Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | TERESA PINTO DA SILVA | ||
| Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO REEMBOLSO DE QUANTIAS PAGAS POR SERVIÇOS E ORGANISMOS PÚBLICOS | ||
| Nº do Documento: | RP202509294080/24.5T8PRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 09/29/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O artigo 46.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, confere aos serviços e organismos públicos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações em caso de acidente em serviço, o direito de serem reembolsados por terceiro civilmente responsável, incluindo seguradoras, pelas quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de caráter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho. II - Tal direito depende da prova da responsabilidade civil do terceiro, da qualificação do acidente como "de serviço" e do efetivo pagamento da indemnização devida ao sinistrado. III - Os pagamentos efetuados pela Ré diretamente ao sinistrado (trabalhador ao serviço do Estado), enquanto seguradora do terceiro responsável, a título de “incapacidades temporárias”, não podem ser opostos ao Autor/Estado Português, não podendo a Ré obter nesta ação a compensação desses montantes. VI - Tais pagamentos, se de facto se destinaram a ressarcir os mesmos danos já pagos pelo Autor, deverão ser objeto de eventual acerto entre a Ré e o sinistrado, em ação autónoma, caso a Recorrente entenda haver duplicação de pagamentos em benefício do agente. Não pode é opor ao Recorrido uma relação jurídica em que este não é parte e da qual não resulta qualquer enriquecimento sem causa para o Estado Português. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 4080/24.5T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível do Porto – Juiz 1
Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva 1ª Adjunta: Des. Ana Olívia Loureiro 2º Adjunto: Des. Mendes Coelho
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO O Ministério Público, em representação do Estado Português (Ministério da Administração Interna – Polícia de Segurança Pública), propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., pedindo a condenação da Ré a pagar ao Estado Português a quantia de €29.931,82 (vinte e nove mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento. Alegou, para tanto em síntese, que no dia 25 de julho de 2021, pelas 17.45 horas, na Avenida ..., no Porto, ocorreu um acidente de viação, que envolveu os veículos automóveis ligeiros de passageiros Volvo ..., de matrícula ..-NX-.., BMW ..., de matrícula ..-DA-.. e Fiat ..., de matrícula XR-..-.., conduzidos, respetivamente, por AA, BB e CC, tendo o referido sinistro ficado a dever-se a culpa exclusiva do condutor do veículo XR-..-... Na data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do veículo com a matrícula o XR-..-.. encontrava-se transferida para a Ré “A... SA”, através de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º .... O condutor do veículo ..-DA-.., BB, era agente da PSP, exercendo funções no Núcleo de Logística do Comando Metropolitano de Polícia do Porto, e seguia naquele veículo para um serviço remunerado nas Bombas de Gasolina da B..., situadas na Rua ..., no Porto, pelo que tal acidente foi qualificado como acidente em serviço para os efeitos do disposto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro. Em consequência do acidente, o agente BB sofreu lesões, bem como um período de incapacidade temporária absoluta entre 25 de julho de 2021 e 3 de junho de 2022, num total de 340 dias. Durante esse período de inatividade foram processados e pagos pelo Estado Português (Ministério da Administração Interna – Policia de Segurança Pública) a favor do Agente BB remunerações, suplementos e subsídios no montante global de € 28.931,82 (vinte e oito mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e dois cêntimos), tendo ainda o Estado Português suportado, através do Departamento de Saúde e Assistência na Doença (SAD), o pagamento das correspondentes despesas de saúde e de cuidados médicos necessários e adequados ao tratamento das lesões sofridas pelo agente BB no acidente. Invocando o direito de regresso previsto no artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, o Autor peticionou o reembolso daquelas quantias pagas ao agente BB a título de remunerações, suplementos e subsídios, bem como das despesas de saúde e cuidados médicos com ele suportadas em consequência do sinistro. A Ré, em sede de contestação, admitiu a celebração do contrato de seguro e a dinâmica do acidente, mas impugnou o período de incapacidade temporária absoluta do agente BB, alegando que este teve alta médica em 22 de dezembro de 2021. Outrossim, arguiu ter procedido ao pagamento direto ao sinistrado, a título de incapacidades temporárias, da quantia de €3.737,69, que deverá ser descontada na indemnização que vier a ser fixada a final a favor do Autor. Termos em que