Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1718/21.0T8PVZ-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: INVENTÁRIO
PASSIVO DA HERANÇA
BENFEITORIAS ÚTEIS
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBJETO DA OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ANULAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO
LIQUIDAÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP202402191718/21.0T8PVZ-B.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O valor a ressarcir por benfeitorias úteis a que o possuidor tem direito, por as ter custeado e não as poder levantar sem detrimento da coisa, corresponde, por mor do disposto no artigo 479º ex vi do nº 2 do artigo 1273º, ambos do Código Civil, ao menor de qualquer um dos seguintes valores: o custo que o possuidor suportou com tais benfeitorias, por um lado, e o acrescento que as benfeitorias trazem ao património do enriquecido, por outro.
II - Anulado um concreto negócio jurídico deverão as respetivas partes restituir em singelo o que houverem prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, sendo que essa obrigação de restituição se funda no regime próprio da invalidade negocial, não representando qualquer afloramento do enriquecimento sem causa, dada à natureza subsidiária deste instituto.
III - Na relação de liquidação de um contrato em que um dos contraentes se obrigou a prestar à contraparte determinados serviços, o critério para calcular o valor dos mesmos será, em regra, aquele que foi adotado no próprio contrato inválido para a fixação do valor dessa contraprestação.
IV - Quando se esteja em presença de uma obrigação pura, apenas pode ocorrer uma situação de mora debendi se houver lugar à interpelação judicial ou extrajudicial dos responsáveis pelo pagamento dessa dívida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1718/21.0T8PVZ-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Póvoa de Varzim – Juízo Local Cível, Juiz 1


Relator: Miguel Baldaia Morais
1ª Adjunta Desª. Anabela Mendes Morais
2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

 

No presente processo de inventário a que se procede para partilha dos bens deixados por óbito de AA e de BB, veio o interessado CC reclamar da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, DD.

Fundamenta essa reclamação, no que ora releva, na circunstância de as dívidas passivas relacionadas sob as verbas nºs 3 e 4 não poderem ser reconhecidas por inexistirem documentos que as sustentem.

Respondeu a cabeça de casal, pugnando pela improcedência da reclamação.

Após a produção de prova, foi proferida decisão que julgou «a reclamação apresentada parcialmente procedente, por parcialmente provada, determinando, em consequência, que a cabeça de casal, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente decisão, apresente uma nova relação de bens, na qual corrija a verba n.º 3 do passivo para o valor de 49.380,99€ (quarenta e nove mil, trezentos e oitenta euros e noventa e nove cêntimos), mantendo-se a verba n.º 4 igualmente relacionada no passivo».    

Não se conformando com o assim decidido, veio a cabeça de casal interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito suspensivo do processo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

A. A decisão recorrida, ao fixar o valor da Verba n.º Três da relação do passivo em apenas 49.380,99 €, em relação ao valor relacionado de 118.500,00 € está em total oposição à matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 6 a 16 e padece de nulidade nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC;

B. Sem conceder, sempre tal decisão viola o disposto nos arts.º 1154.º e ss. do CC e ainda os arts.º 397.º; 398.º; 405.º; 406.º; e 762.º todos do CC, porquanto dos factos provados sob os n.ºs 1 e 2, 6 a 16 resulta provada a celebração de um contrato de prestação de serviços domésticos e de cuidados, mediante retribuição mensal no valor de 150.000$00, com início em 01 de Agosto de 2001;

C. Contrato esse, celebrado entre os Inventariados e a Cabeça de Casal, que foi quotidianamente cumprido à vista dos demais Interessados co-herdeiros desde aquela data e até ao decesso da Inventariada BB em 05 de Outubro de 2014, ou seja Treze Anos e Três meses, o que totaliza a quantia global de 118.500,00 € (cento e dezoito mil e quinhentos euros) em dívida desde o dia seguinte, ou seja 06 de Outubro de 2014;

D. Os factos provados sob os n.ºs 1, 2, 6 a 16 resultam de prova documental autêntica, o facto n.º 5 de prova pericial não reclamada e por isso aceite pelos Interessados e os factos n.ºs 3 e 4 da prova testemunhal, produzida pela Cabeça de Casal;

E. Da declaração da anulação do contrato de compra e venda celebrado entre os Inventariados e a Cabeça de Casal, como meio de pagamento das prestações do contrato de prestação de serviços e cuidados (“tomar conta deles” na expressão da testemunha neta sic nº 16), não resulta a nulidade ou a anulação deste contrato, tanto mais que não carece de formalidades para a sua validade – arts.º 1154.º e ss. do CC;

F. Tendo a Sra. Juiz a quo considerado como pago o preço do contrato de compra e venda anulado, mediante o pagamento de 66 (sessenta e seis) prestações mensais, iguais e sucessivas de 150.000$00 cada, como já tinha sido dado como provado na acção a que se refere o facto 16, não podia a Sra. Juiz a quo deixar de considerar o prévio vencimento de cada uma dessas prestações através da execução quotidiana do contrato de prestação de serviços e cuidados;

G. Contrato esse que se foi válido, até ao integral pagamento do preço, manteve a sua validade até ao seu fim, ou seja, em 05 de outubro de 2014 e por isso, continuaram a vencer-se as prestações mensais da sua retribuição;

