Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3634/15.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: CERTIFICADO DE ÓBITO
DECLARATÁRIO
REGISTO
CONSERVATÓRIA DE REGISTO CIVIL
FAMILIAR DE PESSOA FALECIDA
LIVRE APRECIAÇÃO
TRIBUNAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MÉDICOS
NATUREZA CÍVEL
RELAÇÃO CONTRATUAL
PACIENTE
LEGES ARTIS
ACTO MÉDICO
TRATAMENTO ADEQUADO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ILICITUDE
LITISCONSÓRCIO
DIREITO
PRÓPRIA VITIMA
Nº do Documento: RP202106083634/15.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O certificado de óbito visa, em primeira linha, confirmar o decesso de uma pessoa, para efeitos de lavrar o respetivo registo na Conservatória do Registo Civil, pelo que um familiar da pessoa declarada falecida não deve, à partida, considerar-se declaratário em face do conteúdo declaratório daquele documento, devendo antes considerar-se terceiro para efeitos de aplicação da norma do n.º 4 do artigo 358.º do Código Civil.
II – Sendo documento particular, o certificado de óbito não tem força probatória plena quanto à causa da morte nele declarada por médico que é réu na ação, ainda que tal declaração seja desfavorável aos interesses daquele e favorável aos interesses do autor, familiar da pessoa falecida, sendo antes passível de livre apreciação pelo tribunal.
III – Apesar de o tribunal ambicionar chegar o mais perto possível da verdade material, o standard probatório operante no processo cível é tão só o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”, consubstanciando-se em duas regras fundamentais: (i) entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
IV – No contrato de prestação de serviços médicos, de natureza cível, na modalidade de “contrato total”, a entidade hospitalar responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de caráter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art. 800.º do Código Civil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente.
V – O resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não deve, em regra, ser considerado como a cura da patologia que estiver em causa, mas sim como o tratamento adequado dessa patologia mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), posto que a prática da medicina encerra, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psico-somáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis. Nessa medida, a obrigação de prestação do ato médico configura-se como uma obrigação de meios, por parte do médico, na obtenção do tratamento adequado.
VI – A conduta omissiva ilícita e culposa causadora da morte de paciente, assumida por médicos no âmbito de uma cirurgia, enquanto auxiliares de entidade hospitalar, de natureza privada, na execução de prestação contratual, constitui fonte geradora de responsabilidade contratual para aquela entidade e, simultaneamente, fonte geradora de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos para a mesma entidade e para os médicos seus auxiliares.
VII – A problemática do concurso da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual é particularmente recorrente em matéria de responsabilidade por atos médicos, muito se dividindo a doutrina acerca da possibilidade de cumular a aplicação de tais regimes para fundamentar pretensão indemnizatória. Por nossa parte, aderimos à tese do cúmulo, admitindo mesmo a possibilidade de o lesado se socorrer das normas de ambos os complexos de regulamentação, podendo inclusivamente combiná-las numa mesma ação, por ser a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima.
VIII – A expressão “em conjunto”, utilizada no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, não representa uma situação de litisconsórcio necessário ativo, antes constitui uma norma que atribui a indemnização, de forma escalonada, a um conjunto de interessados, de acordo com o grau de parentesco considerado relevante. Abstraindo da natureza jurídica da indemnização pela perda da vida, como direito próprio da vítima que se transmite para os familiares identificados ou como direito que se constitui diretamente na esfera dos familiares em consequência da morte, o legislador assumiu naquele preceito, de forma autónoma e fora do quadro do direito sucessório, uma determinada regra atributiva e distributiva da indemnização. Daí a possibilidade de ser reclamada por cada um dos sujeitos a quota-parte da indemnização que lhe caiba e, em caso de litisconsórcio ativo voluntário, poder cada um dos interessados transigir livremente, com os limites do respetivo interesse na causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 3634/15.5T8AVR.P1
[Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 3]
SUMÁRIO:
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ACORDAM os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
I.
1.
B…, por si e em representação dos seus filhos menores C… e D…, intentou ação declarativa de condenação em processo comum contra E…, S.A, Dr. F…, Dr. G… e Dr. H….
Alegou, em síntese, que:
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Concluiu, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento aos Autores de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no montante global de 353.420,47€, bem como os juros de mora contabilizados desde a citação até integral pagamento.
2.
Os Réus F…, G… e H… contestaram conjuntamente, alegando, em resumo:
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Concluíram, pedindo a improcedência da ação.
Mais pediram que seja admitida a intervenção provocada da Sociedade I…, Companhia de seguros SA.
3.
Também a Ré E…, S. A. contestou, alegando, em síntese, que:
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Concluiu, pedindo a improcedência da ação e, subsidiariamente, a redução do montante indemnizatório peticionado; e ainda que qualquer condenação da Ré no pagamento de indemnização deverá considerar que a responsabilidade do seu efetivo pagamento foi transferida para a seguradora Companhia de Seguros K….
4.
Os Autores responderam à exceção de ilegitimidade, pugnando pela sua improcedência.
5.
Admitidas a intervir na ação, as seguradoras ofereceram contestação.
5.1.
Alegou a Interveniente I… – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A.:
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Concluiu pela improcedência da ação.
5.2.
Alegou a Interveniente COMPANHIA DE SEGUROS K…, S. A.:
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Concluiu no sentido da improcedência da ação.
6.
Por requerimento de 19 de maio de 2016, vieram os AA reduzir o valor do pedido em 1257,66€, no que se refere ao subsídio de funeral e discriminar as pensões mensais atribuídas pelo Instituto de Segurança Social, completado por informação prestada a 04 de agosto de 2020.
7.
Em sede de despacho saneador, após dispensa da audiência prévia, foi afirmada a validade e regularidade da instância, com a declaração de improcedência da exceção de ilegitimidade.
8.
Em audiência de julgamento, realizada a 10 de abril de 2019, foi celebrada transação, homologada por sentença.
Não tendo o ilustre mandatário dos AA poderes especiais, no que se refere ao Autor D…, que, entretanto, atingira a maioridade, foi este notificado para ratificar a transação, vindo a declarar que não a ratificava.
Face a essa não ratificação, prosseguiram os autos unicamente entre o Autor D… e os Réus com vista a apurar, no caso de o pedido vir a ser julgado total ou parcialmente procedente, a quota-parte a atribuir ao referido demandante no valor indemnizatório que foi peticionado a título global.
9.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:
“Por todo o exposto:
A - Julgo parcialmente procedente por provada a acção e, em função disso, condeno a Ré E…, S.A a pagar ao Autor D…:
- A quantia de 23.333,33€ (vinte e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), pelo dano de privação do direito à vida da vítima, 27.000,00€ (vinte sete mil euros) por danos morais próprios do autor e a quantia de 21.236,64€ (vinte e um mil duzentos e trinta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos), por danos patrimoniais (lucros cessantes).
Quantias acrescidas dos juros legais contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
B – Improcede o pedido no que se refere aos restantes réus.
Custas na proporção do decaimento.”
10.
Inconformada, a Ré E… interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo (mediante prestação de caução), versando matéria de facto e de direito.
Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Concluiu, pedindo a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido.
11.
O Recorrido D… contra-alegou, com ampliação do objeto do recurso, CONCLUINDO:
A) DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
1. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos actos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.
2. Entre a falecida e a E… foi celebrado um contrato total, abrangendo quer as obrigações atinentes ao internamento hospitalar, quer as obrigações atinentes à prestação de actos médicos. Ora, neste quadro de contrato total é a instituição prestadora do serviço quem responde integralmente perante o paciente credor.
3. Significa isto que a 1.ª Ré/Recorrente é responsável perante o Autor, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC, pelos actos dos 2.º a 4.º Réus na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais actos fossem praticados por aquela devedora.
4. A Ré E… confunde a sua responsabilidade pelos actos ou omissões praticados por qualquer agente utilizado no seu estabelecimento para a execução de prestações com o seu eventual direito de regresso sobre o mesmo pelos valores nos quais for condenada.
5. Atendendo à prova pericial, ao teor da certidão de óbito, às assentadas relativas aos RR F… e G… e às especificidades da prova em matéria de responsabilidade médica, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal “a quo” se não a de dar como provado o facto 40 e como não provado o ponto C).
6. Na certidão de óbito lavrada pela Réu F… consta sem margem para dúvidas que a causa do óbito foi um trombo-embolismo pulmonar (de agora em diante TEP).
7. O Réu F… era o médico que seguia a falecida, conhecendo o seu historial clínico e tendo estado presente ainda durante as manobras de reanimação, pelo que o mesmo colocou como causa da morte aquela que entendeu ser efectivamente, sem estar preocupado com as eventuais consequências em matéria de responsabilidade médica que daí adviriam para si e/ou para a Recorrente.
8. Dos esclarecimentos do Sr. Professor Doutor J… (os seus esclarecimentos encontram-se gravados no CD, das 16:16:00 às 17:09:00, na audiência de 09/03/2020, minutos 01:37 aos minutos 19:32; minutos 19:49 aos minutos 22:26; minutos 27:46 aos minutos 29:30; minutos 30:40 aos minutos 31:17; minutos 37:37 aos minutos 39:10; minutos 39:30 aos minutos 41:19), subscritor do parecer do INML, decorre que apesar de não poder asseverar com 100% de certeza que a causa da morte tenha sido um trombo-embolismo pulmonar, pois que não foi realizada autópsia, essa é a causa mais provável (considera que a probabilidade de ter estado em causa um enfarte do miocárdio é muito reduzida).
9. Também deixa claro que, na qualidade de cirurgião bariátrico, fazendo este género de cirurgias, atenta a massa corporal da falecida, o género de cirurgia, a sua duração e o facto de a doente ter de estar acamada, deveria ter sido administrado o fármaco heparina de baixo peso molecular, indicação que é unânime nas várias guide lines de anestesiologia e cirurgia.
10. Mais explica que atendendo a que as plaquetas da falecida estavam com valores normais não havia contraindicações para a administração de heparina, que permitiria que o sangue ficasse mais fluido.
11. Esclareceu o Senhor Perito que o TEP pode ocorrer no dia seguinte à cirurgia ou até um mês e meio depois da mesma, pelo que mesmo que a heparina não evite o TEP (embora reduza o risco até pelo menos 70%), será o mesmo menos agressivo e mais fácil de tratar.
12. No que aos esclarecimentos do Senhor Perito L… (os seus esclarecimentos encontram-se gravados no CD, das 12:23:12 às 13:18:25, na audiência de 03/06/2020, minutos 05:50 aos minutos 09:43; minutos 11:12 aos minutos 13:45; minutos 17:36 aos minutos 18:41; minutos 19:00 aos minutos 20:40; minutos 20:42 aos minutos 21:46; minutos 23:51 aos minutos 24:03; minutos 33:03 aos minutos 33:51; minutos 37:48 aos minutos 38:51; minutos 38:53 aos minutos 39:46) diz respeito explicou o mesmo que a partir de 35 kg/m2 de índice de massa corporal considera-se estar perante obesidade mórbida, o que é um factor de risco para TEP. Assim, segundo este perito, deveria ter sido feita a profilaxia à falecida, porque se estava perante uma doente obesa que não ia ter um levante imediato.
13. Segundo o Senhor Perito L… não se compreende porque não ficou escrito a razão pela qual foi decidido não administrar a profilaxia, o que leva a supor que nem sequer foi discutida a questão, e isto, nas suas palavras, “é mau!” (dos minutos 11:12 a 13:45 dos seus esclarecimentos).
14. Outro aspecto abordado pelo Senhor Perito prendeu-se com o consentimento informado, que o mesmo considera não passar às vezes de uma fachada porque não é explicado às pessoas e as mesmas não entendem os riscos associados à cirurgia. Considera que no caso em apreço encontra-se pouca informação escrita no processo clinico, ficando sempre a dúvida se foi explicado à doente e se foi ponderada a realização de profilaxia.
15. Relativamente à profilaxia o Senhor Perito entende que numa cirurgia bariatrica a mesma tem de ser sempre feita, que é o que decorre da “Ata Médica Portuguesa 2005” (dos minutos 20:42 a 21:46 dos seus esclarecimentos), pelo que, para si, a hipótese mais provável da causa da morte da falecida M… ter sido uma trombo-embolia pulmonar fulminante (dos minutos 23:51 a 24:03 dos seus esclarecimentos).
16. O próprio Réu G… explica que não foi feita autópsia à falecida porque havia diagnóstico, já que clinicamente o mais evidente, a causa provável, era ser TEP, dado o peso excessivo da paciente a dislipedemia e outros factores (os seus esclarecimentos encontram-se gravados no CD, das 14:39:00 às 16:11:00, na audiência de 09/03/2020; minutos 04:30 aos minutos 06:18; 06:25 aos minutos 08:15; minutos 20:22 aos minutos 21:09).
17. Ficou em assentada na audiência de 09/03/2020 que o Réu G… «disse que a trombo embolia pulmonar será a causa mais provável da morte, embora não comprovada através de autópsia».
