uma vez que os factos se prolongaram ao longo do tempo, BB tinha na altura do início da coabitação 14 anos de idade, mantendo-se tais factos até ao momento em que a mesma já tinha 17 anos de idade;

5. Em datas não concretamente apuradas, mas que se consegue situar desde setembro de 2019, data em que o arguido passou a coabitar com BB, aquele resolveu iniciar um conjunto de condutas, no sentido de se aproveitar sexualmente de BB;

6. Na execução de tal desígnio, o arguido AA aproveitando-se da relação de proximidade que tinha com BB, bem como da sua idade de 14 anos, intitulando-se de “médium" e portador de poderes espirituais, disse a BB que se ela fizesse um pacto com ele, isso iria trazer-lhe coisas boas e que estaria sempre segura;

7. Tal pacto consistia em BB fazer tudo o arguido AA lhe mandasse, o que não sucedendo acarretaria consequências negativas para o seu bem-estar e saúde e da sua progenitora;

8. BB, que na altura tinha 14 anos de idade, aceitou, tendo a “cerimónia” sido realizada no interior da habitação situada na rua ..., Porto, às 15h00, por ser uma hora divina segundo o arguido,

9. e tendo aquela proferido umas frases nas quais se comprometia a obedecer e fazer o que lhe era determinado;

10. Em data não concretamente apurada, mas antes de fevereiro de 2020, após a realização do pacto mencionado no facto 8 e quando BB tinha 14 anos de idade, o arguido AA aproveitando uma situação em que se encontrava sozinho com aquela, disse-lhe que tinha de cumprir com o pacto realizado,

11. que tinha de «fazer amor com ele», significando que tinha de manter relações sexuais com o mesmo;

12. O que, em caso de recusa, levaria a «consequências más»;

13. BB inicialmente recusou-se a fazer a vontade a AA, não lhe dizendo nada;

14. Porém, nos dias seguintes, o arguido foi insistindo todos os dias com BB dizendo que teria de fazer amor consigo;

15. Assim, em dia e hora não concretamente apurados, mas situada em janeiro de 2020, no interior da habitação situada na rua ..., Porto, o arguido AA abordou mais uma vez BB dizendo que teria de praticar relações sexuais com aquele ou aconteceriam coisas más a BB e à sua progenitora;

16. Assim, valendo-se do seu ascendente sobre BB, disse àquela para tirar as calças, o que esta fez, tendo, de seguida, retirado as suas, e no sofá da sala onde habitavam, introduziu o seu pénis ereto na vagina de BB, sem utilização de preservativo, e, através de movimentos ascendentes e descendentes, friccionou-o até ejacular, o que realizou fora da vagina de BB;

17. Assim, dentro da residência em que coabitava com BB, mais concretamente no quarto do arguido AA na casa situada na rua ..., Porto, e no quarto de BB na residência situada na rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, ia ter com a mesma, e introduzia o seu pénis ereto na vagina daquela, e, através de movimentos ascendentes e descendentes, friccionava-o até momento prévio à ejaculação, altura em que retirava o seu pénis da vagina de BB e ejaculava;

18. Após algum tempo, o arguido AA passou a ejacular dentro da vagina de BB;

19. Além disso, em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos 10 vezes, o arguido AA praticou os descritos atos sexuais com BB no interior do veículo automóvel de marca BMW, utilizado por aquele;

20. A partir do dia mencionado no facto 14, até outubro de 2022, momento em que BB revelou à sua progenitora tais acontecimentos, em número de vezes não concretamente apuradas, mas que aconteceram semanalmente, no mínimo, três vezes por semana, tendo, posteriormente, a periodicidade aumentado para quase todos os dias e, por vezes, mais de que uma vez ao dia, o arguido AA, exercendo sempre pressão a BB, foi reiterando a sua conduta de penetração vaginal, não obstante a presença, por vezes, de outras pessoas na habitação;

21. De igual forma, em diversos momentos não concretamente apurados, mas situados dentro daquele lapso temporal, o arguido AA introduzia o seu pénis na boca de BB e, pelo menos três vezes, o arguido colocou a sua boca na vagina de BB;

22. Em outros momentos não concretamente apurados, o arguido AA inseria os seus dedos na vagina de BB, ou pedia a esta que colocasse a mão no seu pénis para que, através de movimentos ascendentes e descendentes, ejaculasse;

23. BB começou a tomar um método contracetivo – pílula – com 15 anos;

24. Para manter as relações sexuais, o arguido AA afirmava sempre a BB que caso o não fizesse lhe iam acontecer coisas más e à sua progenitora, pelo que não poderia contar a ninguém;

25. Dizendo o arguido, AA, que ia dizer à progenitora de BB para a expulsar de casa, como tinha feito com o irmão de BB e que ia acontecer algo de mau para a sua progenitora, mas sem precisar o que seria;

26. De forma a criar um domínio psicológico sobre BB;

(…)

28. Atendendo ao período de tempo referido, o arguido AA praticou, pelo menos, por 441 vezes, atos sexuais de penetração, sexo oral ou de masturbação sobre BB;

29. O arguido AA não usou preservativo em qualquer das situações acima descritas, mesmo sendo portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV);

30. Devido à pressão que era exercida pelo arguido e por estar a fazer coisas contrárias à sua vontade, BB vendo-se sem saída, desesperada e sem poder para contrariar os desmandos de AA, tentou por termo à vida, ingerindo comprimidos, em dia não concretamente apurado, mas no mês de junho de 2022;

31. O arguido AA atuou com o propósito concretizado de, no período compreendido entre 2019 e 2022, manter relações sexuais com BB, com o intuito de satisfazer os seus institutos libidinosos e a sua lascívia, sabendo que a mesma tinha nascido no ano de 2005, e que ao atuar da forma descrita, violava a sua autodeterminação sexual, abusando da sua inexperiência, tirando partido, quer da circunstância de viver com BB, quer do ascendente que tinha sobre a mesma, ao ponto de a convencer que era portador de poderes espirituais que seriam nocivos para a mesma e para a sua progenitora, caso se opusesse às suas imposições;

32. E sabendo ser portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV), e que poderia contagiar BB, o arguido AA praticou as condutas suprarreferidas sem utilização de preservativo;

33. Em todas as ocasiões, o arguido AA atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente,

34. bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida;

Do percurso de vida do arguido, sua condição socioeconómica e antecedentes criminais:

À data dos factos em apreço nestes autos, AA mantinha inserção familiar no núcleo constituído pelo próprio, a companheira, a ofendida e a mãe desta. Estes elementos habitaram na cidade do Porto numa fase inicial, passando posteriormente a viver em ..., Vila Nova de Gaia, cujas habitações estiveram sempre arrendadas em nome da progenitora da aqui ofendida.

Nesse contexto de enquadramento habitacional/familiar, o arguido encontrava-se inativo ao nível profissional, enquanto a companheira exercia funções como empregada de limpeza. Ainda assim, frisa-se que durante um hiato de tempo considerável, os factos pelos quais o arguido se encontra aqui acusado terão ocorrido em contexto de pandemia Covid19, pelo que se debatia com algumas dificuldades de enquadramento laboral, uma vez que exercia a profissão de empresário artístico (organização de espetáculos, luz e som), os quais foram maioritariamente cancelados nesse período.

Apesar deste contexto de ociosidade, os proveitos no seu conjunto onde se inseriam os auferidos pela mãe da aqui ofendida, eram aparentemente suficientes a precaver uma vivência caracterizada por alguma precariedade económica, assegurando desse modo as necessidades básicas e condignas de todos os elementos.

AA debate-se com algumas problemáticas de saúde relevantes, sendo diabético e apresentando problemas de coração, mas para além disso, possui há vários anos diagnóstico de HIV, com acompanhamento no Centro Hospitalar ....

AA apresenta como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade e provém de um agregado familiar de origem, ligado ao ramo da música e espetáculos, tendo o próprio exercido e sustentado ao longo dos anos experiencias de trabalho nesta área, constituindo-se mais tarde empresário em nome individual e efetuado diversos trabalhos como “freelancer”. O agregado cresceu no agregado familiar de origem, com mais 5 irmãos, ainda que os pais se tenham divorciado quando contava apenas 4 anos de idade, assumindo posteriormente a progenitora outros relacionamentos.

Casou com 17 anos (o cônjuge tinha 19), mas só permaneceu assim 1 ano, tendo-se separado e mais tarde divorciado; tem um descendente agora com 37 anos fruto dessa relação, com quem diz não manter contactos. Viria a ter outros relacionamentos afetivos aos quais diz não ter dado particular ênfase, enquadrando a dinâmica relacional com a atual companheira, com quem está desde 1988, como a única que considera verdadeiramente relevante ao longo dos anos.

Presentemente a família continua a expressar suporte ao arguido, sendo que além da inquietação gerada pelo atual processo e aparente resignação face à sua constituição como arguido, não é patente outro impacto negativo decorrente do mesmo.

O arguido continua a não apresentar rendimentos próprios, não obstante, a companheira e a sogra asseguram o seu apoio na atualidade, designadamente através do Rendimento social de Inserção de que a companheira é beneficiária, no valor de 189€, trabalhando ainda em regime de economia informal, como empregada de limpeza. Por sua vez a sogra do arguido beneficia de pensão de sobrevivência no valor de 578€ mês.

O arguido exteriorizou verbalizações de cariz apelativo e até de alguma vitimização e desculpabilização, no sentido da atuação livre e consciente da ofendida, não obstante, sempre que conseguiu descentrar-se da sua situação pessoal e pensar abstratamente acerca da natureza dos factos subjacentes ao presente processo, pareceu-nos evidenciar aparente capacidade reflexiva e crítica, com discurso ajustado ao socialmente expetável no que se refere à censura contra crimes como aqueles de que aqui vem acusado.

Cumpre a atual medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica de modo positivo, permanecendo confinado ao espaço habitacional e evidenciando uma conduta compatível com as obrigações e regras inerentes, adotando paralelamente uma atitude colaborante com este serviço.

O arguido revela carências ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta, sendo premente uma intervenção terapêutica especializada, devendo a mesma corresponder às necessidades criminógenas emergentes, visando uma maior regulação emocional e comportamental e interações que respeitem a liberdade e autodeterminação sexual, fatores fundamentais para a adoção, no futuro, de um comportamento socialmente ajustado.

O arguido não possui qualquer averbamento no seu certificado de registo criminal.

Do pedido de indemnização civil

1. Após a detenção do arguido, a mãe da Ofendida encontrou no quarto do arguido um frasco com medicação indicada para portadores do vírus HIV, tendo entrado em pânico com a hipótese de a sua filha poder estar infetada, atento o facto de o arguido não usar preservativo.

2. A Ofendida ficou extremamente preocupada, angustiada e em pânico com tal possibilidade, tendo dificuldades em dormir nas noites seguintes, tal a preocupação em que estava mergulhada.

3. A Ofendida foi de imediato, a 27.01.2023, a uma consulta médica da Especialidade de Ginecologia, com a Dra. FF, na Casa de Saúde ..., para fazer um exame ginecológico e o despiste de estar infetada com o vírus HIV e/ou ter doenças sexualmente transmissíveis.

4. Fez colheita de citologia, teste de HPV e despiste de doenças sexualmente transmissíveis.

5. Até à saída dos resultados dos exames, a Ofendida sentiu uma grande angústia, ansiedade, preocupação.

6. O estudo das possíveis doenças só ficou parcialmente concluído em 06.02.2023, pelo que entre 27.01.2023 e 06.02.2023 a ofendida viveu na incerteza de saber se estava infectada com HIV ou se tinha outra doença transmissível sexualmente.

7. A Ofendida recebeu o Relatório de Estudo de Biologia Molecular, datado de 01.02.2023, o Relatório de Estudo Citológico datado de 02.02.2023 e o Relatório de Estudo de Biologia Molecular em 06.02.2023, realizados pelo Laboratório de Anatomia Patológica Dra. GG, na Casa de Saúde ....

