Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5120/21.5T8MAI-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
PRESTAÇÃO DE FACTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202403055120/21.5T8MAI-C.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A condenação no pagamento de sanção pecuniária compulsória, face ao teor da sentença dada à execução, pressupõe o cumprimento da prestação por parte dos executados e não por outrem e o caso julgado entretanto formado impõe que se tenha de respeitar o título executivo.
II – Se os exequentes, no requerimento executivo, optaram pela prestação por outrem – e não pelos executados – verifica-se que o pedido de pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que os executados foram condenados, não encontra, a partir da entrada desse requerimento executivo, apoio na sentença exequenda.
III – É que a condenação em tal pagamento pressupõe a realização da prestação pelos próprios executados.
IV – Não se verifica assim ofensa do caso julgado no que concerne ao afastamento do pagamento da sanção pecuniária compulsória no período subsequente à data da propositura da ação executiva em que os exequentes requereram a realização da prestação por outrem.
V – No entanto, já o mesmo não se pode afirmar em relação ao período compreendido entre o termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos executados e a data da instauração da ação executiva com requerimento de prestação por outrem.
VI – Neste período se não se considerar a sanção pecuniária compulsória ocorre ofensa do caso julgado.
VII – O requerimento da realização da prestação por outrem apenas faz cessar os efeitos da sanção pecuniária compulsória para o futuro e não para o passado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 5120/21.5 T8MAI-C.P1
Comarca do Porto – Juízo de Execução da Maia – Juiz 1
Apelação


Recorrentes: AA e BB
Relator: CC


Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Proença


Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:


RELATÓRIO

Na presente execução de sentença para diversas finalidades, designadamente pagamento de quantia certa e prestação de facto, vieram os exequentes requerer a liquidação da obrigação exequenda na parte referente à prestação de facto em falta, contra ambos os executados, no valor de 55.672,00€, nos termos dos arts. 869º e 867 n.º 2, ambos do Cód. de Proc. Civil, ao que se somará o valor da execução de quantia certa, na quantia de 7.701,60€, tudo no valor total de 63.237,00€, acrescido de juros legais, pagamento de despesas e honorários com Agente de Execução e custas legais.

Alegaram os exequentes, para tal e em síntese, que nas diligências de verificação/comprovação da entrada de água proveniente da casa de banho da executada e eliminação da entrada da mesma, pagaram aos técnicos (picheleiros) que estiveram presentes nas diligências, a seu pedido, o valor de 136,00€.

Alegaram ainda que pretendem liquidar quantia a título de sanção compulsória pela inação da executada DD, que obstaculizou o arranjo necessário na sua habitação para estancar a fuga e evitar a entrada de água no domicílio dos exequentes, subtraindo-se à realização voluntária da obra ordenada por sentença judicial, que apenas ficou feita e verificada em 14.4.2023.

Depois de transitada a sentença em 6.9.2021, a executada DD tinha 30 dias para eliminar a causa das escorrências de água, fazendo a necessária obra, prazo que terminou em 6.10.2021.

Entre os dias 7.10.2021 e 14.4.2023, data em que se verificou não mais entrar água proveniente do quarto de banho da executada, decorreram 554 dias, pelo que, atendendo ao valor fixado de 100,00€ por dia a título de sanção pecuniária compulsória, perfaz esta o total de 55.400,00€.

A este valor, pretendem ainda que acresça o valor da execução da quantia certa de 7.701,60€ e igualmente o que se apurar a título de honorários a Agente de Execução, juros vencidos e vincendos e custas judiciais.

Os executados não se pronunciaram sobre o requerido.

Foi depois proferida decisão que julgou parcialmente procedente o pedido de liquidação formulado pelos exequentes e, em consequência, deferiu tal pedido no valor de 136,00€ a título de gastos efetuados pelos exequentes.

No mais foi o pedido de liquidação julgado improcedente.