18. Quando falamos de negligência médica a consideração da dimensão material-objectiva do ónus da prova reveste-se de extrema importância, permitindo ao julgador a promoção das diligências objectivamente necessárias à indagação instrutória, com particular acuidade na determinação da prova pericial ou de outra.
19. Sendo difícil para o paciente, considerando a especificidade técnica das matérias em presença, a falta de acesso à documentação clínica, o decurso do tempo, a fragilidade pessoal criada pela situação etc...- o ónus da prova, devem fazer-se funcionar as presunções naturais ou hominis.
20. No nosso caso, a morte de M… é o facto conhecido; desconhecida é a origem da mesma, podendo presumir-se que, atendendo ao normal decorrer dos factos nestas situações, tal dano foi produzido por TEP, atendendo ao tipo de cirurgia, à sua duração, ao índice de massa corporal da paciente e ao facto de não lhe ter sido administrada heparina.
21. A prova pericial produzida nos autos permite recorrer à presunção natural, dado decorrer da mesma que, segundo os princípios gerais da vida e o normal acontecer das coisas, atendendo à massa corporal da falecida, ao género de cirurgia, à sua duração, a morte, com um grau de probabilidade muito alto, terá tido a sua causa na não administração da heparina de baixo peso molecular, administração essa recomendada na “Ata Médica Portuguesa 2005” e nas guide lines internacionais, e na não utilização de qualquer outro método profilático.
22. Sabendo que também na prova pericial se não labora no plano das certezas e que os peritos, em especial os peritos médicos, podem não oferecer respostas exactas, nem por isso poderá o julgador dispensar o contributo pericial, ainda que se discuta qual o grau razoável de certeza médica que deve presidir à elaboração do relatório pericial.
23. Resultou provado, nomeadamente através da prova pericial, que a administração de heparina poderia ter evitado a morte de M…, ou pelo menos aumentado a probabilidade de sobreviver. O Perito Sr. Professor Doutor J… deixou claro que o risco de TEP é reduzido até 70% se for administrada heparina e o Perito Sr. Doutor L… também refere que a profilaxia numa cirurgia bariatrica tem de ser sempre feita, que é o que decorre da “Ata Médica Portuguesa 2005”.
24. O instituto da perda de chance não tem aplicabilidade no caso dos autos, na medida em que se destina apenas às situações nas quais não é possível estabelecer um nexo de causalidade adequado entre a conduta do agente e o dano (final), o que não é o caso.
25. No que diz respeito à legitimidade activa do Autor D…, é uma questão já transitada em julgado, na medida em que na Petição Inicial, nos artigos 1.º a 4.º, foi alegada e provada aquela legitimidade e no despacho saneador proferido a 14/11/2016 ficou lavrado que «as partes têm personalidade e capacidade judiciárias». Nenhuma das partes recorreu desta decisão.
26. Por sua vez, a 08/11/2019 foi proferido douto despacho, fazendo prosseguir os autos unicamente entre o autor D… e as RR, com vista a apurar, caso o pedido viesse a ser julgado procedente, a quota parte que caberia ao referido demandante no valor indemnizatório que foi peticionado a título global, que também não foi alvo de qualquer recurso à data, nem agora com o recurso da decisão final.
27. De qualquer forma, a indemnização pela “perda do direito à vida da vítima”, bem como pelos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares referidos no art. 496.º n.º 2 e 3 do CC constitui direito próprio das pessoas aí elencadas.
28. Independentemente da aceitação ou não da herança, é um direito próprio do sucessor, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.º 2 do artigo 496.º, cabendo-lhe uma parte sobre o valor encontrado, nos termos do artigo 2139.º do Código Civil.
29. O autor poderia exigir alimentos à lesada, neste caso sua mãe, nos termos do artigo 2009.º, n.º 1, al. c) do Código Civil, pelo que tem direito a indemnização por danos patrimoniais, nos termos do artigo 495.º, n.º 3 do Código Civil.
30. Com a morte do lesado directo ocorre efectiva perda patrimonial, em termos de previsíveis danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efectivamente prestando, ou, quando não assim, poderia eventualmente vir a prestar, à família.
31. Nos termos do artigo 496.º do C. Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494.º, ou seja, grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
32. Não podem restar quaisquer dúvidas de que, no caso em apreço, os danos sofridos pelo Autor, dada a sua gravidade, são indemnizáveis.
B) DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
33. Na hipótese de se entender que a condenação por responsabilidade civil contratual, nos termos do art. 800.º do C.C., da RÉ E… está dependente da condenação solidária dos 2.º a 4.º RR a título de responsabilidade extracontratual (o que só por mero dever de patrocínio se equaciona), encontram-se preenchidos todos os pressupostos legais (facto ou acto humano voluntário; a ilicitude ou antijuridicidade do mesmo; a imputação do facto ao lesante ou agente; a ocorrência de um dano ou lesão; o nexo de causalidade entre o facto e o dano) para tal condenação dos 2.º a 4.º RR.
34. Caso seja entendimento deste douto Tribunal da Relação que a Recorrente não poderá ser responsabilizada pelos danos morais e patrimoniais causados ao Autor D…, então sempre deverão ser condenados solidariamente os 2.º a 4.º RR no pagamento desses danos, pelos montantes arbitrados doutamente na sentença recorrida.
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Concluiu no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso e, subsidiariamente, admitida a ampliação do objeto do recurso e apreciando a responsabilidade civil extracontratual solidária dos RR Dr. F…; Dr. G… e Dr. H… pelo pagamento da indemnização a titulo de danos morais e patrimoniais a que o Autor tem direito, condenando-os por se verificarem todos os requisitos legais para o efeito.
12.
Também contra-alegaram os co-Réus F…, G… e H…, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1 – M… apresentou-se na E…, S.A em 10 de Janeiro de 2014 para uma consulta de uma situação de obesidade, acabando por ser observada pelo réu F…, ao tempo ao serviço da E… e seu Director Clínico que acabou por sugerir-lhe a possibilidade de realização de cirurgia bariátrica, o que a ré aceitou;
2 – essa cirurgia acabou por ser contratualizado entre a ré E… e a M…, tendo a cirurgia sido assegurada pela ré, através dos médicos RR, todos ao tempo utilizados pela E… ao seu serviço e que asseguraram o cumprimento dessa obrigação assumida pela E…;
3 – a Lúcia foi internada na E… no dia 19 de Fevereiro de 2014 para a realização da cirurgia que, depois do cumpridos todos os procedimentos preparatórios, acabou por ser realizada, nesse mesmo dia;
4 – na sequência dessa intervenção e no dia 23 de Fevereiro de 2014, data para a qual, atenta a boa evolução do quadro clínico post-operatório, estava prevista a sua alta, foi todavia declarado o óbito da M…;
5 – atenta a situação relatada a questão da indemnização dos danos resultantes da sua morte, deve ser tratada no âmbito da responsabilidade contratual, nos termos do art. 800º e 799º do Civil;
6 – esta responsabilidade contratual consome a eventual responsabilidade extracontratual dos RR médicos, porquanto é a mais favorável aos interesses da lesada, atentas sobretudo as regras do ónus da prova que, em tal domínio, e como resulta do mencionado art. 799º, nº 1 do Civil, imputam ao devedor a obrigação de provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua;
7 – consequentemente, e nos termos do indicado art. 800º do Civil, a responsável pela pagamento da indemnização requerida, deve ser em exclusivo a ré E…, que é a exclusiva devedora no contrato celebrado com a M…;
8 – se acaso, como se considera que deve acontecer, vier a verificar-se a necessidade de alteração da matéria de facto dada como provada, designadamente a alteração do facto 40 considerado provado, ficando sem determinação a causa da morte da M…, destruído fica o nexo de causalidade entre o facto imputado aos RR médicos – a não administração de heparina de baixo peso – e a morte da Lúcia e, consequentemente, a não imputação do dano morte a facto dos RR;
9 – em nenhum caso, pois, poderá resultar o renascimento da responsabilidade extracontratual perante a improcedência da responsabilidade contratual da ré E…;
10 – esta responsabilidade contratual será sempre, em qualquer dos casos, o suporte exclusivo da indemnização por danos quer patrimoniais quer não patrimoniais a fixar para ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo autor, se houverem que ser fixados.
13.
Contra-alegou ainda a Interveniente N… – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A.,
CONCLUINDO:
1. Não se conformando com a douta decisão proferida nos autos, a qual, veio julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, condenando a Ré E…, S.A., a pagar ao Autor D…, o montante total de €71.569,97, absolvendo os restantes Réus do pedido formulado pelo Autor, vem a Ré E…, ora Recorrente, agora insurgir-se, requerendo a reapreciação da matéria de direito, designadamente, no que respeita à imputação de responsabilidade à Recorrente nos termos do artigo 800.º do Código Civil, por entender que existe uma interpretação errada da responsabilidade civil dos profissionais médicos em instituições de saúde privada, apresentando argumentação que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, não poderá, absolutamente, proceder.
2. A Ré E… disponibilizou à falecida, no âmbito da sua atividade, os meios técnicos e humanos de que dispunha para o efeito, designadamente, os serviços do Dr. F…, o qual desempenhava as funções de médico cirurgião naquela entidade hospitalar.
3. A falecida deslocou-se às instalações da Ré E…, para receber cuidados médicos, independentemente do médico que os iria prestar.
4. A falecida limitou-se a escolher o estabelecimento de saúde onde pretendia ser observada e posteriormente, intervencionada, não tendo a sua decisão sido influenciada pelo sujeito que iria prestar os cuidados médicos de saúde.
5. Para além dos serviços do Dr. F…, a Ré E…, disponibilizou os serviços do Dr. G… e do Dr. H… à falecida, os quais não foram especificamente escolhidos pela mesma.
6. A Ré E… estabeleceu uma relação contratual com a falecida desde o momento que a mesma começou a ser seguida naquela unidade de saúde, designadamente, desde a primeira consulta, enquanto utente do hospital.
7. A Ré E… disponibilizou os meios humanos necessários à prestação da sua atividade prestada, isto é, os serviços dos médicos que ali desempenhavam funções.
8. Tanto assim é que o pagamento dos cuidados de saúde prestados pelos médicos, foi faturado na sua totalidade pela Ré E… e não pelos médicos enquanto profissionais individuais e independentes daquela instituição.
9. Assim, os serviços prestados pela Ré E…, foram faturados pela mesma junto da O… Associação de Cuidados de Saúde, porquanto se tratava do sistema de saúde da falecida.
10. Tendo entendido e bem o Tribunal a quo que “No caso de os serviços serem prestados em instituição hospitalar privada, esta responde, pelos actos de todo o pessoal que utilizar no cumprimento das suas obrigações (art. 800º do Código Civil), incluindo-se nesse pessoal os médicos que tiver ao seu serviço (cf. explicitamente, neste sentido Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, in “Responsabilidade Médica em Portugal, publicado in BMJ, n.º 332, pág. 51, referido na obra supra citada).”.
11. E neste sentido, veja-se o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 3670/18.0T8VIS.C1, de 11.02.2020:
“Para isso, importa ter em conta a tipologia que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, págs. 684/692) tipologia que assim vem indicada: 1) “contrato total”, que é um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos); 2) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações); 3) “contrato dividido”, que é aquele em que a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).
No primeiro e segundo casos, haverá responsabilidade contratual da clínica, por todos os danos ocorridos, pois de acordo com o art. 800º do CC, a clínica responde pelos actos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente. No terceiro caso, a clínica não é responsável pelos actos médicos mas apenas relativo aos actos de internamento, Neste caso há dois contratos separados, respondendo o médico pelo seu próprio incumprimento.
Numa situação dessas, recairá sobre a clínica o ónus de prova de que se trata de um contrato dividido e não de um contrato total, nesse sentido se tendo pronunciado também a Entidade Reguladora da Saúde (Recomendação nº 1/09, de 19.2).”. (negrito nosso)
12. A responsabilidade pela atuação dos médicos aqui Réus foi assumida pela Ré E…, na qualidade de prestadora de serviços de saúde, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 800.º, n.º 1 do Código Civil.
13. Pelo que, a Ré E… responde, “pelos actos de todo o pessoal que utilizar no cumprimento das suas obrigações”, conforme entendeu e bem a douta sentença recorrida.
14. Perante a factualidade supra descrita, dúvidas não restam de que estaremos sempre perante o denominado “contrato total”, estabelecido entre a Ré E… e a falecida, o qual englobava uma universalidade de serviços, entre eles, os serviços médicos dos seus prestadores de serviços, que comporta responsabilidade contratual, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 800.º, enquanto responsável pelos atos praticados pelos seus “auxiliares”.
15. Nessa medida, e atendendo a tudo quanto ficou exposto, deverão improceder, in totum, as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente quanto à matéria da imputação de responsabilidade à recorrente nos termos do artigo 800.º do código civil, sob pena de violação do disposto no artigo 800.º do Código Civil, devendo ser mantida a douta sentença proferida nos autos no que a esse ponto respeita, absolvendo-se a Recorrida de todos os pedidos contra si formulados, só assim se fazendo Justiça.