conclui pelo julgamento da ação de acordo com a prova que vier a ser produzida. Por decisão de 16 de maio de 2024, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia e proferiu despacho saneador tabelar, fixou o objeto do litígio, enunciou os temas da prova e pronunciou-se quanto aos requerimentos probatórios. Em 9 de setembro de 2024, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais. Em 15 de outubro de 2024 foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: «Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, consequentemente, condeno a R. “A..., SA” a pagar ao A. “Estado Português” a quantia de 29 160,74 € (vinte e nove mil, cento e sessenta euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento. As custas ficam a cargo da A. e da R. na proporção dos respetivos decaimentos (art. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).» * Inconformada com a sentença proferida, veio a Ré/Apelante dela interpor o presente recurso, pretendendo a revogação da mesma, apresentando alegações que finalizou com as seguintes conclusões: 1) Com o presente recurso, a demandada pretende ver revogada a Douta Sentença de Primeira Instância no que à sua condenação diz respeito. E, mesmo que a sua tese não vingue, pretende que se proceda à compensação, na quantia na qual foi condenada, relativamente aos montantes que pagou diretamente ao sinistrado. 2) O que estava em causa nos presentes autos, e ainda está, é o estabelecimento da data da alta fixada ao sinistrado, sendo que, a esse propósito, existem duas datas nos autos: a data de 22/12/2021, fixada pelos serviços clínicos contratados pela demandada; a data de 03/06/2022, fixada pelos serviços clínicos da entidade patronal do sinistrado (P.S.P.). 3) Entendeu o Tribunal "a quo" optar pela data de 03/06/2022, com a fundamentação que consta da Douta Sentença, sendo certo que não é este o entendimento da demandada, sempre com o devido respeito. 4) Entende a demandada que o Tribunal "a quo" não deveria ter optado por nenhuma delas, sendo certo que se passa a explicar o porquê. 5) Estando em causa uma questão essencialmente médica, dir-se-á, até, exclusivamente médica, é entendimento da demandada que o meio probatório adequado e idóneo para se estabelecer a data da alta é o exame pericial ao sinistrado, ou seja, que fosse chamada uma entidade externa e independente, neste caso, o IML, para se pronunciar e estabelecer a data da alta. 6) Em termos práticos e processuais, cada uma das aqui partes alega uma data fixada pelos respetivos serviços clínicos. 7) Nestas situações, como em situações análogas, tem sido entendimento unânime que deve a prova a produzir sê-lo em sede de exame pericial. 8) Neste caso concreto, segundo o ónus probatório, caberia ao demandante ter requerido a respetiva prova pericial para determinação da data da alta; não o tendo feito, como não fez, nunca poderia o Tribunal ter optado por uma das datas que constam dos autos, devendo, outrossim, ou julgar a ação improcedente, ou ter relegado para execução de sentença ou incidente de liquidação o apurar da data, ou, em última análise, deveria ter ordenado, de forma oficiosa, a realização de exame pericial ao sinistrado para determinação da data da alta. 9) Deve a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que, ou julgue a ação totalmente improcedente, ou decida pela condenação ilíquida, relegando para momento posterior o apuramento concreto, e nos moldes expostos, da quantia a pagar ao demandante. 10) Se assim se não entender, sempre deverá ser operada a compensação entre a quantia na qual a demandada foi condenada a pagar e as quantias que a demandada já pagou ao sinistrado, sob pena de injustificado enriquecimento sem causa. 11) Conforme consta da factualidade dada como assente, a demandada já pagou ao demandante, a título de incapacidades temporárias, a quantia de 3.737,69 €. 12) Não pode a demandada ser condenada a pagar em duplicado, até porque pagou aquela quantia a quem tinha que pagar, ou seja, diretamente ao sinistrado. 13) Ao contrário do que é defendido na Douta Sentença, é ao demandante que cabe pedir ou solicitar ao sinistrado a devolução da quantia de 3.737,69 €, cujo recebimento, aliás, o sinistrado deveria ter dado conhecimento ao demandante. 14) A Douta Sentença sob censura violou as normas dos artigos 20.º da CRP, artigos 457.º e ss. e artigo 615.º, n.º 1, alínea b), c), d) e e) e o n.º 1, 4 e 5 do artigo 609.º, todos do Código de Processo Civil. * O Autor/Apelado contra-alegou, concluindo nos seguintes termos: 1º Não tem razão a recorrente. 2º Porque no caso dos autos tendo ficado provado por prova documental e testemunhal e não contrariada por prova credível equivalente, que a data de alta ocorreu em 04/06/2022, era obrigação da PSP pagar, como pagou ao Agente BB as remunerações, suplementos e subsídios que o mesmo tinha direito a receber no período em que esteve totalmente incapacitado, ou seja, desde a data do acidente até à referida data de alta. 3º Tem a PSP direito a receber da Ré, no âmbito do seu direito de regresso, todas as quantias que pagou nesse período de baixa bem como as despesas médicas e cuidados médicos que suportou, relacionadas com o dito acidente. 