8. O teste HIV da Ofendida apresentou resultado negativo, tendo, no entanto, os estudos realizados demonstrado que a Ofendida apresenta alterações celulares reactivas associadas com inflamação, bem como resultado positivo de agentes patogénicos causadores de doenças sexualmente transmissíveis.

9. A Ofendida viu a sua intimidade sexual ser esventrada, sentiu desgosto vergonha.

10. Sentiu-se humilhada por ser obrigada a praticar actos sexuais com o arguido, contra a sua vontade.

11. Em virtude do comportamento do arguido, a menor sentiu medo, temeu pela sua integridade física e pela sua vida e dos seus familiares, mais concretamente da sua mãe e irmão.

12. Passou a viver o seu dia a dia tomada de medo, pois perante os pretensos poderes especiais do arguido, enquanto "médium", estava votada a ter que lhe obedecer, sob pena de sofrer consequências terríveis, tais como ser expulsa de casa, ter problemas de saúde ou outros.

13. O medo e o temor que o arguido lhe incutiu, com as ameaças dos efeitos nocivos dos espíritos, condicionaram o comportamento e a liberdade de actuação da Demandante.

14. A vivência do terror a que era sujeita pelos constantes abusos sexuais do arguido, com periodicidade quase diária, levaram a que a menor se isolasse, o que abalou a sua vida social.

15. Toda a atuação do arguido causou um trauma na menor, que vai durar a vida inteira.

16. A Ofendida, devido à pressão que era exercida pelo arguido e por estar a fazer coisas contrárias à sua vontade, vendo-se sem saída, desesperada e sem poder contrariar as exigências do arguido, tentou por termo à vida, ingerindo comprimidos, em junho de 2022.

17. Passou a andar triste e angustiada, quando antes dos abusos de que foi vítima era uma pessoa alegre e bem-disposta.

18. Em consequência da conduta do arguido, a Ofendida teve necessidade de acompanhamento psiquiátrico.

19. A Ofendida teve também necessidade de acompanhamento psicológico, com consultas semanais, com a psicóloga Dra. HH, de que continua a necessitar, agora com frequência quinzenal.

20. A menor continua hoje com o pensamento dominado pelos acontecimentos, que a traumatizaram e continuam a causar sofrimento emocional.

21. Como consequência directa dos abusos sexuais de que foi vítima, a Ofendida teve ainda que suportar vários encargos e realizar várias despesas relacionadas:

a) viu-se obrigada a suportar os custos com consulta de psiquiatria, no valor de €110,00 e com a medicação que lhe foi prescrita para tratamento da depressão que os abusos sexuais de que foi vítima lhe provocaram, de valor não concretamente apurado;

b) teve que suportar as despesas com as consultas de ginecologia, na Casa de Saúde ..., de valor não concretamente apurado;

c) teve que suportar as despesas com os Estudos Citológico e de Biologia Molecular, num total de €22,95;

d) teve que se constituir assistente nos presentes autos no que despendeu a quantia de 102€, quantia essa que não teria despendido caso não tivesse sido vítima dos crimes tidos por provados.


***

II.2 Factos não provados:

- Uma vez que o arguido AA habitava naquela casa com BB, durante um período de tempo superior a 3 anos, era tido como a figura masculina naquele agregado familiar;

- Que na situação relatada em 10 dos factos provados, o arguido tenha dito à ofendida «ninguém dá nada a ninguém sem ter algo em troca»;

- Para manter as relações sexuais, o arguido AA afirmava sempre a BB que se tratava de uma obrigação desta para com aquele, pois «assim como tinha obrigação de ir para a escola, também tinha a obrigação de fazer aquilo», ou seja, praticar condutas de natureza sexual com o arguido;

- Sempre que BB dizia ao arguido que não queria ter relações sexuais com ele, este retorquia «para ir lá com a boca», referindo para a mesma lhe realizar sexo oral;

- Durante o período de tempo em que foi sexualmente abusada, a Ofendida passou muitas noites sem dormir, assustada, não queria que chegasse o dia de amanhã;

- Em consequência dos abusos praticados pelo arguido, a Ofendida vive constantemente atemorizada e sabe que o medo irá ser uma constante na sua vida;

- A menor chora compulsivamente, está num permanente estado de ansiedade e de nervosismo, sem saber se algum dia irá recuperar a tranquilidade e a alegria de viver;

- A ofendida continua com pesadelos à noite, sente-se sobressaltada, inquieta e ansiosa, sempre com receio que o arguido entre pela porta dentro;

- tem temor de andar sozinha na rua, com receio de que o arguido lhe apareça e possa infligir algum mal;

- foi prescrito à ofendida o antidepressivo Citalopram, 10 mg / dia;

- decorridos dois meses, como o estado depressivo da ofendida se mantinha, foi determinado pelo médico o aumento da dose do antidepressivo para o dobro, pelo que a menor passou a tomar a dose diária de 20 mg, que mantém até hoje;

- que a medicação prescrita à ofendida para tratamento da depressão que os abusos sexuais de que foi vítima lhe provocaram, teve um valor de €14,25;

- que as despesas com as consultas de ginecologia, na Casa de Saúde ..., importaram em €25,00.»

b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância :

«II.3 Motivação da decisão de facto.

         A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal.

         O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.

         Tal princípio não é, porém, absoluto, e entre as excepções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.

         Nos crimes sexuais coloca-se sempre com particular ênfase o relevo a atribuir às declarações prestadas pela vítima, sendo certo que normalmente os factos que consubstanciam os crimes deste tipo, não são praticados de molde a serem presenciados por outras pessoas, sendo da experiência comum que os agentes se inibem da prática de condutas suscetíveis de o integrar quando há risco de serem observados por terceiros, não havendo, em regra, testemunhas presenciais dos factos, pelo que as declarações da vítima terão de ser complementadas por elementos circunstanciais que permitirão aferir ou não da credibilidade do declarado.

         O arguido AA assumiu desde logo ter mantido atos sexuais com a ofendida BB com início 3 dias antes de ela fazer 15 anos de idade e até outubro de 2022.

         Afirmou ter efetuado com a BB “um ritual da Santíssima Trindade”, as 15horas da tarde, mas negou que a mesma tivesse sido obrigada a participar nele. Esta oração tinha um terço, uma vela branca e um copo de água.

         Tentou fazer passar a ideia que nas relações mantidas com a ofendida sempre usou preservativo por causa do HIV e que nunca houve penetração, no que foi claramente desmentido pelo depoimento da ofendida como veremos adiante.

         Quanto à frequência de tais relações sexuais indicou que aconteciam 3 vezes por mês no que foi também desmentido pela ofendida que relatou terem as mesmas ocorrido pelo menos 3 vezes por semana e mais para o final, quase todos os dias e mais do que uma vez por dia, como veremos adiante.

         Quando confrontado com a matéria constante do ponto 21 da acusação referiu ter praticado sexo oral 2 vezes com a BB, com preservativo (nesta última parte – utilização de preservativo - foi claramente desmentido pelo depoimento da ofendida como veremos adiante) e assumiu também ter feito sexo oral à BB e ainda ter ocorrido masturbação mútua.

         Referiu não saber que os atos sexuais com menor, por esta consentidos, eram proibidos. Ora, desde logo não se demonstrou que os atos sexuais com a vítima resultassem do seu acordo ou consentimento. Antes pelo contrário, o arguido, para convencer a menor a ter com ele atos sexuais, exerceu uma determinada “coação” perante ela anunciando que algo de mal lhe podia acontecer ou à sua mãe, atentos os poderes de “médium” que este afirmava ser dotado. Acresce que a mesma ficou com sequelas psicológicas sérias na sequência de tais atos que não teriam ocorrido caso se tratasse de atos queridos ou consentidos pela mesma.

         Por outro lado, qualquer pessoa, qualquer homem médio, sabe que os atos sexuais com menores são proibidos e punidos pela lei penal. O arguido com a idade que tem e pai que é não desconhecia nem podia desconhecer tal proibição.

         Além do mais, nos tempos que correm, a divulgação frequente através da comunicação social, especialmente nos canais de televisão, de casos de abusos sexuais a menores, contribuem ainda para reforçar o conhecimento da ilicitude de tal conduta.

         O Tribunal alicerçou a sua convicção na conjugação dos seguintes meios de prova:

-       no conteúdo das declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB onde esta jovem relatou de forma séria, convicta e segura os factos ocorridos tidos por provados. Na verdade, a mesma descreveu, em suma, que o arguido e a mulher, DD, foram morar para sua casa no Porto em setembro de 2019, tinha ela 14 anos de idade.

         A dada altura o arguido começou uma conversa sobre ser médium e “ter poderes”, falava com espíritos e que se fizesse um pacto com ele as “entidades” iam ajudá-la na vida. Num dia, quando estavam sozinhos em casa, pelas 15h00 – a hora divina segundo ele, ele pôs 4 velas no chão da sala e disse para se sentar no meio para fazerem um pacto e disse que tinha que aceitar porque senão podiam acontecer coisas más a si ou à sua família. Ele disse umas orações que tinha que repetir e que tinha de obedecer ao pacto. Como confiava nele e não achava que fosse nada de mal, acedeu ao que lhe pediu.

         Quando estava quase a fazer 15 anos, estavam no carro e ele começou a dizer que tinha que fazer amor com ele, porque tinha que ser, era o pacto que tinham feito. Nessa altura não disse nada. Nos dias seguintes insistiu consigo que tinha que fazer amor com ele até que chegou a uma altura, uns dias depois da primeira abordagem, numa altura que ainda não tinha feito os 15 anos de idade, e em que estavam sozinhos em casa em que foi abordada novamente pelo arguido pois tinha que fazer amor com ele, “obrigou-a a isso”, disse para se deitar no sofá da sala e ele tirou-lhe as calças, despiu-se todo e introduziu o pénis na sua vagina, sem preservativo, ejaculando “fora, em cima de si”.

         Esta foi a sua primeira experiência sexual.

         Após esta primeira situação repetiram-se essas relações sexuais com uma frequência de três vezes por semana até que, mais recentemente, passaram a ser diariamente e, às vezes, mais do que uma vez por dia. A partir de dada altura o arguido passou a ejacular dentro da sua vagina.

         Relativamente a outros atos de natureza sexual, esclareceu que, para além do coito vaginal, com menos frequência, havia sexo oral e masturbação dos dois.

         Estes atos ocorriam, a maioria das vezes, quando estavam sozinhos em casa, mas chegaram a ocorrer também com pessoas em casa e tanto se davam no quarto do arguido como no seu.

         Explicou que alguns atos de natureza sexual também aconteceram fora de casa, dentro do carro dele de marca BMW, pelo menos umas dez vezes.

         Ele dizia que tinha de ser, que não tinha escolha, porque era um pacto e não podia quebrá-lo e ameaçava que senão o fizesse, a expulsava de casa e que lhe acontecia alguma coisa de mal a si ou à sua mãe. Também lhe dizia que não podia contar nada a ninguém, que era um segredo deles.

         Em junho de 2022 tentou cometer suicídio, o qual foi motivado por estes factos tendo, para o efeito, tomado comprimidos. A sua mãe questionou-o pelas razões de tal ato e nessa altura respondeu-lhe apenas que “uma coisa má” tinha acontecido.

         O último ato sexual terá ocorrido em outubro de 2022, quando chegou a um limite e acabou por contar o que estava a acontecer à sua mãe.

         Referiu ter tido acompanhamento psicológico para melhor lidar com estes acontecimentos.

         Mais indicou ter começado a tomar anticoncecionais com 15 anos de idade, ter namorado há um ano e cinco meses e que o arguido chegou a proibir o seu namorado de ir a sua casa.

         Estas declarações de BB resultaram corroboradas pelos demais elementos de prova, designadamente:

-        no teor do relatório médico-legal de Psicologia realizado pelo INML de fls. 248 a 258, de onde decorre com interesse à boa decisão da causa, que a ofendida: (…) Foi capaz de produzir um relato descritivo na forma como reconstituiu os atos, as localizações, os intervenientes, as interações verbais e as reações dos envolvidos, não revelando indicadores de fantasia, mentira e/ou sugestionabilidade.