II.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, as questões a decidir no presente recurso, são as seguintes:
a) Se existem razões válidas para modificar a decisão da matéria de facto, no que concerne ao ponto 40) dos factos provados e à alínea C) dos factos não provados; e,
b) Se se justifica a alteração da solução jurídica dada ao caso pela 1.ª instância, nos termos pretendidos pela Recorrente.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
1.1.
Factos julgados provados pela 1.ª instância
O tribunal de que vem o recurso julgou provados os seguintes factos:
1.1.1 – M… faleceu no dia 23 de fevereiro de 2014 nas instalações da 1ª Ré E…, com a idade de 38 anos.
1.1.2 – O aqui autor D… era filho da falecida Lúcia Conceição e nasceu a 05 de agosto de 1998.
1.1.3 - A M… deu entrada nos Serviços da 1.ª Ré em 10 de janeiro de 2014 para consulta sobre uma situação de obesidade de que padecia e que tinha cerca de 10 anos de evolução, tendo sido observada pelo 2.º Réu.
1.1.4 - A M… referiu ainda ao 2.º Réu um aumento de peso de 20 Kg desde setembro de 2013.
1.1.5 - Nessa consulta de 10 de janeiro de 2014 e após exame apresentava um índice de massa corporal (IMC) de 37,5 (altura 1,667 m e 101 Kg).
1.1.6 - A M… apresentava patologia associada dislipidémia, coxartrose, discopatias e hérnia do hiato confirmada por endoscopia digestiva alta, para além de patologia da tiroide.
1.1.7 - A paciente não apresentava hipertensão, diabetes ou insuficiência venosa em membros inferiores (varizes).
1.1.8 - Constava ainda do quadro clínico da paciente uma cirurgia prévia, relativa a uma cesariana a que havia sido submetida, sem que tivessem sido registados quaisquer incidentes anestésicos ou cirúrgicos.
1.1.9 - A falecida M… já era seguida na E… desde 2008, nomeadamente em Ginecologia e Gastrenterologia.
1.1.10 - O cirurgião analisou a história clínica da doente e prescreveu os exames de rotina pré-operatória preparatórios da cirurgia bariátrica, a saber: estudo radiológico do tórax, eletrocardiograma, ecografia abdominal e análises ao sangue com hemograma e estudo da coagulação, glicemia, ionograma e estudo da função renal e hepática.
1.1.11 - Os resultados dos exames revelaram padrões dentro da normalidade expectável para aquela doente em concreto e ausência de qualquer evidência de risco de complicações cardíacas, pulmonares ou outras, não existindo nenhum dado clínico objetivo que desaconselhasse a cirurgia.
1.1.12 - A M… foi informada pelo 2º Réu sobre a possibilidade de realização de cirurgia bariátrica, no caso concreto de gastrectomia vertical, habitualmente designada por “sleeve” por via laparoscópica.
1.1.13 - O cirurgião informou a doente sobre o procedimento cirúrgico proposto e os respetivos riscos e benefícios previsíveis.
1.1.14 - Ciente do procedimento cirúrgico, dos riscos e dos benefícios previsíveis, a doente M… aceitou realizar a cirurgia, e assinou o consentimento informado que lhe foi presente por este médico, pelo qual declarou nomeadamente estar ciente dos riscos, ausência de garantia quanto aos resultados do procedimento e ter tido oportunidade de esclarecer todas as dúvidas
1.1.15 - A doente foi previamente avaliada pelo médico anestesiologista (4.º Réu) que analisou os resultados dos exames de rotina pré-operatória e constatou todos os parâmetros da doente dentro da normalidade e ausência de qualquer dado clínico objetivo que desaconselhasse a realização da intervenção sob anestesia geral.
1.1.16 - A cirurgia a realizar era uma cirurgia breve, com duração de cerca de 60 minutos, com mobilização precoce da paciente, de baixo risco sendo classificada, pelo médico anestesiologista, 3.º réu, com ASA II.
1.1.17 - A M… foi internada para realização da cirurgia, nos Serviços da 1.ª Ré, em 19 de fevereiro de 2014, tendo sido novamente reavaliada pelos 2.º, 3.º e 4.º Réus, para a realização da cirurgia bariátrica, concretamente gastrectomia “sleeve” por via laparoscópica.
1.1.18 - Foi cumprida a avaliação pré-operatória de enfermagem, foram monitorizados os sinais vitais da paciente e foi administrada a medicação prescrita pelos médicos e na posologia recomendada.
1.1.19 - Foi registada a admissão da doente no Bloco Operatório às 12:00 horas, seguiu-se a avaliação de enfermagem, a monitorização da doente, a preparação do procedimento anestésico, a entubação da doente e a indução da anestesia pelo anestesiologista.
1.1.20 - Só depois de todos estes procedimentos cumpridos, pôde ser iniciado o procedimento cirúrgico, o que aconteceu entre as 12h15m e as 12h30m.
1.1.21 - Às 14:00 horas a doente já tinha saído do bloco operatório e já se encontrava no recobro, tendo a intervenção cirúrgica decorrido sem qualquer incidente, com a M… sempre estabilizada.
1.1.22 - O período pós-operatório decorreu nos dias 19, 20, 21 e 22 de fevereiro, tendo a M… iniciado o plano alimentar 48 horas após a intervenção cirúrgica, segundo a dieta prescrita pela nutricionista da E…, tolerando a alimentação
1.1.23 – Durante o período pós-operatório referiu ter dores abdominais, dormir mal na noite de 19 de fevereiro e náuseas a 20 de fevereiro.
1.1.24 - Na mesma altura, iniciou o levante que tolerou, recuperando a autonomia nas atividades de vida diária, apesar de continuar a ser ajudada por auxiliar de ação médica por precaução, referindo, no entanto cansaço a 22 de fevereiro e recusando o levante ao almoço desse mesmo dia.
1.1.25 - Estava habitualmente calma, orientada, consciente, hidratada e bem - disposta, respirava espontaneamente e sem necessidade de suporte de oxigénio desde que saiu do bloco operatório.
1.1.26 - Os sinais vitais (pulsação, pressão arterial, temperatura, gasimetria) situavam-se dentro dos padrões normais e sem oscilações.
1.1.27 - Atenta a boa evolução do quadro clínico no pós-operatório, a doente tinha alta prevista para o dia 23 de fevereiro de 2014.
1.1.28 - Pelas 10 horas do dia 23 de fevereiro de 2014, quando se encontrava na cadeira de higiene começou a referir que não se estava a sentir bem e pediu ajuda à auxiliar.
1.1.29 - Logo de seguida a M… sofreu uma lipotimia (perda de força muscular), tendo sido transportada para a cama onde foi monitorizada.
1.1.30 - A M… apresentava uma frequência cardíaca de 127p/mim. e uma Sat O2 47%, sendo constatadas alterações nos sinais vitais (pressão arterial e pulsação).
1.1.31 - Foi de imediato colocado a soro e administrado O2 6L/min. por máscara e adrenalina.
1.1.32 - As saturações do O2 mantiveram-se baixas, estando a M… agitada com dores no peito, e referindo que não conseguia respirar.
1.1.33 - A frequência cardíaca baixou e foram iniciadas as manobras de reanimação
1.1.34 - As manobras de reanimação foram executadas através de fármacos, de massagem cardíaca e ventilação com entubação orotraqueal e mantiveram-se até às 12.45 horas, hora em que foi verificado o óbito.
1.1.35 - Durante as manobras a doente recuperava o ritmo cardíaco, mas voltava logo de seguida a entrar em paragem cardiorrespiratória, até que foi declarado o óbito da doente.
1.1.36 - Nesse mesmo dia 23 de fevereiro de 2014, os serviços da E… encetaram diligências no sentido da realização da autópsia, sendo contactado o Hospital de Aveiro – por ser o local mais próximo da E… onde poderia ser realizada a autópsia – para ser transferido o corpo da Senhora D. M… para a morgue desse Hospital no mesmo dia.
1.1.37 - Quando terminou a cirurgia referida no ponto 20, o ora 2.º R. teve notícia do falecimento de seu irmão, deslocando-se a Lisboa, onde este residia, a fim de velar o corpo de seu irmão que foi autopsiado e assistir às suas cerimónias fúnebres.
1.1.38 - Já na sua chegada à cidade de Aveiro foi confrontado com o pedido do marido da falecida M… para que evitasse a autópsia, ao que o réu acedeu.
1.1.39 - Emitiu a certidão de óbito, onde inscreveu como causa de morte tromboembolismo pulmonar.
1.1.40 - A morte da M…, deveu-se a tromboembolismo pulmonar.
1.1.41 - Os 2.º, 3.º e 4.º Réus não procederam à administração do fármaco heparina de baixo peso molecular (HBPM) à falecida M….
1.1.42 - A heparina de baixo peso molecular é uma droga que faz a profilaxia da embolia pulmonar e é a chave para a diminuição da morbilidade e mortalidade associadas ao TEV.
1.1.43 - A administração da referida heparina de baixo peso, no pré e pós-operatório da M…, atentas as suas características físicas de obesidade e da dislipidémia bem como o facto de ser uma cirurgia com anestesia geral, por laparoscopia, bem como a sua duração para além de uma hora, era profilaxia necessária.
1.1.44 - Sendo certo que os 2.º, 3.º e 4.º Réus também não prescreveram e aplicaram à M… outros métodos profilácticos, tais como meias de compressão elástica, ou de compressão pneumática intermitente.
1.1.45 - De acordo com o “P…” o risco de TEV na pessoa da M…, era de Alto Risco, sendo recomendado, in casu o HBPM mais os meios mecânicos descritos.
1.1.46 - A aplicação da profilaxia antitrombólica – heparina de baixo peso molecular – apresenta como contraindicação o sangramento que pode causar no pós-operatório.
1.1.47 - A M… era funcionaria do Município Q…, com a categoria profissional de assistente técnica, tendo ali trabalhado por conta direção e subordinação desta.
1.1.48 - A M… auferia o salario mensal de €820,92, com o duodécimo do Subsidio de Natal incluído, e a que acrescia o Subsidio de Férias.
1.1.49 - A M… era uma pessoa leal, sensível, extremamente sociável, muito ativa e trabalhadora, amiga e querida por todos os que a conheciam em Q….
1.1.50 - Era uma pessoa inteiramente preocupada com os outros e sempre disponível para ajudar, sabendo que todas as pessoas que a conheciam a reconheciam como uma pessoa muito calma e equilibrada.
1.1.51 - Era igualmente uma mãe muito próxima, presente, muito dedicada, sempre tendo procurado transmitir aos filhos os seus princípios e valores, enquanto mulher solidária, dedicada ao trabalho, à família e aos amigos.
1.1.52 - Com a perda da vida a M…, perdeu o gozo dos sentimentos que a ligavam ao seu marido, filhos e seus amigos; perdeu, com a sua morte, todos os valores e desvalores, prazeres e tristezas, risos e lágrimas que ainda tinha por gozar, pensar e sentir.
1.1.53 – Nos momentos que precederam a sua morte a M… encontrava-se fisicamente debilitada
1.1.54 - O Autor D… viveu, nesse período, uma profunda dor continuando a sofrer com a morte de sua mãe, tendo um sentimento de inconformismo e revolta, sendo que todo o processo da morte da sua mãe e procedimentos administrativos traumatizou-o, deixando-o totalmente destabilizado.
1.1.55 - Ainda hoje tem presente o dia em que a sua mãe faleceu, não conseguindo esquecer o choque inesperado daquele dia.
1.1.56 - O Autor, filho de M…, estava profundamente ligado à mesma, tendo perdido a pessoa com quem mantinha os mais estreitos laços de afinidade e identificação, coabitando com os pais na mesma casa.
1.1.57 - A Responsabilidade Civil Extracontratual e/ou Responsabilidade Civil Contratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável aos Réus F…, G… e H… através do pagamento das indemnizações que lhe sejam exigíveis pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros por erros profissionais cometidos pelos segurados no exercício da sua profissão como médicos encontram-se transferidas por contrato de seguro para a seguradora I… através das seguintes apólices:
a) do R. Dr. F… através da apólice com o nº ............;
b) do R. Dr. G… através da apólice com o nº …………..; e
c) do R. Dr. H… através da apólice com o nº …………...
1.1.58 - O R. F… (cirurgia geral) celebrou com a I… um contrato relativo a responsabilidade civil profissional com capital seguro de EUR 15.000,00.
1.1.59 - Os RR. G… (cirurgião geral), e H… (anestesiologia) celebraram com a I… um contrato relativo a responsabilidade civil profissional com capital máximo seguro, por anuidade e sinistro de EUR 600.000,00 € e 300.000,00, respetivamente.
1.1.60 – O 2.º Réu F… à data da ocorrência dos factos desempenhava as funções de Diretor Clínico, sendo remunerado nessa circunstância e agindo por conta e em nome da 4.ª R. E….
1.1.61 - Em acumulação desempenhava serviços médico-cirúrgicos na E…, de acordo com a sua especialidade de cirurgia geral, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: S…, Lda, pessoa coletiva n.º ……….
1.1.62 - O 3.º Réu, Dr. G…, desempenhava serviços médico cirúrgicos na E…, de acordo com a sua especialidade de cirurgia geral, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: T…, Lda, pessoa coletiva n.º ……….