H. Aliás, a não ser assim, sempre os demais Interessados estariam a enriquecer à custa do trabalho que a Cabeça de Casal teve a cuidar dos seus pais, os Inventariados, na exacta medida em que estes sempre quiseram pagar esses serviços a quem quisesse tomar conta deles (sic n.º 16);

I. Assim, o não pagamento das prestações mensais vencidas após o pagamento do preço de 118.500,00 € – 49.380,99 (= 69.119,00€) corresponde ao empobrecimento da Cabeça de Casal, pelo não recebimento de cerca de 93 (noventa e três) meses de trabalho, nos serviços que prestou aos seus pais, nos termos acordados como resulta provado dos factos 6 a 16;

J. A decisão recorrida viola, por isso, o disposto no art.º 473.º do CC em relação à parte decisória em que refere que “se a Cabeça de Casal prestou assistência no dia a dia dos Inventariados para além dos 66 (sessenta e seis) meses … fê-lo por sua livre e espontânea iniciativa, nada tendo a receber da herança por esse título”, para além da total oposição aos factos provados;

K. De igual modo a decisão relativa ao valor das benfeitorias realizadas pela Cabeça de Casal e a que corresponde a Verba n.º Quatro da relação do Passivo, ao fixar a mesma em apenas 27.222,00 €, que não no valor da avaliação de 44.025,00 €, como resulta provado do facto 5, a que se reporta o meio de prova pericial, integra inequívoco enriquecimento sem causa nos termos dos arts.º 473.º e ss. do CC e violação do elementar princípio da boa-fé, oferecendo aos demais herdeiros um enriquecimento de 16.803,00 €, à custa do património da Cabeça de Casal;

L. Em clara e inequívoca violação do disposto no art.º 1273.º do CC por remissão do art.º 2115.º do CC e 1269.º e ss. do CC por força do art.º 289.º e ss. do CC;

M. Para além da inequívoca violação do disposto no art.º 551.º do CC que sempre seria de mandar aplicar ao valor fixado na sentença por realização daquelas benfeitorias há mais de Dezoito Anos; violação esta que não existe com a fixação do valor da avaliação, que se impõe;

N. A decisão recorrida viola clara e inequivocamente o disposto nos arts.º 1104.º e 1105.º e n.º 2 do art.º 574.º todos do CPC, por não aplicação do efeito cominatório em relação ao passivo, na medida em que os Reclamantes nenhuma prova produziram, ao invés aceitaram os valores, já que não arguiram a falsidade dos factos constantes da prova autêntica (sentença) e não reclamaram do valor fixado na prova pericial;

O. Devem ainda ser admitidos porque não impugnados nem objecto de qualquer reclamação os peticionados juros vencidos sobre cada uma das prestações desde 31 de Agosto de 2001 até 06 de Outubro de 2014 e desde esta data até efectivo e integral pagamento, tudo nos termos dos arts.º 804.º; 805.º n.º 2 al. a) e 806.º todos do CC como consta da Resposta da Cabeça de Casal.


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            O interessado CC apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.


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            Após os vistos legais, cumpre decidir.

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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

         O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

         Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:

          - da nulidade da decisão por contradição entre os factos provados e o ato decisório recorrido;

           - do efetivo montante das dívidas relacionadas sob as verbas nºs 3 e 4 do passivo;

          - da dívida por juros de mora.


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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. O inventariado AA faleceu em 07/05/2008.

2. A inventariada BB faleceu em 05/10/2014.

3. A cabeça de casal realizou obras no prédio urbano identificado na Verba n.º 3 do Ativo da Relação de Bens, nomeadamente, construção de suite, corredor e porta de acesso, transformação e reconstrução de cozinha, sala de jantar e estar e casa de banho, substituição de janelas e portas, em alumínio e vidro duplo, renovação das redes de eletricidade e água, pintura geral, colocação de telhado de cobertura do prédio e construção de um telhado sobre a entrada e portão, pavimentação do terraço exterior, construção de um anexo, construção de um muro de vedação na bouça (lado nascente) e automatismo no portão de entrada da casa.

4. As obras referidas em 3. ascenderam à quantia de 27.222,00€ e foram pagas pela Cabeça de Casal.

5. As obras referidas em 3. foram avaliadas na quantia de 44.025,00€.

6. Por escritura realizada no dia 09/08/2001, lavrada a fls. 94 do Livro de Notas para Escrituras Diversas 152E-C do Primeiro Cartório Notarial de Esposende de EE, os inventariados declararam vender à aqui cabeça de casal e esta declarou aceitar a venda dos seguintes prédios:

- prédio urbano, constituído por casa com dois pavimentos, dependências e quintal, destinados a habitação, sito no lugar ..., da freguesia ..., do concelho da Póvoa de Varzim, descrito da Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ...53, do livro ...3, inscrito na matriz sob o art.º ...18;

- prédio rústico, denominado “Campo ...”, de ..., mato e eucalipto, sito no lugar ..., da freguesia ..., do concelho da Póvoa de Varzim, com a área de 2040m2, não descrito à data na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim e, em 10/05/2016, descrito sob o n.º ...37, inscrito na matriz sob o art.º ...55.