         Os relatos da examinanda reúnem alguns critérios frequentemente associados a um aumento da credibilidade do testemunho (e.g., CBCA, 2006), designadamente: foi capaz de narrar, de forma clara, os eventos ocorridos, fazendo referência a pistas contextuais; as declarações prestadas foram no seu conjunto coerentes, lógicas, plausíveis, admissíveis, com caráter realista, pese embora alguma elaboração inestruturada (os elementos factuais do caso foram acompanhados de digressões temporais e a sequência de acontecimentos não se deu por ordem cronológica, no entanto, conseguimos unir os fragmentos da declaração e dar-lhe uma consistência lógica). Contextualizou os alegados eventos no tempo e no espaço, fornecendo alguns detalhes periféricos e admitiu lapsos de memória. Manifestou afeto (e.g., reatividade emocional, inibição, desconforto) congruente com a organização comportamental e o seu discurso. Em termos de especificidades do conteúdo narrado, fez referência ao seu estado emocional antes e após os alegados factos.

(…)  Verificámos ainda outros indicadores comummente elencados por vítimas de abuso sexual que dizem respeito à existência de sentimentos ambivalentes aos alegados agressores (e.g., uma pessoa por quem parecia nutrir amizade e, concomitantemente, algum receio e confusão psicoemocional face a este).

        Também, a avaliação realizada sugeriu a presença na examinanda de sintomas psicológicos, provavelmente na sequência dos alegados abusos, ou seja, mais especificamente, a resposta aos alegados acontecimentos parece envolver a (re)experienciação do acontecimento sob a forma de pesadelos ou pensamentos recorrentes, assim como um aumento da reatividade fisiológica durante a exposição a estímulos que simbolizam ou se assemelham a aspetos dos alegados eventos. A BB apresentava ainda, à data deste exame, sintomas depressivos e ansiógenos, dificuldades de atenção e concentração, desconfiança interpessoal e somatização. A examinanda evidenciava também sentimentos de inadequação pessoal, submissão, baixa autoconfiança.

         Todos estes sinais e sintomas poderão estar associados aos alegados eventos e ao desenvolvimento do presente processo em apreço, sugerindo causar desajustamento psicológico significativo. De acordo com a literatura existente, este tipo de sintomatologia não é exclusivo de situações similares às relatadas pela avaliada, mas é frequentemente observado em vítimas de abuso sexual, pelo que não deve ser ignorado.

         Face a tudo o exposto, admitimos a necessidade de continuar a providenciar à examinanda um acompanhamento psicológico especializado sistemático, de modo a que esta seja ajudada a integrar as alegadas experiências potencialmente traumáticas que deram origem ao presente processo;

- no teor do Relatório de Estudo Citológico de fls. 262;

- no teor do Relatório de Estudo de Biologia Molecular, datado de 01-02-2023 de fls. 263 e 387;

- no teor do Relatório de Estudo de Biologia Molecular, datado de 06-02-2023 de fls. 264 e 388v.º;

- no teor da informação clinica de fls. 265 e 416;

- no teor da fatura de psiquiatria de fls. 389 no valor de €110;

- no teor da fatura de exame citológico de fls. 389v.º no valor de €22,95;

- no teor da informação clinica de fls. 229 quanto ao facto de o arguido apresentar infeção por HIV desde 1999;

- no depoimento escorreito de EE, mãe da vítima, a qual relatou que era amiga da companheira do arguido, de nome DD e que fazia limpezas em sua casa. A dada altura, ela começou a ter dificuldades económicas e decidiu ajudá-la cedendo o quarto na sua casa no Porto, na Rua ... para onde ela foi com o AA mediante um acordo em que eles só tinham que pagar a alimentação. Mais tarde, vendeu a casa e arranjaram um apartamento em ..., na Avenida ..., onde dividiam a renda e as despesas.

         O arguido ficava em casa habitualmente e os seus filhos iam às aulas e voltavam para casa. A sua filha e o arguido ficavam sozinhos de manhã ao fim de semana, por exemplo.

         O AA dizia-se médium e fez um ritual para tirar os “espíritos”, o que aconteceu duas vezes. Ele dizia que falava com os mortos e que ela precisava de sair da casa do Porto. Dizia que as pessoas mortas incorporavam no corpo da BB. Dizia também que os amigos dela também eram todos interesseiros e que tinha que se afastar deles tendo inclusive aconselhado o seu filho a sair de casa, o que veio a ocorrer indo aquele residir com o pai.

         Continuou o seu depoimento indicando que a sua filha tinha um namorado com 13/14 anos – o II e mais tarde começou a namorar com o CC. Mais para o final da convivência em sua casa, o arguido AA começou a falar mal do CC e a dizer para ele não ir lá a casa.

         Assegurou que ela nunca teve relações sexuais anteriormente aos atos sexuais praticados pelo arguido pois com 13/14 anos de idade foi com ela ao ginecologista e ela era virgem.

         Em junho de 2022 a sua filha tentou suicidar-se tomando comprimidos e disse-lhe que tinha uma coisa muito grave para lhe contar, mas não lhe contou logo. A partir daí, ela teve uma consulta com um psiquiatra e foi medicada. Depois foi seguida através do médico de família e pela psicóloga, Dr.ª HH.

         A sua filha justificou que o arguido a ameaçava e que não podia contar nada se não podia haver mal económico e de saúde.

         Descobriu que o arguido tinha HIV porque deu com uns comprimidos para o seu tratamento em casa. Depois disse à sua filha e ela ficou preocupada porque as relações sexuais com ele eram com penetração. A BB não ficou infetada com HIV mas teve que fazer um tratamento ginecológico.

         A BB fez os exames, não dormia bem e ficou muito receosa com a possibilidade de poder estar infetada.

         Mais indicou que a sua filha não era menina de inventar histórias e sempre falou verdade mantendo um comportamento escolar exemplar. Agora é uma menina menos alegre.

         Por último transmitiu que a BB teve outra tentativa de suicídio com comprimidos há duas semanas atrás e está à espera de consulta de psiquiatria no ..., não podendo o tribunal, contudo, com a segurança exigível, associar este último episódio aos factos aqui em apreço;

-        no depoimento de CC, namorado da BB desde 10.09.2022, o qual referiu que já tinham namorado antes em 2015 quando ela tinha 13 a 14 anos sendo que nessa altura não tiveram relações sexuais. As relações sexuais entre eles começaram desta última vez e estranhou da primeira vez que estiveram juntos porque lhe pareceu que ela tinha já experiência.

         Começou a ir a casa dela ainda como amigo, mas com maior frequência depois de terem começado a namorar em setembro de 2022. Mais à frente, começou a notar que o arguido AA não o cumprimentava. A BB contou-lhe que o AA já não o queria lá em casa.

Recordou-se de uma vez ter estado no quarto com a BB e a mãe dela disse para saírem por causa do AA.

         Quando voltou a falar com ela notou-a mais triste e ela contou-lhe que tinha um problema grave em casa mas que não podia contar. Ela tentou mesmo suicidar-se, disse que estava farta de tudo. No dia 6.11.2022 contou-lhe tudo o que aconteceu. Sabe também que a BB passou a tomar medicação por causa destes factos;

-        no depoimento de JJ, colega de trabalho da mãe da BB desde julho de 2021, a qual relatou frequentar a casa delas e constatar que a BB é uma menina muito triste, que tentou matar-se duas vezes e é depressiva. Isola-se muito e tem ataques de choro. Ela toma medicação por causa disto.

         A EE contou-lhe também que descobriu que ele tinha SIDA pois descobriu comprimidos lá em casa;

-        no depoimento de KK, que viveu em união de facto com EE, com a ofendida e irmão, até 2019. Referiu ter voltado a ter contacto com a família em novembro de 2022.

         Descreveu a BB anteriormente como brincalhona e bem-disposta e agora encontrou-a triste, fria e com medo de homens mais velhos. Quase não fala e isola-se no quarto.

         Sabe que ela tentou suicidar-se e voltou há pouco tempo a fazê-lo sendo acompanhada em psicologia;

-        no depoimento da Dra. HH, psicóloga que trabalha com a APAV e que nesse contexto que foi chamada a acompanhar a BB, referiu ter começado a seguir a ofendida em novembro de 2022 com consultas de periodicidades quinzenais ou semanais conforme a necessidade. Encontrou-a depressiva e ansiosa. Apresentava confusão emocional, ansiosidade e hipervigilância. Tinha também pesadelos numa fase inicial

         Explicou ainda que neste tipo de casos, as consequências surgem a curto, médio e longo prazo, no foro psicológico e na dinâmica inter-relacional, em estabelecer relações de confiança.

Prevê manter-se o acompanhamento estando agora as consultas agendadas com frequência quinzenal.

         Quanto à ausência de averbamentos no certificado de registo criminal do arguido, o seu CRC junto aos autos a fls. 463v.º.

         Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, valorou-se o teor do seu relatório social junto aos autos a fls. 467 a 469.

         Os factos não provados resultam da ausência de mobilização probatória bastante suscetível de convencer o Tribunal da sua verificação.   »

c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância, e na parte que em particular releva para a presente decisão :

«(…)

         Quanto ao número de crimes imputados ao arguido:

         Face à natureza da criminalidade aqui em causa e por atentar contra bens jurídicos eminentemente pessoais, não é possível concluir-se pela a existência de um crime continuado (artigo 30.º, número 3 do Código Penal).

         Com a 26ª alteração ao Código Penal, introduzida pela Lei nº 40/2010, de 3 de setembro, o nº 3 do artº 30º do cód. penal, passou a estabelecer: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”. Com esta alteração, que suprimiu a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, pôs-se definitivamente termo à figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas (neste sentido, o Ac. TRL de 22-05-2019, disponível em www.dgsi.pt).

         De igual forma, não é possível subsumir tal realidade ao crime de trato sucessivo, como vem entendendo a jurisprudência mais recente a recusar tal interpretação de forma clara – entre outros, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-05-2021, processo n.º 427/18.1JACBR.C1.S1, relator Sénio Alves, disponível em www.dgsi.pt.

         Por conseguinte, cada conduta do arguido que seja subsumível ao tipo legal de crime em apreço, deverá ser sancionada em concurso efetivo de crimes.

         Acontece que não se mostrou possível concretizar especificamente o número de vezes que aconteceu essa prática reiterada ao longo do tempo. No entanto, referiu a vítima BB que as mesmas aconteciam com uma frequência de, pelo menos, três vezes por semana, tendo-se iniciado em data não concretamente apurada, mas pelo menos em janeiro de 2020 e se prolongado até à última semana de outubro de 2022. Chegando mesmo num crescendo a passar a ser mais frequente, às vezes, ocorrendo mais de que uma vez por dia.

         Assim, por razões de segurança jurídica, do princípio da legalidade e da defesa dos direitos do arguido, deve ser tida por provada a prática de tais ilícitos, pelo menos, por três vezes por semana. Nesse sentido, apura-se que no ano de 2020, tal conduta se prolongou durante 52 semanas; no caso de 2021, durante as 52 semanas; e durante o ano de 2022, durante 43 semanas. Em suma, face à impossibilidade de especificar o número de vezes que ocorreram tais práticas, mas existindo a referência de que, pelo menos, ocorriam três vezes por semana, o arguido praticou 441 crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, nos termos do artigo 172.º, número 1, alínea b) do Código Penal.

         Na verdade, o arguido AA praticou, pelo menos, por 441 vezes, atos sexuais de penetração, sexo oral ou de masturbação sobre a ofendida BB.

            (…) »

d. É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso :

«III.2 Da escolha e medida da pena.