1.1.63 - Por último, o 4.º Réu, Dr. H…, desempenhava serviços médico-cirúrgicos na E…, de acordo com a sua especialidade de anestesiologia, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: H… – Actividades Médicas, Lda, pessoa coletiva n.º ………..
1.1.64 - A todos, a Ré fornecia os meios técnicos, materiais e humanos necessários à prestação da sua atividade contratada nos referidos termos, designadamente: sala de consultas, utilização do Bloco Operatório e demais infraestruturas e materiais, apoio de enfermagem, fármacos e consumíveis, além do apoio administrativo para marcação de atos médicos, segundo a disponibilidade de agenda comunicada pelos referidos médicos.
1.1.65 - Em contrapartida, a Ré pagava aos referidos médicos o valor da atividade com eles acordado e pelos próprios faturado.
1.1.66 - Os Réus médicos têm relativamente à Ré total autonomia técnica e independência de decisão no que concerne à sua concreta atuação clínica, nos termos das normas estatutárias que regem a profissão.
1.1.67 - Entre a Ré E… e a K… - Companhia de Seguros, S.A foi celebrado, em 01.01.2007, um Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, titulado pela apólice ……., com efeitos desde 01/01/2007 e renovável anualmente, pelo qual a Ré transferiu para a referida Companhia de Seguros a responsabilidade civil, que lhe seja imputável, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados involuntariamente a pacientes ou a terceiros em geral, pela exploração e a atividade da sua unidade de saúde.
1.1.68 - Nos termos desse Contrato de Seguro, a Companhia de Seguros garante o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis à Ré, até ao montante do capital seguro para a componente hospitalar de 1.250.000,00 Euros (um milhão duzentos e cinquenta mil euros) por anuidade.
1.1.69 - Conforme resulta das condições Particulares da Apólice, foram subscritas pela primeira ré as coberturas de “Responsabilidade Civil Exploração” e “Responsabilidade Civil Profissional”.
1.1.70 - O capital seguro ascende à quantia de 1.250.000,00€, por anuidade, limitado ao montante de 500.000,00€ por vítima em danos para a componente hospitalar e 1.000.000,00€ por sinistro e anuidade para a componente de clinicas.
1.1.71 - No âmbito do aludido contrato foram acordadas entre a autora e a primeira ré as seguintes franquias:
- Para a cobertura “Responsabilidade Civil Exploração”, a franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com o valor mínimo de 250,00€;
- Para a cobertura “Responsabilidade Civil Profissional”, a franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com o valor mínimo de 1.000,00€.
1.1.72 - Mediante tal contrato e dentro dos limites nele fixados, a ora interveniente comprometeu-se a garantir “…o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis aos Segurados, em consequência de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes exclusivamente de lesões materiais ou corporais causados involuntariamente a pacientes ou a terceiros em geral, em consequência das circunstâncias a seguir descritas:
a) Na sua qualidade de proprietário, arrendatário ou usufrutuário dos imóveis destinados à atividade do hospital e clínica;
b) Pelo mobiliário ou outros esquipamentos existentes nos imóveis afetos à atividade dos segurados;
c) Pela utilização de material de uso médico, incluindo aparelhos de Raio X desde que utilizados exclusivamente para diagnóstico ou apoio em ato cirúrgico;
d) Por danos resultantes de queda total ou parcial de tabuletas anúncios luminosos e toldos;
e) Em consequência de intoxicações alimentares causadas por bebidas e alimentos preparados e serviços nas instalações hospitalares e clínica;
f) Pela utilização de aparelhos de eletrochoque em situações de emergência, apoio a cirurgia e de tratamentos de arritmologia;
g) Fica garantia da Responsabilidade Civil profissional de enfermeiros e restante pessoal auxiliar, que compõe o quadro próprio do estabelecimento de saúde, enquanto ao serviço deste;
h) Fica garantida a RC Profissional de médicos que pertençam aos quadros efetivos do hospital e da clínica.”
1.1.73 - Como igualmente previsto nas Condições Particulares da Apólice, ficam excluídos da garantia do presente contrato de seguro, os danos:
“a) Derivados de factos anteriores à data do início da apólice, ainda que as consequências só se manifestem depois dessa data;
b) Resultantes da prática de atos para os quais o pessoal não se encontre devidamente habilitado, nos termos da lei ou regulamentos aplicáveis;
c)Resultantes da inobservância de disposições legais ou regulamentares que regem o exercício da atividade, bem como os resultantes da recusa da prestação de serviços da sua competência;
(…)
k) Decorrentes de tratamentos ou cirurgias de carácter estético ou plástico, exceto quando consequência de acidente ocorrido ou doença manifestada;
(…)
n) Resultantes da Responsabilidade Civil Profissional do pessoal médico e de enfermagem quando não se encontrem ao serviço do segurado e sujeitos à supervisão do estabelecimento hospitalar e da clínica;
o) Por prejuízos indiretos, lucros cessantes e/ou perdas consequenciais;
(…)
q) Responsabilidade civil profissional de médicos e enfermeiros quando não estejam ao serviço e sob supervisão da entidade hospitalar e clínica seguras;”
1.1.74 - Do mesmo modo ficaram ainda excluídos, nos termos do acordado com a primeira ré e estabelecido no artigo 3.º nº 1 das Condições Gerais da Apólice:
- alínea f) os danos “que devam ser garantidos ao abrigo de seguros obrigatórios”.
- alínea g) os danos “resultantes de lucros cessantes, paralisações de atividade de perdas indiretas de qualquer natureza”.
- alínea h) os danos “resultantes de reclamações baseadas em acordos ou contratos particulares celebrados entre o terceiro e o Segurado, na medida em que a responsabilidade que daí resulte exceda a que o Segurado estaria obrigado na ausência de tal acordo ou contrato.”
1.1.75 - A Ré disponibilizou todos os meios técnicos, materiais e humanos para realização da cirurgia e acompanhamento pós-operatório em termos adequados e conformes às boas práticas, bem como à realização de autópsia logo após a morte da paciente.
1.1.76 - O autor está a receber uma pensão de sobrevivência, que lhe vem sendo paga pela Segurança Social, tendo recebido, até ao presente os seguintes montantes:
Ano de 2014 – 494,70€;
Ano de 2015 – 577,14€;
Ano de 2016 – 579,34€;
Ano de 2017 – 640,97€;
Ano de 2018 – 776,79€;
Ano de 2019 – 642,42€.
1.1.77 - A Ré E…, para pagamento de todos os serviços prestados, (incluindo os honorários dos médicos que intervieram na cirurgia), apresentou à O… Associação de Cuidados de Saúde uma fatura no valor de 7.611,11€.
1.2.
Factos não provados
O tribunal a quo julgou não provado que:
A - Fosse decidida a não utilização de profilaxia antitrombólica de acordo com as indicações terapêuticas – no meio médico designadas por “guidelines” – uma vez que a paciente em causa apresentava baixo risco.
B - Apenas se pratique profilaxia antitrombólica quando exista patologia venosa periférica, fibrilação auricular, anteriores incidentes de AVC e outros.
C - No dia 23 de fevereiro de 2014, fosse proposto aos familiares da doente a realização de autópsia para ser, em concreto, apurada a causa da morte, sendo que o marido da falecida M… recusasse a realização da autópsia e a transferência do corpo para o Hospital U….
D – Fosse por estar pressionado pelo aqui A. V…, e abalado profundamente com o drama da autópsia de um ente querido que vivenciara há dias, que o Réu F… não tendo capacidade para resistir à pressão, dispensasse a autópsia.
E - A intervenção cirúrgica ficasse concluída às 13h20 ou pelas 14.35 horas.
F - O único desconforto que a falecida M… referisse durante o internamento fosse fome, à parte de queixas álgicas moderadas que cediam à medicação.
G - Nos momentos que procederam a sua morte, o olhar da falecida M… transmitisse uma profunda angústia e preocupação.
H - A M… estivesse totalmente consciente da gravidade do seu estado, sentindo muita angústia, medo e ansiedade, durante o largo tempo que decorreu até à hora da sua morte e cuja perceção tivesse.
I - Após a morte da mãe o Autor D… se distanciasse de tudo e de todos, alimentando-se apenas de recordações, tenha ataques de choro, conserve intactas todas as lembranças da mãe, padecendo de insónias, pois a imagem da mãe não lhe sai da memoria.
J - Desde o momento da morte da mãe manifeste grande incapacidade para encarar o futuro com tranquilidade e paz, a que a M… o havia habituado.
K) - À data dos factos, a Ré tivesse contratado com S…, Lda, pessoa coletiva n.º ………, uma agenda semanal de 7 horas de consultas realizadas pelo referido médico, além da possibilidade de utilização por este dos meios da E… de acordo com a disponibilidade da Ré.
L) - À data dos factos, a Ré E… tenha contratado com a sociedade T…, Lda, pessoa coletiva n.º ………, uma agenda semanal de 7,5 horas de consultas realizadas pelo referido médico, além da possibilidade de utilização por este dos meios da E… de acordo com a disponibilidade da Ré.
M) - À data dos factos, a Ré tenha contratado com a sociedade V…, Lda, pessoa coletiva n.º ………, uma atividade média semanal no bloco operatório de 20 horas.
1.3.
Apreciação da impugnação da matéria de facto
1.3.1.
Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[1].
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.
1.3.2.
Começamos por fazer incidir a nossa atenção no facto julgado não provado pela 1.ª instância e descrito na sentença sob a respetiva alínea C): que “No dia 23 de Fevereiro de 2014, fosse proposto as familiares da doente a realização de autópsia para ser, em concreto, apurada a causa da morte, sendo que o marido da falecida M… recusasse a realização da autópsia e a transferência do corpo para o Hospital U…”.
Sustenta a recorrente que se justifica dar antes como provado tal facto, atendendo ao sentido dos depoimentos do co-réu F… e da testemunha W…, e considerando ainda o confronto com o facto julgado provado e descrito sob o respetivo ponto 38): “Já na sua chegada à cidade de Aveiro foi confrontado com o pedido do marido da falecida M… para que evitasse a autópsia, ao que o réu acedeu”.
Ora, após ouvirmos a gravação dos depoimentos mencionados pela recorrente, o que dos mesmos resulta, com todo o rigor, no âmbito da matéria em questão, é tão só a ocorrência do facto tal como descrito sob o ponto 38) da factualidade assente.
Relativamente ao facto não provado e descrito sob a respetiva alínea C), o mesmo não passa de uma descrição excessivamente adjetivada em face da expressão objetiva dos ditos depoimentos, não evidenciando sequer sentido lógico, na parte em que se refere “ter sido proposta aos familiares da doente a realização da autópsia”, desde logo porque semelhante “proposta”, por imperativos legais, não se justifica na normalidade do acontecer em tais circunstâncias, e também na parte em que se aludiu à “recusa” de realização da autópsia por marte do marido da falecido, por não se encontrar na disponibilidade deste tal faculdade.
Assim, sem necessidade de outras considerações, julgamos não se justificar a pretendida alteração da matéria de facto, nesta parte, improcedendo, consequentemente, o recurso.
1.3.3.
A Apelante formulou ainda pretensão no sentido de dever este tribunal reapreciar a decisão no que concerne ao ponto 1.1.40) do elenco dos factos provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Em seu entender, o facto dado como provado “A morte da M… deveu-se a tromboembolismo pulmonar” – deve ser alterado, de modo a constar: “A causa da morte de M… é indeterminada. Em face dos sintomas apresentados são diversas as potenciais causas da sua morte, tais como enfarte agudo do miocárdio, tromboembolismo pulmonar ou aneurisma da aorta”.
Para sustentar a sua posição, indicou meios de prova, nos seguintes termos:
“(i) Prova testemunhal: em particular os testemunhos dos Dr. X… e Dr. Y… que assistiram M… e que confirmaram que os sintomas que a paciente apresentava eram bastante sugestivos de ocorrência de um enfarte agudo do miocárdio;
(ii) Depoimento de parte do Dr. H…, médico anestesista que participou na cirúrgica bariátrica de M… que qualifica a dislipidémia (que conforme resulta dos registos clínicos e assente no ponto 6 da matéria de facto provada a paciente apresentava) como uma causa frequente de enfarte agudo do miocárdio;
(iii) Esclarecimentos prestados por todos os peritos no sentido de ser impossível determinar qual a causa de morte sendo igualmente unânime que todos os peritos indicam como causa possível o enfarte de agudo de miocárdio (no caso do Dr. Z…, parece indicar esta como a causa mais provável) e,
(iv) Prova documental, em particular o registo clínico de enfermagem, que indica nos momentos que antecederam a morte: “forte dor no peito”.”
Vejamos, antes de mais, as razões que levaram o tribunal a quo a decidir como decidiu a matéria de facto em questão.
Expressou-se assim a Exma. Juíza de Direito:
“No que se refere à matéria constante do ponto 40 a convicção do tribunal de que a causa da morte de M… foi trombo-embolismo pulmonar prende-se com o seguinte:
- É a causa de morte que consta da certidão de óbito passada pelo Réu F… (cf. fls. 658 dos autos).