7. No âmbito da escritura referida em 6., ficou a constar que o preço global da venda é de “nove milhões e novecentos mil escudos” e que “o preço será pago pela compradora em sessenta e seis prestações mensais, iguais e sucessivas de cento e cinquenta mil escudos cada, com vencimento no último dia do mês a que respeitar, vencendo-se a primeira no final do mês de agosto do corrente ano”.

8. No âmbito da escritura referida em 6., mais ficou a constar que “o montante das referidas prestações poderá ser substituído por prestação mensal pela compradora, de todos os serviços pessoais e domésticos, seja na saúde, seja doença, a efetuar pela mesma aos vendedores, no dia-a-dia”.

9. No âmbito da escritura referida em 6., ficou ainda exarado que “a presente venda é feita com intuitos personae, tendo em vista a prestação dos referidos serviços pela pessoa da compradora aos vendedores, ou no caso de esta se encontrar impossibilitada de o fazer, por pessoa a indicar pelos vendedores, mas cujo custo será suportado pela compradora, ficando esta desde já autorizada a contratar pessoa, que sob a direção dela e dos vendedores presta e estes, serviços na manutenção, limpeza e serviços na residência”.

10. No âmbito da escritura referida em 6., declararam ainda os inventariados “que, tendo em vista a idade dos vendedores e as dificuldades de cuidarem deles próprios, desde já declaram que a compradora iniciou desde um de agosto corrente a prestação dos referidos serviços”.

11. No âmbito da escritura referida em 6., mais ficou a constar que “no caso de ocorrer o falecimento de qualquer um dos vendedores, mantêm o valor da prestação e a substituição”.

12. No âmbito da escritura referida em 6., foi ainda declarado pelos inventariados que “se antes de decorrido o pagamento da totalidade do preço estipulado, os vendedores falecerem, o montante em débito das prestações é doado à outorgante vendedora, por conta da quota disponível deles vendedores”.

13. A cabeça de casal desde, pelo menos, 1 de agosto de 2001, cuidou, quotidianamente, dos seus pais, prestando-lhes assistência no dia-a-dia, o que até à morte dos mesmos.

14. Os inventariados quiseram, com a celebração da escritura referida em 6., vender à cabeça de casal os prédios referidos em 6., assim como esta os quis comprar.

15. A cabeça de casal pagou o preço referido em 7. através da prestação de serviços pessoais e domésticos, nos termos referidos em 8. e 9., que sempre prestou aos pais até à morte dos mesmos.

16. Por acórdão, transitado em julgado em 03/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 1005/12.4TBPVZ, intentada pelo aqui reclamante contra a aqui cabeça de casal e marido, a inventariada BB (falecida na pendência da ação) e os demais aqui interessados, foi repristinada a sentença proferida da 1.ª instância, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central da Póvoa de Varzim, 2.ª Secção Cível – Juiz 1, que declarou a invalidade, por anulação, dos negócios de compra e venda objeto da escritura referida em 6. e, consequentemente, ordenou o cancelamento de todas as inscrições lavrados no respetivo registo predial com base na escritura referida em 6.


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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

IV.1. Da nulidade da decisão

Nas suas alegações recursivas a apelante advoga, desde logo, que o ato decisório sob censura enferma de vício de nulidade que reconduz à previsão da alínea c) do nº 1 do art. 615º.

Certo é que não identifica em que passos concretos da decisão recorrida ocorre o invocado vício formal limitando-se a alegar, de forma marcadamente genérica, que a mesma «é nula por manifesta contradição entre parte da factualidade dada como provada e o concretamente decidido que viola as normas legais aplicáveis, já que as aplicadas estão em manifesta oposição àqueles factos e ao direito aplicado”, o que, per se, justificaria a improcedência desse fundamento de recurso por falta de objeto.

Ainda assim, dentro dos poderes de cognição que competem a este tribunal ad quem, iremos procurar dilucidar se efetivamente a decisão recorrida padece da invocada nulidade.

Preceitua o citado normativo que «[é] nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão».

Verifica-se o referido vício formal quando há contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, isto é, a fundamentação conduz logicamente a resultado distinto do que consta do dispositivo da decisão judicial. Dito de outro modo, a fundamentação seguiu uma determinada linha de raciocínio, apontando num dado sentido, e depois a decisão segue outro oposto, chegando a uma conclusão completamente diferente da apontada pela fundamentação.

A razão de ser desta causa de nulidade ancora-se primordialmente na ideia de que a sentença deve constituir um silogismo judiciário, em que a norma jurídica constitui a premissa maior, os factos a premissa menor e a decisão será a consequência lógica de tais premissas, não devendo, pois, existir qualquer contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão.

Portanto, o vício em questão ocorre quando se verifique contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.

