Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2282/23.0YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ARRENDAMENTO
NÃO PAGAMENTO DE RENDAS
RESOLUÇÃO PELO SENHORIO
EXCEÇÃO AO NÃO CUMPRIMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Nº do Documento: RP202503062282/23.0YLPRT.P1
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de arrendamento é um contrato bilateral, sinalagmático.
II - Sendo também um contrato oneroso, o pagamento da renda constitui obrigação característica do contrato de arrendamento, que recai sobre o locatário.
III - O locador pode resolver unilateralmente o contrato de arrendamento quando ocorra alguma das circunstâncias previstas no n.º 3 do artigo 1083.º do Código Civil.
IV - Cabe à parte que invoca o instituto da excepção do não cumprimento para justificar a recusa da prestação a que se achava vinculado o ónus da prova dos correspondentes factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2282/23.0YLPRT.P1

Tribunal Judicial do Porto

Juízo Local Cível da Vila Nova de Gaia – Juiz 5

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

AA veio, no âmbito do procedimento especial de despejo, intentado com fundamento na falta de pagamento de rendas, por A..., S.A., deduzir oposição ao despejo.

Invoca, nessa oposição, que

- sempre pagou a renda desde que foi habitar o locado;

- o “contrato de arrendamento padece de nulidade, uma vez que a Requerida nunca contactou, quer telefonicamente, quer presencialmente com o proprietário do Imóvel”;

- “A Requerida na sua boa-fé, assinou o contrato de arrendamento explanado no Doc.1 indicado pela Requerente, seguindo este supostamente para Lisboa, para alguém o assinar, não sabendo quem e quando. Posteriormente da suposta assinatura pelo proprietário do imóvel, não foi o respetivo contrato de arrendamento reencaminhado à Requerida”;

E, ainda, a excepção de não cumprimento do pagamento da renda, assentando-a no seguinte:

-“Para além da fração ficou ainda estipulado entre as partes o acesso à garagem pertencente a este imóvel. Sucede que a designada garagem nunca foi disponibilizada nem colocada à disposição da Requerida”.

- Nunca teve acesso às chaves do correio;

- “O imóvel arrendado, nos primeiros meses de arrendamento estava com ótimo aspeto visual, parecia um imóvel remodelado há relativamente pouco tempo. No entanto, com a utilização do mesmo, rapidamente se apercebeu que os materiais existentes no imóvel eram de fraquíssima qualidade”;

- “as paredes e tetos do imóveis encontram-se danificadas, com rachaduras e cheias de marcas tais como furos, o piso de madeira todo danificado, riscado e a levantar em certas áreas por causa da humidade sentida no imóvel, os eletrodomésticos encastrados, tais como o fogão e o forno, além de velhos, estão totalmente danificados, os próprios moveis, na sua maioria de madeira, além de velhos encontram-se igualmente estragados, canalização deficitária em todo o imóvel…”;

- “Apesar de estar situada no 3° andar de um prédio, a Requerida Arrendatária começou a aperceber-se de que o imóvel padecia de muita humidade. Humidade essa que se agravou com o tempo. Quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes, fazendo inclusive que partes do chão levante. Quando as paredes secam apresentam manchas da água ter escorrido”;

- “A humidade existente no imóvel, colocou e continua a colocar em risco a saúde de quem lá habita, não só adultos como crianças. Com efeito, quando o tempo está húmido os quartos de dormir ficam insuportáveis”;

-“Até existem móveis que contêm bolor”;

- “O que causa sérios problemas de saúde a quem lá habita”;

- “O imóvel padece de isolamento térmico e cujos matérias de construção e/ou remodelação são de fraca qualidade”.

Respondeu a Autora, alegando, entre o mais, que “À data da Resolução, era a Requerida devedora das rendas vencidas e não pagas dos meses de dezembro de 2022, dos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho e agosto de 2023 no valor total de € 7.110,00€ (sete mil cento e onze euros), tendo continuado a não pagar o que quer que seja”, o que obrigou a requerente a socorrer-se deste procedimento para lhe ser restituída a posse do imóvel e reaver o valor das rendas vencidas e não pagas.