Os exequentes, inconformados com o decidido, interpuseram recurso, que finalizaram com as seguintes conclusões:

I. Pela prolação da decisão recorrida que apenas deferiu liminarmente a liquidação operada no valor de €136,00, julgando improcedente, de mérito, o demais peticionado em execução de julgado, tem para si que o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento quanto à questão de direito dirimida, em decisão surpresa, sem ter sido conferido direito ao contraditório (art.º 3.º do CPC), causal de nulidade, e errónea aplicação do instituto de abuso de direito.

II. Fundada em sentença transitada que sancionou no seu dispositivo direito a “indemnização compulsória” aos Exequentes pelo não cumprimento das obrigações impostas à Executada, esse não cumprimento, no prazo expirado de cumprimento espontâneo, devolveu aos Exequentes o direito a impelir judicialmente a Executada a fazê-lo, o que fizeram diligentemente, em prazo curto e razoável.

III. Devolveu, também o direito à respeitante liquidação e apuramento da indemnização, pela demora, até ao cumprimento efetivo que a Executada só tardiamente acatou, a seu cargo.

IV. A força do caso julgado e a autoridade que dele dimanam não é nem pode ser abalada pelo instituto do abuso de direito, como decidido em concreto, pese incongruentemente reconhecer-se a “pretensão dos Exequentes de virem liquidar a quantia referente à sanção pecuniária compulsória, no referido montante, no nosso entendimento constitui um manifesto abuso” (sic), ponderando, por outro lado, que “é certo que não se olvidam os efeitos do caso julgado relativamente à fixação da referida sanção pecuniária compulsória que não colocamos em causa” (…)

Ora,

V. A decisão recorrida ao desmerecer, na realidade, os efeitos do julgado dado à liquidação, e a respeitante força e autoridade que a Ordem jurídica lhe atribui, não pode ser abalada a se pela convocação do Instituto do abuso de direito, que não pode ter esse alcance e entendimento (Artigo 334.º do Código civil)

VI. A liquidação operada na parte denegada funda-se em sentença e a indemnização apuranda, arbitrada face ao incumprimento, pela demora, pela executada, na prestação espontânea que acabou por a destempo realizar a seu cargo, não é infirmada ou arredada pelo abuso de direito, não contendendo ou essencializando excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé.

VII. Ao invés do entendimento que perpassa na sentença, esse segmento decisório em liquidação, configura indemnização pela demora no cumprimento espontâneo concedido com montante diário fixado de €100,00, não sendo em abstrato “contra legem” porque a coberto de sentença que a determinou e neste particular insindicável:

- A obrigação a cumprir situa-se no interior de casa de morada de família da Executada, cujo domicílio tem proteção e tutela constitucional, e condiciona a prestação por outrém.

- “Fazer estancar” o fato danoso, também essencializa, em concreto, prestação de alcance pessoal e infungível, por exemplo, pelo não uso da casa de banho, como intermitentemente ocorreu, porém não demonstrado convenientemente à míngua da produção de prova requerida;

- É ininteligível a decisão recorrida ao fundamentar como abuso de direito a circunstância dos Exequentes terem podido a partir de 7 de Outubro de 2021 substituir-se à Executada na realização da reparação/prestação, olvidando em concreto aqueles constrangimentos e força e autoridade de caso julgado, expurgado de todo o sentido e eficácia:

Onde e de que modo a Exequente excedeu manifestamente os limites imposto pela boa-fé, ou pelo fim económico e social desse direito?

VIII. A sentença recorrida pese consignar vincular-se ao julgado e força que encerra retira à Exequente o direito que aquele lhe reconheceu irrefragável e ilicitamente, pois a parametria vinculada da liquidação operada é absolutamente vinculada não havendo vício ou falha a apontar ao seu exercício.

Por outro lado,

IX. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e subsunção dos factos ao consignar que os Executados optaram pela realização da reparação por terceiro, o que não se verificou, pese até o pudessem fazer, por sentença.