Ora, para além de, como se referiu, a apelante não ter identificado a concreta contradição que imputa ao ato decisório sob censura, da sua exegese resulta que o juiz a quo, nos respetivos fundamentos e atendendo à materialidade que logrou demonstração, considerou que o valor da dívida passiva das heranças por benfeitorias realizadas pela cabeça de casal, em imóvel que integra o acervo hereditário a partilhar, ascende ao montante de €27.222,00 (custo das benfeitorias) e não a €44.025,00 (valor da avaliação das benfeitorias), por ser aquela a importância devida por aplicação das regras do enriquecimento sem causa. Já no concernente à verba do passivo relacionada sob a verba nº 3 entendeu que, contrariamente ao valor aí indicado como constituindo a contraprestação dos inventariados pelos “cuidados e serviços domésticos” que lhe foram prestados pela cabeça de casal, o respetivo montante deverá antes cifrar-se em €49.380,99, por ser esse o valor correspondente à contrapartida devida pela cabeça de casal nos termos do contrato entre eles firmado e a que a mesma teria direito a perceber por força das regras de liquidação estabelecidas no art. 289º do Cód. Civil.

Resulta, assim, do exposto inexistir qualquer contradição intrínseca entre os fundamentos e o dispositivo da decisão recorrida, sendo certo que, como tem sido salientado[2], a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão-pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se antes como erro de julgamento.

Não ocorre, pois, o apontado vício formal.


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IV.2. Da dívida das heranças por benfeitorias realizadas pela interessada (e cabeça de casal) DD no prédio urbano identificado na verba nº 3 do ativo da relação de bens

    Como resulta dos autos, a cabeça de casal, na relação de bens que apresentou, indicou como passivo das heranças abertas por óbito de AA e BB, além de outras, “dívida das heranças à cabeça de casal, relativa a benfeitorias efetuadas no prédio que corresponde à verba três da relação de bens apresentada, no montante global de €27.222,00”.

         Como se viu, na reclamação que apresentou à relação de bens o interessado CC impugnou essa dívida passiva das heranças.

Após a produção de prova, foi dado como demonstrado que a cabeça de casal realizou obras no prédio urbano identificado na verba n.º 3 do ativo da relação de bens, nomeadamente, construção de suite, corredor e porta de acesso, transformação e reconstrução de cozinha, sala de jantar e estar e casa de banho, substituição de janelas e portas, em alumínio e vidro duplo, renovação das redes de eletricidade e água, pintura geral, colocação de telhado de cobertura do prédio e construção de um telhado sobre a entrada e portão, pavimentação do terraço exterior, construção de um anexo, construção de um muro de vedação na bouça (lado nascente) e automatismo no portão de entrada da casa.

Deu-se ainda como provado que essas obras ascenderam à quantia de 27.222,00€ e foram pagas pela cabeça de casal, tendo as mesmas sido avaliadas no montante de 44.025,00€.

Na decorrência dessa factualidade, na decisão recorrida reconheceu-se ser a cabeça de casal titular de um crédito sobre as heranças dos inventariados, a título de benfeitorias úteis realizadas no identificado prédio urbano, fixando o respetivo montante em €27.222,00.

A apelante rebela-se contra esse segmento decisório advogando que o valor do seu crédito deve antes cifrar-se em €44.025,00, por corresponder ao valor da avaliação das benfeitorias.

            Que dizer?

Perante o substrato factual que logrou demonstração e tendo em conta o regime vertido no art. 1260º do Cód. Civil, o comportamento da cabeça casal deverá ser qualificado como de um possuidor de boa-fé, posto que quando realizou as indicadas obras no imóvel ignorava que lesava o direito de outrem[3], executando-as no convencimento de que seria a proprietária do mesmo na sequência do contrato alienatório a que se alude no ponto nº 6 dos factos provados (contrato esse que, no entanto, veio a ser invalidado por decisão prolatada no âmbito do processo que, sob o nº 1005/12.4TBPVZ, correu termos pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim).

De igual modo, à luz do critério normativo enunciado no art. 216º do Cód. Civil, não merece reparo o entendimento sustentado pelo decisor de 1ª instância de classificar os trabalhos levados a cabo pela cabeça de casal como benfeitorias úteis[4].

Ora, nessas circunstâncias, postula o nº 1 do art. 1273º do Cód. Civil que «[T]anto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela»; por seu turno, dispõe o seu nº 2 que «[q]uando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa».

O princípio consagrado quanto às benfeitorias úteis é, pois, o de que o possuidor, esteja de boa ou má-fé, goza do direito de ser indemnizado. Evita-se, assim, mesmo em relação ao possuidor de má-fé, um locupletamento injusto. 

   A indemnização é fixada, diz a lei, pelo valor das benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, estando-se aqui perante a categoria de enriquecimento por despesas, na modalidade de enriquecimento por incremento de valor em coisa alheia[5].

Como, a este propósito, escreve MENEZES LEITÃO[6], “em se tratando de benfeitorias úteis o enriquecimento não consiste na poupança da despesa pelo proprietário (pois este poderia não a realizar), mas antes no correspondente incremento de valor da coisa, que pode ser restituído através do ius tollendi (que corresponde à restituição em espécie, nos termos do art. 479º, nº 1) ou através da restituição do valor correspondente, em caso de impossibilidade (art. 1273º, nº 2 e art. 479º)”.