Sustenta ainda que, não tendo a requerida demonstrado o pagamento da caução, independentemente do facto de lhe ter sido concedido apoio judiciário, deve a oposição ter-se por não deduzida.

Alega, finalmente, que a requerida litiga com má fé, pedindo a sua condenação em indemnização a determinar pelo tribunal.

Após realização do julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto:

- Declara-se que foi validamente resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre requerente e requerida identificado no ponto A dos factos provados.

- Condena-se a requerida a, no prazo de 30 (trinta) dias contados na notificação da presente sentença, restituir à requerente, livre de pessoas e bens, a fração autónoma designada pela letra “F”, destinada a habitação, correspondente Habitação ..., no piso ..., do corpo ..., com entrada pelo n.º ...9, sito na Rua ..., Rua ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...53, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...84;

Custas a cargo da ré (artigo 527.º do CPC).

Valor: €23.700,00 (artigo 298.º, 1 do CPC).

Notifique e comunique ao BNA”.

Inconformada com tal sentença, dela interpôs a Ré recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1° - A Douta Sentença não faz a correcta aplicação do direito aos factos.

Com efeito,

2º- Alegou a Ré que, quando foi assinado o respetivo contrato de arrendamento, no dia 01 de Outubro de 2022, foi entregue por esta a quantia de 2.370 €, a título de pagamento de renda dos meses de Outubro e Novembro de 2022 e um mês de caução.

3° - Tendo assim, na data da assinatura do respetivo contrato de arrendamento, entregue à Autora, através da empresa responsável pelo arrendamento do imóvel, a quantia total de 2.370 €.

4°- A Ré esclareceu que nunca contactou, quer telefonicamente, quer presencialmente com o proprietário do Imóvel.

5°- Que assinou o contrato de arrendamento sem a presença do senhorio, tendo seguido o contrato supostamente para Lisboa, para alguém o assinar, não sabendo quem e quando.

6°- Explicou ainda que após a suposta assinatura pelo proprietário do imóvel, não foi o mesmo devolvido à Ré.

7°- Podendo verificar-se pela análise do próprio contrato de arrendamento junto pela Autora, que existem folhas assinadas, mas nem preenchidas se encontram, demostrando o alegado pela Ré a este respeito.

8°- Para além da habitação, ficou ainda estipulado entre as partes o acesso à garagem pertencente a este imóvel.

Porém,

9°- A designada garagem nunca foi disponibilizada nem colocada à disposição da Ré.

10°- Esta contactou diversas vezes a Autora, através do agente que intermediou todo o arrendamento, para lhe entregar a chave dessa fração e assim poder ter acesso à mesma, mas esta nunca atendeu nem tão pouco retomou a chamada.

11°- Tendo sido contactada diversas vezes a agência imobiliária que intermediou o presente arrendamento, e simplesmente iam referindo que iriam falar com o proprietário mas nunca apresentaram chave alguma da fração.

12° - Desde a assinatura do contrato de arrendamento e até à presente data não tem acesso a Ré a tal fração.

13° - O que desde o início foi igualmente requerido ao intermediário, foram as chaves da caixa de correio.

14°- Acontece que, tal como foi solucionado o pedido de acesso ao lugar de garagem da fração, teve este igual tratamento.

15°- Alegou ainda a Ré através da sua oposição, uma vez que na data designada para prestar as suas declarações de parte teve de receber tratamento hospitalar, facto que a impediu de as prestar como desejava, que o imóvel arrendado, nos primeiros meses de arrendamento estava com ótimo aspeto visual, aparentava ser um imóvel renovado há pouco tempo.

16°- No entanto, com a utilização do mesmo, rapidamente se apercebeu que os materiais existentes no imóvel eram de fraquíssima qualidade.

17° - A título de exemplo, evidenciou que: as paredes e tetos do imóveis encontram-se danificadas, com rachaduras e cheias de marcas tais como furos.