         O crime de abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punível pelos arts. 172º, nº 1 e 177º, nºs 1 al. b) e 3 do Código Penal, é punível com pena de prisão de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses e ainda, nos termos do disposto no art. 69º-B nº 2 do Código Penal, com a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos e, nos termos do art. 69º-C nº 2 do Código Penal, com a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos.

         Tendo em conta o princípio geral fornecido pelos arts. 40º e 71º e a enumeração exemplificativamente contida no art. 71º do Código Penal deverá a pena ser concretamente determinada dentro da moldura legal fornecida, funcionando a culpa como limite inultrapassável e as exigências da prevenção geral e especial como vetores determinantes da medida a aplicar.

         O modelo mais adequado de determinação da pena é, pois, aquele que comete à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo corresponde às exigências de defesa do ordenamento jurídico; e, por último, à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente (Cfr. Figueiredo Dias Consequências Jurídicas do Crime, p. 114 e ss.).

         Na determinação da medida concreta da pena deverão ser consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das exigências concretas de culpa e de prevenção.

         No caso em apreço há que ponderar que a ressonância ética da violação do bem jurídico protegido pelo art. 172º do Código Penal que se manifesta com premência. As exigências de prevenção geral são, pois, elevadas em virtude da reação, hoje prementemente reclamada pela sociedade, de resposta a situações como a sob análise, sobretudo em face do aumento dos crimes de natureza sexual e, por consequência, da necessidade igualmente sentida de resposta a crimes que abalam fortemente o bem jurídico tutelado pelas normas em apreço.

         O arguido é primário mas revela carências ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta manifestadas pela sua auto-desresponsabilização exprimidas, para além do mais, nas suas declarações prestadas na audiência de julgamento. Na verdade, começou logo por dizer que os atos sexuais praticados foram consentidos pela menor e que não sabia que tal era proibido por lei, o que não corresponde à verdade. Assim, consideramos as exigências de prevenção especial como medianas.

Continuando na tarefa da determinação da medida da pena atentemos agora nos fatores mencionados no nº 2 do art. 71º do Código Penal.

         No que se reporta aos fatores concretos da medida da pena concernentes à execução do facto e denunciadores da gravidade da violação jurídica cometida, importa valorar, ao nível da espécie e modo de execução do facto e suas consequências, o facto do arguido não ter hesitado em abordar a menor com o engodo de ter poderes/ser médium, tendo praticado com ela e sobre ela diferentes atos sexuais, designadamente de cópula completa sendo portador de HIV e não usando preservativo.

         A atuação do arguido desdobrou-se em condutas que tiveram lugar no período situado entre janeiro de 2020 e outubro de 2022, sempre insensível aos sentimentos desta com quem vivia, ponderando-se ainda as consequências graves que dos seus atos advieram para a ofendida, designadamente para a saúde, tendo tentado inclusive o suicídio.

         A ilicitude dos factos é mediana, face às demonstradas circunstâncias da atuação do arguido que, dentro do quadro dos tipos legais que se pune, não sendo despiciendas, não assumem uma extrema gravidade.

         O arguido atuou em qualquer uma das situações que se aprecia com dolo direto.

         Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, verificamos que o mesmo tem hábitos de trabalho embora com parcos rendimentos e beneficia de apoio familiar. Debate-se com algumas problemáticas de saúde relevantes, sendo diabético e apresentando problemas de coração e possui há vários anos diagnóstico de HIV.

           

         Assim, ponderando os elementos atendíveis e disponíveis nos autos, afigura-se a este Tribunal adequada a aplicação ao arguido, por cada um dos crimes praticados, a pena de prisão de 2 (dois) anos e nos termos do disposto no art. 69º-B, nº 2 e 69º-C nº 2 as penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 6 (seis) anos e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 6 (seis) anos.

           

         Estabelece a lei penal que, quando alguém cometer vários crimes antes de haver transitado em julgado a condenação por qualquer deles, será condenado numa pena única.

         Na medida da pena concreta são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77º n.º 1 do Código Penal).

         A pena a aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes e o limite mínimo a mais elevada das penas em concurso.

         Apelando, pois, ao critério constante do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal, verifica-se - no que concerne às penas principais - que a pena abstratamente aplicável aos crimes em concurso praticados pelo arguido tem como limite máximo 25 (vinte e cinco) anos de prisão (por força da imposição do limite máximo de 25 anos decorrente do art. 77º, n.º 2 do C.Penal) e como limite mínimo 2 (dois) anos de prisão.

         Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente. Por conseguinte, razões que se prendem com as exigências da culpa e da prevenção, sobretudo da prevenção especial, ao nível das finalidades da punição, estão na base do regime constante dos artigos 77.º e 78.º, por o mesmo impor uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente.

         Importante para a determinação concreta da pena única será, por isso, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou do tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada em factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos.

         Face ao exposto há que considerar os seguintes aspetos:

-        A natureza, gravidade e quantidade das ilicitudes praticadas, e o longo período de tempo em que ocorreram: o arguido praticou 441 crimes de abuso sexual agravados, no mesmo contexto de coabitação, com factos que se prolongaram entre janeiro de 2020 e outubro de 2022;

-        O modo de vida do arguido: O arguido não tem antecedentes criminais, tem hábitos de trabalho e beneficia de apoio familiar;

-        Há ainda que atender às fortes exigências de prevenção geral pela confiança comunitária no seu ordenamento jurídico através da reposição contrafáctica das normas violadas, as medianas exigências de prevenção especial e a forte intensidade da culpa do arguido.

         Face ao exposto, tudo ponderado julga-se adequado aplicar ao arguido a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

         No que concerne às penas acessórias estas visam, em primeira linha, visa prevenir a lesão de bens e interesses que a norma que prevê o crime perpetrado pretende tutelar.

         Assim, considerando os particulares contornos da factualidade assente cremos que eles transmitem um particular “conteúdo de censura do facto” com ligação à culpa do arguido que nos permite, nesta situação concreta, graduar cada uma das penas únicas acessórias em 10 anos.  »

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.

II.i. DO RECURSO DO ARGUIDO AA.

1. De saber se se verifica no Acórdão recorrido o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal, e com relação à contabilização do número de actuações típicas criminais pelos quais o arguido foi condenado.

      A primeira – e substancial – questão suscitada pelo recorrente/arguido AA prende–se com a impugnação da decisão da matéria de facto assente em sede de acórdão recorrido, no que em concreto respeita à quantificação do número de actuações típicas que o tribunal a quo considerou haverem sido levadas a cabo pelo arguido e que consubstanciaram, a jusante, outros tantos crimes de abuso sexual pelos quais vem condenado.

      Assim, e em síntese, invoca o recorrente padecer o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova, tal como previsto no art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal, pois que considera provada a ocorrência, no período temporal decorrido entre Janeiro de 2020 e Outubro de 2022, de 441 actuações de facto pelas quais o arguido teria praticado o similar número de crimes de abuso sexual agravado sobre a pessoa da ofendida BB, resultando da fundamentação do mesmo acórdão que o tribunal a quo chegou a tal quantificação através de uma simples operação matemática fundada exclusivamente nas declarações da ofendida, não considerando nessa determinação os contextos em que os factos decorreram, e que também se mostram expressamente consignados no texto do acórdão.

Como é consabido, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas :

– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal,

– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.

Do que aqui se cuida, por via da impugnação do recorrente, é da aludida primeira vertente, em que estamos perante a arguição de um dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º.

Estabelece, assim, este art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :

a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) o erro notório na apreciação da prova.

      Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, em ‘Código de Processo Penal Anotado’, 10ª ed., pág. 729 ; Germano Marques da Silva, em ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª ed., pág. 339 ; ou ainda Simas Santos e Leal Henriques, em ‘Recursos em Processo Penal’, 6.ª ed., pág. 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.

Assumem–se, pois, como erros a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.

Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que, por isso, não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado.

Atalhando caminho para quanto aqui se mostra invocado – e sendo certo, adiante–se, não se divisar na decisão recorrida qualquer um dos dois outros vícios ali elencados –, temos que o erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal) se verifica quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em processo penal”, 5.ª edição, pág. 61 e seguintes).

No caso do presente recurso, e como se vinha dizendo, o recorrente/arguido sustenta que o acórdão recorrido considera assente que, no período temporal decorrido entre Janeiro de 2020 e Outubro de 2022, pelo arguido foram levadas a cabo 441 actuações de abuso sexual sobre a pessoa da ofendida BB ; porém, resulta outrossim da fundamentação do mesmo acórdão que o tribunal chegou a tal quantificação através de uma operação matemática fundada nas declarações da ofendida, operação essa que desconsiderou os contextos em que os factos decorreram, e que também se mostram consignados no acórdão.

Ora, alega, face a uma tal contextualização, decorrente de circunstâncias de facto também dadas por provadas – e a que o recorrente alude –, nenhum homem de formação média, e usando a lógica mais elementar, consideraria o indicado número de actuações (441) como possível. E, sendo assim, entende o recorrente que o tribunal condenou com erro notório na apreciação da prova ao determinar tal número de actuações – e, assim, de crimes.

Assim, propugna ainda, deveria quanto muito o acórdão ter considerado haver apenas ocorrido o número de actuações que resulta da confissão do arguido, expressa também no texto do acórdão – isto é, tendo em conta uma admitida média de 3 vezes por mês, e considerando o período de tempo em causa, teríamos um total de 96 actuações (e correspondentes crimes).

Como já acima liminarmente se enunciou, o aqui invocado vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6ª Ed., pág. 74).

Esta interpretação, para além acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o recente Acórdão do S.T.J. de 09/03/2023 (1368/20.8JABRG.G1.S1)[[3]], «O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça».

Não obstante, e como desde logo adverte o Acórdão do S.T.J. de 23/09/2010 (proc. 427/08.0TBSTB.E1.S2)[[4]], «O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».

Ou seja, não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

        

      Pois bem, apreciada a pretensão nesta parte formulada pelo recorrente/arguido, crê–se que, tendo em conta as considerações acabadas de explanar, a mesma não pode merecer acolhimento.

      O ponto fulcral da pretensão recursória nesta parte é, como vimos, a incompatibilidade, avaliada à luz das regras da lógica e da experiência, entre a quantificação de 441 actos de abuso sexual (concretizados pelo arguido por uma das várias formas de execução de que a matéria de facto provada dá nota – isto é, sejam actos de penetração vaginal com o pénis ou com os dedos, sejam actos de masturbação ao arguido, ou ainda actos de sexo oral), e as circunstâncias – a tal contextualização de que fala o recorrente – de facto em que tais factos teriam ocorrido.

      Assim, apela em especial o arguido aos seguintes aspectos que, a terem sido adequadamente ponderados, tornariam inviável logicamente aquela quantificação. :

      Assim, começa por invocar, em conformidade com a matéria de facto provada, que no período aqui em causa, a ofendida viveu sempre na mesma casa em conjunto com a sua mãe, com o arguido e com a companheira deste, ocorrendo os actos de natureza sexual dentro da residência em que todos coabitavam – no quarto do arguido e no quarto da ofendida –, e, por vezes, no interior do veículo automóvel pertencente ao arguido. Acresce que o período de tempo considerado inclui o da chamada pandemia Covid.

      Entende o recorrente que nenhum homem de formação média e de acordo com a lógica mais elementar e as regras comuns, aceitaria ser possível ocorrerem actos sexuais 3 vezes por semana – num crescendo até mais do que uma vez por dia, como resulta da matéria de facto provada –, numa casa habitada por 4 pessoas, e na presença destas, seja pelos horários comuns dos hábitos dos residentes, seja até por via dos sucessivos confinamentos obrigatórios decorrentes das medidas governamentais decorrentes do Estado de Emergência decretado em Março de 2020, e sucessivamente prolongado até Abril de 2021.

      Tal inviabilidade lógica decorre ainda, adita, das circunstâncias de a ofendida haver começado a namorar em Setembro de 2022, tendo relações sexuais com o namorado, e de o arguido se debater com prolemas de saúde (diabetes e insuficiência cardíaca), tendo ademais, à data, 59 anos de idade, pelo que «não estava na flor da idade nem teria até por motivos de saúde a capacidade sexual para o número de atos» tidos por provados.