Há, porém, que ter presente que, quem efetua um incremento de valor numa coisa alheia, só tem direito à restituição se as despesas tiverem sido suportadas pelo seu património, situação que, in casu, os factos provados permitem comprovar (cfr. ponto nº 4). É, portanto, esse sacrifício económico que, como sublinha o citado autor[7], “determina a restituição do enriquecimento (…), sendo por esse motivo que se considera enriquecimento à custa de outrem”.

No caso não se provou que a cabeça de casal pudesse levantar as benfeitorias sem detrimento do prédio onde foram implantadas[8], estando, assim, aberto o caminho para obter o valor correspondente calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Questão que se coloca é a de saber como se determina o valor a restituir.

De acordo com o disposto no art. 479º do Cód. Civil (regra que define o objeto da obrigação de restituir), não sendo possível a restituição em espécie, a obrigação de restituir compreende o valor correspondente a tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido, mas sem exceder a medida do locupletamento à data da citação judicial para restituição ou do conhecimento da falta de causa do enriquecimento.

Interpretando esse normativo ALMEIDA COSTA[9] escreve que “o objeto da obrigação de restituição encontra-se submetido a um duplo limite: o do enriquecimento e o do empobrecimento. Por outras palavras, o beneficiado deve entregar, em princípio, na medida do respetivo locupletamento, isto é, atendendo-se ao seu enriquecimento patrimonial ou efetivo e não real; nunca mais, todavia, do que o quantitativo do empobrecimento do lesado, caso este se mostre inferior àquele. De contrário, a obrigação de restituir determinaria, por seu turno, um enriquecimento injustificado”.

Também PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[10] referem, a propósito, que: “Pelo Código de 1867 esse valor (o da indemnização) era calculado pelo custo das benfeitorias, se este não excedesse o valor do benefício ao tempo da entrega. Caso contrário, a indemnização correspondia ao valor delas (minus inter expensum et melioratum). Fixavam-se, portanto, dois limites à indemnização: o valor das benfeitorias ao tempo da entrega e o seu custo”, acrescentando, mais adiante, que “não difere desta solução a que se encontra no novo Código, salvo no que respeita ao tempo da avaliação. Nos termos do artigo 479º, nº1, a indemnização há de corresponder ao valor daquilo que o titular tiver obtido à custa do empobrecido. A medida da restituição continua, pois, sujeita àqueles dois limites – o do custo, que neste caso consistirá em regra ao empobrecimento do possuidor, e o do enriquecimento do titular do direito (valor atual).”.

Significa isto que, nos termos legais, o empobrecido não pode receber mais do que a valorização do património do enriquecido, nem mais do que a desvalorização sofrida no seu património, correspondendo o objeto da restituição sempre ao menor desses dois limites.

Como assim, no caso vertente, a medida do enriquecimento dos inventariados (rectius, das suas heranças) equivalerá ao custo que a cabeça de casal despendeu na realização das benfeitorias (€27.222,00), não sendo despiciendo registar que foi esse, precisamente, o valor que a própria cabeça de casal indicou na relação de bens que apresentou nos autos como correspondendo ao montante da dívida indicada sob a verba nº 4 do passivo[11], inexistindo qualquer subsequente pedido de ampliação do mesmo de forma processualmente válida.

         Consequentemente, tendo a decisão recorrida fixado a medida do enriquecimento no aludido quantitativo, não é a mesma merecedora de censura, improcedendo, por conseguinte, as conclusões K) a N).


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I V.3. Da dívida das heranças por serviços prestados pela cabeça de casal aos inventariados

Na relação de bens que apresentou a cabeça de casal relacionou também como dívida das heranças o montante de € 118.500,00, correspondente ao valor dos cuidados e serviços domésticos que prestou aos inventariados no período compreendido entre 1 de agosto de 2001 e 5 de outubro de 2014.

         Na decisão recorrida, considerou-se que o montante dessa dívida passiva se deveria antes cifrar em €49.380,99, por ser esse o valor referente à prestação da cabeça de casal no contrato de compra e venda que celebrou com os inventariados, o qual veio a ser anulado por sentença prolatada no processo que, sob o nº 1005/12.4TBPVZ, correu seus termos pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim.

         A recorrente insurge-se contra esse entendimento sustentando que, por força da anulação do contrato a que se alude no ponto nº 6 dos factos provados, dever-lhe-á ser restituído tudo quanto prestou por conta do mesmo, o que ascende à mencionada importância de €118.500,00.

         Para a apreciação desta questão haverá, desde logo, que atender à materialidade que logrou demonstração e que consta dos factos provados nºs 6 a 16, ou seja:

. Por escritura realizada no dia 09/08/2001, os inventariados declararam vender à aqui cabeça de casal e esta declarou aceitou a venda dos seguintes prédios:

- prédio urbano, constituído por casa com dois pavimentos, dependências e quintal, destinados a habitação, sito no lugar ..., da freguesia ..., do concelho da Póvoa de Varzim, descrito da Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ...53, do livro ...3, inscrito na matriz sob o art.º ...18;

- prédio rústico, denominado “Campo ...”, de ..., mato e eucalipto, sito no lugar ..., da freguesia ..., do concelho da Póvoa de Varzim, com a área de 2040m2, não descrito à data na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim e, em 10/05/2016, descrito sob o n.º ...37, inscrito na matriz sob o art.º ...55;