18°- O piso de madeira todo danificado, riscado e a levantar em certas áreas por causa da humidade sentida no imóvel.

19°- Os eletrodomésticos encastrados, tais como o fogão e o forno, além de velhos, estão totalmente danificados.

20°- Os próprios móveis, na sua maioria de madeira, além de velhos encontram-se igualmente estragados.

21°- A canalização totalmente deficitária em todo o imóvel, dando origem a várias inundações.

22°- Não somente descreveu tais factos, como juntou aos autos fotogramas que comprovavam isso mesmo, mas que não foram tidos em consideração pelo Tribunal “a quo”

23°- A Ré alegou ainda a falta de condições de habitabilidade, que comprometeram e continuam a comprometer seriamente o uso e fruição do locado.

24°- Condições essas que colocaram e continuam a colocar em risco a saúde de quem lá habita, não só adultos como crianças.

25°- Apesar de estar situada no 3° andar de um prédio, a Ré, com a chegada das primeiras chuvas rapidamente se apercebeu de que o imóvel padecia de muita humidade.

26°- Humidade essa que se agravou com o passar do tempo e com o inverno chuvoso.

27°- Esta até esclareceu que, quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes, fazendo inclusive que partes do chão continue a levantar.

28°- Causando sérios riscos de segurança aos adultos e crianças que residem no imóvel.

29°- Quando as paredes secam apresentam manchas, pelo facto da água ter escorrido em dias de chuva.

30°- Chegando ao ponto dos quartos de dormir ficarem inabitáveis.

31°- Até existe mobiliário que contém bolor.

32°- Mobiliário esse propriedade da Ré, uma vez que o imóvel foi arrendado sem mobiliário algum.

33°- Alegou ainda a insistência perante a intermediária os de vários contactos telefónicos, e presenciais para a resolução de todos os problemas relatados.

34°- Resolução essa que nunca chegou.

35°- Sem nunca ninguém sequer ter tido a preocupação de ir verificar os danos, defeitos e humidade existentes.

36°- Até se pode verificar-se pelo respetivo certificado energético, ao qual é atribuído a classificação E, de que o imóvel padece efetivamente de isolamento término e cujos matérias de construção e/ou remodelação são de fraca qualidade.

37°- O imóvel não é eficiente, muito pelo contrário.

Além do mais,

38°- O imóvel, em dia de chuva, torna-se inabitável, não cumprindo com a expectativa aquando a celebração do contrato de arrendamento.

39°- A garagem da fração nunca foi colocada à disposição da Ré.

40°- Existindo assim privação parcial do gozo da fração de habitação e privação total do gozo da fração de garagem.

41°- Tendo a Ré invocando a exceção do não cumprimento do contrato.

42°- Facto esse desvalorizado pelo Tribunal “a quo”.

43°- Nos termos do artigo 1022.º do CC, a “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.

No entanto,

44°- O contrato de arrendamento apresenta-se como um contrato de natureza bilateral, derivando o mesmo de obrigações, quer para o locador (artigo 1031.º do CC), quer para o locatário (artigo 1038.º do CC).

45°- Existe neste contrato um vínculo de sinalagmaticidade, reciprocidade ou interdependência entre as obrigações do senhorio e as obrigações do arrendatário.

46°- Onde, para o arrendatário nasce o dever de pagar as rendas e para o senhorio o dever de garantir o gozo da coisa por parte do arrendatário.

47°- Da análise do artigo 1022.º do CC pode, com rigor, afirmar-se que são três os elementos constitutivos do contrato de locação: concessão do gozo de um prédio urbano, isto é, o aproveitamento das suas utilidades, seja pelo simples uso, seja pelo seu uso e fruição, no todo ou em parte; feita por certo prazo; mediante o pagamento de uma retribuição.

Ora,

48°- Dispõe o artigo 428º, n.º 1, do CC, que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.

49°- Ora, uma vez que não foi assegurado à Ré, enquanto arrendatária, o gozo do imóvel para os fins a que se destina, o arrendatário pode invocar a «exceptio non adimpleti contractus» para recusar o pagamento da renda.