X. A executada DD foi notificada em 30/03/2023 para proceder ao levantamento e retirada dos azulejos e base de chuveiro,

XI. Tendo sido verificado, em 14/04/2023, que o havia feito e, com isso, a água deixou de entrar no piso inferior, resolvendo a situação encerrando-se a execução nessa parte.

Por último,

XII. Pese o pedido do incidente deduzido referir-se a liquidação da prestação de facto em falta, e a decisão em crise fixar-se na nomenclatura de “sanção compulsória”, a sentença – título executivo - contempla a expressão “indemnização pecuniária compulsória” sendo crível pretender substanciar verdadeira indemnização pecuniária pela mora,

XIII. Cabendo ao Tribunal suprir oficiosamente a nomenclatura usada, por não estar absolutamente vinculado à qualificação jurídica dada pelas das partes,

XIV. Ou convidar os Recorrentes a fazê-lo (artigo 590 n.º 2 al. b) do CPC), não fosse a decisão liminar, cuja nulidade já se arguiu.

XV. Deve, pois, ser provido o presente recurso, tendo a sentença recorrida errado de direito, vinculando-se a entendimento que o instituto de abuso de direito não encerra mas como se dele derivasse, com violação expressa dos referidos preceitos e princípios de direito queridos aplicar, como propugnado.

Termos em que, e nos melhores de Direito, suprido e doutamente o omitido deve ser dado provimento ao recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida.

Não foi apresentada resposta.

O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se na decisão recorrida a aplicação do instituto do abuso do direito implicou ofensa do caso julgado formado pela sentença proferida no processo com nº 3630/20.0T8MAI.1


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É a seguinte a factualidade dada como provada na decisão recorrida:

a) A presente execução de sentença para diversas finalidades, designadamente pagamento de quantia certa e prestação de facto tem por base a sentença proferida no dia 9 de Março de 2021, transitada em julgado no dia 6 de Setembro de 2021, nos autos de acção declarativa de processo comum que, sob o nº 3630/20.0T8MAI.1, correram termos pelo Juízo Local da Maia, intentada pelos aí Autores, ora exequentes, contra os aí Réus, ora executados, que julgou a acção procedente e em consequência, decidiu:

“- Condenar os RR. solidariamente a eliminar e fazer estancar, por sua responsabilidade, conta e risco, as escorrências e humidade que aparecem na fração dos AA, provenientes do andar superior, cuja fração é propriedade das 1ª Ré e zonas comuns que o Condomínio representa, fazendo cessar a causa que lhe dá origem, sob pena de, não o fazendo, no prazo de 30 (trinta) dias, que se fixa como razoável, poderem os autores, substituir-se nessa reparação, de responsabilidade dos RR.,

- Condenar os Réus solidariamente a indemnizarem os AA. pelos estragos sofridos no quarto de banho, no quarto dos filhos e mobiliário, repondo-o no estado anterior, características e qualidades, prévios ao ato danoso, no montante atualmente orçado em €5.120,00, acrescido de IVA à taxa legal, e no demais, que se vier a apurar, caso os danos continuem a aumentar.

- Condenar os réus solidariamente a ressarcir todos os demais gastos e prejuízos causados aos AA., que se avaliam já no valor de €200,00, sendo os demais a apurar à data da reparação, a liquidar em execução de sentença.

- Condenar os réus a pagarem, uma indemnização pecuniária compulsória de €100,00 por cada dia de atraso no cumprimento após sentença que tanto declare;

- Condenar os réus a indemnizar os AA. por todos os incómodos sofridos na vida do agregado, e pelo mau estar e sofrimento imputado à Autora, face à inércia e recusa em fazer cessar a infiltração e os danos consequentes, no valor de €1.000,00.” (cfr. traslado);

b) O requerimento executivo deu entrada no dia 8 de Novembro de 2021 (cfr. requerimento executivo);

c) O executado condomínio deduziu embargos de executado no dia 11 de Março de 2022, tendo os mesmos sido liminarmente indeferidos por despacho proferido no dia 22 de Março de 2022 (cfr. apenso A));

d) A executada DD deduziu embargos de executado no dia 13 de Setembro de 2022, tendo os mesmos sido liminarmente indeferidos por despacho proferido no dia 22 de Setembro de 2022 (cfr. apenso A));

e) A Sr.ª Agente de Execução lavrou o auto de diligência datado de 31 de Março de 2023, do qual consta o seguinte:

No dia 16/02/2023, pelas 15:00 horas, na Vereda ..., na cidade da Maia, onde, na qualidade de Agente de Execução no processo supra-identificado, me desloquei no sentido de ser averiguado se os executados, mais concretamente a executada residente no 1º direito, teriam efectuado as obras devidas e necessárias para eliminar e fazer estancar as ocorrências e humidades que aparecem na fração da exequente sita no rés-do-chão, foi concretizada a seguinte diligência:

- As partes foram atempadamente notificadas da realização da diligência, e no local estavam presentes a mandatária da exequente, a exequente, os dois representantes do condomínio executado;

- Na fração do rés-do-chão verificou-se que nesse momento não existiam humidades nem ocorrências, embora existiam vestígios de as ter havido, e o local (interior do roupeiro do quarto e tecto) encontram-se por reparar e em muito mau estado provocado pelas infiltrações e humidades;

- Na fração do primeiro andar estava presente a mãe da executada, que contactou a mesma, que informou desconhecer a realização da diligência, no entanto foi facultado o acesso ao interior do imóvel e à casa de banho donde provem os danos;

- A AE verificou que a casa de banho (sita no hall) foi sujeita a obras de remodelação, no entanto encontra-se desativada sem qualquer tipo de utilização e estava a servir de arrecadação, cheia de caixas;

- Foi informado pela executada e pela sua mãe que a casa de banho estaria naquelas condições à cerca de dois anos, após as obras e após terem começado as infiltrações e dano no piso inferior, data que coincide com a mesma em que a exequente informa que deixou de "cair água";

- No dia 30.03.2023 pelas 14,30 horas foi efectuada nova diligência ao local, tendo as partes sido novamente notificadas do dia e hora da mesma;

- No local estavam presentes a mandatária da exequente, a exequente, a mandatária da executada DD, dois representantes do condomínio executado, a executada DD e o marido e dois picheleiros contratados pela exequente para serem efectuados testes no local e verificar se as ocorrências se verificavam;

- No 1º andar estava presente a executada e o marido, que após insistências da AE e da mandatária da executada retiraram os objectos do interior da casa de banho no sentido de se proceder a descargas de água;

- Após serem efectuadas descargas nos pontos de sanita, lavatório e cabine de banho, iniciaram-se as ocorrências e começou a cair água no piso do rés-do-chão, dentro do roupeiro e no local onde já tinha ocorrido as infiltrações;

- Os picheleiros presentes no local informaram que o ponto seria a base do chuveiro e seria necessário proceder à sua remoção e levantar o piso e a base do chuveiro;

- Face ao supra exposto, ficou agendada nova diligência ao local para o dia 14.04.2023 pelas 14,00 horas, tendo todos os presentes sido informados, e tendo sido a executada DD notificada para proceder ao levantamento e retirada dos azulejos e base de chuveiro para se proceder à reparação;

- No dia 14.04.2023 solicitou-se a presença de picheleiros no local e de um engenheiro civil para elaboração de relatório pericial e verificação concreta de onde é proveniente a fuga, uma vez que a executada DD e o seu marido insistem que a mesma provém de um cano comum/colector que pertencem ao condomínio.” (cfr. auto de diligência);

f) A Sr.ª Agente de Execução lavrou o auto de diligência datado de 20 de Abril de 2023, do qual consta o seguinte:

“No dia 14/04/2023, pelas 14:15 horas, na Vereda ..., na cidade da Maia onde, na qualidade de Agente de Execução no processo supra-identificado, me desloquei novamente no âmbito da presente execução e prestação de facto, foi concretizada a seguinte diligência:

- No local estavam presente a mandatária dos exequentes Dra. EE, a exequente BB, a patrona da executada DD, Dra. FF, os representantes do condomínio executado, picheleiros contratados pela exequente, a executada DD e o marido, e um engenheiro civil contratado pelo condomínio executado;

- No primeiro andar, habitação da executada DD verificou-se que foi efectuada pela mesma intervenção na casa-de-banho de onde era proveniente a infiltração, tendo procedido à remoção da sanita, da base do chuveiro e da tijoleira;

- Estavam à vista os canos de saneamento e de escoamento de águas da sanita e do chuveiro;

- Foi verificado que não existiam infiltrações visíveis, tendo sido o local vistoriado e os canos não apresentavam sinais de fugas;

- Foram efectuadas descargas de água nos canos de saneamento da sanita e do chuveiro, mediante a utilização de baldes de águas, e ao contrário do verificado no dia 30.03.2023 não ocorreram infiltrações e não apareceu água no piso inferior, ou seja na casa dos exequentes;

- A executada sugeriu que a infiltração também poderia ter origem no piso superior ao seu, ou seja no 2º andar, e como os moradores não se (…) no local agendou-se uma última diligência para se efectuar descargas na casa de banho do 2º piso;

- No dia 20.04.2023, pelas 14,15 horas foi efectuada a nova diligência, estavam presente a mandatária dos exequentes, a exequente BB, um representante do condomínio executado e a executada DD;

- O representante do condomínio executado deslocou-se ao 2º andar e acompanhado do seu morador, fez várias descargas na sua casa de banho e verificou-se que não ocorreu nenhuma infiltração nem no 1º andar nem no rés-do-chão;

- Deu-se por concluída a diligência e a prestação do facto, uma vez que já não ocorriam infiltrações no local, e informou-se a executada DD para promover as obras de recuperação se assim o entendesse na sua casa de banho.” (cfr. auto de diligência);

g) No requerimento executivo, os exequentes pediram “Requer-se seja marcado dia e hora para se proceder a entrada em casa da 1.ª Executada com profissional habilitado para proceder à reparação necessária.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

1. Os exequentes, nas suas alegações de recurso, insurgem-se contra o decidido pela 1ª Instância, onde se paralisou o efeito da sentença proferida, em 9.3.2021,no âmbito do processo nº 3630/20.0T8MAI.1 do Juízo Local da Maia, transitada em julgado em 6.9.2021, na qual se condenou os réus, aqui executados, a pagarem, uma indemnização pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia de atraso no cumprimento após sentença que tanto declare, com base na aplicação do instituto do abuso do direito.

Sustentam a sua argumentação no caso julgado formado pela sentença proferida no referido processo nº 3630/20.0T8MAI.1, que entendem ter sido afrontado com a decisão recorrida, tanto mais que, na sua perspetiva, a dedução do presente incidente de liquidação reportado, designadamente, à denominada indemnização pecuniária compulsória não envolve qualquer excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé.

Vejamos então.

2. A questão fundamental a decidir no presente recurso reconduz-se assim a saber se a decisão recorrida desconsiderou o caso julgado formado pela sentença proferida na ação declarativa.

O art. 619º do Cód. de Proc. Civil estatui que «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º».

O caso julgado material “consiste em a definição, dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

“Este acatamento é devido de modo absoluto.” – Cfr. MANUEL DE ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, Coimbra Editora, pág. 305.

“O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta da verdade, por força da qual (…), a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo (…) ou transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica e, portanto, os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (CHIOVENDA). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.

Verifica-se, portanto, que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objetivo ou a atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (SCHÖNKE)” - Cfr. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., págs. 306/307.

3. Voltando ao caso concreto não podem caber dúvidas de que a sentença que foi dada à presente execução incidiu sobre o mérito da causa e sobre a relação material controvertida e, por isso, adquiriu força de caso julgado material nos termos do já referido art. 619º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, sendo, desse modo, posteriormente imodificável.