. Na escritura que documenta esse negócio, ficou a constar que o preço global da venda é de nove milhões e novecentos mil escudos e que «o preço será pago pela compradora em sessenta e seis prestações mensais, iguais e sucessivas de cento e cinquenta mil escudos cada, com vencimento no último dia do mês a que respeitar, vencendo-se a primeira no final do mês de agosto do corrente ano (…), podendo o montante das referidas prestações ser substituído por prestação mensal pela compradora, de todos os serviços pessoais e domésticos, seja na saúde, seja doença, a efetuar pela mesma aos vendedores, no dia-a-dia»;

. Nessa escritura consta ainda que «a presente venda é feita com intuitus personae, tendo em vista a prestação dos referidos serviços pela pessoa da compradora aos vendedores, ou no caso de esta se encontrar impossibilitada de o fazer, por pessoa a indicar pelos vendedores, mas cujo custo será suportado pela compradora, ficando esta desde já autorizada a contratar pessoa, que sob a direção dela e dos vendedores presta a estes, serviços na manutenção, limpeza e serviços na residência»;

. Na referida escritura declararam ainda os inventariados «que, tendo em vista a idade dos vendedores e as dificuldades de cuidarem deles próprios, desde já declaram que a compradora iniciou desde um de agosto corrente a prestação dos referidos serviços (…) e no caso de ocorrer o falecimento de qualquer um dos vendedores, mantêm o valor da prestação e a substituição»;

. Foi ainda declarado pelos inventariados que «se antes de decorrido o pagamento da totalidade do preço estipulado, os vendedores falecerem, o montante em débito das prestações é doado à outorgante vendedora, por conta da quota disponível deles vendedores»;

. A cabeça de casal desde, pelo menos, 1 de agosto de 2001, cuidou, quotidianamente, dos seus pais, prestando-lhes assistência no dia-a-dia, o que fez até à morte dos mesmos;

. Os inventariados quiseram, com a celebração da escritura, vender à cabeça de casal os identificados prédios, assim como esta os quis comprar;

. Por decisão, transitada em julgado em 03/04/2018, proferida no âmbito do processo que, sob o n.º 1005/12.4TBPVZ, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central da Póvoa de Varzim, 2.ª Secção Cível – Juiz 1 – intentado pelo reclamante CC contra a aqui cabeça de casal e marido, a inventariada BB (falecida na pendência da ação) e os demais interessados -, foram anulados os mencionados negócios de compra e venda, ordenando-se o cancelamento de todas as inscrições lavradas no respetivo registo predial tendo por base a escritura pública que os ficou a documentar.

Perante o descrito quadro factual, tal como o problema se mostra equacionado, a questão a resolver prende-se em saber qual o âmbito do dever de restituir na sequência da anulação do referido contrato alienatório[12].

         Na relação de liquidação resultante da declaração de invalidade, temos que os prédios que constituíam objeto mediato desse contrato regressaram à esfera jurídica patrimonial dos inventariados (rectius, às respetivas heranças). Já no concernente  à prestação realizada pela cabeça de casal – ou seja dos serviços que, no pressuposto da regularidade desse negócio, prestou a favor dos seus progenitores – os termos em que, in concreto, se deve processar essa liquidação não se revelam pacíficos, discutindo-se nos autos se deve (apenas) corresponder ao valor das prestações (em espécie) realizadas pela apelante para pagamento da contrapartida fixada nesse contrato no valor de 49.380,99[13] (como se entendeu no ato decisório sob censura), ou antes – como preconiza a apelante - à totalidade do valor dos serviços que realizou em benefício dos inventariados.

         Nesta matéria rege o art. 289º do Cód. Civil que, sob a epígrafe “Efeitos da declaração de nulidade e da anulação”, dispõe no seu nº 1 que a declaração de nulidade ou anulação do negócio «[t]em efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente».

         Uma vez que a invalidade se reporta ao momento da celebração do negócio jurídico, tudo o que foi prestado em cumprimento do mesmo deve ser devolvido. Estão em causa, sobretudo, prestações de coisa corpórea, uma vez que os efeitos jurídicos (como, no caso, a constituição e transmissão de direitos sobre imóveis) do negócio inválido são atingidos ex lege, sem necessidade de qualquer ato das partes.

         O inciso transcrito determina uma restituição em singelo do que houver sido prestado pelas partes ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, sendo certo que essa obrigação de restituição funda-se no regime próprio da invalidade negocial, não representando, como tem sido sublinhado pela doutrina[14], qualquer afloramento do enriquecimento sem causa, dada à natureza subsidiária deste instituto (cfr. art. 474º do Cód. Civil). Daí que, um vez declarada a nulidade ou a anulação de um negócio jurídico, a ordem jurídica pretende um regresso ao status quo ante, ou seja, à situação que existiria se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado.

         A restituição do que foi prestado pelas partes não esgota, porém, todos os problemas que podem surgir do facto do negócio inválido poder ter sido cumprido pelas partes no pressuposto da sua validade, que, como se deu nota, foi o caso da prestação (de facere) que ao longo dos anos foi realizada pela cabeça de casal a favor dos seus progenitores, sendo que a respetiva prestação foi cumprida prática e economicamente em termos de não ser possível ser desfeita retroativamente.