50°- Ou seja, a «exceptio» pressupõe a inexecução temporária do contrato,

51°- A este respeito podemos ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 09.05.96, In Col. Jur., 1996, 3, 87, o seguinte “se o locatário paga a renda e o locador não repara as deteriorações do imóvel que é obrigado a garantir, aquele pode suspender o pagamento de toda a renda, quando se trata de não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa ou de parte dela, no caso de privação parcial do gozo imputável ao locador”.

Continuando,

52°- “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”

53°- “Daqui decorre que subjacente à excepção de não cumprimento do contrato deve estar em causa a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação, relação essa que ocorre, como antes já vimos, no contrato de arrendamento”.

54°- Assim, nas palavras de Calvão da Silva “justifica-se a recusa do credor a cumprir, alegando a exceptio non adimpleti contractus, porque a sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respectivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspectividade. Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória. Sendo as obrigações interdependentes, com uma a constituir a causa determinante da outra, o não cumprimento de uma (que não tem de ser necessariamente imputável a dolo ou culpa do devedor) faz desaparecer a sua contrapartida – causa e razão de ser da outra -, o que legitima a exceptio, meio de conservação do equilíbrio sinalagmático. Pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, porquanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional). (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 330)”.

55°- Prossegue dizendo que “no entanto, importa não esquecer que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem sempre as partes proceder de boa-fé (cf. art.º 762º, nº2 do Código Civil).”

56°- Tal como refere João José Abrantes, em a A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112 “para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boafé, exige-se a verificação de uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra”.

57°- Ao contrário do que ficou explanado na Douta Sentença, assiste sim, à Ré o direito de suspender o pagamento das rendas, enquanto não for proporcionado o efectivo e total gozo do locado.

58°- Muito mal andou a Douta Sentença que nem se preocupar em fazer uma inspeção ao imóvel em questão.

59°- Onde nem foi tomada em consideração a prova documental crucial apresentada pela Ré.

Concluindo,

60°- A Douta Sentença recorrida, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 428° do CC e artºs 2º, 9º, 13º, 18º e 20º da CRP.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogada a douta sentença recorrida”.

A recorrida não apresentou contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar a validade da resolução do contrato de arrendamento comunicada à recorrente pela recorrida.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

A. Por documento outorgado a 1/10/2022, a A..., S.A. declarou dar de arrendamento à requerida a fração autónoma designada pela letra “F”, destinada a habitação, correspondente Habitação ..., no piso ..., do corpo ..., com entrada pelo n.º ...9, sito na Rua ..., Rua ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...53, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...84, com prazo de duração inicial de 3 anos, renovável por 1 ano, salvo denúncia das partes.

B. A renda inicialmente prevista era de € 790,00 (setecentos e noventa euros), devendo ser paga até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a renda dissesse respeito.

C. A aquisição, por compra, da fração acima identificada mostra-se registada na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gia, freguesia ..., a favor da requerente desde 11.11.2021 (ficha n.º ...53/20050114..).

D. As partes declararam, no documento referido em A, a entrega, pela requerida, do pagamento das rendas relativas a outubro e novembro de 2022 e ainda a entrega, pela requerida, de valor igual a um mês de renda a título de caução para garantia “das obrigações decorrentes do presente contrato”.

E. Por carta registada enviada para a requerida e endereçada para a morada para tanto indicada no documento referido em A, a requerente declarou o contrato de arrendamento resolvido por falta de pagamento de rendas de dezembro de 2022 a agosto de 2023.

F. A fração tem o certificado energético com a letra E.

III. 2. E julgou não provados os seguintes factos:

1. Em 01/10/2022, a B..., com o NIPC ...45, celebrou com a Requerida um Contrato de Arrendamento para Habitação Permanente, com prazo certo, tendo por objecto a fração autónoma identificada em A.

2. a requerida pagou as rendas relativas aos meses de dezembro de 2022, janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho e agosto de 2023 – 9 meses –, no valor total de € 7.110,00.