Nela se decidiu, de forma definitiva, a condenação dos réus, aqui executados, solidariamente, a eliminar e fazer estancar, por sua responsabilidade, conta e risco, as escorrências e humidade que aparecem na fração dos autores, aqui exequentes, provenientes do andar superior, cuja fração é propriedade da 1ª ré e zonas comuns que o Condomínio representa, fazendo cessar a causa que lhe dá origem, sob pena de, não o fazendo, no prazo de 30 dias, que se fixa como razoável, poderem os autores, substituir-se nessa reparação, de responsabilidade dos réus.

Mais se decidiu, também de forma definitiva, a condenação dos réus a pagarem uma indemnização pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia de atraso no cumprimento após sentença que tanto declare.

Sucede que o tribunal de 1ª Instância, muito embora tivesse consignado que não ignorava, nem colocava em causa, os efeitos do caso julgado relativamente à fixação da sanção pecuniária compulsória na sentença dada à execução, entendeu que o montante respeitante a tal sanção pecuniária compulsória, que os exequentes pretendem liquidar em 55.672,00€, não era devido pelos executados, no que fez intervir o instituto do abuso do direito.[1]

A condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória está, como é sabido, intimamente ligada à condenação do devedor na realização da prestação de facto, uma vez que visa compeli-lo a adotar a conduta devida até então omitida, tal como visa também assegurar o cumprimento da sentença condenatória.

Nos presentes autos, não tendo os réus, aqui executados, cumprido o determinado na sentença proferida na ação declarativa no prazo de trinta dias, os autores, aqui exequentes, vieram no requerimento executivo apresentado em 8.11.2021 requerer a marcação de dia e hora para se proceder à entrada na casa da 1ª executada com profissional habilitado para proceder à reparação necessária.

Ou seja, uma vez que essa possibilidade lhes estava conferida pelo título executivo, os exequentes, no seu requerimento executivo, vieram optar pela realização da prestação por parte de outrem, que não os executados.

Ora, a condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória, face ao teor da sentença, pressupõe o cumprimento da prestação por parte dos executados e não por outrem e o caso julgado entretanto formado impõe que se tenha de respeitar o título executivo.

Conforme se escreve no Ac. do STJ de 19.9.2019 (proc. 939/14.6 T8LOU-H.P1.S1, relatora MARIA JOÃO VAZ TOMÉ, disponível in www.dgsi.pt) «[a] pretensão da realização da prestação por outrem não é teleologicamente compatível com a pretensão do pagamento da quantia devida como sanção pecuniária compulsória. Os Recorrentes como que renunciaram a este meio de tutela quando requereram a prestação por outrem.”

Não se cura, nesta sede, de apreciar o caráter (in)fungível da prestação e a compatibilidade material da condenação no seu cumprimento com a medida compulsória em causa. A sede própria para esta discussão era a ação declarativa. Não se reaprecia e nem se descura, pois, o que já foi decidido. O efeito preclusivo das exceções alegáveis na ação declarativa dissolveu-se no efeito geral do caso julgado.
Pode afirmar-se a existência de uma correlação teleológica entre a condenação dos Recorridos no cumprimento da prestação – e a realização da prestação pelos Recorridos e não por outrem - e a sua condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória, porquanto a primeira condiciona e determina a segunda, “fundindo-se em síntese normativa concreta.»[2]

A sentença dada à execução condenou os réus, aqui executados, a pagarem 100,00€ por cada dia de atraso no cumprimento dessa sentença, no pressuposto de que esse cumprimento iria ser concretizado pelos executados e não por outrem, ainda que à custa deles.

Assim, os exequentes não podem obter a cobrança coerciva dos montantes fixados, em sede de ação declarativa, a título de sanção pecuniária compulsória, no período de tempo compreendido entre a propositura da presente ação executiva, em 8.11.2021 e o dia 14.4.2023, data em que se constatou estar realizada a prestação de facto.