4º Não pode ser imputado à PSP qualquer enriquecimento ilegítimo, porquanto não foi à PSP mas quando muito ao Agente BB que a Ré pagou 3 737,69 euros. 5º- O M. Juiz a quo decidiu em conformidade com os factos dos autos e a lei quando considerou que a data de alta se situa em 04/06/2022, a existência de 340 dias de baixa e o pagamento por parte da PSP ao Agente BB de um total de 29.160,74 euros de remunerações, suplementos, subsídios no período em que esteve de baixa e de despesas e cuidados médicos, em decorrência do acidente dos autos, cuja reposição à PSP atribuiu à Ré deve a sentença proferida nos autos ser integralmente mantida. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida. * Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo. * Recebido o processo neste Tribunal da Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * Delimitação do objeto do recurso Da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações, que versam sobre a decisão recorrida e que delimitam o objeto do recurso, estando o Tribunal impedido de conhecer de matérias não incluídas nessas conclusões, com exceção das que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do previsto nos artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões: 1ª Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas b), c), d) e e), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil. 2ª Se as conclusões das alegações de recurso contêm impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que caberá conhecer e, ainda que assim se não conclua, da data de alta do sinistrado e da alegada necessidade de perícia médica 3ª Do direito de regresso e da impossibilidade de compensação por pagamentos diretos ao Sinistrado * II – FUNDAMENTAÇÃOFundamentação de facto Na sentença recorrida consideraram-se, com interesse para a decisão, os seguintes factos provados e não provados: Factos provados 1 - No dia 25 de Julho de 2021, cerca das 17.45 horas, na Avenida ..., no Porto, no sentido descendente, em direção ao mar, mais concretamente no entroncamento formado com a avenida ..., no Porto, na via mais à esquerda, ocorreu um acidente de viação envolvendo os veículos automóveis ligeiros de passageiros, de marca “Volvo ...”, de matrícula “..-NX-..”; “BMW ...”, de matrícula “..-DA-..”; e “Fiat ...”, de matrícula “XR-..-..”, conduzidos, respetivamente, por AA, BB e CC. 2 - Os três veículos circulavam naquela Avenida, em sentido descendente, na via de trânsito mais à esquerda, e que permite o acesso à avenida ..., sendo que na frente seguia o veículo “..-NX-..”, seguido pelo “..-DA-..”, atrás do qual seguia o “XR-..-..”. 3 - Sucede que o condutor do veículo “..-NX-..” travou repentinamente, o que determinou que BB, que seguia na sua retaguarda, ao volante do “..-DA-..”, travasse bruscamente, imobilizando-o de forma a evitar o embate naquele, na sequência do que foi embatido, na parte traseira, pelo veículo “XR-..-..”, tripulado por CC. 4 - O condutor do veículo “XR-..-..” não guardou a distância suficiente do veículo que seguia à sua frente de forma a parar sem embater em caso de travagem ou imobilização súbita. 5 - Na data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do veículo com a matrícula o “XR-..-..” tinha sido transferida para a Ré “A... SA”, através de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º .... 6 - O condutor do veículo “..-DA-..”, BB, era agente da PSP, com a categoria de Agente Principal, com a matrícula n.º ..., exercia funções no Núcleo de Logística do Comando Metropolitano de Polícia do Porto, e seguia naquele veículo para um serviço remunerado nas Bombas de Gasolina da “B...”, situadas na Rua ..., no Porto. 7 - O acidente foi qualificado como “acidente em serviço” para os efeitos do disposto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, e foi instaurado pela Polícia de Segurança Pública o competente processo de Acidente em Serviço, ao qual foi atribuído o NUP .... 8 - A PSP deslocou-se ao local e elaborou a participação de acidente com o NPP .... 9 - O agente BB foi conduzido pelo INEM para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar .... 10 - Como consequência direta e necessária da conduta do condutor do veículo “XR-..-..”e do aludido embate, sofreu o agente da PSP BB dores na região lombar, na região clavicular esquerda e na articulação da anca à esquerda 11 - Por causa das lesões causadas pelo acidente, o agente BB esteve em situação de Incapacidade Temporária Absoluta no período compreendido entre 25 de Julho de 2021 e 3 de Junho de 2022, num total de 340 dias. 12 - O que determinou que tivesse estado impossibilitado de prestar o seu serviço na Polícia de Segurança Pública durante todo aquele período temporal. 