3. A requerida desde que foi habitar aquele local sempre pagou a renda.

4. A requerida nunca contactou, quer telefonicamente, quer presencialmente com o proprietário do Imóvel.

5. O documento referido em A foi para Lisboa para alguém o assinar, não sabendo a requerida quem o assinou nem quando.

6. A requerida não mantém na sua posse duplicado do documento referido em A.

7. Para além da fração referida em A ficou ainda estipulado entre as partes o acesso à garagem pertencente a este imóvel.

8. A designada garagem nunca foi disponibilizada nem colocada à disposição da requerida.

9. Esta contactou diversas vezes a Requerente através do agente que intermediou todo o arrendamento, para lhe entregar a chave dessa fração e assim poder ter acesso à mesma mas este nunca atendeu nem tão pouco retomou a chamada.

10. Tendo sido contactada diversas vezes a agência imobiliária que intermediou o presente arrendamento, simplesmente iam referindo que iriam falar com o proprietário mas nunca apresentaram chave alguma da fração.

11. Desde a assinatura do documento referido em A e até à presente data [data da oposição] não tem acesso a requerida à fração.

12. Desde o início foi igualmente requerido ao intermediário a entrega das chaves da caixa de correio, mas nunca foram entregues.

13. O imóvel, nos primeiros meses de arrendamento estava com ótimo aspeto visual, parecia um imóvel remodelado há relativamente pouco tempo.

14. No entanto, com a utilização do mesmo, rapidamente se apercebeu que os materiais existentes no imóvel eram de fraquíssima qualidade.

15. As paredes e tetos do imóvel encontram-se com rachaduras e cheias de marcas tais como furos, o piso de madeira todo riscado e a levantar em certas áreas por causa da humidade sentida no imóvel, os eletrodomésticos encastrados, tais como o fogão e o forno, além de velhos, estão totalmente danificados, os próprios móveis, na sua maioria de madeira, além de velhos encontram-se igualmente estragados, canalização deficitária em todo o imóvel.

16. Apesar de estar situada no 3° andar de um prédio, a requerida começou a aperceber-se de que o imóvel padecia de muita humidade.

17. Humidade essa que se agravou com o tempo.

18. Quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes, fazendo inclusive que partes do chão levante.

19. Quando as paredes secam apresentam manchas da água ter escorrido.

20. A requerida tentou entrar em contacto com a requerente através do intermediário, no entanto mais uma vez nunca as chamadas foram atendidas nem tão pouco devolvidas.

21. A imobiliária intermediária simplesmente referiu que iria falar com o proprietário sobre as queixas apresentadas mas o certo é que até ao momento ninguém quis saber do assunto das chaves da garagem, das chaves da caixa de correio, do problema das humidades e demais questões.

22. A humidade existente no imóvel, colocou e continua a colocar em risco a saúde de quem lá habita, não só adultos como crianças.

23. Quando o tempo está húmido os quartos de dormir ficam insuportáveis.

24. Até existem móveis que contêm bolor.

25. O imóvel, foi arrendado sem bens móveis, tendo sido esses colocados no imóvel pela Requerida.

26. Parte de tais bens encontram-se danificados por causa da humidade existente no imóvel.

27. O que causa sérios problemas de saúde a quem lá habita.

28. O imóvel padece de isolamento térmico e cujos matérias de construção e/ou remodelação são de fraca qualidade

29. Tal como elucida o certificado energético junto aos autos, foi esse imóvel avaliado como classificação energética de classificação E.

30. O imóvel, em dias de chuva, torna-se inabitável.

31. Apesar das diversas insistências, nunca tais problemas foram solucionados.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Entre Autora e Ré foi celebrado contrato de arrendamento, com prazo de duração inicial de 3 anos, renovável por 1 ano, salvo denúncia das partes, tendo por objecto a fracção identificada no ponto A) dos factos dados como provados, mediante renda inicialmente fixada em € 790,00 (setecentos e noventa euros), a ser paga até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a renda dissesse respeito.