Ora, independentemente do contexto em que essa certidão foi passada, é certo que este réu era o médico que seguia a falecida, conhecendo o seu historial clínico e tendo estado presente ainda durante as manobras de reanimação (como resultou do seu depoimento bem como do depoimento da testemunha Y…, um dos médicos que efectuou as manobras de reanimação).
Assim, se o réu colocou como causa de morte o trombo-embolismo pulmonar (que associa a obesidade mórbida e dislipidémia) é porque entendeu ser esta a sua causa.
A mesma conclusão resulta dos pareceres médicos juntos, nomeadamente do parecer do INML onde consta como causa provável de morte o trombo-embolismo pulmonar.
O subscritor do relatório Prof. Doutor J…, nos esclarecimentos que prestou em julgamento foi também muito impressivo no sentido de referir que o facto de ter existido um evento súbito no contexto em que ocorreu – pós operatório - levaria a desconfiar, antes de mais, de embolia.
No mesmo sentido foi o depoimento do perito médico L…, Presidente do Conselho Directivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral e que subscreveu o relatório de fls. 560/561 dos autos.
Dos esclarecimentos destes dois peritos, muito claros e concretos, resultou, inequivocamente, que nenhum deles consegue asseverar com 100% de certeza que a causa da morte tenha sido um trombo-embolismo pulmonar, pois que não foi realizada autópsia, sendo que essa falta de autópsia configura um erro grave do médico que preencheu a certidão de óbito.
No entanto, resulta também, inequivocamente, dos seus depoimentos que a causa mais provável de morte foi o trombo embolismo pulmonar, embora não possam excluir, em absoluto, outras causas.
Há ainda um outro elemento que alicerça a convicção de a falecida ter sofrido um trombo embolismo – O facto de, como resulta dos pontos 41 a 45, não ter sido administrada à falecida M… o fármaco heparina de baixo peso molecular, destinado a prevenir este género de acidente, nem ter sido feita, através da prescrição de outros métodos a sua prevenção, o que no caso era aconselhável.
Ora a não administração de um fármaco destinado a prevenir determinado evento seguida da ocorrência de um evento com as características do evento que o fármaco se destinava a prevenir leva à conclusão que, provavelmente, esse evento ocorreu por causa da não administração do fármaco.
A não administração da heparina e não utilização de outros meios de prevenção resulta, desde logo dos depoimentos de todos os réus, resultando também dos pareceres médicos já referidos.
Compulsados os elementos clínicos juntos aos autos constata-se também que nenhuma referência se faz ao uso destes meios de prevenção do trombo-embolismo.
Os peritos médicos ouvidos foram peremptórios no sentido de, no caso concreto, atenta a massa corporal da falecida e o género de cirurgia e sua duração deveria ter sido administrada a referida substância, o que resulta de todas as guide lines aplicáveis e que já existiam em 2014.
Foi explicada de forma muito clara uma dessas guide lines – “AB…”, que se encontra junto aos autos a fls. 180 e ss, resultando dessa guide lines que o risco de incidência de trombo-embolismo é elevado.
Refira-se ainda o perito do INML esclareceu ser cirurgião bariátrico, fazendo este género de cirurgias.”
Vejamos.
Antes de mais, convém ter presente que a prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[2], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do Código Civil: CCivil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.
Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[3], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º).
Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.
Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivi, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.
Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).
O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[4].
A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).
Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).
Por último, a prova bastante carateriza-se por bastar a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[5].
No caso dos autos, para fundamentar a sua decisão, o tribunal a quo valorou desde logo o conteúdo de um documento: o certificado de óbito n.º .........., junto aos autos em 17.03.2020, com o requerimento ref.ª CITIUS 9977370.
No documento em questão, subscrito pelo co-réu F…, na qualidade de médico assistente da falecida, fez-se constar, no que concerne à causa da morte: “Parte I a) Tromboembolismo Pulmonar; Parte II Obesidade mórbida, HTA, Dislipidémia”, indicada com base em “elementos de ordem clínica”.
Sendo inquestionável que estamos perante um documento escrito visando a representação de um facto (art. 362.º do CCivil), importa antes de mais determinar a que modalidade de documento escrito corresponde, segundo a classificação estabelecida no art. 363.º do CCivil: autêntico ou particular?
Dizem-se autênticos “os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares” (n.º 2 do cit. art. 363.º).
A qualificação do documento como autêntico depende de a autoridade ou o oficial público que o exara não estar impedido de o exarar e ser competente em razão da matéria e do lugar para o efeito (art. 369.º, n.º 1, do CCivil).
Ora, o documento correspondente ao certificado de óbito em questão, elaborado pelo co-réu F…, médico assistente da vítima, não pode ser qualificado de documento autêntico, desde logo porque não subscrito por qualquer das entidades a que se reporta o cit. art. 363º, n.º 2[6].
Afirmando-se então, por exclusão de partes, a sua natureza particular, vejamos a sua concreta força probatória.
Dispõe assim o art. 376.º do CCivil:
“1 – O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2 – Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3 – (…)”.
No que concerne ao documento certificado de óbito em causa, é incontroverso que o respetivo conteúdo declarativo, nomeadamente no que toca à causa da morte, é da autoria do co-réu F….
O que é realmente controvertido é que a causa da morte declarada no dito documento – “tromboembolismo pulmonar”– corresponda à causa real.
Numa primeira análise, poderíamos ser levados a pensar que, na medida em que o facto declarado pelo co-réu F… é, para efeitos da sorte da presente causa judicial, contrário aos interesses daquele, dever-se-ia, sem mais, considerar o mesmo verdadeiro, por aplicação do preceito do n.º 2 do cit. art. 376.º.
Mas seria uma conclusão precipitada, ao que julgamos.
Na verdade, como bem se deixou notado no Ac. desta Relação de 26-06-2014[7], “importa ainda levar em consideração o regime da confissão extrajudicial reduzida a documento. Com efeito, podendo o documento conter declarações de vontade relativas a factos desfavoráveis ao declarante e favoráveis à parte contrária e constituindo uma declaração desse jaez uma autêntica confissão (artigo 352.º) interessa saber qual o valor probatório a atribuir-lhe. A resposta encontra-se no artigo 358.º do Código Civil, nos termos do qual se a confissão constar de documento escrito o valor probatório da confissão corresponde ao valor probatório do documento que a contém.
Segundo este preceito, a confissão extrajudicial escrita tem o valor probatório próprio da natureza do documento que a contém. Assim, se a confissão consta de documento particular a sua força probatória é a específica dos documentos dessa natureza. Com uma particularidade: se a confissão for feita à parte contrária ou a quem a represente, a força probatória que lhe corresponde é plena, ou seja, só é afastada mediante prova da sua falsidade.
A norma contém ainda um n.º 4, com relevo para o caso que nos ocupa, segundo o qual a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal”.
E mais adiante, com especial pertinência também no âmbito do caso que nos ocupa, fez-se constar naquele douto aresto: “Finalmente deve ainda observar-se que a declaração tem um declarante (…) e um declaratário (…), pelo que o seu valor probatório se encontra delimitado ao círculo de pessoas que interessam ao documento. É esse o sentido da restrição contida no n.º 4 do artigo 358.º do Código Civil segundo o qual a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal. Assim, da mesma forma que a confissão extrajudicial constante de documento escrito não pode valer como prova plena a favor de quem não esteja envolvido no documento, de quem seja terceiro em relação a este, também não pode ser-lhe oposta como prova plena por qualquer dos interessados no documento, valendo em qualquer dos casos como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.
E compreende-se que isso seja assim porque o que justifica a atribuição aos documentos de valor probatório tarifado é a constatação de que entre os interessados directos num determinado facto as partes são normalmente cuidadosas na elaboração dos documentos que o revelam, sendo mais provável que quando estiverem em causa factos desfavoráveis ao declarante o conteúdo dos documentos, por resultar do confronto dos interesses divergentes, corresponda à verdade.”
Volvendo ao documento em questão nos autos, o seu valor probatório, no que concerne à causa da morte declarada, depende da qualificação do agora autor da ação como sujeito diretamente envolvido no documento, ou antes como sujeito terceiro relativamente a tal meio de prova.
Ora, o certificado de óbito em questão, emitido em formato digital, no âmbito do Sistema de Informação dos Certificados de óbito (SICO), instituído pela Lei n.º 15/2012, de 3 de abril, visou primordialmente o cumprimento do dever imposto ao co-réu F…, enquanto médico, pelas disposições conjugadas dos arts. 13.º e 14.º daquela Lei, dos arts. 194.º, n.º 1 e 196.º, n.º 1, ambos do Código do Registo Civil (CRC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 6 de junho, e ainda do art. 114.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009, de 13 de janeiro. Ou seja, o documento visou em primeira linha confirmar o óbito da mãe do autor desta ação, para efeitos de lavrar o respetivo registo na competente Conservatória do Registo Civil (art. 200.º do CRC).
Sendo assim, declaratário para efeitos do documento em questão poderá, eventualmente, considerar-se o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., ou mais especificamente a Conservatória do Registo Civil competente para lavrar o registo do óbito, mas nunca o aqui Autor.
O aqui Autor, com referência ao conteúdo declaratório do documento em questão, é claramente “terceiro”, para efeitos de aplicação da norma do n.º 4 do art. 358.º do CCivil, o que vale por dizer que a causa da morte aí declarada – “tromboembolismo pulmonar” – não tem à partida força probatória plena nesta ação, sendo antes passível de livre apreciação pelo tribunal.
E foi isso que o tribunal de que vem o recurso fez: valorou de modo livre o meio de prova em questão, em conjugação com outros meios de prova produzidos.
De entre os outros meios de prova atendidos pelo tribunal a quo, destaca-se desde logo o parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, na sequência da solicitação pelo tribunal de consulta técnico-científica sobre questões atinentes a factualidade controvertida nestes autos.
Estamos inequivocamente perante um meio de prova de natureza pericial, cuja finalidade e respetiva força probatória encontram expressão nas normas dos artigos 388.º - “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspeção judicial” – e 389.º - “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal” –, ambos do CCivil.
Assim, à questão: “À luz das melhores regras da profissão, é possível determinar a causa da morte da vítima?” – respondeu assim o dito Parecer: “A clínica apresentada previamente à ocorrência da morte da vítima faz pressupor que esta faleceu de evento súbito, sendo nestas circunstâncias provável o trombo embolismo pulmonar. No entanto, não temos acesso a autópsia, nem a exames subsidiários de diagnóstico que possam comprovar com absoluta certeza a sua causa de morte”.
E à questão: “Considerando que a M… faleceu há cerca de 2 anos, e que mais algum tempo processual irá decorrer, a exumação do cadáver decorridos esses prazos permitiria ainda averiguar da ocorrência de uma embolia pulmonar?” – respondeu o Parecer: “A exumação do cadáver, decorrido este tempo desde a morte, não permite averiguar da ocorrência de uma embolia pulmonar.”
Tal parecer mostra-se subscrito pelo Senhor Professor Doutor J…, o qual, ouvido em audiência de julgamento, deixou bem claro o seu entendimento da inexistência de absoluta certeza de que a vítima tenha falecido por causa de tromboembolismo pulmonar, mas que nas circunstâncias conhecidas é altamente provável que tenha ocorrido tal quadro, impondo-se, enquanto causa provável da morte, a todas as demais, incluindo o enfarte agudo do miocárdio.
Ainda assim, não deixou o Senhor Professor, também ele cirurgião bariátrico, de dizer que se fosse ele a preencher o certificado de óbito, nas circunstâncias que são conhecidas, optaria por indicar “causa de morte desconhecida”, o que conduziria inevitavelmente à realização da autópsia médico-legal e, por via dela, a apurar com muito maior grau de rigor a causa da morte.
Que não é possível concluir, com um grau de certeza absoluta, que a morte da pessoa em causa se tenha ficado a dever a tromboembolismo pulmonar é algo fora de toda a dúvida, pois todos os meios de prova produzidos sobre a questão, de natureza pericial, documental e testemunhal, apontam em tal sentido.
Mas tal impossibilidade leva inevitavelmente a concluir que a 1.ª instância incorreu em erro ao julgar provado o facto descrito sob o item 1.1.40), como sustenta a recorrente?
Julgamos que não.
Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.
Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[8].
Apesar de o tribunal ambicionar “chegar o mais perto possível da verdade, procurar conhecer, até onde isso for possível, a realidade”, importa ter sempre presente que “a reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis”[9].
Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[10].
Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”.
Ora, sopesando o conjunto de meios de prova que foi possível produzir sobre a questão em apreço, não podemos deixar de concluir como concluiu a Exma. Juíza na 1.ª instância.