Neste contexto, é de concluir que não se verifica ofensa de caso julgado no que concerne ao afastamento do pagamento da sanção pecuniária compulsória no período posterior a 8.11.2021, data em que os exequentes apresentaram o seu requerimento executivo, pedindo a realização da prestação de facto através de profissional habilitado a proceder à reparação necessária.[3]     

A vontade dos executados, independentemente das vicissitudes que possam ter ocorrido, deixou de ser relevante para paralisar e inviabilizar a prestação de facto, uma vez que se pretendia ser esta levada a cabo por um terceiro.

4. No entanto, já o mesmo não se pode afirmar relativamente ao período compreendido entre o dia 7.10.2021 (termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos executados e momento a partir do qual a sanção pecuniária compulsória fixada começa a produzir efeitos) e o dia 8.11.2021 (data da propositura da ação executiva com requerimento de prestação por outrem).

Com efeito, neste período, tal como se afirma em caso próximo no já referido Acórdão do STJ de 19.9.2019, ao não se considerar a sanção pecuniária compulsória, já ocorre ofensa de caso julgado.

É que, nesse período, os exequentes aguardavam o cumprimento da prestação pelos executados sem que tivessem optado pela prestação por outrem e os executados podiam ter cumprido, mas não o fizeram, a obrigação principal a que estavam vinculados e em cujo cumprimento haviam sido condenados.        

O requerimento executivo, com vista à prestação por outrem apenas faz cessar os efeitos da sanção pecuniária compulsória para o futuro, mas não para o passado.

Por esse motivo, assiste razão aos recorrentes apenas no tocante à liquidação da sanção pecuniária compulsória relativa ao referido compreendido entre 7.10.2021 e 8.11.2021, a qual ascenderá a 3.100,00€ [100,00€ x 31 dias].

5. Na sentença recorrida convocou-se o instituto do abuso do direito como forma de afastar o caso julgado resultante da sentença proferida no processo com o nº 3630/20.0T8MAI.1 e a consequente liquidação da sanção pecuniária compulsória quanto ao período compreendido entre 7.10.2021 e 14.4.2023, data em que se constatou a realização da prestação de facto.

De qualquer modo, por tudo o que atrás se expôs, não havia que aplicar a figura do abuso do direito quanto ao período posterior a 8.11.2021, data em que entrou em juízo requerimento executivo a peticionar a realização da prestação através de profissional habilitado para proceder à reparação necessária, isto porque esse período já não se encontra abrangido pelo caso julgado decorrente da sentença proferida no processo com o nº 3630/20.0T8MAI.1.

O caso julgado projeta os seus efeitos apenas para o período compreendido entre 7.10.2021 e 8.11.2021 e a liquidação da sanção pecuniária compulsória quanto a esse período, no montante de tão-só 3.100,00€, de modo algum pode envolver abuso do direito.

 Com efeito, é plenamente razoável que, findando em 7.10.2021 o prazo para os executados, por sua iniciativa, procederem às reparações necessárias à eliminação das humidades e escorrências surgidas na fração dos exequentes, tenham intentado a presente ação executiva – de prestação de facto – cerca de um mês depois, em 8.11.2021.

Nada justifica que quanto a um tão curto hiato temporal se aplique o instituto do abuso do direito previsto no art. 334º do Cód. Civil, sendo que a situação dos presentes autos em nada se compara ao caso referido na sentença recorrida, tratado no Ac. do STJ de 27.10.2022, em que, sendo a sanção pecuniária compulsória de 200,00€/dia, o período que mediou entre o término do prazo para cumprimento das prestações fixadas na sentença [8.4.2020] e a instauração da execução para prestação de facto através de outrem [18.5.2021] ascendeu a 405 dias, impondo-se naturalmente a aplicação deste instituto.[4]

Por isso, afastada a aplicação do abuso do direito, o respeito pelo caso julgado formado pela sentença proferida no proc. nº 3630/20.0T8MAI.1, independentemente do acerto do aí decidido em matéria de sanção pecuniária compulsória e do seu ajustamento à previsão do art. 829º-A do Cód. Civil, imporá a procedência do pedido de liquidação desta em relação ao período compreendido entre 7.10.2021 e 8.11.2021, no valor de 3.100,00€ e a consequente alteração, neste segmento, do decidido em 1ª instância.