Reconheceram as partes no documento que incorpora o referido contrato, a entrega, pela requerida, do pagamento das rendas relativas a Outubro e Novembro de 2022 e ainda a entrega, pela requerida, de valor igual a um mês de renda a título de caução para garantia “das obrigações decorrentes do presente contrato”.

Resulta ainda comprovado nos autos que, por carta registada enviada para a requerida e endereçada para a morada para tanto indicada no contrato em causa, a requerente declarou o contrato de arrendamento resolvido por falta de pagamento de rendas de Dezembro de 2022 a Agosto de 2023.

A lei – artigo 1022.º do Código Civil – define o contrato de locação como “o contrato pelo qual uma das partes obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um coisa, mediante retribuição”.

O contrato de arrendamento é um contrato bilateral, sinalagmático. Através da sua celebração estabelecem-se obrigações a cargo do senhorio e do inquilino.

É também um contrato oneroso: “o sacrifício patrimonial que cada uma das partes suporta é compensado, do seu ponto de vista, pelo benefício que aufere[1].

O pagamento da renda constitui obrigação característica do contrato de arrendamento, recaindo sobre o locatário, nos termos da alínea a) do artigo 1038.º do Código Civil.

O pagamento da renda corresponde à contrapartida devida pelo gozo da coisa que o contrato de arrendamento concede ao arrendatário, constituindo “a fundamental obrigação que lhe incumbe, formando a sua contraprestação do sinalagma e constituindo, incontestavelmente, uma obrigação em sentido próprio”[2].

Com fundamento na falta de pagamento das rendas de Dezembro de 2022 a Agosto de 2023 a Autora procedeu à resolução do contrato de arrendamento celebrado com a Ré.

Fê-lo ao abrigo da faculdade conferida pelo n.º 1 do artigo 1083.º do Código Civil que estabelece que “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais do direito, com base em incumprimento pela outra parte”.

O direito de resolução é um direito potestativo extintivo, que depende de um fundamento: exige a verificação de um facto que crie esse direito, isto é, tem de ocorrer um facto ou situação – no caso, o incumprimento ou inadimplência - a que a lei atribua como consequência o desencadeamento desse direito potestativo[3].

Nos termos do n.º 3 do citado artigo 1083.º, “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte”.

Tendo a Autora procedido à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento com o citado fundamento, deduziu a Ré oposição invocando factualidade que pretende integrar na figura da excepção do incumprimento[4], alegando, designadamente, que a senhoria nunca lhe facultou o gozo da garagem, também objecto do contrato, nem lhe entregou as chaves da caixa do correio, e a falta de condições da fracção para lhe proporcionar o fim a que se destina.
Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Civil, “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
Segundo o acórdão da Relação do Porto, 18.02.2003 – www.dgsi.pt -, “A excepção de inadimplência consiste na recusa de executar a sua prestação por parte e um dos contraentes quando o outro a reclama, sem, por seu turno, ter ele próprio executado a respectiva contraprestação.
A exceptio non adimpleti contractus a que se refere o art. 428°, n° l, do C.C. pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra (…).
Trata-se de uma excepção material dilatória, porque corolário do sinalagma funcional que a legitima.
Ao Autor que exige o cumprimento opõe o réu o princípio substantivo do cumprimento simultâneo próprio dos contratos sinalagmáticos, em que prestação de uma das partes tem a sua causa na prestação da outra.
O excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento; apenas recusa a sua prestação até à realização da contraprestação pela outra parte”.
O instituto da excepção do não cumprimento opera quer nas situações de incumprimento total, quer nas situações de incumprimento parcial ou defeituoso, podendo este meio de defesa ser exercido por um dos contratantes quando a contraparte apenas cumprir parcialmente ou oferecer a prestação em termos parciais ou defeituosos. Quando o contratante que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação.

Pela designada exceptio non rite adimpleti contractus, o demandado pode recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada[5].