13 - Durante esse período de inatividade foram processados e pagos pelo Estado Português (Ministério da Administração Interna – Policia de Segurança Pública) a favor do Agente BB remunerações, suplementos e subsídios no montante global de 28 931,82 €. 14 - O Estado Português, através do Departamento de Saúde e Assistência na Doença (SAD), pagou ao agente BB a quantia de 228,92 €, a título de despesas de saúde e de cuidados médicos necessários e adequados às lesões decorrentes do acidente de viação acima descrito. 15 – O Estado Português, através do Departamento de Saúde e Assistência na Doença, despendeu 255 € na submissão do agente BB a Junta Médica. 16 – A R. entregou ao agente BB as seguintes quantias: - Em 24-11-2021: 922,24 €, a título de “incapacidades temporárias”; - Em 18-1-2022: 1 506,97 €, a título de “incapacidades temporárias; e - Em 9-2-2022: 1 308,48 €, a título de “incapacidades temporárias” 2.2 – Factos não provados: 1 – Em 22-12-2021, o agente BB encontrava-se curado, sem qualquer incapacidade. * Fundamentação de direito
1 – Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas b), c), d) e e), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil O disposto nesta norma está diretamente relacionado com o artigo 608°, n° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. A nulidade da decisão por excesso de pronúncia, contemplada na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC serve de cominação para o desrespeito do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo diploma, reconduzindo-se os vícios aí previstos à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do Tribunal. Ela só ocorre quando o Tribunal se pronuncia sobre questões jurídicas de que não poderia conhecer, “designadamente porque não foram levantadas pelas partes e não eram de conhecimento oficioso”[4]. A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões jurídicas neste contexto. E quanto a esta matéria, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que essas questões que o Tribunal pode conhecer, para além daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe, identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir e com as exceções invocadas. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções[5]. Importa ainda ter presente que na primeira parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil mostra-se contemplada a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, enquanto na segunda parte se prevê a nulidade da sentença por excesso de pronúncia. Já na alínea e), do citado artigo 615º, do Código de Processo Civil, prevê-se a nulidade da sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. Este preceito deve ser articulado com o art.º 609.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que “1. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. (…)” Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objeto, isto sob pena de a sentença ficar afetada de nulidade. Importa ainda ter presente que as nulidades da sentença tipificadas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são vícios formais, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites da decisão, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos. Perante o sobredito enquadramento, e analisando o caso concreto, conclui-se que a Recorrente se limita, na conclusão 14), a sustentar, de um modo genérico e sem que fundamente essa conclusão, que a sentença em análise violou o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 615º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e), e 609.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código de Processo Civil. Lida a decisão recorrida, este Tribunal ad quem não descortina qualquer das nulidades ou vícios alegados. A sentença recorrida apresenta uma exposição dos factos provados e não provados, bem como a sua subsunção ao direito aplicável, de forma lógica e coerente. Não se verifica omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar, nem ambiguidade, obscuridade ou contradição na fundamentação ou na decisão. Tampouco se excede nos limites da pronúncia ou condena em quantidade superior à peticionada. As alegações de nulidade da sentença carecem, pois, de consistência material e de concretização dos vícios que lhes são indevidamente imputados. A arguição das nulidades invocadas revela-se, assim, absolutamente infundada e, por via disso, o recurso improcede nesta parte. * 2ª Se as conclusões das alegações de recurso contêm impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que caberá conhecer e, ainda que assim se não conclua, da data de alta do sinistrado e da alegada necessidade de perícia médica Nas conclusões 2) a 8) a Recorrente alega, relativamente à data da alta fixada ao sinistrado, que existiam duas datas nos autos: a data de 22/12/2021, fixada pelos Serviços Clínicos contratados pela Ré e a data de 03/06/2022, fixada pelos Serviços Clínicos da entidade patronal do sinistrado (P.S.P.). Mais