6. Por fim, há ainda a referir que, de forma acessória e lateral, face ao modo como a motivação do recurso e as respetivas conclusões foram estruturadas, os exequentes/recorrentes vêm ainda afirmar que a decisão ora recorrida se trata de uma decisão surpresa, por não lhes ter sido conferido direito ao contraditório, ao abrigo do art. 3º do Cód. de Proc. Civil, designadamente no que tange à matéria do abuso do direito [conclusão I].

Cabe, em primeiro lugar, referir que o instituto do abuso do direito é de conhecimento oficioso – cfr., por ex., Acórdãos STJ de 10.12.2012, p. 116/07.2 TBMCN.P1.S1, relator FERNANDES DO VALE e de 20.12.2022, p. 8281/17.4 T8LSB.L1.S1, relator AGUIAR PEREIRA, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. – donde resulta que nenhum obstáculo se colocava ao seu conhecimento por parte do tribunal “a quo” e por sua iniciativa.

É certo que antecedendo esse conhecimento não foi dada a possibilidade aos exequentes, ora recorrentes, de se pronunciarem sobre a aplicação de tal instituto, o que poderá efetivamente consubstanciar infração do princípio do contraditório.

Todavia, não se deverá ignorar que no presente acórdão foi afastada por inteiro a verificação de uma situação de abuso de direito, em que se fundou a decisão recorrida, tendo-se acolhido a tese propugnada nas suas alegações pelos recorrentes assente na ofensa ao caso julgado, embora esta ofensa, conforme atrás referido em 2., 3. e 4., viesse a ser circunscrita ao período compreendido entre o dia 7.10.2021 (termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos executados e momento a partir do qual a sanção pecuniária compulsória fixada começa a produzir efeitos) e o dia 8.11.2021 (data da propositura da ação executiva com requerimento destinado à sua prestação por outrem).

Por outro lado, também há que ter em atenção que neste momento o cumprimento do contraditório, em relação à questão do abuso do direito, cuja aplicação viria a ser afastada neste mesmo acórdão, sempre seria um ato inútil[5], daí nada resultando, até porque tal contraditório foi para todos os efeitos exercido no âmbito do presente recurso.[6]

Concluindo, por tudo o que se deixou exposto, o recurso interposto pelos exequentes obterá parcial procedência.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos exequentes AA e BB e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, deferindo-se o pedido de liquidação efetuado relativo à sanção pecuniária compulsória na importância de 3.100,00€ (três mil e cem euros) referente ao período compreendido entre 7.10.2021 e 8.11.2021.

No mais mantém-se o decidido.

Custas da apelação pelos recorrentes na proporção do seu decaimento.


Porto, 5.3.2024
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Proença
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[1] Apesar de ter sido usada a expressão “indemnização pecuniária compulsória” a realidade jurídica a que se refere a sentença exequenda é, pelas suas características, a da “sanção pecuniária compulsória” prevista no art. 829º - A do Cód. Civil.
[2] Cfr. António Castanheira Neves, RLJ 110.º, 1977/78, pp. 289-305.
[3] Cfr., no mesmo sentido, Ac. STJ de 27.10.2022, p. 1458/21.8 T8LOU-B.P1.S1, relator FERNANDO BAPTISTA, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do STJ que foi proferido, confirmando-o, sobre o Ac. Rel. Porto de 8.6.2022 (proc. 1458/21.8 T8LOU-B.P1, relator FILIPE CAROÇO, também disponível in www.dgsi.pt.), igualmente mencionado na decisão recorrida.
[5] Os quais não devem ser realizados no processo por força do disposto no art. 130º do Cód. de Proc. Civil.
[6] Cfr. Ac. STJ de 4.7.2019, proc. 5762/13.2 TBVFX-A.L1.S1, relator JOSÉ RAINHO, disponível in www,dgsi.pt.