Com efeito, a declaração do co-réu F… (médico cirurgião que liderou a equipa interveniente na cirurgia na pessoa da vítima), vertida no certificado de óbito logo após a ocorrência da morte, com base em elementos clínicos que eram obviamente do seu conhecimento, no sentido de que o óbito ocorreu por causa de tromboembolismo pulmonar, em conjugação com o facto de o Parecer do Conselho Médico-Legal do INML apontar, em face das circunstâncias conhecidas, o tromboembolismo pulmonar como a causa com maior grau de probabilidade em face das demais, incluindo o enfarte do miocárdio, e ainda em conjugação com o facto de nenhum outro meio de prova produzido infirmar, lógica e racionalmente, o dito maior grau de probabilidade, leva-nos a criar firme convicção no sentido de que é mais provável que seja verdadeira do que falsa a hipótese de facto dada por assente pela 1.ª instância.
Maior probabilidade essa que também encontra de algum modo amparo na circunstância evidenciada pela Exma. Juíza de Direito, consubstanciada: “no facto de, como resulta dos pontos 41 a 45, não ter sido administrada à falecida o fármaco heparina de baixo peso molecular, destinado a prevenir este género de acidente, nem ter sido feita, através da prescrição de outros métodos a sua prevenção, o que no caso era aconselhável. Ora, a não administração de um fármaco destinado a prevenir determinado evento seguida da ocorrência de um evento com as características do evento que o fármaco se destinava a prevenir leva à conclusão que, provavelmente, esse evento ocorreu por causa da não administração do fármaco”.
Diga-se ainda que mal se compreenderia se, no caso que nos ocupa, em razão da não realização da autópsia médico-legal e, por consequência, em razão da impossibilidade de aumentar significativamente o grau de certeza quanto à causa da morte da vítima, tivéssemos necessariamente de concluir no sentido preconizado pela recorrente: “que a causa da morte é indeterminada”.
Com efeito, importa ter presente que a autópsia não se realizou tão só por facto imputável ao co-réu F…, médico que a recorrente utilizou, enquanto seu auxiliar, no cumprimento das obrigações contratuais assumidas perante a vítima (cf. art. 800.º, n.º 1, do CCivil).
Ao fazer constar do certificado de óbito a causa de morte que, no seu entendimento esclarecido de médico, e em face dos dados clínicos de que dispunha, era a mais provável – “tromboembolismo pulmonar” –, arredou a necessidade de realização da autópsia médico-legal e, por via disso, a possibilidade de produção de um meio de prova tendente à obtenção de um maior grau de rigor relativamente à determinação da dita causa, ou, indo mais longe, impossibilitou a produção do único meio de prova idóneo e adequado a infirmar o sentido da sua própria declaração.
Em tais circunstâncias, sempre seria de admitir, em última instância, a possibilidade de onerar a recorrente, enquanto responsável pelos atos do seu auxiliar (art. 800.º, n.º 1, do CCivil), com o dever de provar causa de morte diversa da alegada pelo autor, por via da inversão do ónus da prova e com fundamento no preceituado no art. 344.º, n.º 2, do CCivil: “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…)”.
Concluímos, pois, no sentido de que nenhuma censura é merecedor o juízo probatório formulado pelo tribunal a quo sobre a questão em apreço, bem pelo contrário, já que o consideramos solidamente alicerçado nos meios de prova produzidos e nas regras de direito probatório aplicáveis, improcedendo, consequentemente, o recurso também nesta parte.
2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
Da responsabilidade civil dos Réus por ato médico
Pretendendo o Autor fazer valer o seu alegado direito a ser indemnizado pelos Réus, com fundamento no falecimento da sua mãe, por causa de intervenção cirúrgica a que a mesma foi submetida, realizada pelos médicos 2.º, 3.º e 4.º Réus, em violação das leges artis a que se encontravam sujeitos, nas instalações da 1.ª Ré e no âmbito de contrato celebrado com esta, podemos começar por afirmar que estamos perante um caso cuja solução não se alcança sem convocarmos para a discussão a chamada responsabilidade civil por ato médico.
2.1.1.
Da qualificação das relações jurídicas relevantes entre paciente, clínica e médicos
Em face da factualidade assente, a 1.ª instância considerou que a paciente falecida, através do seu sistema de saúde (O… Associação de Cuidados de Saúde), estabeleceu com a 1.ª Ré (E…) um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, na modalidade de “contrato total”, abrangendo quer as obrigações atinentes ao internamento hospitalar, quer as obrigações concernentes à prestação de atos médicos, ao mesmo tempo que considerou a inexistência de qualquer vínculo de natureza contratual entre a falecida e os 2.º, 3.º e 4.º Réus, médicos que intervieram na cirurgia em causa.
Por sua vez, no que concerne à relação jurídica estabelecida entre a 1.ª Ré e os 2.º a 4.º Réus, o que resultou provado é que todos estes trabalhavam para aquela, por via de contratos de prestação de serviços, celebrados entre a 1.ª Ré e sociedades com as quais os demais Réus tinham vínculo; eram pagos pela E…, através das ditas sociedades, em conformidade com os honorários acordados; e a E… fornecia-lhes os meios técnicos, materiais e humanos necessários à prestação da sua atividade, designadamente: sala de consultas, utilização do Bloco Operatório e demais infraestruturas e materiais, apoio de enfermagem, fármacos e consumíveis, além do apoio administrativo para marcação de atos médicos, segundo a disponibilidade de agenda comunicada pelos referidos médicos.
Razão alguma existe, em nosso entendimento, para discordar da qualificação das relações jurídicas que se estabeleceram entre a falecida e a 1.ª Ré e entre esta e os restantes Réus, sendo certo que tal qualificação não foi sequer posta em causa pela Recorrente.
A modalidade de “contrato total” (totaler Krankenhausaufnahmevertrag) – que se distingue do “contrato total com escolha de médico” e do “contrato dividido” –, pode ser classificado “como um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)”[11].
No caso de contrato total, a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente[12].
Inserido no Capítulo VIII – “Cumprimento e não cumprimento das obrigações” – do CCivil, mais especificamente na Subsecção II – “Falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor” – dispõe assim o art. 800.º, sob a epígrafe “Actos dos representantes legais ou auxiliares”:
“1 – O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.
2 – A responsabilidade pode ser convencionalmente excluída ou limitada, mediante acordo prévio dos interessados, desde que a exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública.”
A justificação para esta norma, conforme nos recorda DANIELA GOMES COSTA[13], foi sintetizada por VAZ SERRA da seguinte forma: “O devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, alargam-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles”[14].
Perante a relação contratual, de natureza privatística, firmada pela paciente falecida, mãe do ora Autor, e a 1.ª Ré, E…, nos termos explicitados supra, dúvidas não subsistem de que a 1.ª Ré é responsável, originariamente perante a paciente e agora perante o Autor, nos termos do n.º 1 do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos 2.º a 4.º Réus na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora.
Assim, se houver razões para concluir no sentido da ocorrência de um dano que tenha como causa adequada a violação culposa de um dever contratual a que a clínica Ré se obrigou, então ela será responsável pelo mesmo (cf. art. 798.º do CCivil).
E daí que tal responsabilidade “indireta” deve necessariamente ser aferida em função dos ditames que aos médicos Réus cumpria observar na realização da prestação médica à paciente ao serviço da 1.ª Ré.
Como bem lembra DANIELA GOMES COSTA[15], “o devedor responde, é certo, por actos alheios, contudo, tais actos têm que ter sido praticados no cumprimento da obrigação, pois o devedor já não responde pelos actos que, embora praticados por ocasião do cumprimento, lhe sejam estranhos (Cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, pág. 1038, nota 3; PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, pág. 56). Mostra-se ainda necessário que exista culpa dos representantes legais ou auxiliares pelo inadimplemento da obrigação, e que destes resultem danos (Cfr. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 322 e 323). A responsabilidade prevista no art. 800.º, não obstante se afigurar como exemplo caro de responsabilidade objectiva, respondendo a pessoa colectiva, enquanto devedor da obrigação, independentemente da sua culpa in elegendo, in vigilando ou in instruendo, o certo é que tem que existir, de acordo com a letra da lei, um acto culposo de uma pessoa física, que faça então incorrer em responsabilidade (Cfr. MARIA VICTÓRIA R. F. ROCHA, A Imputação Objectiva na Responsabilidade Contratual, in Revista de Direito e Economia, Ano XV, 1989, pág. 79)”.
2.1.2.
Da imputação do dano-morte à inobservância ilícita e culposa das leges artis por parte dos Réus médicos
A factualidade julgada provada dá-nos conta da morte da paciente, mãe do ora Autor, enquanto se encontrava internada em estabelecimento hospitalar da 1.ª Ré e após ter sido submetida a cirúrgica bariátrica levada a cabo pela equipa médica constituída pelos 2.º, 3.º e 4.º Réus.
Nos termos do art. 798.º do CCivil, “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Pressupostos da responsabilidade contratual, enunciados naquele artigo, são: “(1) o facto: ausência de cumprimento; (2) a culpa “culposamente”; (3) a causalidade; “que causa”; (4) o dano: o prejuízo”[16]
A inexecução da obrigação contratual pode envolver dimensões diversas: a) a pura e simples omissão da prestação; b) a atuação contrária à prestação negativa; c) a má ou defeituosa execução da prestação: cumprimentos retardados, parciais, insuficientes ou, simplesmente, desconformes com o previsto[17].
Tais pressupostos encontram-se igualmente presentes na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com previsão normativa no art. 483.º, n.º 1, do CCivil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
O art. 483.º menciona a “ilicitude da violação do direito de outrem”, pressuposto que temos por equivalente ao facto gerador de incumprimento na responsabilidade contratual.
Vejamos cada um dos pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, na síntese formulada por DANIELA GOMES COSTA[18]:
a. [Facto
Importa à responsabilidade civil um facto humano que seja dominável ou controlável pela vontade. Pode ele consistir numa ação, mas também numa omissão, sempre que exista um dever jurídico de agir;
b. Ilicitude
Em sentido amplo, ilicitude significa contrariedade ao direito”. Contudo, neste domínio, importa distinguir entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, a fim de apurarmos as formas de ilicitude.
Assim, no âmbito extracontratual, e de acordo com o art. 483.º do Código Civil, a ilicitude pode consistir na violação de direitos absolutos (direitos reais, direitos de personalidade), ou na violação de normas destinadas a proteger interesses alheios. Existe ainda uma “cláusula residual de ilicitude”, o abuso de direito, o qual figura na parte geral do Código Civil, mais precisamente no art. 334.º.
Já no que respeita à responsabilidade contratual, “[a] ilicitude resulta (…) da relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado”.
c. Culpa
“(…) [É] a pedra angular do nosso direito da responsabilidade Civil (…)”. “Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo”. A culpa é um juízo de censura que assenta no nexo psicológico existente entre o facto praticado e a vontade do lesante. Pode revestir duas formas distintas: o dolo ou a negligência, e, em qualquer uma delas, assenta na omissão de um dever de diligência reprovável.
O Código Civil determina que a culpa deve ser apreciada em abstracto, e não em concreto, pelo que a conduta do agente é avaliada por referência a um modelo abstracto e objectivo, que se abstrai da personalidade daquele – modelo do bónus pater famílias, do homem razoável, prudente e diligente (cfr. arts. 487.º, n.º 2, e 799.º, n.º 2, do Código Civil).
d. Dano
Por dano entenda-se, lesão a um bem ou interesse juridicamente protegido. Sem dano não há responsabilidade civil, não existindo no nosso direito civil os chamados delitos de perigo abstracto.
Os danos sofridos podem ser de duas categorias diferentes, patrimoniais e não patrimoniais (art. 496.º do Código Civil), consoante o interesse lesado tenha ou não carácter patrimonial. No âmbito dos danos patrimoniais distingue-se, de acordo com a configuração do prejuízo suportado, entre dano emergente (aqueles que infringem uma perda ou diminuição para os bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão) e lucro cessante (os benefícios que se deixam de obter em virtude da lesão, cfr. art. 564.º, n.º 1, do Código Civil).
e. Nexo de causalidade
O art. 563.º do Código Civil dispõe que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. A lei exige, portanto, para que haja obrigação de indemnização, que entre o facto e o dano exista uma ligação, que o primeiro seja causa do segundo.
A propósito do nexo de causalidade a doutrina socorre-se da teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa. O Ponto de partida é o postulado segundo o qual, para a afirmação do nexo de causalidade não se revela suficiente que determinado facto seja condição sine qua non do dano. “A condição não será causa do dano, sempre que “segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequado para este danos”.]
Acompanhamos por inteiro a 1.ª instância na conclusão a que chegou quanto à verificação de todos os ditos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, no que concerne à atuação dos 2.º, 3.º e 4.º Réus.
Assim.
O facto relevante em causa traduz-se numa conduta omissiva: a não administração por parte dos Réus do fármaco heparina de baixo peso molecular (HBPM), bem como a falta de prescrição de métodos alternativos, designadamente meias de compressão elástica, ou de compressão pneumática intermitente, visando a profilaxia da embolia pulmonar (cfr. pontos 1.1.41 e 1.1.44 da factualidade provada).
A ilicitude de tal facto decorre da circunstância de sobre os Réus impender o dever objetivo de cuidado, traduzido na prática da dita profilaxia, em obediência às leges artis, ou seja, conjunto de regras científicas e técnicas e princípios profissionais adotadas genericamente pela ciência médica, considerando o momento histórico do acontecimento e a concreta situação da paciente (cfr. pontos 1.1.42, 1.1.43 e 1.1.45 da factualidade provada).