         Questiona-se, então, em que moldes se deve concretizar a restituição da prestação assim realizada pela cabeça de casal.

         Como a este propósito escreve MENEZES CORDEIRO[15], “mesmo reconhecendo que os efeitos do negócio nulo ou anulado são imputáveis à lei, a vontade das partes condiciona os deveres de restituição cujo conteúdo resulta, no essencial, da estipulação das partes no contrato inválido (…), e que não sendo a restituição em espécie possível, nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada”.

         Em sentido próximo se pronunciou o acórdão do STJ de 16.10.2003[16], afirmando que nas “situações em que as partes efetuaram prestações com fundamento no contrato nulo ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, deve o contrato nulo ser valorado, no tocante à ulterior composição das relações [de liquidação] entre os contraentes, como «relação contratual de facto», suscetível de enquadrar os efeitos em causa, encarados agora não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do ato na realidade praticado”.

Significa isto que na relação de liquidação de um contrato em que um dos contraentes se obrigou a prestar à contraparte determinados serviços, o critério para calcular o valor do serviço prestado será, em regra, aquele que foi adotado no próprio contrato inválido para a fixação do valor dessa contraprestação.

         Na esteira desse posicionamento, tendo a cabeça de casal de restituir (como efeito ex lege) os imóveis objeto do contrato alienatório que firmou com os inventariados – ficando, pois, sem a coisa que correspondia à prestação dos alienantes – terá direito a receber “tudo o que tiver sido prestado”, ou seja, o valor dos serviços que realizou em favor daqueles, sendo que, em consonância com a vontade que as partes manifestarem no negócio inválido, o valor mensal dessa prestação enquanto ela durasse cifrar-se-ia no montante de 150.000$00 (equivalente a €748,19), inexistindo, ao invés do que se sustenta no ato decisório recorrido, razão válida que justifique a limitação do quantum a restituir apenas a uma parte do período temporal em que esses serviços foram executados. É que, nos termos legais, a restituição terá de ser integral, pois de contrário registar-se-ia um enriquecimento indevido por parte dos beneficiários desses serviços.

Consequentemente, a esse título, assiste à cabeça de casal o direito a receber o montante global de €118.214,02 [€748,19x158], posto que, como se provou, prestou os mencionados serviços desde agosto de 2001 até 5 de outubro de 2014 (data do óbito da inventariada).

        Procedem, assim, as conclusões E) a J).


*

IV.4. Dos juros de mora referentes à dívida passiva relacionada sob a verba nº 3

         Como emerge dos autos, a cabeça de casal veio, em 10 de setembro de 2019, relacionar adicionalmente[17], entre outras, uma dívida das heranças referente a juros moratórios calculados sobre o montante da dívida relacionada sob a verba nº 3 do passivo.

         Embora a relacionação dessa dívida não tenha sido alvo de impugnação direta por banda dos demais interessados, certo é que o interessado CC impugnou a dívida principal que serve de base àqueloutra obrigação acessória.

         Em conformidade com o que supra se decidiu, reconheceu-se que, em consequência da liquidação do contrato inválido que havia sido firmado entre a cabeça de casal e os inventariados, é a mesma titular de um direito de crédito sobre as respetivas heranças por “serviços pessoais e domésticos que lhes prestou”.

         Resta, então, dilucidar se lhe assiste igualmente direito aos reclamados juros.

De acordo com o respetivo regime legal (cfr. arts. 804º, nº 2 e 806º, ambos do Cód. Civil), os juros moratórios correspondem à indemnização estabelecida para o caso de retardamento na realização de prestação pecuniária imputável ao devedor.

Ora, no caso vertente os inventariados, por mor do ajuizado contrato, não estavam propriamente vinculados à realização de uma prestação dessa natureza, mas antes a uma obrigação de transmissão e entrega dos imóveis que constituíram objeto mediato desse negócio jurídico (cfr. art. 879º, als. a) e b) do Cód. Civil) – o que cumpriram mediante a celebração da escritura pública que o ficou a documentar.

Deste modo, não pode, em rigor, afirmar-se - como pretende a apelante - que durante o período intermédio (isto é, entre o momento da celebração ou da execução do contrato e o da sua anulação) pudessem ser contados quaisquer juros de mora, sendo que somente após essa anulação surgiu na sua esfera jurídica patrimonial um direito ao recebimento de uma compensação pecuniária pelos serviços que realizou nos moldes anteriormente descritos.

A partir desse momento, por se estar em presença de uma obrigação pura, apenas poderia ocorrer uma situação de mora debendi caso tivesse havido interpelação judicial ou extrajudicial dos responsáveis pelo pagamento dessa dívida (cfr. art. 805º, nº 1 do Cód. Civil), facto que a apelante não logrou demonstrar.

Por essa razão não pode, pois, ser atendida como dívida passiva das heranças dos inventariados os reclamados juros moratórios.