sustenta que o Tribunal a quo optou pela data de 3 de junho de 2022, quando não deveria ter optado por nenhuma delas, devendo, outrossim, ou julgar a ação improcedente, ou ter relegado para execução de sentença ou incidente de liquidação o apurar da data, ou, em última análise, deveria ter ordenado, de forma oficiosa, a realização de exame pericial ao sinistrado para determinação da data da alta. E daí que defenda, na conclusão 9), a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que, ou julgue a ação totalmente improcedente, ou decida pela condenação ilíquida, relegando para momento posterior o apuramento concreto da quantia a pagar ao autor. Com interesse para a decisão desta questão, constata-se que na sentença recorrida, em termos de decisão da matéria de facto, resultaram provados, entre outros, os seguintes factos: Não obstante, a constatação de que a recorrente não impugnou de forma válida a decisão sobre a matéria de facto não encerra o assunto, porque a recorrente invoca questões de natureza puramente jurídica que podem viciar a decisão sobre a matéria de facto e das quais cumpre conhecer, quais sejam, que ocorreu violação das regras quanto à produção de prova e respetivo ónus probatório, porquanto estando em causa uma questão médica, o meio probatório adequado e idóneo para se estabelecer a data da alta é o exame pericial, pelo que deveria ter sido chamada uma entidade externa e independente, neste caso, o IML, para se pronunciar e estabelecer a data da alta, cabendo ao autor, segundo o ónus probatório, requerer essa prova pericial. Estes argumentos não procedem. No que tange à alegada omissão de determinação de perícia médica independente, cumpre recordar que, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a perícia é realizada a requerimento das partes ou quando o Tribunal decida oficiosamente, caso se afigure indispensável à descoberta da verdade material dos factos. In casu, nenhuma das partes formulou tal requerimento. O Tribunal de primeira instância, perante a solidez e a coerência da prova documental e testemunhal que atestava a data de alta por junta médica, não considerou indispensável a realização oficiosa da perícia. Não se vislumbra, nesta conduta, qualquer vício processual ou material, mas antes uma aplicação do princípio da livre apreciação da prova e da suficiência dos meios probatórios já disponíveis, sendo certo que a determinação oficiosa de prova pericial se inscreve no poder discricionário do juiz. Termos em que, ante o exposto, concluímos pela improcedência do recurso interposto quanto às questões suscitadas nas conclusões 2) a 8). * 3ª Do direito de regresso e da impossibilidade de compensação por pagamentos diretos ao sinistrado A Recorrente pretende que o montante de € 3.737,69, por si pago diretamente ao sinistrado a título de “incapacidades temporárias”, seja descontado à quantia a pagar ao Estado. Conforme corretamente subsumido pelo Tribunal a quo, na presente ação estamos perante um direito de regresso do Autor sobre a Ré, conferido expressamente pelo artigo 46.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro. A respeito desta questão, consta da sentença recorrida o seguinte: «Neste âmbito, cumpre frisar que ficou provado que a R. entregou ao agente BB as seguintes quantias: - em 24-11-2021: 922,24 €, a título de “incapacidades temporárias”; - em 18-1-2022: 1.506,97 €, a título de “incapacidades temporárias; e - em 9-2-2022: 1.308,48 €, a título de “incapacidades temporárias. Não obstante, tais quantias não deverão ser descontadas ao montante a pagar pela R. ao A.. Com efeito, conforme decorre do mencionado art. 46º, nº 1, está em causa o direito de regresso da A sobre a R.. Tal como referido no Acórdão do Tribunal da relação de Lisboa de 17-2-2022, in www.dgsi.pt, “O direito de regresso determina a constituição de um direito novo na esfera do devedor que satisfez integralmente a prestação extinguindo o direito creditício”; diferentemente, a sub-rogação, que se enquadra na transmissão de dívidas, prevista no art. 589º do CC, consubstancia a transmissão de um crédito do credor para o devedor que lho satisfez. Assim, o direito de regresso é um direito nascido “ex novo” na esfera jurídica daquele que extinguiu, ou à custa de quem foi extinta a obrigação (cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 1974, II-306). Tal como explicado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-1-2012, in www.dgsi.pt, “O modo como o Código Civil constrói a sub-rogação legal permite distingui-la do direito de regresso. Ao contrário do credor sub-rogado, que antes da satisfação do direito do credor era terceiro, alheio ao vínculo obrigacional, o titular do direito de regresso é um devedor com outros, o seu direito nasce, ex novo, com a extinção da obrigação a que também ele estava vinculado.” (o sublinhado é nossa autoria). Face ao exposto, importa concluir que a A. estava obrigada a pagar a BB as mencionadas quantias, nos termos