Nada se conhecendo que nos leve a considerar a impossibilidade de os Réus terem administrado a profilaxia a que estavam obrigados, justifica-se o respetivo juízo de censura interno, o mesmo é dizer juízo de culpabilidade, em forma de negligência, já que podiam ter agido de outra maneira: da maneira exigida ao homem médico normalmente prudente, diligente, sagaz e cuidadoso, com conhecimentos, capacidade física, intelectual e emocional para desempenhar as funções.
Podemos, pois, afirmar com segurança, que tanto o “cuidado externo” (ilicitude) como o “cuidado interno” (culpa), foram deixados sem atenção por parte dos Réus médicos, e daí a negligência da sua atuação[19].
Na sequência da cirurgia a que foi submetida, a paciente acabou por falecer, devido a tromboembolia pulmonar, ocorrendo assim o dano que a dita profilaxia tinha por função evitar.
Podemos seguramente afirmar que a não administração, em qualquer fase da execução da cirurgia, da descrita profilaxia, constituiu causa adequada da tromboembolia pulmonar e consequente morte da paciente, na medida em que, considerando as circunstâncias conhecidas, à face da experiência médica, se mostrava adequada, em termos de probabilidade, a evitar o dito desfecho danoso.
Como se deixou afirmado no Ac. do STJ de 23.03.2017[20], “tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não deve ser considerado como a cura da patologia que estiver em causa, mas sim como o tratamento adequado dessa patologia mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), posto que a prática da medicina encerra, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psico-somáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis. Nessa medida, a obrigação de prestação do ato médico configura-se como uma obrigação de meios, por parte do médico, na obtenção do tratamento adequado”.
Chegados aqui, a seguinte conclusão se nos impõe: a conduta omissiva ilícita e culposa causadora da morte da mãe do Autor constitui fonte de responsabilidade contratual para a 1.ª Ré, na medida em que esta não cumpriu nos termos devidos a prestação médica a que se vinculou, e simultaneamente fonte de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos para todos os Réus, incluindo a 1.ª Ré, porquanto foi violado um direito absoluto de outrem.
2.1.3.
Do concurso da responsabilidade contratual e extracontratual
Como refere ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, “a tendência moderna do Direito Civil europeu vai no sentido de diminuir as diferenças entre a responsabilidade contratual e extracontratual”. No entanto, no direito português subsistem diferenças relevantes, elencadas assim por aquele autor:
“O ónus da prova da culpa impende sobre o lesado na responsabilidade extracontratual (art. 487.º, n.º1) e sobre o devedor na responsabilidade contratual (art. 799.º, n.º1); a solidariedade passiva vigora apenas na responsabilidade delitual, a conjunção na responsabilidade contratual (art. 497.º e art. 513.º); a prescrição de uma pretensão fundada num contrato só ocorre ao fim de 20 anos (art. 309.º), ao passo que a prescrição delitual é, em regra, de 3 anos (art. 498.º); a possibilidade de gradação equitativa da indemnização parece estar reservada à responsabilidade aquiliana (art. 494.º); o regime da responsabilidade por fato de terceiro é mais rigoroso no caso da responsabilidade contratual (art. 800.º), do que na extracontratual, onde se aplica a responsabilidade do comitente (art. 500.º); as regras da capacidade também diferem (art. 123.º, 127.º e 488.º, n.º 2), bem como o momento da constituição do devedor em mora (804.º, n.º 2, al. b)).
Finalmente, uma diferença que tradicionalmente se apresenta é a da não ressarcibilidade de danos não patrimoniais em sede de responsabilidade contratual.
Pela nossa parte, todavia, subscrevemos a doutrina que entende que os danos não patrimoniais são ressarcíveis em sede contratual, desde que tenham a gravidade suficiente e mereçam a tutela do direito, como advoga Pinto Monteiro [Cláusulas limitativas... cit., p. 84-89 (nota 164). Com efeito, a maioria da doutrina e a jurisprudência atual são favoráveis à indemnização por danos morais no âmbito da responsabilidade contratual – Cf. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, p. 396, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I., p. 318; GALVÃO TELLES, Obrigações, p. 396. Contra: PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I., p. 501 e Das Obrigações em Geral, vol. I., p. 605]. Ora tal será, em regra, o caso na atividade médica, visto que se está perante a lesão de direitos de personalidade [Na jurisprudência, cf., por exemplo, Ac. STJ, 22/9/2005 (Lucas Coelho); Ac. STJ, 1/7/2010 (Serra Baptista); Ac. Relação de Lisboa, 9/3/2010 (Maria do Rosário Morgado); Ac. Relação do Porto, 24/11/2005 (Teles de Menezes)][21]”.
A problemática do concurso de responsabilidades emerge da possibilidade real de um mesmo facto preencher os pressupostos da responsabilidade contratual, quer da responsabilidade extracontratual[22]. Trata-se de um problema omnipresente na matéria da responsabilidade médica[23].
Guiemo-nos, antes de mais, pela síntese que nos oferece DANIELA GOMES COSTA[24]:
[O mesmo facto é violador de um direito absoluto, mas também de um direito relativo. Um determinado comportamento pode sustentar uma pretensão indemnizatória, seja por via contratual, seja pela extracontratual. (…) Nestas situações a questão que se coloca é a de saber qual o regime de responsabilidade que se deve aplicar, qual a disciplina que prevalece.
A propósito desta temática muito se tem dividido a doutrina. A divisão faz-se entre os que são partidários do cúmulo e os que o não são, e tudo acontece sobre o silêncio da lei. Note-se que, mesmo aqueles que defendem a ideia do cúmulo, não procuram que o lesado possa, pelo mesmo dano, obter duas indemnizações, trata-se de atribuir uma única indemnização.
Entre os partidários do cúmulo temos SINDE MONTEIRO, RUI DE ALARCÃO, VAZ SERRA, HENRIQUES GASPAR, PINTO MONTEIRO, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, PEDRO ROMANO MARTINEZ e MENEZES CORDEIRO. Os três primeiros autores defendem que o lesado deve poder beneficiar das normas que considere mais favoráveis por entre as que regulam, por um lado, a responsabilidade contratual, e por outro, a responsabilidade extracontratual, em detrimento daquelas que são desvantajosas. (…) Esta é a chamada teoria da ação híbrida, e corresponde a uma das três variantes em que a ideia do cúmulo se pode concretizar. Mas existem ainda outras duas variantes, a saber, a teoria da opção e a teoria da concorrência de pretensões. A primeira é a que sustenta PINTO MONTEIRO, e vem a significar que o lesado poderia em cada circunstância concreta, e de acordo com o que julgasse mais favorável para si, demandar o lesante com base em responsabilidade contratual ou com base em responsabilidade extracontratual.
Em posição diametralmente oposta à destes autores está ALMEIDA COSTA, que refuta qualquer uma das variantes que admitam o cúmulo. O professor adere, antes, ao princípio da consunção, segundo o qual o regime da responsabilidade civil contratual consome o da extracontratual, ficando as situações de concurso subordinadas às regras da responsabilidade contratual. O pensamento de ALMEIDA COSTA é seguido pelo Conselheiro ÁLVARO DA CUNHA RODRIGUES, por ÂNGELA CRISTINA DA SILVA CERDEIRA e por CARDONA FERREIRA”.
E prossegue DANIELA GOMES COSTA: “Pela nossa parte, concordamos com os argumentos da exclusão do cúmulo, apoiamos, portanto, o princípio da consunção. Com efeito, concordamos que se deve procurar para o problema do cúmulo uma solução teleologicamente orientada, que atenda à “perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações. Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixar a disciplina que deve reger as suas relações, (…). Assim, parece que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual” (cfr. ALMEIDA COSTA, O Concurso da Responsabilidade Civil Contratual e da Extracontratual, p. 564)].
Também à tese do cúmulo, devemos aqui assinalar, aderiu ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA[25], dando nota de um “argumento novo e importante” aduzido por LUÍS PIRES DE SOUSA, para quem “facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam no caso concreto é a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima. Admitir que, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços sui generis fossem impunes condutas que – na ausência do contrato – integrariam responsabilidade aquiliana, constituiria o paradigma da não proteção do doente. Pelo contrato, as partes não pretendem renunciar à proteção geral que a lei lhes confere: o que pretendem é criar uma proteção acrescida”[26].
Por último, uma nota para o escrito de FERNANDO A. FERREIRA PINTO sobre o tema, com o título de “O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual”[27], defendendo o autor como substancialmente mais justa “a que reconhece, em princípio, ao lesado a faculdade de se socorrer das normas de ambos os complexos de regulamentação, podendo inclusivamente combiná-las numa mesma ação”, tendo por base, “não tanto meras considerações lógicas sobre a posição relativa das duas responsabilidades, mas, sobretudo, uma justa ponderação dos interesses em jogo”.
Relativamente à jurisprudência, como refere o autor por último citado, “em tempos mais recentes, o tema vem sendo consistentemente abordado em decisões dos nossos tribunais superiores, mormente em sede de responsabilidade médica”[28].
No Ac. do STJ de 22.03.2018, relatado por MARIA DA GRAÇA TRIGO, deixou-se afirmada a “orientação reiterada da jurisprudência daquele Supremo Tribunal no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado”.
Por nossa parte, aderimos à tese do cúmulo, admitindo mesmo a possibilidade de o lesado se socorrer das normas de ambos os complexos de regulamentação, podendo inclusivamente combiná-las numa mesma ação, por ser a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima.
Chegados aqui, é tempo de descermos ao problema posto nestes autos.
Tendo a sentença recorrida desconsiderado a responsabilização direta dos 2.º, 3.º e 4.º Réus ante o Autor, no que concerne à obrigação de indemnizar, isso levou a Recorrente a afirmar, em sede de alegações/conclusões, que o a 1.ª instância entendeu necessariamente não existir fundamento de responsabilidade civil aquiliana dos ditos Réus, o que viola a norma do art. 800.º do CCivil.
Mas tal afirmação não encontra cabimento na leitura atenta da sentença.
Com efeito, a 1.ª instância deixou exemplarmente afirmada a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, no respeitante à conduta dos 2.º, 3.º e 4.º réus, a ponto de deixar apontada a possibilidade de “eventuais ações de regresso”.
Ao decidir como decidiu, embora sem o explicitar, a 1.ª instância parece ter optado por considerar apenas a responsabilidade contratual como fonte da obrigação de indemnizar o Autor, em detrimento da cumulação com a responsabilidade extracontratual.
A nosso ver, em conformidade com o que defendemos supra a propósito do regime de cumulação de tipos de responsabilidade, poderia a 1.ª instância ter ido mais longe, abrangendo na condenação os 2.º a 4.º Réus.
Mas o certo é que não foi.
E o principal interessado em que tivesse ido, o Autor, acaba afinal por não se importar.
Com efeito, embora o Autor tenha pedido a “condenação solidária” de todos os Réus, a verdade é que o mesmo não recorre a título principal da decisão de absolvição dos 2.º, 3.º e 4.º Réus.
Com efeito, o Autor/Recorrido aceita a decisão da 1.ª instância, pugnando pela improcedência do recurso da 1.ª Ré, e apenas formula subsidiariamente pretensão de ampliação do objeto do recurso, visando a responsabilização civil extracontratual solidária dos 2.º, 3.º e 4.º Réus, no caso deste tribunal superior entender que a 1.ª Ré não poderá ser responsabilizada pelos danos morais e patrimoniais sofridos.
Sendo assim, a apreciação do pedido de ampliação do objeto do recurso formulado pelo Autor, apenas se justificará se este tribunal de 2.ª instância concluir pela não responsabilização da 1.ª Ré pelos danos morais e patrimoniais sofridos.
2.1.4.
Do apuramento dos danos/prejuízos
2.1.4.1.
Da questão prévia da transação efetuada nos autos
Lembramos que a presente ação foi instaurada por B…, viúvo de M…, por si e em representação dos seus dois filhos menores, entre os quais o agora Autor D….
Em sede audiência de julgamento foi celebrada transação, homologada por sentença.
Contudo, não tendo o ilustre advogado dos Autores poderes suficientes de representação no que concerne a D… que, entretanto, atingiu a maioridade, foi este notificado para ratificar a transação, no seguimento do que declarou nos autos que não a ratificava.
Em face da recusa de ratificação, o tribunal a quo determinou o prosseguimento dos autos entre o Autor D… e os Réus, “com vista a apurar, caso o pedido venha a ser julgado total ou parcialmente procedente a quota parte que caberá ao referido demandante no valor indemnizatório que foi peticionado a título global”.
Nos termos do art. 1248.º do CCivil, “transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”.
No caso de litisconsórcio voluntário, como é o que sucede nestes autos, é livre a transação individual, limitada ao interesse de cada um na causa (art. 288.º, n.º 1, do CPCivil).
Enquanto contrato, a transação pode ser declarada nula ou anulada como os outros atos da mesma natureza, sendo que, “quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito” (art. 291.º, n.ºs 1 e 3, do CPCivil).