A inexactidão do cumprimento tanto pode ser quantitativa (prestação parcial, a que se seguem os efeitos do não cumprimento em relação à parte da prestação não cumprida - mora ou incumprimento definitivo), como qualitativa (diversidade na prestação, deformidade, vício ou falta de qualidade da mesma; isto é, a inexecução da obrigação pode ocorrer não apenas quando o devedor nada faz para a executar, como ainda quando a realiza de forma deficitária ou mal executada[6].

Todavia, sendo embora a exceptio non rite adimplenti contractus admissível em caso de incumprimento parcial ou defeituoso, como pacificamente se vem entendendo desde os tempos do Código de Seabra (sem prejuízo da adequação e proporcionalidade entre a ofensa do direito e o exercício da excepção, como imposto pelo princípio da boa fé)[7], tal excepção “pressupõe que a prestação do contraente ao qual é oposta a excepção ainda é possível, atento o carácter dilatório desta excepção: a sua finalidade é, precisamente, retardar a prestação até que a contraparte cumpra[8].

À Ré, que alegou matéria passível de integração no instituto da excepção de não cumprimento, incumbia o ónus probatório correspondente, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil. De tal tarefa se demitiu totalmente a Ré, nenhuma prova tendo sido produzida, como espelha a acta da audiência de julgamento.

Sem se atrever a impugnar a decisão relativa à matéria de facto, replica, todavia, a Ré/Recorrente os factos já invocados no articulado da oposição – não se dando, porventura, conta que a repetição da alegação dos mesmos factos não possui a virtualidade da sua demonstração, carecendo a mesma de produção de prova que confirme a existência/veracidade dos mesmos... – para clamar pela pretendida revogação da sentença.

Não se desconhece o ditado “Quem conta um conto acrescenta um ponto”, a despropósito, invocado pela recorrente.

Talvez, no caso, devesse o mesmo ajustar-se antes à afirmação “quem conta um conto, deve-o provar ponto por ponto”. Para evitar, pelo menos, que o simples contar do conto possa confundir-se com litigância de má fé...

Improcede, naturalmente, o recurso, cuja falta de fundamento é manifesta.

*




Síntese conclusiva:

………………………………………………………….

………………………………………………………….

………………………………………………………….


*


Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: a cargo da apelante – artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


Notifique.

Porto, 06.03.2025.

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires

António Carneiro da Silva

Isabel Rebelo Ferreira

_____________________________________
[1] M. Januário Gomes, «Constituição da Relação de Arrendamento Urbano», pág. 115.
[2] Pinto Furtado, “Manual de Arrendamento Urbano”, vol. I, 5.ª ed. Revista e Actualizada, Almedina, pág. 542.
[3] Cfr. João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, Scientia Ivridica, Braga, 1991, págs. 130 e seguintes.
[4] Os factos por ela alegados nas conclusões 4.ª a 7.ª não afectam a validade, formal ou substancia, do contrato, nem ela, apesar dessa alegação, lhe imputa qualquer vício.
[5] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., pág. 410 e em Parecer Col. Jur., Ano XII, 4°, pág. 21; Vaz Serra, “Excepção de contrato não cumprido”, BMJ 67-37; Meneses Cordeiro, “Violação Positiva do Contrato”, ROA, Ano 41, pág. 181; Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, pág. 337; João José Abrantes, “A excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil”, pág. 92; Acórdão. S.T.J. de 5-1-80, BMJ. 293-365; Acórdão S.T.J. de 9-12-98, BMJ. 322-337; Acórdão. S.T.J. de 30-11-00, Colectânea de Jurisprudência, STJ VIII, 3º, 150.
[6] Cfr. Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, Obra Dispersa, Vol. I, pág. 168/169); José João Abrantes, ob. cit., pág. 93.
[7] Cfr. acórdãos da Relação do Porto de 05.05.2014 e de 16.06.2014, processos nºs, respectivamente, 17113/12.9IYPRT.P1 e 5910/10.7TBMAI.P1, ambos em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do STJ, 13/5/2003, www.dgsi.pt