      Estamos em presença, sem dúvida, de um conjunto de circunstâncias que, nos termos alegados, directamente reportariam a uma maior dificuldade de o arguido levar a cabo aqueles actos sexuais «pelo menos três vezes por semana» nos termos dados como assentes. Na verdade, ocorrendo os actos maioritariamente numa casa (rectius, duas sucessivas, conforme se mostra assente) onde habitavam mais pessoas para além de arguido e ofendida, e no contingente período em causa, a prática de tais actos sem que os mesmos fosse detectados por terceiros mostra–se à partida mais exigente em termos da respectiva e imprescindível reserva ao conhecimento de arguido e ofendida.

      É, porém, isto suficiente para que se esteja perante uma situação de erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal?

      Crê–se que não, pois que, atentos os termos da decisão recorrida, deverá antes entender–se que a conclusão do tribunal a quo no que tange a esta concreta quantificação de actos não determina um juízo de absoluta irrazoabilidade e crítica ofensa das regras da lógica e da experiência comum, que imponha a alteração propugnada pelo recorrente.

        

Não pode desde logo deixar de se assinalar que decorre também da motivação da decisão sobre a matéria de facto exarada no acórdão recorrido – decorrendo, aliás, isso mesmo de quanto expresso pelo ora recorrente –, que em qualquer caso, e de acordo com a confissão parcial do próprio arguido, sempre aquela contextualização e circunstancialismo dificultador dos propósitos típicos criminais do arguido, não teria inibido a respectiva prática «três vezes por mês» (num total de 96 actuações ao longo do período em causa).

      É certo que três vezes por mês não é o mesmo que três vezes por semana – porém, afigura–se evidente (diríamos lógico) que, para efeitos de logística inerente à ocultação dos factos em causa, os procedimentos a levar a cabo pelo arguido teriam de ser precisamente os mesmos e com o mesmo grau de eficácia.

Sendo que, cumpre também nesta sequência assinalar que, como também decorre da fundamentação de facto do acórdão recorrido e respectiva motivação, os factos em causa ocorriam muitas vezes quando não estava mais ninguém em casa.

      Depois, não pode ignorar–se que, como já se assinalou, os actos levados a cabo pelo arguido não assumiam sempre a mesma natureza. Na verdade, aquilo que o tribunal considera assente é que, pelo menos três vezes por semana, o arguido levava a cabo sobre a pessoa da ofendida actos que podiam ser de coito vaginal, mas também podiam ser de introdução dos dedos na vagina daquela, ou actos de masturbação do arguido pela mesma.

      Donde, há que dizê–lo, nomeadamente em termos de discrição e, principalmente – mas na mesma perspectiva –, de duração temporal de cada uma dessas actuações, estamos perante situações que se revelam distintas, de acordo também com regras de normalidade.

      Acresce que, conforme resulta da matéria de facto provada em sede de acórdão (cfr. nomeadamente pontos 24. a 26.), o arguido conseguiu, durante o período em causa, criar uma situação de domínio psicológico sobre a ofendida, logrando convencê–la de que, caso a mesma não praticasse aqueles actos sexuais com ele, lhe iam acontecer coisas más e à sua progenitora, pelo que não poderia contar a ninguém, chegando a dizer–lhe que, caso assim não procedesse, «ia dizer à progenitora de BB para a expulsar de casa, como tinha feito com o irmão de BB e que ia acontecer algo de mau para a sua progenitora».

      Assim, estamos a falar de uma ofendida com entre 14 a 15 anos e de um arguido que se intitulava «de “médium" e portador de poderes espirituais» que disse à mesma ofendida «que se ela fizesse um pacto com ele, isso iria trazer-lhe coisas boas e que estaria sempre segura», o que «BB, que na altura tinha 14 anos de idade, aceitou, tendo a “cerimónia” sido realizada no interior da habitação … às 15h00, por ser uma hora divina segundo o arguido», ocasião em que a ofendida proferiu «umas frases nas quais se comprometia a obedecer e fazer o que lhe era determinado» – cfr. pontos 6., 8. e 9. da matéria de facto provada.

      Perante tal circunstancialismo, e o ascendente psicológico e situação de temor assim criados pelo arguido, torna–se compreensível que da parte da ofendida tenha havido uma “coagida colaboração” silenciosa na ocultação dos actos levados a cabo pelo arguido, nomeadamente aqueles ocorridos no interior da habitação – sendo que, não deixa de se realçar, nem todos o foram nesse local, tendo alguns ocorrido no veículo do arguido, portanto, fora sequer do risco de presença de terceiros.

      Mais se dirá que o apelo às contingências derivadas do decretamento do estado de emergência por via da pandemia Covid, apenas parcialmente aqui releva, pois que, como aliás refere o recorrente, tal situação, na sua forma de mais acentuando constrangimento de movimentação e circulação de pessoas, decorreu apenas in limine até Abril de 2021, estendendo–se o período dos factos em causa nos autos até Outubro de 2022.

        

Precisamente o mês de Outubro de 2022 é aquele imediatamente subsequente ao início da relação de namoro da ofendida BB, donde, esse relacionamento, a que o arguido também apela para sustentar o erro do tribunal, será circunstância que, pelo contrário, só robustece a lógica da sua decisão – pois que foi logo após começar a namorar que a ofendida, como resulta evidenciado pelo teor expresso da fundamentação e motivação de facto em sede de acórdão, não aguentou mais e denunciou a situação de abusos do arguido.

É, pois, verdade que decorre da lógica intrínseca da fundamentação de facto da decisão recorrida, que tal relação de namoro poderá ter sido um obstáculo à prática dos actos pelo arguido – mas não, de todo, no sentido e na perspectiva que este alega em sede do presente recurso, e muito menos com o resultado aí propugnado.

Finalmente, uma palavra para o apelo do arguido à sua alegadamente provecta idade, e aos seus problemas de saúde.

Para referir, como primeira nota, que labora desde logo o recorrente num equívoco quando refere que o arguido tinha 59 anos à data dos factos.

Não tinha : tendo nascido em Maio de 1968, tinha sim entre 51 e 53 anos de idade.

Ora, ignoram–se os critérios subjectivos em que o recorrente assenta a asserção de que alguém com 51 para 53 anos não está «na flor da idade». Mas, seja como for, não se revela desconforme com as regras da lógica e da experiência (pelo menos a comum) concluir que, para uma pessoa (um homem, no caso) média, aquela idade do arguido não seria obstáculo à prática dos actos de natureza sexual aqui em causa – tanto mais que, como se disse, não revestiam sempre a mesma natureza fisiologicamente mais exigente.

O mesmo se dirá relativamente aos seus problemas de saúde, cuja relação com a inibição de tal prática não consubstancia qualquer inevitabilidade, sempre em termos de aquilatação das regras da lógica e da experiência.

      Aqui chegados, e percorridos os pontos fundamentais invocados pelo arguido como sustentando a contextualização dos factos que teria sido desconsiderada, ao arrepio da lógica, pelo tribunal recorrido, conclui–se que a alagada inviabilidade de se considerar a materialidade fáctica vertida em sede de acórdão no que à contabilização de actuações típicas criminais diz respeito, assenta afinal na mera convicção subjectiva do recorrente de que as coisas poderão ter alternativamente ocorrido de uma forma contabilisticamente menos acentuada – pois que, em boa verdade, o recorrente tão apenas propõe a substituição da «operação matemática fundada exclusivamente nas declarações da ofendida», por uma, afinal, similar «operação matemática», mas fundada nas suas próprias declarações.

      Contudo, essa alternativa não se impõe como ostensiva, muito menos quando o momento é o de descortinar no texto da decisão recorrida a existência de um erro notório na apreciação da prova, não permitindo assim concluir que a conclusão revelada pelo tribunal a quo se revela manifestamente infundada, implausível, ou notoriamente errada.

      As supra aludidas circunstâncias indiciárias, sendo pertinentes, não são contudo robustas o suficiente para que, face ao teor da decisão recorrida, se possa afirmar estarmos perante uma distorção de ordem lógica no âmbito da fundamentação de facto, ou perante uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio – ou seja, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, não deflui de forma evidente e ostensiva, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, que a factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica mais elementar, ou a regras de experiência comum.

      Como escrevem Simas Santos e Leal Henriques (ob. Citada, pág. 74), «A existir erro notório (…), ele teria de ser evidente, detectável espontaneamente no texto da decisão, e resultar deste, ou do encontro deste com as regras da experiência comum. Pois o erro notório traduz-se em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”». No mesmo sentido, e sem preocupações de exaustão, citem–se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 09/01/2018 (proc. 31/14.3GBFTR.E1)[[5]], do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/07/2018 (proc. 26/16.2GESRT.C1)[[6]], do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/11/2020 (proc. 9/18.8GBALM.L1-5)[[7]], e do Tribunal da Relação do Porto de 01/02/2023 (proc. 110/22.3GDVFR.P1)[[8]].

      Em face de tudo o exposto, não se julga verificado na sentença o vício decisório de erro notório na apreciação da prova.

        

      Improcede, assim, esta primeira parte do recurso, ficando, concomitantemente, prejudicada a reconfiguração das penas aplicadas ao arguido – quer no que tange número daquelas concretamente cominadas, quer quanto à subsequente pena única fixada em cúmulo das mesmas –, que se mostrava a final do requerimento recursivo aludida, porque dependente tal exercício da prévia alteração do número de actuações e de crimes pelo mesmo praticados, o que não ocorre.

2. De saber se pelo tribunal a quo foi violado os princípio do in dubio pro reo.

      Na decorrência da questão anterior, e acabada de apreciar e decidir, veio ainda o recorrente alegar haver sido desrespeitado, na decisão recorrida, o princípio do in dúbio pro reo.

      Assim, argumenta que o tribunal a quo violou os direitos do arguido, e com isso, os princípios basilares do nosso direito penal, ao não atribuir qualquer credibilidade à sua posição no processo que assumiu que os factos ocorriam com uma média de frequência de 3 vezes por mês, o que deveria ter ditado uma dúvida razoável quanto ao número de crimes efectivamente cometido – e nessa parte, a dúvida do quantum, deveria ter funcionado a favor do arguido.

      Não lhe assiste, porém, razão.

O princípio do in dubio pro reo respeita ao direito probatório, implicando, em termos sintéticos, que o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Ou seja, a ter-se por afectada o necessário grau de certeza probatória que qualquer condenação penal exige como seu fundamento – quando, por via das circunstâncias ligadas à produção de prova nos autos se tenha por inquinado o processo de formação da convicção do tribunal na correspondente parte – não será de assacar ao arguido a actuação imputada.

Conforme ensina Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, I, pág. 213, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, resultando, assim, o princípio em causa violado quando o tribunal decide contra alguém tendo dúvidas razoáveis e consistentes nesse sentido e em relação à fiabilidade da prova.

Porém, “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/06/2015 (proc. 12/14.7GBSRT.C1)[[9]].

Ora, em sede de recurso, a eventual violação desta manifestação do princípio da presunção de inocência plasmado no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, deve resultar seja do texto da decisão recorrida (de forma directa e imediata, decorrendo, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto), seja porque o tribunal considerou assentes factos duvidosos desfavoráveis ao arguido mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça (isto é, quando do confronto com a prova produzida se conclui que se impunha um estado de dúvida).

Seja como for, tudo está em que se possa constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante.

Realça–se que o princípio in dubio pro reo não significa dar relevância às dúvidas que os sujeitos processuais encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos – é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014 (proc. 155/13.4PBLMG.C1)[[10]], «a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que o Julgador não logrou ultrapassar».