Ora, por via do preceituado na parte final do n.º 3 do cit. art. 291.º, a transação efetuada nos autos é ineficaz em relação ao Autor D…, pela que a sua pretensão indemnizatória não pode de modo algum ser condicionada pelos termos da dita transação, apenas se encontrando limitada pelos termos do pedido global formulado.
2.1.4.2.
Da inaplicabilidade do instituto jurídico da “perda de chance”
Porque no caso ficou claramente estabelecido o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte da mãe do Autor, fica naturalmente prejudicada a necessidade de recorrer ao instituto jurídico da “perda de chance”, para alcançar a determinação do quantum indemnizatório devido, não tendo aplicabilidade no caso os critérios apontados para o efeito pela Recorrente.
2.1.4.3.
O dano-morte e a sua transmissibilidade por via sucessória
Lembramos que a 1.ª instância condenou a Recorrente a pagar ao Recorrido o montante de 23.333,33€ (vinte e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), pelo dano de privação do direito à vida da vítima.
A tutela do direito à vida encontra desde logo previsão no art. 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – “A vida humana é inviolável”, e também no art. 70.º, n.º 1, do CCivil – “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
Tanto a doutrina como a jurisprudência, nomeadamente a do STJ, admitem a atribuição de compensação pecuniária pelo dano-morte e correspondente lesão do direito à vida, podendo verificar-se três tipos de danos não patrimoniais: o dano pela perda do direito à vida; o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte; e o dano sofrido pela vítima antes de morrer.
No dizer de MENEZES CORDEIRO, “a supressão do bem-vida deve ser compensada. Ocorreu uma querela em torno desta vertente indemnizatória, hoje ultrapassada. O fundamento jurídico da indemnização, ao próprio, do dano-morte é o art. 70.º/2. A ideia de que a vida pode ser suprimida sem dano para o próprio não é compaginável com um civilismo humanitário”. Verifica-se uma contraposição entre os danos de terceiros e os do próprio: os primeiros são adquiridos iure próprio, por via do art. 496.º/2, 3 e 4, in fine; os segundos, por força do 70.º/2 e do 496.º/4, in medio (“danos não-patrimoniais sofridos pela vítima”) serão adquiridos iure hereditário pelos sucessores do lesado, agora sem dependência da lista do 496.º/ 2 e 3”[29].
Estamos, pois, perante um dano sofrido pela mãe do Autor transmitido a este por via sucessória.
Sustenta a Recorrente que “não estando provada a qualidade de herdeiro do aqui Autor, o que só poderia acontecer mediante a junção da habilitação de herdeiros, nem estando provado, nem sequer alegado, que o mesmo aceitou a herança aberta por óbito de sua mãe é errado, e manifestamente contrário ao direito, atribuir-lhe qualquer montante por via sucessória”.
Ora, o que temos por manifestamente errado é, com todo o respeito, qualquer das citadas afirmações da Recorrente.
Por um lado, ficou provado na sentença, que “o aqui autor D… era filho da falecida M… e nasceu em 5 de agosto de 1998” (ponto 1.1.2 da factualidade assente).
Tal facto, em conjugação com o preceituado nos arts. 2132.º e 2133.º, n.º 1, a), do CCivil, permite-nos concluir que o Autor é herdeiro legítimo da falecida M…, e como tal titular do direito em questão, resultando assim devidamente operada a pertinente habilitação para a causa.
Quanto à aceitação da herança, é sabido que ela pode ser expressa ou tácita, sendo havida como expressa quando o sucessível nalgum documento escrito declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (art. 2056.º, nºs 1 e 2, do CCivil).
Tácita é a declaração que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (art. 2017.º, n.º 1, do CCivil).
Ora, tendo o aqui Autor deduzido a pretensão indemnizatória em causa, julgamos ser de concluir que tal traduz aceitação expressa da herança ou, pelo menos um comportamento que, com toda a probabilidade, é reveladora da dita aceitação.
Nos termos do n.º 2 do art. 496.º do CCivil, a indemnização pelo dano-morte é concedida conjuntamente e de forma sucessiva aos grupos de familiares aí indicados.
Como se refere no Ac. do STJ de 10.05.2017[30], há quem extraia da norma uma situação de litisconsórcio necessário ativo, identificando outros uma regra de direito material que não impede uma atuação ut singuli.
Acompanhamos por inteiro o entendimento assumido naquele douto aresto, tendo por base a abundante fundamentação doutrinal e jurisprudencial nele contida, designadamente o Ac. do STJ de 17.12.2016, processo n.º 366/13.2TNLSB.L1.S1, no sentido de que a expressão “em conjunto”, utilizada no n.º 2 do cit. art. 496.º, “não representa uma situação de litisconsórcio necessário ativo, antes constitui uma norma que atribui a indemnização, de forma escalonada, a um conjunto de interessados, de acordo com o grau de parentesco considerado relevante. Abstraindo da natureza jurídica da indemnização pela perda da vida, como direito próprio da vítima que se transmite para os familiares identificados ou como direito que se constitui directamente na esfera dos familiares em consequência da morte, o legislador assumiu naquele preceito, de forma autónoma e fora do quadro do direito sucessório, uma determinada regra atributiva e distributiva da indemnização. Ora, tal não colide com a possibilidade de ser reclamada por cada um dos sujeitos a quota-parte da indemnização que lhe caiba, matéria que se integra no mérito da pretensão e que não colide com a legitimidade activa”.
O que acaba de dizer-se, em conjugação com o que deixámos afirmado a propósito da ineficácia da transação na esfera jurídica do aqui Autor, é bastante para rejeitar uma outra ideia defendida pela Recorrente: a ideia de que quaisquer montantes devidos a título indemnizatório que integrariam a herança aberta por óbito de M… tinham sido válida e eficazmente transacionados com o cabeça de casal da herança, pelo que nunca poderiam ser atribuídos quaisquer montantes a título sucessório ao Autor.
2.1.4.4.
Os danos próprios do Autor – os danos morais e os danos patrimoniais
A sentença impugnada atribuiu ainda ao Autor:
a) O montante de 27.000,00€ (vinte sete mil euros), por danos morais próprios do Autor; e
b) O montante de 21.236,64 € (vinte e um mil duzentos e trinta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos), por danos patrimoniais (lucros cessantes).
Sustenta a Recorrente que ao Autor, enquanto terceiro relativamente à lesada, sua mãe, não assiste o direito a qualquer das mencionadas indemnizações, com fundamento em responsabilidade contratual.
É bem verdade que quanto a terceiros, o contrato é, em regra, inoperante, decorrente do princípio da eficácia relativa dos contratos, plasmado no art. 406.º, n.º 2, do CCivil: “Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei”.
Mas, no caso, a responsabilidade da 1.ª Ré é também, por tudo quanto deixámos tratado supra, de natureza extracontratual por facto ilícito.
E sendo assim, os danos em questão, sofridos pelo próprio Autor, tendo como causa adequada o falecimento da sua mãe, encontram cabal justificação na lei: quanto aos danos patrimoniais, desde logo por via das disposições conjugadas dos artigos 495.º, n.º 3, 562.º, 564.º, n.º 1, 566.º e 2009.º, n.º 1, al. c), todos do CCivil; no que concerne aos danos não patrimoniais, com fundamento maior no disposto no art. 496.º, nºs 2, 3 e 4, in fine, do CCivil.
Não pondo a Recorrente propriamente em causa o quantum indemnizatório apurado pela 1.ª instância, e constituindo-se a 1.ª Ré na obrigação de indemnizar o Autor, nas suas várias vertentes, nos termos que deixámos expostos, impõe-se concluir no sentido da manutenção do decidido pela 1.ª instância, embora com fundamentação de direito acrescida e diversa em alguns segmentos, improcedendo in totum a apelação, ficando prejudicada a apreciação da ampliação do recurso formulada pelo Apelado.
2.2.
Tendo dado causa às custas do recurso, a Recorrente é responsável pelo respetivo pagamento (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil).
IV
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos improcedente o recurso e, em consequência, decidimos:
a) Manter a decisão da 1.ª instância, embora com fundamentação de direito parcialmente diversa; e
b) Condenar a Ré/Recorrente nas custas do recurso.
***
Porto, 8 de junho de 2021
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
João Proença
________________
[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Coimbra, 2020, p. 332.
[2] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
[3] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152.
[4] Cf. CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
[5] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
[6] Veja-se, neste sentido: Ac. do STJ de 02.10.2008, relatado por SALVADOR DA COSTA no processo 08B2654; Ac. da RL de 11.11.2010, relatado por LUÍS CORREIA DE MENDONÇA no processo 1071/08.7TBSCR.L1-8; e Ac. da RL de 24.01.2008, relatado por OCTÁVIA VIEGAS no processo 7386/2007-8, todos acessíveis, à data deste acórdão, em www.dgsi.pt.
[7] Relatado por ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1, acessível, à data deste acórdão, em www.dgsi.pt.
[8] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Cf. Ac. da RL de 13.02.2013, relatado por CARLOS ALMEIDA no processo 256/10.0GARMR.L1-3, cit. por RUI SOARES PEREIRA, in O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Delitual – Fundamento e limites do juízo de condicionalidade, Almedina, 2019, pp. 1134-1135.
[10] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
[11] ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Dissertação de Doutoramento e Ciências Jurídico-Civilistas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dezembro de 2012, p. 596, acessível em:
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf.
[12] Idem, p.598.
[13] In A Culpa de Organização na Responsabilidade Civil Médica, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito Biomédico, Petrony Editora, 2018, pp. 87-86.
[14] Cf. VAZ SERRA, Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos, in BMJ, n.º 72, 1985, pp. 259-325.
[15] Ob. cit., p. 88.
[16] ANTÓNIO MENESES CORDEIRO, Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, Almedina, 2021, p. 1022.
[17] Idem.
[18] Ob. cit., pp. 24-25.
[19] Cf. ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, ob. cit, p. 615.
[20] Relatado por TOMÉ GOMES no processo 296/07.7TBMCN.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[21] Ob. cit., pp. 652-653.
[22] Cf. ALMEIDA COSTA, O Concurso da Responsabilidade Civil Contratual e Extracontratual, in ABVNO AD OMNES – 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 559, apud DANIELA GOMES COSTA, ob. cit., p. 22.
[23] Cf. ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA, ob. cit., p. 653.
[24] Ob. cit., pp. 22-24.
[25] Ob. cit., pp. 654 ss.
[26] O ónus da prova, cit.
[27] in Revista de Direito Comercial, 20.11.2020, www.revistadedireitocomercial.com.
[28] “Cfr., de entre outros, os seguintes arestos:
Ac. do STJ de 19.06.2001 (Pinto Monteiro),
Ac. do STJ de 8.05.2003 (Araújo de Barros),
Ac. do TRL de 19.04.2005 (Pimentel Marcos),
Ac. do STJ de 22.09.2005 (Lucas Coelho),
Ac. do TRC de 10.01.2006 (Jorge Arcanjo),
Ac. do TRL de 11.09.2007 (Rosa Ribeiro Coelho),
Ac. do STJ de 4.03.2008 (Fonseca Ramos),
Ac. do STJ de 31.03.2009 (Fonseca Ramos),
Ac. do TRC de 16.12.2009 (Jorge Arcanjo),
Ac. do TRP de 24.02.2011 (Filipe Caroço),
Ac. do STJ de 22.09.2011 (Bettencourt de Faria),
Ac. do TRC de 29.11.2011 (Carlos Querido),
Ac. do STJ de 15.12.2011 (Gregório Jesus),
Ac. do TRP de 11.09.2012 (M. Cecília Agante),
Ac. do TRL de 27.09.2012 (Teresa Albuquerque),
Ac. do TRC de 11.11.2014 (Jorge Arcanjo),
Ac. do TRP de 10.02.2015 (Rodrigues Pires),
Ac. do STJ de 25.02.2015 (Armindo Monteiro),
Ac. do STJ de 2.06.2015 (Clara Sottomayor),
Ac. do STJ de 1.10.2015 (M. dos Prazeres Beleza),
Ac. do STJ de 28.01.2016 (Graça Trigo),
Ac. do TRP de 30.05.2016 (Sousa Lameira),
Ac. do STJ de 7.02.2017 (Helder Roque),
Ac. do STJ de 7.03.2017 (Gabriel Catarino),
Ac. do TRP de 27.03.2017 (Jorge Seabra),
Ac. do TRL de 18.05.2017 (L. Correia de Mendonça),
Ac. do TRL de 6.02.2018 (Carlos Oliveira),
Ac. do STJ de 22.03.2018 (Graça Trigo),
Ac. do TRL de 24.09.2019 (José Capacete), todos disponíveis em dgsi.pt.
Adde Ac. do TRE de 20.10.2011 (Mário Serrano), Colectânea de Jurisprudência, n.º 233, t. IV/2011, Ac. do TRC de 13.10.2015 (Jorge Arcanjo), Colectânea de Jurisprudência, n.º 265, t. IV/2015”.
[29] Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, Almedina, 2021, p. 444.
[30] Relatado por GABRIEL CATARINO no processo 131/14.0GBBAO.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.