***


V. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que:

(i) se fixa em €118.214,02 (cento e dezoito mil duzentos e catorze euros e dois cêntimos) o valor da dívida passiva das heranças abertas por óbito de AA e de BB no concernente aos cuidados e serviços domésticos que lhes foram prestados pela cabeça de casal;

(ii) no mais confirma-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante e apelado na proporção da respetiva sucumbência.


Porto, 19/2/2024
Miguel Baldaia de Morais
Anabela Morais
Eusébio Almeida
__________________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Assim, LEBRE DE FREITAS, A ação declarativa comum, pág. 298 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 54.
[3] Embora se venha discutindo se o conceito de boa-fé utilizado no citado art. 1260º deve ser interpretado num sentido ético ou num sentido meramente psicológico, a doutrina vem maioritariamente considerando que é possuidor de boa-fé quem ignora que está a lesar os direitos de outrem, sem que a lei entre em indagações sobre a desculpabilidade ou censurabilidade da sua ignorância – cfr., sobre a questão e por todos, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 20, ORLANDO DE CARVALHO, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122º, pág. 292 e CARVALHO FERNANDES, in Lições de Direitos Reais, 6ª edição, Almedina, pág. 302.
Registe-se, de qualquer modo, que assumindo as benfeitorias realizadas no imóvel natureza de benfeitorias úteis, a discussão em torno da questão de saber se a atuação da cabeça de casal deveria ser catalogada como de boa ou má-fé sempre se revelaria írrita, posto que, independentemente dessa classificação, assistir-lhe-á, nos termos legais, direito a reclamar uma indemnização calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa.
[4] Nos termos do nº 3 do art. 216º, as benfeitorias úteis são «[a]s que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam, todavia, o valor».
[5] Para maior desenvolvimento sobre essa categoria de enriquecimento sem causa vide, por todos, MENEZES LEITÃO, in O Enriquecimento sem causa no Direito Civil, Almedina, 2005, págs. 791 e seguintes.
[6] In Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2017, págs. 435 e seguinte.
[7] Ob. citada, págs. 436 e seguinte.
[8] O que, por mor do preceituado no nº 7 do art. 1098º, determina que tais benfeitorias tenham de ser (como o foram) descritas como dívida da herança.
[9] In Direito das Obrigações, 10ª edição, Almedina, pág. 512.
[10] In Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, págs. 466 e seguinte.
[11] Que, não fora a circunstância de essa dívida passiva ter sido objeto de reclamação por um dos herdeiros, se consideraria, face ao estatuído no nº 1 do art. 1106º, reconhecida pelo valor indicado na relação de bens.
[12] Embora as partes tenham denominado o contrato como de compra e venda (o que, aliás, foi secundado pelo decisor de 1ª instância) afigura-se-nos discutível essa qualificação jurídica perante a forma como nele se estabeleceu a contrapartida da adquirente/cabeça de casal, que tanto poderia realizar a sua prestação debitória mediante o pagamento do preço de nove milhões e novecentos mil escudos - ainda que fracionadamente – ou então, alternativamente, através de prestação de “serviços pessoais e domésticos” aos alienantes/inventariados. Estaríamos, assim, relativamente à adquirente em presença de uma obrigação com faculdade alternativa à parte debitoris, sendo que na hipótese de optar – como foi o caso – pela realização da sua contrapartida mediante a prestação de serviços tal implicaria que o negócio em causa não poderia, summo rigore, ser catalogado como de compra e venda por essa contrapartida não consistir numa quantia pecuniária que, à luz da definição legal vertida no art. 874º do Cód. Civil, constitui elemento essencial deste tipo negocial (cfr., sobre a questão e por todos, MENEZES LEITÃO, in Direito Das Obrigações, vol. III, 6ª edição, Almedina, págs. 13 e seguinte e ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, págs. 800 e seguinte). Trata-se, no entanto, de um aspeto que não assume uma especial relevância no presente recurso em que essencialmente se discute em que termos se deverá processar a relação de liquidação resultante da invalidade do ajuizado contrato.
[13] Correspondente ao produto da multiplicação do número de prestações (66) que no contrato ficaram estabelecidas como constituindo a prestação da adquirente/cabeça de casal e o valor aí fixado (150 mil escudos mensais, atualmente equivalente a €748,19) como representando o equivalente pecuniário dos “serviços pessoais e domésticos” a realizar por esta.
[14] Cfr., por todos, CARLOS MOTA PINTO et al., in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 626 e PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 266.
[15] In Tratado de Direito Civil Português – I Parte Geral, tomo 1º, 3ª edição, Almedina, pág. 873; em análogo sentido milita CLARA SOTTOMAYOR, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 718.
[16] Proferido no processo 03B484, acessível em www.dgsi.pt.
[17] Nessa relação adicional indica-se como passivo: (i) dívida das heranças no montante de € 24.414,77, relativo a juros vencidos entre 31 de agosto de 2001 e 5 de outubro de 2014, sobre o montante de cada uma das prestações do preço dos serviços prestados pela cabeça de casal aos inventariados seus pais; (ii) dívida das heranças no montante de € 23.327,09, relativo a juros sobre o montante de € 118.255,40, desde 6 de Outubro de 2014 até à presente data, a que acrescem os juros que se vencerem até integral e efetivo pagamento.