Ora, no presente caso, e analisando a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, incluindo nesta concreta parte da quantificação de actuações típicas criminalmente relevantes por parte do arguido, constata-se que a mesma enuncia os meios de prova produzidos e dá conta dos critérios adoptados permitindo compreender a razão pela qual os factos plasmados na decisão foram dados como provados. Essa apreciação da prova revela-se criteriosa, tendo criticamente avaliado a prova produzida, segundo critérios 1ógicos e objectivos e em obediência as regras de experiência comum, segundo o princípio da livre (mas vinculada) apreciação da prova consagrado no artigo 127° do Cód. de Processo Penal, usando correctamente dos princípios da imediação e da oralidade, conduzindo tal apreciação, sem qualquer evidência de dúvidas, à fixação daquela mesma matéria de facto.

Notar–se–á que, muito em particular no que tange à determinação do número de actuações típicas do arguido – e ao contrário do que parece invocar o recorrente –, a decisão recorrida não evidencia qualquer estado dubitativo quanto à contabilização daquelas dadas por assentes de acordo com uma frequência de pelo menos três por semana. Como muito claramente, julga–se, decorre do exercício de fundamentação de facto exarada no acórdão, e da respectiva motivação, o tribunal a quo, quanto muito, fez funcionar o princípio da presunção de inocência com relação a tudo quanto fosse a consideração de mais actos do que os correspondentes ao aludido número mínimo de pelo menos três vezes por semana.

Ou seja, não teve o tribunal qualquer dúvida quanto ao número de actos que deu por provados, e onde a teve foi quanto a qualquer contabilização que os excedesse – e, por isso, não considerou esta última.

Não se detecta, pois, qualquer estado de dúvida na explanação efectuada na sobredita motivação, antes nela se manifesta uma convicção segura baseada na indicada prova.

Ademais, e como já vimos, a apreciação alternativa que era proposta pelo recorrente em sede de impugnação da decisão em sede de matéria de facto, não mereceu acolhimento, não se impondo também por essa via um tal estado dubitativo.

Pelo que, e em conclusão, não havia – nem há – que lançar mão do princípio in dubio pro reo, destinado, como vimos, a fazer face aos estados dubitativos do julgador e não a dar resposta às dúvidas da recorrente sobre a matéria de facto, no contexto da valoração probatória por ela efectuada e com base na qual pretende ver substituída a convicção formada pelo tribunal a quo.

Poderá não agradar ao recorrente a convicção a que chegou o tribunal em resultado da avaliação feita da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. Contudo, em momento algum a sua própria apreciação permite contrapor a decisão que foi adoptada pelo tribunal e os alicerces da mesma, inexistindo qualquer elemento de prova que imponha uma decisão diversa.

Fica, deste modo, afastada a invocada, pelo recorrente/arguido, violação do princípio in dubio pro reo.

II.ii. DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

3. De saber se as medidas concretas das penas parcelares em que o arguido vem condenado se mostram desadequadas por defeito.

      Passando a apreciar o recurso interposto pelo Ministério Público, temos que na economia do respectivo requerimento a primeira a questão suscitada se reporta à adequação da dosimetria concreta das penas de prisão parcelares aplicadas a cada um dos 441 crimes pelos quais o arguido vem condenado.

        

      Começa por se recordar, e na parte que aqui agora releva, vir o arguido condenado pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 441 (quatrocentos e quarenta e um) crimes de abuso sexual de menor dependente agravado, previstos e puníveis pelos arts. 172º/1/b) e 177º/1/b)/3/8 do Cód. Penal.

      Sendo cada um dos crimes punível com pena de prisão a fixar entre o mínimo de 1 ano e 4 meses e o máximo de 10 anos e 8 meses, foi o arguido em concreto condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos aludidos crimes.

      Alega, em apertada síntese, o recorrente/Ministério Público que tais penas parcelares de prisão pecam por defeito na sua concretização, devendo, em função das várias circunstâncias que invoca, cada uma delas ser antes fixada em 3 anos e 6 meses.

      Vejamos.

De acordo com o art. 40º do Cód. Penal a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos (considerações de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (considerações de prevenção especial), enunciando o n.º 2 do mesmo artigo o designado princípio da culpa, que se erige em pilar estruturante nesta matéria, impondo que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa do condenado.

O grau de exigência na protecção dos valores jurídicos que estejam em causa em determinada criminalização, deverá, assim, ser objecto de ponderação a partir de dois vectores complementares e indissociáveis : por um lado, e em termos gerais, do respectivo relevo em termos de hierarquia axiológica legal e constitucionalmente estipuladas, e por outro lado, em termos concretos, da intensidade do respectivo desrespeito em que a actuação ilícita do agente se traduziu. Trata–se de vectores que, naturalmente, já se mostram omnipresentes na própria definição a montante dos critérios de estatuição da punibilidade aplicável em cada tipo criminal, mas que mantém, agora em sede de determinação punitiva concreta, o seu relevo por via da sua devida densificação.

Quanto às necessidades de ressocialização, na avaliação do grau da respectiva necessidade haverá de se atentar na medida em que os actos do agente são um reflexo quer da sua personalidade, quer das suas circunstâncias – e, estas, quer as específicas verificadas no momento do acto, quer as relativas ao seu percurso e situação de vida.

Como, por todos, se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/12/2014 (proc. 52/14.6GTCBR.C1)[[11]], «A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos. A reintegração do agente na sociedade está ligada á prevenção especial ou individual, isto é, á ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida».

Como factores de escolha e graduação da respectiva pena concreta há a considerar os parâmetros dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal.

A primeira dessas disposições (que determina que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”) não releva no presente caso, pois que ao crime invariavelmente a punir apenas é cominada pena de prisão.

Move–se este primeiro segmento da impugnação recursória do Ministério Público no âmbito da graduação concreta das penas parcelares no caso, o que reverte, pois, para os critérios que resultam do disposto no art. 71º do Cód. Penal, que estabelece que tal determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que - não fazendo parte do tipo de crime - depuserem a favor ou contra o arguido, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime.

Na determinação da medida concreta da pena o tribunal deve, pois, atender à culpa do agente, que constitui o limite superior e inultrapassável da pena a aplicar ; ao mesmo tempo, considerando que as finalidades de aplicação das penas incidem fundamentalmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade, o limite máximo da moldura do caso concreto deve fixar-se na medida considerada como adequada para a protecção dos bens jurídicos e para a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas, ainda consentida pela culpa do agente, enquanto o limite inferior há-de corresponder a um mínimo, ainda admissível pela comunidade para satisfação dessas exigências tutelares, sob pena de perda de confiança no restabelecimento da vigência da norma violada.

Por fim, entre tais balizas assim determinadas, o tribunal deve fixar a pena num quantum que traduza a concordância prática dos valores decorrentes das necessidades de prevenção geral com as exigências de prevenção especial que se revelam no caso concreto, quer na vertente da socialização, quer na de advertência individual de segurança ou dissuasão futura do delinquente

Nesta tarefa de individualização, o tribunal dispõe dos critérios de vinculação na escolha da medida da pena constantes do já citado art. 71.º do Código Penal, designadamente os susceptíveis de “contribuírem tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008, cit. por A. Lourenço Martins, ‘Medida da Pena’, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 242).

      Uma nota antes de prosseguir, para salientar que, como resulta de pacífico critério jurisprudencial, o recurso dirigido à concretização da medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Donde, e em tal sede, a intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada, só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada.

Neste sentido, citem–se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/10/2013 (proc. 180/11.0GAVLP.P1)[[12]] onde se escreve que «o recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso», o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/07/2017 (proc. 17/16.3PAAMD.L1-9)[[13]], ou o recente acórdão do S.T.J. de 18/05/2022 (proc. 1537/20.0GLSNT.L1.S1)[[14]], que consigna que «A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”».

Pois bem.

Percorrido o Acórdão ora recorrido na parte relativa à concretização das sanções penais parcelares a aplicar ao arguido, constata–se haverem sido elencados os fundamentais elementos relevantes nessa determinação, e que não se devem considerar já valorados na tipificação dos (múltiplos) crimes objecto de punição.

      Assim, ali se consignou, recorde–se, nos seguintes termos :

«No caso em apreço há que ponderar que a ressonância ética da violação do bem jurídico protegido pelo art. 172º do Código Penal que se manifesta com premência. As exigências de prevenção geral são, pois, elevadas em virtude da reação, hoje prementemente reclamada pela sociedade, de resposta a situações como a sob análise, sobretudo em face do aumento dos crimes de natureza sexual e, por consequência, da necessidade igualmente sentida de resposta a crimes que abalam fortemente o bem jurídico tutelado pelas normas em apreço.

         O arguido é primário mas revela carências ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta manifestadas pela sua auto-desresponsabilização exprimidas, para além do mais, nas suas declarações prestadas na audiência de julgamento. Na verdade, começou logo por dizer que os atos sexuais praticados foram consentidos pela menor e que não sabia que tal era proibido por lei, o que não corresponde à verdade. Assim, consideramos as exigências de prevenção especial como medianas.

Continuando na tarefa da determinação da medida da pena atentemos agora nos fatores mencionados no nº 2 do art. 71º do Código Penal.

         No que se reporta aos fatores concretos da medida da pena concernentes à execução do facto e denunciadores da gravidade da violação jurídica cometida, importa valorar, ao nível da espécie e modo de execução do facto e suas consequências, o facto do arguido não ter hesitado em abordar a menor com o engodo de ter poderes/ser médium, tendo praticado com ela e sobre ela diferentes atos sexuais, designadamente de cópula completa sendo portador de HIV e não usando preservativo.

         A atuação do arguido desdobrou-se em condutas que tiveram lugar no período situado entre janeiro de 2020 e outubro de 2022, sempre insensível aos sentimentos desta com quem vivia, ponderando-se ainda as consequências graves que dos seus atos advieram para a ofendida, designadamente para a saúde, tendo tentado inclusive o suicídio.

         A ilicitude dos factos é mediana, face às demonstradas circunstâncias da atuação do arguido que, dentro do quadro dos tipos legais que se pune, não sendo despiciendas, não assumem uma extrema gravidade.

         O arguido atuou em qualquer uma das situações que se aprecia com dolo direto.

Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, verificamos que o mesmo tem hábitos de trabalho embora com parcos rendimentos e beneficia de apoio familiar. Debate-se com algumas problemáticas de saúde relevantes, sendo diabético e apresentando problemas de coração e possui há vários anos diagnóstico de HIV.»

      Pois bem, desde logo se assinala que, desta leitura da decisão recorrida, se retira que o tribunal a quo teve em atenção as essenciais circunstâncias pertinentes na presente situação.

Julga–se, porém, que este exercício de concretização penal é efectivamente susceptível de alguma densificação, traduzível na essencialidade da crítica que, em parte, vem justificadamente formulada pelo recorrente/Ministério Público.

Na verdade, e desde logo de todo se pode subscrever que a ilicitude dos factos, e muito menos as exigências de prevenção que o caso suscita, se devam situar num grau mediano.

As circunstâncias do caso são exuberantes nesse sentido, mostrando–se recortadas pelo recorrente aquelas que aqui cumpre realçar, densificando, como se disse, as considerações exaradas pelo tribunal a quo.

Assim, o arguido praticou as suas mais de quatro centenas de actos de abuso sexual aproveitando-se do facto de coabitar com a menor e a pretexto de um “pacto” com ela realizado, cujos contornos lhe possibilitaram claro ascendente psicológico sobre a ofendida (que actuou sugestionada pela invocação, pelo arguido, da sua qualidade de “médium" e portador de poderes espirituais, levando a que a mesma fizesse tal pacto com ele, e ligando a prática dos actos sexuais à ocorrência de coisas boas, dizendo-lhe que, caso não fizesse o que ele mandasse, tal acarretaria consequências negativas para o seu bem-estar e saúde e da sua progenitora).

Ou seja, se é verdade que o arguido não usou violência física com a vítima, mostra-se relevante o temor/chantagem por si usados para obtenção e reiteração daqueles contactos de natureza sexual.