dos arts. 4ºa 6º do DL 503/99. Assim, cumprida tal obrigação, viu a A. nascer na sua esfera jurídica um direito próprio de regresso sobre a R.. Assim sendo, o facto extintivo invocado pela R. apenas pode ser oposto a BB – e já não à A. -, ficando-lhe reservado o direito de acionar este último, em ação autónoma, caso entenda existir duplicação de pagamentos em benefício do referido BB. Neste ponto, é ainda de referir que da matéria provada não resulta que os pagamentos efetuados pela R. a BB visassem liquidar os mesmos danos que os liquidados pela A.. Com efeito, da expressão “incapacidades temporárias” constante do “facto provado” nº 16 não se consegue extrair – face ao carácter tendencialmente conclusivo dessa expressão – os danos que tais quantias visaram liquidar. Cabia à R. demonstrar, enquanto facto extintivo do direito da A. (art. 342º, nº 2, do CC), que as quantias pagas a BB visaram liquidar os mesmos danos que as quantias que foram a este também pagas pela A.. Não o tendo logrado fazer, esta exceção de direito material sempre improcederia.» Concordamos, no essencial, com esta argumentação. Conforme corretamente subsumido pelo Tribunal a quo, estamos perante um direito de regresso conferido expressamente ao Autor pelo artigo 46.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro. Este preceito confere aos serviços e organismos públicos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações em caso de acidente em serviço, o direito de serem reembolsados por terceiro civilmente responsável, incluindo seguradoras, pelas quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de caráter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho. Tal direito depende da prova da responsabilidade civil do terceiro, da qualificação do acidente como "de serviço" e do efetivo pagamento da indemnização devida ao sinistrado. Todos estes pressupostos foram cabalmente demonstrados nos autos. O Estado Português, através da PSP, estava legal e imperativamente obrigado a pagar a BB as remunerações, suplementos, subsídios e despesas médicas durante o período de incapacidade, nos termos dos artigos 4.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 503/99. Ao cumprir esta obrigação legal, o Estado fez nascer na sua esfera jurídica um direito próprio e autónomo de regresso contra a Ré, ou seja, um direito novo na esfera daquele, enquanto devedor que satisfez integralmente a prestação, extinguindo o direito creditício. Por conseguinte, os pagamentos efetuados pela Ré diretamente ao agente BB, a título de “incapacidades temporárias”, não podem ser opostos ao Autor, não podendo a Ré obter nesta ação a compensação desses montantes. Tais pagamentos, se de facto se destinaram a ressarcir os mesmos danos já pagos pelo Autor, deverão ser objeto de eventual acerto entre a Ré e o sinistrado, em ação autónoma, caso a Recorrente entenda haver duplicação de pagamentos em benefício do agente. Não pode é opor ao Recorrido uma relação jurídica em que este não é parte e da qual não resulta qualquer enriquecimento sem causa para o Estado Português. Acresce, e não é de somenos importância, como bem nota o Tribunal a quo, que a Ré não logrou demonstrar, como lhe incumbia à luz do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, que as quantias pagas diretamente a BB visavam liquidar os mesmos danos que as quantias pagas pelo Autor. A expressão "incapacidades temporárias" é, por si só, de caráter tendencialmente conclusivo e insuficiente para estabelecer a identidade dos danos, pelo que também nesta parte improcede o recurso, concluindo-se pela manutenção da decisão recorrida. * Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, pelo que, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente. * Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil): ……………………………… ……………………………… ……………………………… * III – DECISÃOPelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. * Porto, 29 de setembro de 2025Os Juízes Desembargadores Teresa Pinto da SilvaAna Olívia Loureiro Mendes Coelho ______________ [1] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, p. 139 e 140. [2] Neste sentido, cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, página 688. [3] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, obra já citada, vol. V, p. 141. [4] Neste sentido, cf. Ac. do S.T.J. de 16-11-2021, proc. n.º 1436/15.8T8PVZ.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt. [5] Neste sentido, cf. Ac. do STJ de 29-11-2005, proc. nº 05S2137; Ac. do STJ de 10-03-2022, proc. nº 1071/18.9T8TMR.E1.S1; Ac. do TRP de 23-05-2022, proc. nº 588/14.9TVPRT.P1., todos disponíveis in www.dgsi.pt. [6] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 214. [7] Note-se que a sentença recorrida incorre aqui num manifesto lapso de escrita, pois que deveria constar 3-06-3033 e não 3-06-3021. [8] In Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 200-201. [9] Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023. |