Tudo num período que se prolongou por dois anos e nove meses (entre Janeiro de 2020 a Outubro de 2022), durante os quais jamais se coibiu de repetidamente levar a cabo tais actos, traduzindo-se estes numa variada natureza, consubstanciando a prática de relações sexuais de cópula, que apenas cessaram por via da denúncia da ofendida, de introdução vaginal com os dedos, de sexo oral e de masturbação, sendo que o arguido nunca usou preservativo – tudo tal como foi dado como provado.

Sendo certo que, nos termos do nº8 do art. 177º do Cód. Penal, «Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena», deverá ponderar–se nesta sede de determinação da medida da pena apenas uma das seguintes circunstâncias verificadas no período e com relação aos actos em causa : a de os factos terem decorrido no âmbito de uma situação de coabitação (cfr. alínea b) do art. 177º/1 do Cód. Penal) ; e a de o arguido ser portador do vírus de imunodeficiência VIH (cfr. nº3 do mesmo art. 177º) – sendo que qualquer delas têm idêntico valor agravante da medida abstracta da pena aplicável.

Nesta parte, não pode acolher–se a cumulação entre ambas as circunstâncias que integrava a argumentação recursória.

Considerar–se–á, nesta sede, a circunstância de os factos haverem ocorrido num contexto de coabitação, e, assim, de claro domínio do arguido sobre a disponibilidade da ofendida e sobre os seus movimentos diários.

Em suma, como bem realça o Ministério Público, as reiteradas condutas do arguido têm a enformá–las um diapasão criminoso merecedor de acentuado juízo de ilicitude e de censura penal.

Na verdade, o que a reiterada actuação do arguido revela é que estamos perante alguém que satisfez os seus instintos sexuais de forma ilícita e à conta da perfídia, do logro e dos sentimentos de insegurança e medo que causava na ofendida, cujos interesses desprezou ao longo de quase três anos.

O arguido denota assim uma personalidade com graves falhas de carácter e de preparação para manter um comportamento conforme com o respeito dos mais elementares direitos que, nos autos, manietou a seu bel–prazer e com vista apenas e só a satisfazer os seus interesses ilegítimos e reprováveis.

É, assim, muito elevado o grau de culpa do arguido, pese embora a sua admissão parcial dos factos.

Não podendo, nesta parte, deixar de se acentuar que, apesar disso, e de ser primário, estando profissional, social e familiarmente inserido, a verdade é que o arguido, naquela admissão parcial, evidencia, quando colocado perante a natureza dos factos em causa nos presentes autos, mecanismos de minimização da gravidade dos danos causados e do impacto na vítima, não revelando reconhecer a dimensão de censurabilidade da sua conduta.

São, por isso, elevadas as necessidades de reinserção social, e acentuadas as exigências de prevenção especial.

Assim como, atendo em conta a natureza dos factos e as suas circunstâncias, as necessidades e prevenção geral.

Os crimes aqui em causa atentam contra valores juridicamente protegidos de natureza pessoal de alto grau de relevo.

Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, em especial contra crianças e jovens, são objecto de clara reprovação geral, assumindo uma dimensão cada vez mais alarmante em termos comunitários, atenta a proliferação da respectiva ocorrência. Aquela juventude e imaturidade tornam–nos particularmente expostos à manipulação e exploração por terceiros, sendo arrastados em situações  das quais depois revelam dramáticas dificuldades em escapar, por via dos sentimentos de medo e vergonha com que são chantageados, numa espiral de desespero tantas vezes de resultados potencialmente trágicos – como, aliás, sucedeu no caso.

Na verdade, é de notar que os factos em causa só cessaram por via da denúncia da ofendida, não sem que antes a mesma, desesperada e sem poder para contrariar as investidas do arguido, tentasse por termo à vida, ingerindo comprimidos no mês de Junho de 2022.

Como observa Daniel Borrilo – citado no Ac. do S.T.J. de 23/06/2010 (proc. 252/09.0PBBGC.S1)[[15]] –, o crime sexual representa na actualidade o paradigma do mal absoluto. Por isso, a “sociedade alimenta crispação, reclamando pena exacerbada contra o abusador sexual, não só para afirmação da eficácia da norma penal violada, enquanto prevenção geral positiva, mas ainda em nome da intimidação de potenciais delinquentes, enquanto prevenção geral negativa”.

Em qualquer caso, a prática de crimes sexuais costuma deixar sequelas na vítima, pelo menos a nível psicológico, o que, aqui, também se tem por amplamente demonstrado quanto à ofendida.

A propósito da danosidade social dos crimes sexuais contra menores, refere Paulo Guerra (“O Abuso Sexual de Menores”, pág. 39): “Falar de abuso sexual é falar de maus tratos (...) a vítima do abusador sexual é ofendida no seu supremo direito à integridade física e moral, vê comprometido o seu direito a um integral desenvolvimento físico afectivo e social (...), vê-se impedida no seu absoluto direito de viver como criança, “sem comer etapas à vida” e sem “responsabilidades, remorsos ou culpabilidades prematuras.”.

      Perante tudo quanto vem de se assinalar – incluindo, pois, as considerações consignadas em sede de decisão recorrida, incluindo a favor do arguido –, e revertendo à impugnação do recorrente, crê–se que a sua crítica é suficiente para determinar a alteração das penas aplicadas ao arguido no sentido propugnado.

      Ou seja, julga–se efectivamente que a ponderação entre as circunstâncias que militam em desfavor e em favor do arguido, fazem exacerbar em especial as exigências preventivas, e acentuam a cada momento o grau de culpa do arguido, num grau de maior intensidade do que aquele que as penas fixadas pela primeira instância permitem abranger.

      Em face de tudo o exposto, justifica–se na verdade uma reformulação das consequências punitivas concretas que traduza uma mais adequada correspondência ao desvalor de algumas das correspondentes condutas e às apontadas exigências e grau de culpa ínsito no seu cometimento.

      Tal exercício de afinação punitiva entende–se justificado, diga–se também, como aquele que corresponderá ao mínimo denominador decorrente de tais parâmetros e exigências permitido em segurança por via da matéria de facto provada.

      Na verdade, estamos perante 441 actos de abuso sexual perpetrados pelo arguido sobre a pessoa da ofendida, mas que revestiram variada natureza – de coito (penetração vaginal com o pénis), de penetração vaginal com os dedos, também actos de masturbação ao arguido, e ainda actos de sexo oral –, sendo que, pese embora a transversal e indisputada gravidade de qualquer destas actuações, a verdade é que nem todas assumem a mesma relevância enquanto expressão de ofensa imediata sobre a pessoa e o corpo da ofendida, não se mostrando possível aferir com rigor quantas, de entre essas 441 actuações – e outros tantos crimes – aqui em causa, se reportam a cada um daqueles actos de cada uma das aludidas diversas naturezas e características.

      Ora, revertendo às penas concretas aplicadas, invariavelmente de 2 anos, tem–se por seguro que as mesmas, com relação a qualquer dos 441 actos de qualquer das naturezas, se situam abaixo do limiar mínimo que todos os parâmetros de ilicitude, culpa e prevenção, acima percorridos, impõem.

      Donde, cumpre claramente deixar bem claro que nem um dos 441 crimes se mostra sobreavaliado na sua concretização penal.

      Tudo para dizer que, assim sendo, julga–se ajustada a aplicação ao arguido da pena concreta de 3 (três) anos de prisão por cada um dos 441 crimes de abuso sexual agravados praticados, considerando–se tal pena situadas no limite do denominador comum da respectiva culpa, sem desrespeitar os limites mínimos exigíveis para salvaguardar a tutela dos bens jurídicos aqui protegidos e a confiança comunitária na eficácia do sistema penal.

      Em conclusão, merece parcial acolhimento esta primeira parte da pretensão do recorrente/Ministério Público, determinando–se, assim, a alteração das penas fixadas nos termos expostos.

4. De saber se a medida concreta da pena única em que o arguido vem condenado se mostra desadequada por defeito.

Decidida a adequada configuração jurídico–criminal das condutas do arguido, e assim estabilizadas quer a contabilidade dos crimes que praticou e pelos quais deve ser objecto de condenação, quer também as concretas penas parcelares a aplicar–lhe pelos mesmos crimes, cumpre agora apreciar da pretensão do recorrente/Ministério Público de que, por via do presente recurso, seja alterada a pena unitária fixada em cúmulo.

No que em particular tange à alegação do recorrente/Ministério Público, entende este que a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão fixada em cúmulo jurídico pelo tribunal a quo é desadequada por insuficiência face às necessidades punitivas do caso e considerando a escala abstracta da moldura punitiva unitária a considerar.

Propugna, assim, dever se aplicada ao arguido uma pena única situada em 15 anos de prisão.

        

Apreciando.

Como é consabido, e dispensa aturadas considerações nesta sede, o concurso de crimes (e penas) relevante para efeitos de cúmulo jurídico vem regulado no art. 77º do Cód. Penal, que no seu nº1 dispõe «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

      O sistema do concurso de penas por cúmulo jurídico numa pena conjunta foi adoptado para evitar a eventual ultrapassagem do limite da culpa do agente criminoso, e que poderia decorrer de um sistema de acumulação material onde ocorresse a mera soma das penas em que o arguido tivesse sido condenado. Por isso que o sistema da pena conjunta implica uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, nomeadamente, através da combinação das penas parcelares que não perdem a natureza de fundamentos da pena do concurso.

Em conformidade, e por forma a respeitar integralmente uma tal avaliação conjunta, são pressupostos basilares do cúmulo jurídico:

- a uniformidade subjectiva, isto é, que todos os crimes tenham sido cometidos pelo mesmo arguido,

- a coerência temporal, isto é, que o arguido os tenha praticado antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer um,

- e a coesão sancionatória, ou seja, e que as penas parcelares em que o arguido foi condenado sejam da mesma natureza, nos termos do art. 77º/3 do Cód. Penal.

No caso dos autos, verifica-se, pois, uma indubitável situação de concurso efectivo de crimes e assim o preenchimento dos pressupostos determinantes da efectivação de cúmulo jurídico, impondo-se a aplicação de uma pena única que englobe as penas dessas mesmas respectivas condutas criminais parcelares.

No que tange ao exercício material conducente à determinação da punição única pelos crimes em concurso, o mesmo opera em primeiro lugar pela determinação das penas parcelares em que o arguido foi condenado, o que se mostra concretizado nos termos acabados recordar.

Em segundo lugar, e de acordo com o determinado no nº2 do art. 77º do Cód. Penal, deverá, por um lado, ter–se como limite mínimo da pena única a aplicar, aquele correspondente à pena parcelar mais elevada de entre aquelas em concurso ; e deverá. por outro lado, proceder–se à soma de todas as aludidas penas parcelares, obtendo-se assim o limite máximo da moldura abstracta aplicável – sendo, todavia, que, nos termos da regra do mesmo art. 77º/2 do Cód. Penal, a pena única aplicável, tendo «como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes», não pode contudo «ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de multa».

Finalmente, assim determinados os limites máximo e mínimo da moldura punitiva aplicável, cumprirá então fixar a medida concreta da pena única dentro dessa moldura penal.

Nesta fixação da medida concreta da pena conjunta, deverá atender-se, por um lado, aos critérios gerais de determinação da pena, e, por outro, ao critério especial dos casos de concurso de penas, previstos pelo art. 77°/1 do Cód. Penal – critérios que entre si se conjugam.

Assim, e em primeiro lugar, a determinação da medida da pena desde logo através dos critérios gerais de escolha e graduação da pena concreta, havendo assim a considerar em especial os parâmetros do art. 71º do Cód. Penal : essa determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que -não fazendo parte do tipo de crime- depuserem a favor ou contra o arguido.

Depois, a determinação da medida da pena nos casos de concurso obedecerá aos critérios especiais de determinação do art. 77º/1 do Cód. Penal, onde se dispõe que são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

A apreciação do conjunto dos factos fornecerá uma visão integrada de condutas praticadas pelo agente (imagem global do ilícito), permitindo verificar se entre os factos criminosos existe uma ligação ou conexão relevante. A ligação ou conexão relevante entre factos visa apurar se o agente pretendeu com determinado conjunto de factos executar um plano, ou se há uma gravidade na conduta, não detectável em cada crime individualmente, mas claramente perceptível na sua globalidade.

A avaliação da personalidade do agente visa revelar se, da apreciação do conjunto dos factos praticados pelo agente, se extrai um figurino geral de personalidade do agente do crime, em termos de determinar a tendência ou a propensão para a prática de um determinado tipo de crime ou para a ofensa de determinados bens jurídicos. No âmbito da avaliação da personalidade, será ainda relevante, procurar compreender em que medida poderá a pena influenciar o arguido, em termos de dissuasão de uma delinquência futura.

Assim, com a fixação da pena conjunta se procura sancionar o agente nos limites da respectiva culpa, sendo esse o sentido e significado de encontrar uma punição assente na reavaliação dos factos (não dos factos individualmente considerados, mas especialmente do respectivo conjunto ; isto é, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente) em conjunto com a personalidade do arguido (impondo–se assim, e nomeadamente, verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa).

As penas conjuntas visam, pois, corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções, sendo que, como refere Cristina Líbano Monteiro (em “A Pena ‘Unitária’ do Concurso de Crimes”, RPCC, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) – citada no Acórdão do S.T.J. de 10/01/2013 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (proc. 218/06.2PEPDL.L3.S1)[[16]] –, «o código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma “unidade relacional de ilícito”, portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente. A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares, à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes».

É profusa a jurisprudência produzida a propósito deste exercício de determinação da pena única aplicável em caso de concurso de crimes.

Assim, a título de mero exemplo, pode ler-se no Acórdão do S.T.J. 31/03/2011 (proc. 201/08.3JELSB.E1.S1)[[17]], «I - Na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto. II - Como esclareceu o autor do Projecto do CP, no seio da respectiva Comissão Revisora, a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck, que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. III - Posição também defendida por Figueiredo Dias, ao referir que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta».

Também no Acórdão do S.T.J. de 12/10/2011 (proc. 484/02.2TATMR.C2.S1)[[18]] se escreveu que «A pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se, em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente».

Finalmente, referência para o Acórdão do mesmo S.T.J. de 18/01/2012 (proc. 34/05.9PAVNG.S1)[[19]], onde se exarou que «Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados ; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos. (…) Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma ‘carreira’, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais ».

Temos, pois, que, de acordo com as regras enunciadas de determinação da moldura penal aplicável no caso, e a ter em conta na fixação da pena única, esta pena unitária terá por limite mínimo o de 3 anos de prisão (medida parcelar similar de todas as penas ora em concurso), e como limite máximo in abstracto o de 1323 anos de prisão (soma das 441 penas de prisão em concurso) – não podendo, contudo, ser ultrapassado o limite legal de 25 anos.

Determinados estes limites mínimo e máximo da moldura punitiva aplicável, na determinação da medida concreta da pena única a fixar deverá ter–se em vista que o art. 71º do Cód. Penal estabelece que a determinação da sanção concreta a aplicar ao agente criminal deve fazer-se em função da respectiva culpa e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, isto em directa conjugação com tais parâmetros temos especialmente a imposição do nº 1 do art. 77º do Cód. Penal, onde se determina que na medida da pena única devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

A ponderação do conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Já na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade : só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Mas tudo tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral, e os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente, assim se respeitando sempre a tutela também devida às exigências de prevenção especial de socialização.

Em suma, a aplicação de uma pena conjunta não pode estar dissociada da questão da adequação da pena à culpa concreta global e da consideração das exigências preventivas, passando o efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso da punição concreta, pela necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

No caso do arguido AA, e numa apreciação dos factores que militam em desfavor do mesmo no contexto da análise global que aqui se impõe, é inevitável a remissão para quanto já acima se assinalou a propósito da graduação das penas parcelares.

Os crimes por si praticados e integrantes do cúmulo, reflectem, pois, acentuada gravidade objectiva e são merecedores de relevante juízo de censura penal, estando em causa, na sua imensa totalidade, tipos de ilícito de abuso sexual agravado porque perpetrado sobre ofendida menor, de idade entre 14 e 18 anos, nas circunstâncias de facto já reiteradamente percorridas.

São, pois, assinaláveis, nos termos já acima aludidos, os valores jurídico–penais de natureza pessoal aqui transversalmente objecto de ofensa, e que em concreto se situam acima de quanto foi necessário à respectiva agravação criminal.

A forma de actuação do arguido, sempre com dolo directo, revela também flagrante desprezo pelos sentimentos e mesmo materialmente pela saúde, física e psicológica, da ofendida.

      O contraponto, em favor do arguido, a todos os factores assinalados encontra–se na admissão parcial dos factos, e na inserção laboral, familiar e social do arguido, mais se registando ser delinquente primário – factor de relativo relevo atenta a magna evidência da ilicitude da reiterada actuação aqui em causa.

        

Aproximando–nos agora mais dos específicos parâmetros a ter em conta em sede de determinação de pena única, é indiscutível que, analisando a globalidade do universo de factos em concurso no presente processo, e pese embora a sua vastidão, se verifica que os mesmos se encontram clarissimamente conexionados entre si, apresentando uma evidente relação de continuidade temporal, de contextualização que permitiu a sua sucessiva prática, de valores jurídico–penais colocados em causa pelas múltiplas actuações, e também na forma da reiterada execução das mesmas.

Conexão que passa também pelo alvo da criminosa actuação do arguido, pois que todas as actuações incidiram sobre a pessoa da mesma ofendida.

Não sendo, embora, em si mesmo valoráveis favoravelmente todos os circunstancialismos assim assinalados, a verdade é que, para o que aqui importa ponderar, estamos perante uma evidente conexão e homogeneidade objectiva entre a totalidade dos factos que já ficou expressa acima.

Em qualquer caso, não pode deixar de se considerar que a imagem global de toda a conduta do arguido revelou, pese embora aquela homogeneidade, uma clara e firme determinação criminosa, mantida e reiteradamente executada de forma profusa ao longo de quase três anos.

O que se reflecte, pois, na avaliação da personalidade do arguido reflectida nessa sua actuação globalmente considerada, pois que a assinalada evidente determinação criminosa é inarredável e preocupante indicio de uma tendência ao cometimento delituoso de actos da natureza daqueles aqui em causa.

Ainda nesta exacta perspectiva, temos que o arguido,, admitindo em parte a objectividade dos factos, não os confessou integralmente e muito menos se mostrou arrependido, não obstante todo o circunstancialismo que rodeou a sua actuação, revelando assim uma personalidade incipientemente sustentada em valores éticos e comunitários fundamentais, e, assim, dissociada do direito.

Nesta perspectiva, são sem dúvida pertinentes os argumentos do recorrente/Ministério Público, no sentido de realçar o grau de culpa global do arguido e as exigências de prevenção do caso, que devem ser determinantes na fixação da pena única.

Não poderá, porém, deixar de se ponderar que, se tudo quanto se explanou até aqui releva em especial para quanto respeita à protecção dos bens jurídicos – finalidade de prevenção geral – enquanto finalidade primária da aplicação das penas, o art. 40º/1 do Cód. Penal impõe que, a par de tal objectivo, seja considerada ainda a reintegração do agente na sociedade – vector ligado à prevenção especial –, determinando o nº2 do mesmo artigo, como já se assinalou, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

      No caso, o arguido mostra–se integrado familiarmente, estando ininterruptamente privado da liberdade desde Novembro de 2022 à ordem dos presentes autos (actualmente sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica), sem notícia de ocorrências anómalas.

      Aqui chegados, cumpre concluir à luz dos assinalados critérios e parâmetros conjugados dos arts. 40º, 71º e 77º do Cód. Penal.

      Resumindo quando já acima se deixou enunciado, escreveu–se no Acórdão do S.T.J. de 21/11/2018 (proc. 574/16.4PBAGH.S1)[[20]] que “Na determinação da pena conjunta, impõe-se atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso”, imbuídos da sua dimensão constitucional, pois que “a decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta - dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber (…) se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido”.

      Efectuando, pois, o exercício de fixação da pena única dentro da moldura legal penal supra assinalada – mas sem desconsiderar quanto se disse no que tange à ponderação da janela delimitada pelos ditames da culpa e das exigências de prevenção –, haverá, pois, que, no caso, levar a cabo um exercício de compressão das penas parcelares em concurso.

      Uma nota complementar nesta parte, para dizer que neste exercício de compressão rejeita–se liminarmente o apelo a qualquer regra de ponderação de fórmulas aritméticas, traduzida no fraccionamento pré–estabelecido das penas parcelares, e adição matemática dos fragmentos das mesmas assim extraídos para construção da pena única aplicada.

      Como se escreveu no Acórdão do S.T.J. de 16/05/2019 (proc. 790/10.2JAPRT.S1)[[21]], na determinação da medida concreta da pena única «ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente, neles revelada. (…) A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura”.

      No mesmo sentido, cita–se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/01/2014 (proc. 702/12.9GTABF.E1)[[22]], que consigna que «O recurso a critérios práticos de base aritmética, apesar de visar o propósito louvável de obter maior uniformidade na aplicação das penas, é susceptível de críticas tão mais fundadas quanto mais tender à aplicação automática, sem criteriosa ponderação dos factores referentes à culpa e à prevenção, redundando no desrespeito do sistema de pena única conjunta acolhido entre nós ».

        

      Sopesando, enfim, os dados em presença, sem prescindir do rigor da lei, mas tendo em atenção a globalidade dos factos, avaliando a interconexão entre os crimes do concurso e a personalidade do arguido, considera–se que as necessidades de prevenção, quer de ordem geral, quer especial, se revelam num grau concreto que impõe uma medida da punição única superior àquela em que o arguido vem condenado, e que, na verdade se julga aquém da salvaguarda daquelas e da tutela da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito e da culpa – compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena.

      De outra parte, a cuidada ponderação sobre tais exigências, permitem ainda assim concluir que as mesmas se mostrarão salvaguardadas com a aplicação de uma pena única de prisão que não exceda os limites do juízo de censura incidente sobre o comportamento global e homogéneo do arguido, e do mesmo passo sopese a devida contribuição para a reinserção social do arguido e a desnecessidade de prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável.

      Em face de tudo o exposto decide–se, concedendo parcial provimento a esta parte do recurso, fixar ao arguido AA, em cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas, a pena única de 11 (onze) anos de prisão.


*

*


III. DECISÃO

Nestes termos, em face de tudo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em :

i. Não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

ii. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência:

alteram as medidas concretas das penas de prisão aplicadas ao arguido AA, condenando–o agora o mesmo na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos 441 (quatrocentos e quarenta e um) crimes de abuso sexual agravado pelos quais vem condenado;

alteram a pena única fixada em cúmulo jurídico ao arguido AA, condenando–o agora na pena única de 11 (onze) anos de prisão.


*

No que tange ao recurso do arguido AA, custas da responsabilidade do arguido/recorrente, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).

Sem custas o recurso do Ministério Público.


Porto, 7 de Fevereiro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Nuno Salpico
Raúl Esteves


(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
_____________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Helena Moniz, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [4] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [5] Relatado por Ana Barata Brito, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [6] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[7] Relatado por João Carrola, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[8] Relatado por Francisco Mota Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[9] Relatado por Fernando Chaves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[10] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [11] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[12] Relatado por Joaquim Gomes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[13] Relatado por Filipa Costa Lourenço, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[14] Relatado por Ana Barata de Brito, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[15] Relatado por Armindo Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[16] Relatado por Rodrigues da Costa, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[17] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [18] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[19] Relatado por Raul Borges, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[20] Relatado por Manuel Augusto de Matos, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[21] Relatado por Maia Costa, acedido em www.dgsi.pt/jtstj.nsf
[22] Relatado por António João Latas, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf