Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
891/21.1T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE EM SERVIÇO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
Nº do Documento: RP20231113891/21.1T8GDM.P1
Data do Acordão: 11/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Importa, não normalizar ou padronizar as indemnizações fixadas com base na equidade, mas conferir unidade ao sistema jurídico, tornando tão previsíveis, quanto possível e desejável, as decisões judiciais.
II - Tendo a vítima do acidente de viação à data do mesmo 42 anos de idade, sendo o défice permanente parcial da integridade física de 6 pontos, com repercussões permanentes nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, o quantum doloris de grau 4/7, o dano estético de grau 2/7 e tendo a lesada sofrido as limitações inerentes às consequências do embate, afigura-se adequada a indemnização de € 15.500,00 a título de dano biológico e de € 12.000, a título de danos não patrimoniais.
III - A indemnização fixada pela Caixa Geral de Aposentações por o acidente de viação em que a A. foi lesada ter sido um acidente em serviço é de natureza diferente da indemnização por dano biológico, tratando-se de indemnizações complementares e, por isso, cumuláveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 891/21.1T8GDM.P1

Sumário
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “A..., S.A.”.
Pediu a condenação da R. a pagar-lhe € 10.000,00 a título de dano biológico, € 13.400,00 de danos não patrimoniais, € 65,73 de despesas com fisioterapia, consultas e farmácia e € 514,08 de deslocações.
Em ampliação, pediu que a R. fosse ainda condenada a pagar-lhe € 5.500,00 de dano biológico; € 3.500,00 de danos não patrimoniais e as quantias que vier a suportar com a aquisição de medicamentos que lhe venham a ser prescritos por força das sequelas de que padece.
Alegou:
- que em 23-4-2018 foi vítima de acidente de viação, relativamente ao qual a R. aceitou a transferência de responsabilidade;
- que sofreu ferimentos e dores, recebeu assistência hospitalar, realizou exames complementares, foi submetida a intervenção cirúrgica e fez tratamentos de fisioterapia, com o que incorreu em despesas.
A R. apresentou contestação, aceitando que assumiu a responsabilidade do acidente, impugnando, por desconhecimento, alguns dos factos alegados na petição e os montantes indemnizatórios peticionados, uma vez que, tendo o acidente sido qualificado como acidente de serviço, a A. será reembolsada pela sua entidade patronal de quantias que aqui peticiona e que lhe virão a ser pedidas, não devendo ser duplamente ressarcida.
Teve lugar saneamento do processo e julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. € 12.246,66 acrescidos de juros de mora às taxas legais sucessivamente em vigor contados da data da citação até integral pagamento, sendo € 12.000,00 pelo dano biológico, englobando danos não patrimoniais, € 200,00 de despesas de deslocações e € 46,66 de despesas com consultas, fisioterapia e medicamentos.
*
Inconformada, a A. interpôs o presente recurso.
Finalizou com as conclusões que se seguem.
I - Da alteração da matéria de facto
1 - Tendo a A. alegado que auferia a quantia mensal líquida de 1.462,69€ referindo-se à data do acidente, quando queria alegar “aufere”, referindo-se à data da propositura da ação, e tendo junto aos autos um recibo de vencimento de janeiro de 2021, reconhecido como verdadeiro por duas testemunhas ouvidas, nada impedia, porque importante para a determinação do montante indemnizatório a título de dano biológico, que se tivesse dado como provado que, em janeiro de 2021, a A. auferia a quantia mensal líquida de 1.462,69€.
2 - Devendo ser dado como provado que em janeiro de 2021, a A. auferia a quantia líquida mensal de 1.462€, o que se requer.
3 - A A. alegou a possibilidade de ocorrência de dano futuro, tendo referido uma artrose nas articulações Temporo-Mandibulares, por ter sido o nome da doença que o clínico que a seguiu após o acidente mencionou. Independentemente de o INML ter classificado ou não o Dano Futuro como “artrose”, o certo é que confirmou o agravamento das sequelas como “uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico”, não fazendo qualquer sentido que a A., ou mesmo a Mª Juiz a quo, não tendo conhecimentos técnicos na área da Medicina, saibam se o agravamento será ou não uma artrose.
4 - No entanto, tendo a A. alegado que tem a indicação de que as sequelas podem evoluir, e tendo o INML dito que o agravamento é uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico, é razoável e de bom senso dar-se como provada a existência de Dano Futuro.
5 - Pelo deve dar-se como provado: “as sequelas da A. agravar-se-ão no futuro”.
6 - A A. alegou: “Durante o período de consolidação clínica das lesões, sofreu incómodos, vendo alterado o seu ritmo de vida diário, tudo em consequência de uma situação para a qual não contribuiu”, tendo a Mª juiz a quo dado como provado “Durante o período de consolidação clínica das lesões, a Autora sofreu incómodos”, nada mais!
7 - Os factos provados que a A. foi ao Hospital ... do dia do acidente, tendo realizado exames complementares de diagnóstico, que posteriormente foi ao Hospital 1..., que realizou uma RMN, que fez 13 sessões de fisioterapia no Hospital 2... e 9 na Clínica ..., que foi a consultas nos serviços clínicos da Ré, que realizou nova RMN, que continuou em consultas na especialidade maxilo-facial – vide factos provados 7, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 - são suficientes para enquadrarem o conceito de “alteração do ritmo de vida diário” que a A. sofreu.
8 - Dado que a responsabilidade pela ocorrência do acidente foi estabelecida na pessoa do segurado da Ré, deve ser dado como provado “Durante o período de consolidação clínica das lesões, sofreu incómodos, vendo alterado o seu ritmo de vida diário, tudo em consequência de uma situação para a qual não contribuiu”, o que se requer.
9 - A A. alegou que os serviços clínicos da Ré consideraram um dano estético no grau 2, que a Mª Juiz a quo deu como provado, e que continua a sentir dores de cabeça frequentes, cansaço e estalidos na zona dos ATMs, que sente desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso, factos que também foram dados como provados (factos 27 e 28).
10 - Não tendo o INML referido qualquer dano estético, mas constando no relatório de avaliação do dano corporal elaborados pelos serviços clínicos da Ré, e estando provados factos que configuram um dano estético - estalidos na zona dos ATMs, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso - deve ser dado como provado que “a A. sofreu um dano estético no grau 2”, o que se requer.
11 - Tendo a A. alegado que aquando do acidente ficou a sentir dor moderada na cervical (artº 13º da pi) e que em 31.08.2018, em consulta nos serviços clínicos da Ré, mantinha dor cervical (art.º 18º da pi), e não tendo voltado a referir a dor na cervical por os serviços clínicos da Ré lhe terem dito, aquando da consulta de avaliação do dano corporal, que tais dores decorriam de lesões degenerativas não relacionadas com o acidente, mas constando no exame pericial pelo INML, uma IPG de 1 ponto pela cervicalgia, e estabelecido o nexo de causalidade entre o acidente e tais lesões, deve ser dado como provado que “a A. ficou a padecer de uma IPG de 6 pontos”, o que se requer.
II - Do quantum indemnizatório
12 - A sentença de que se recorre tece vastas considerações propósito da definição doutrinal e jurisprudencial de dano biológico, com as quais, aliás, se concorda, ainda que se considerem incompletas. No entanto, quando passa do plano teórico para o concreto dos autos, e tenta fazer um paralelo entre aquelas considerações e o modo como a A. formalizou os seus pedidos a título de dano biológico (e de dano não patrimonial) verifica-se uma certa “confusão”, tendo concluído o que não está plasmado na pi.
13 - Independentemente de tal “confusão”, o montante arbitrado à A. a título de dano biológico é, manifestamente, diminuto, ainda que se aceitasse, o que não ocorre, a matéria de facto dada como provada.
14 - De facto, trata-se uma sinistrada que ficou a padecer de uma IPG de 6 pontos (e ainda que fosse de 5 pontos) que não impede o exercício das suas funções profissionais, mas que implica esforços acrescidos, esforços esses que, em concreto, não são diminutos, pois que se trata de uma agente da PSP cujas funções são fazer inquirições e interrogatórios a arguidos, testemunhas e ofendidos (facto provado 23) e que ficou a padecer de dores de cabeça frequentes, cansaço e estalidos na zona da articulação têmporo-mandibular, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso – vide factos provados 27 e 28.
15 - Acresce que à data do acidente tinha apenas 42 anos de idade – facto provado 20 – e que auferia, em data próxima à propositura da ação, a quantia líquida média mensal de 1.462€ (no cálculo da indemnização a título de dano biológico na vertente patrimonial, a fixar ao lesado em acidente de viação, deve atender-se à data mais próxima daquele cálculo, ou seja, a da Audiência de Discussão e Julgamento, cfr. jurisprudência supra indicada.
16 - De acordo com a jurisprudência atual, e tendo em conta estes parâmetros, o montante peticionado a título de dano biológico - 15.500,00€ - é justo e equitativo, cfr. jurisprudência supra indicada a este propósito.
17 - Preceitua o art. 496º, n.º1 do CC: ”Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito".
18 - De acordo com o n.º 3 daquele mesmo normativo, "o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º".
19 - A gravidade do dano deve aferir-se por um padrão objetivo, e não de acordo com fatores subjetivos. Por outro lado, o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, devendo o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais ser sempre calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às demais circunstâncias do caso, a todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, e de criteriosa ponderação das realidades da vida.
20 - Sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, não é menos verdade que tal compensação deve ser significativa, e não meramente simbólica, pois o “mal” sofrido, apenas se pode atenuar, minorar ou, de algum modo, compensar, se atribuir ao lesado, pelo menos, determinadas utilidades que lhe possibilitarão alguma compensação pela lesão sofrida.
21 - No caso em apreço, a A. sofreu luxação anterior dos discos das articulações temporo-mandibulares, realizou pelo menos dois RX´s e 2 RM´s, 23 sessões de fisioterapia, frequentou inúmeras consultas, foi submetida a uma intervenção cirúrgica com anestesia geral e desde o acidente até à consolidação médico-legal decorreram 943 dias!
22 - Apesar de clinicamente curada, continua e continuará para o resto da vida a sentir dores de cabeça frequentes, cansaço, estalidos na zona das articulações temporo-mandibulares, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca, dificuldades na articulação das palavras durante o discurso, dores naquelas articulações quando ingere alimentos um pouco mais duros e dores na cervical.
23 - As dores e demais sofrimentos sentidos pela A. em consequência do acidente, devido aos ferimentos e aos tratamentos a que foi submetida, são quantificáveis no grau 4, numa escala crescente de 0 a 7, é portadora de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, e de um dano estético permanente no grau 2, numa escala crescente de 0 a 7.
24 - São consequências elevadamente extensas, intensas e graves! Não são “coisa pouca”. Pelo que, a título de danos patrimoniais (sic) é justa e equitativa a quantia peticionada de 16.900€, de acordo com a jurisprudência supra indicada a este propósito.
*
A R. contra-alegou, considerando que o tribunal recorrido ponderou adequadamente a prova produzida e fez uma correta aplicação do direito aos factos provados, salvaguarda feita para as questões ressalvadas nas alegações do recurso por si deduzido.
*
Recorreu também a R., formulando as seguintes conclusões:
i) O presente recurso tem como objeto a correcta aplicação do direito aos factos dados como provados na sentença de fls., relativamente à titularidade do (sic)
ii) A sentença recorrida violou o preceituado nos artigos 483.º; 524.º, 566.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3, todos do CC., e no artigo 46.º, n.º 3 do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20.11.
iii) A sentença recorrida mal andou ao considerar que a Autora não está a ser duplamente ressarcida ao receber, da parte da Ré, a quantia indemnizatória de € 9.000,00, a título de indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, sem que, para esse efeito, se tenha feito qualquer ponderação da quantia de e 12.474,81, que foi previamente arbitrada à Autora, em sede de acidente de serviço.
iv) A sentença recorrida mal andou ao considerar que a Autora optou por ser reembolsada nesta sede, em detrimento da sede de acidente laboral (vulgo, serviço).
v) Da instrução do processo – e por iniciativa probatória exclusiva da Ré – resultou demonstrado que o acidente em apreço dos autos foi simultaneamente acidente de serviço e acidente de viação.
vi) Da instrução do processo – e por iniciativa probatória exclusiva da Ré – resultou demonstrado que previamente à instauração desta acção, a Autora tinha ido já em sede de acidente laboral requerer uma avaliação à CGA e peticionado a respectiva reparação (cf. artigo 5.º, n.º 3 e artigo 34.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20.11).
vii) Da instrução do processo – e por iniciativa probatória exclusiva da Ré – resultou demonstrado que previamente à instauração desta acção, tinha sido já arbitrada à Autora, pela CGA, uma pensão por acidente de serviço que, em função do grau de desvalorização (5%), foi remida para o capital de € 12.474,81.
viii) Da instrução do processo – e por iniciativa probatória exclusiva da Ré – resultou demonstrado que o pagamento dessa quantia de € 12.474,81 se encontra suspenso – e não extinto – até que a Autora se aposente.
ix) A CGA tem direito de regresso sobre a Ré da dita quantia de € 12.474,81 (cf. artigo 46.º, n.º 3 do Decreto-Lei 503/99, de 20.11).
x) A Ré não se pode eximir ao pagamento da quantia em causa, com base num eventual caso julgado que não é oponível à CGA.
xi) A sentença recorrida ao condenar a Ré no pagamento da quantia de € 9.000,00, a título de indemnização devida pelo dano biológico, na vertente patrimonial, sem que, para esse efeito, tenha tido em consideração a quantia que a Autora tem direito a receber em sede de acidente de serviço, consubstancia uma duplicação de ressarcimento pelo mesmo dano, o que não colhe.
xii) A sentença recorrida de ser revogada e substituída por outra que determine que a Ré nada tem a pagar à Autora, a título de indemnização devida pelo dano biológico na vertente patrimonial, atendendo a que nesta sede se apurou – e bem – o valor de apenas € 9.000,00, quando a Autora obteve já antecipadamente o direito a receber, em sede de acidente de serviço, a quantia de € 12.474,81.
xiii) A sentença recorrida andou mal ao condenar a Ré no pagamento de juros de mora, contabilizados desde a data da citação, sobre a quantia de € 3.000,00, arbitrada a título de indemnização devida pelos danos não patrimoniais (cf. artigos 566.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3, ambos do CC).
xiv) A sentença recorrida de ser revogada e substituída por outra que condene a Ré no pagamento de juros de mora, contabilizados desde a data da prolação da sentença, sobre a quantia de € 3.000,00, arbitrada a título de indemnização devida pelos danos não patrimoniais.
*
A A. contra-alegou, terminando nos seguintes termos:
1 - A compensação a título de dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, ainda que não impliquem perda ou redução da capacidade para o exercício da atividade profissional habitual, exigem um maior esforço no exercício dessa atividade, podendo resultar na supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.
2 - Por sua vez, a indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.
3 - Esta última indemnização não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional. Esta abrange todos os prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis.
4 - As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria.
Estamos, portanto, perante dois danos de natureza diferente, sendo complementares entre si. Neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos do STJ: de 29.03.2022, Procº 119/19.4T8STR; 17.11.2021, Procº 3496/16.5T8FAR; 06.05.2021, Procº 1169/16.8T9AVR.P2.S1; 05.05.2020, Procº 30/11.7TBSTR.E1.S1; 11.07.2019, Procº 1456/15.2T8FNC; 12.07.2018, Procº 1842/15.8T8STR; 13.07.2017, Procº 3214/11.4TBVIS.C1.S1; 11.12.2012, Procº 40/08.1TBMMV.C1.S1.
5 - Uma vez que o dano peticionado nos presentes autos é o biológico, e não já o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual, deve o mesmo ser ressarcido pela ré, na sua totalidade, como peticionado.
6 - Ainda que venha a entender-se que a indemnização por dano biológico não é cumulável com a indemnização em virtude do acidente em serviço, o que não se consente, a Recorrente não poderá descontar qualquer montante arbitrado a título de indemnização por acidente em serviço à quantia que vier a ser definitivamente fixada a título de dano biológico.
7 - De acordo com a jurisprudência ínsita no Ac. do STJ de 16-12-2020, Proc. nº 1642/15.5T8PVZ.P1.S1, a que a Recorrente alude, não pode ser descontada à sinistrada qualquer quantia por conta da indemnização que poderá, ou não, vir a receber da Caixa Geral de Aposentações, pois que, nesta altura, ainda não é certo que esta entidade alguma vez a venha a pagar e, por via deste pagamento, a sub-rogar-se nos direitos da lesada sua subscritora.
8 - Se a Recorrente pudesse, neste momento, descontar o que pretende, e a CGA nunca vier a exercer qualquer direito de reembolso, independentemente do motivo (por ex., por morte da subscritora antes de se aposentar) aquela ficaria com um montante que nunca lhe pertenceu.
9 - No âmbito do acidente em serviço de que foi vítima, a A. foi submetida à junta médica da Caixa Geral de Aposentações, que lhe reconheceu uma IPP de 5%, tendo-lhe sido fixado um capital de remição de 12.474,18€, cujo pagamento não foi efetuado por não ser cumulável com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente na capacidade geral de ganho, de acordo com o disposto no art.º 41.º, n.º 1, alínea b) do DL 503/99, de 20 de novembro – Regime Jurídico Dos Acidentes Em Serviço e Das Doenças Profissionais Ocorridos ao Serviço da Administração Pública.
10 - De facto, as alterações introduzidas pela Lei 11/2014, de 07 de março naquele regime jurídico, nomeadamente no seu artigo 41.º, n.º 1, b), passaram a impedir a acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a totalidade da retribuição, permitindo a acumulação da pensão de invalidez com a pensão de aposentação, mas apenas na parte da pensão de aposentação que exceda a pensão por acidente em serviço.
11 - Pelo que, os sinistrados em serviço e abrangidos por aquele diploma legal, receberão, apenas, o montante correspondente à pensão de aposentação, pois que a este é-lhe retirado o que receber a título de pensão por acidente em serviço.
12 - Ou seja, a A., como qualquer trabalhador abrangido por aquele regime legal (DL 503/99) não receberá qualquer indemnização pela diminuição da capacidade de trabalho até à aposentação e, quando se aposentar, é ela própria, através do desconto no montante da sua aposentação, que assegurará tal pagamento.
13 - Nas situações em que o Tribunal a quo se limita a declarar que entende ser justo e equitativa a atribuição de determinado valor a título de dano, sem fazer qualquer alusão à atualização do referido valor, nos termos do nº 2 do art. 566º do C.C., são devidos juros de mora desde a citação, nos termos da segunda parte do nº 3 do art. 805º do C.C
14 - Ora, estamos perante uma responsabilidade por facto ilícito, em que a sentença declarou ser equitativo o montante arbitrado a título de danos não patrimoniais.
15 - Não referindo a sentença recorrida qualquer atualização à data da sentença, não pode presumir-se tal atualização, pois que inexiste qualquer fundamento legal para tal.
16 - Pelo que a fixação de juros sobre a quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais não violou qualquer dispositivo legal, desde logo o n.º 2 do art.º 566.º e o n.º 3 do art.º 805.º, ambos do CC., cfr. jurisprudência: Ac. RP de 27.09.2022, Procº 3958/15.1T8VNG; Ac. RG de 29.09.2022, Procº 2690/19.1T8GMR.
*
III - Questões sob apreciação
A - Do recurso interposto pela A.
a - Da reapreciação da matéria de facto:
se deve ser dado como provado
- que em Janeiro de 2021 a A. auferia a quantia líquida mensal de € 1 462, 00;
- que as sequelas da A. se agravarão no futuro;
- que a A. viu alterado o seu ritmo de vida diário;
- que a A. sofreu um dano estético correspondente a 2 pontos;
- que a A. ficou a padecer de uma IPG de 6 pontos.
b - do valor fixado a título de indemnização por dano biológico e por dano não patrimonial.
B - Do recurso interposto pela R.:
a - se deve ser diminuído o valor da indemnização por a A. estar a ser duplamente ressarcida ao receber € 9.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, devendo ser ponderado que foi fixada uma indemnização de € 12.474,81 a perceber pela A. enquanto acidente de serviço;
b - se os juros de mora deverão ser contabilizados, não a partir da data da citação, conforme fixado, mas a partir da data da sentença.
*
IV - Fundamentação de facto constante da sentença
A. Factos provados
Da petição inicial
1.No dia 23 de abril de 2018, junto ao entroncamento formado pela Estrada ... e pela Rua ..., ..., Gondomar, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-ZD conduzido por BB cuja responsabilidade civil emergente de acidentes de viação havia sido transferida para a Ré, através da apólice ... e o ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NR, conduzido pela Autora e de sua propriedade. (artigos 1.º, 2.º e 3.º)
2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o NR circulava na Estrada ..., no sentido norte/sul e o ZD circulava à sua retaguarda. (artigos 4.º e 5.º)
3. Imediatamente a seguir ao entroncamento formado pela Estrada ... com a Rua ..., no sentido norte/sul, existe uma passagem para peões devidamente sinalizada no pavimento, que se situa em frente ao poste fixo da EDP assinalado no auto de participação de acidente de viação. (artigo 6.º)
4. A condutora do NR imobilizou a sua viatura junto à dita passagem para peões para ceder passagem a um peão que atravessava a via do lado esquerdo para o lado direito, atento o seu sentido de marcha. (artigo 7.º)
5. Quando estava completamente imobilizada e o peão estava a concluir a travessia, o NR foi embatido na retaguarda pela frente do ZD. (artigo 8.º)
6.Em consequência do embate, o NR foi projetado para a frente cerca de 3/4 metros. (artigo 9.º)
7. A Autora recebeu tratamento às lesões causadas pelo embate no Hospital ... onde realizou RX à coluna cervical e RX à coluna lombar. (artigo 12.º)
8.A Autora apresentava dor moderada na coluna cervical e lombar. (artigo 13.º)
9. Realizados os exames complementares de diagnóstico, teve alta para o domicílio. (artigo 14.º)
10. No entanto, começou a sentir, também, cefaleias e dores bilaterais e estalidos mandibulares, pelo que recorreu ao Hospital 1.... (artigo 15.º)
11. Em 09 de maio de 2018, a Autora realizou RMN das articulações têmporo-mandibulares que revelou luxação anterior dos discos bilateralmente redutível. (artigo 16.º)
12. A Autora realizou 14 sessões fisioterapia no Hospital 2... e 9 sessões fisioterapia na Clínica ...; (artigo 17.º)
13. Em 05 de julho de 2018, a Autora foi observada nos serviços clínicos da Ré, mantendo dores na cervical e no maxilar. (artigo 18.º)
14.Em 31 de agosto de 2018, a Autora foi observada nos serviços clínicos da Ré, na especialidade de cirurgia maxilo-facial, por manter dor nas mandíbulas, bilateralmente, acompanhada de estalidos e limitação da abertura da boca. (artigo 19.º)
15. Em 11 de setembro de 2018, a Autora realizou RMN nuclear das articulações que revelou à direita muito ligeira anteposição do disco articular; osteófio no côndilo mandibular; muito discreto derrame articular; à esquerda revelou muito ligeira anteposição no disco articular. (artigo 20.º)
16. Em 28 de setembro de 2018, a Autora foi observada em consulta de cirurgia maxilo-facial, onde lhe foi prescrito tratamento fisiátrico, que realizou. (artigo 21.º)
17.Em 27 de setembro de 2019, a Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica à articulação têmporo-mandibular (artrotomia têmporo-mandibular) com anestesia geral. (artigo 22.º)
18. Continuou a ser observada na especialidade de maxilo-facial. (artigo 23.º)
19. Na consulta de 20 de novembro de 2020, mantinha dores à abertura da boca, tendo tido alta clínica. (artigo 24.º)
20.A Autora nasceu no dia .../.../1975. (artigo 25.º)
21. À data do sinistro, exercia as funções profissionais de Agente Principal da Polícia de Segurança Pública. (artigo 26.º)
22. Apesar de clinicamente curada, a Autora ficou a padecer de dores, essencialmente no maxilo-facial, que se agudizam durante o discurso. (artigo 27.º)
23.A Autora está colocada na Divisão de Investigação Criminal (DIC), que procede à organização de inquéritos, onde frequentemente tem de interrogar arguidos, testemunhas e ofendidos. (artigo 28.º)
24. A Ré viria a submeter a Autora a exame de avaliação do dano corporal, tendo considerado: - IPG – 5 pontos; - quantum doloris – 4 pontos numa escala de 0/7; - Dano estético fixado no grau 2. (artigo 30.º)
25.O traumatismo sofrido pela Autora provocou-lhe dores. (artigo 32.º)
26. Durante o período de consolidação clínica das lesões, a Autora sofreu incómodos. (artigo 34.º)
27. Continua a sentir dores de cabeça frequentes, cansaço e estalidos na zona da articulação têmporo-mandibular. (artigo 35.º)
28. Sente desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso. (artigo 36.º)
29. Quando ingere alimentos um pouco mais duros, a Autora sente dor na zona das articulações têmporo-mandibulares. (artigo 37.º)
30.A Autora, para tratamento das lesões, despendeu as seguintes quantias:
- Fisioterapia – 25,62€
- Consultas – 7,98€
- Farmácia – € 13,06. (artigo 40.º)
31. Em 21 de junho de 2018, a Ré recebeu comunicação da parte da PSP, que - na qualidade de entidade empregadora da Autora - lhe deu nota de que esta havia sofrido ferimentos na sequência do sinistro em discussão nestes autos, e que careceria de tratamento hospitalar, mais tendo informado que se encontrariam em fase de apuramento o valor das despesas suportadas, que oportunamente haviam de ser comunicadas à Ré, tendo em vista o reembolso do Estado/PSP, que a Ré realizou, pagando o montante total de € 2.085,62, sendo € 1.598,84 a título de vencimentos e suplementos e € 486,78 de despesas suportadas pelo DSAD em unidades de saúde convencionadas. (artigo 7.º)
32. Na sequência do sinistro em causa nos autos, a CGA atribuiu à Autora o direito a auferir uma pensão por acidente de serviço que, em função do grau de desvalorização (5%), foi remida para o capital de € 12.474,81, estando o pagamento suspenso até que exista legislação ou até que a Autora adquira condição que permita o pagamento.
B. Factos não provados
Da Petição Inicial
33. Que, para tratamento das lesões sofridas no sinistro em causa nos autos, a Autora realizou 5 sessões de acupuntura. (artigo 17.º)
34. … , em virtude das quais auferia a quantia mensal líquida de € 1 462,69. (artigo 26.º)
35. Esta situação irá evoluir, com a idade, para uma artrose nas articulações temporomandibulares. (artigo 38.º)
36. Que, por causa das lesões sofridas com o sinistro, a Autora despendeu € 19,07 em medicamentos; (artigo 40.º)
37. Durante os tratamentos a que foi submetida, a Autora realizou as seguintes deslocações:
- Hospital 2..., 12 km em cada sentido, 22 vezes.
- Clínica ..., 10 km em cada sentido, 10 vezes;
- Casa de Saúde ..., 25 km em cada sentido, 14 vezes. (artigo 40.º)
*
IV - Fundamentação jurídica
Da reapreciação da matéria de facto
A - a) A recorrente identifica os factos que pretende ver alterados e aditados, bem como a prova produzida que entende conduzir ao sentido por si visado. Deu, pois, cumprimento ao ónus que impende sobre quem impugna a decisão relativa à matéria de facto (art.º 640.º do C.P.C.).
Pede a apelante que seja dado como provado que em Janeiro de 2021 auferia a quantia líquida mensal de € 1.462,00.
Especifica que a alegação na petição inicial de que auferia € 1.462,69 referindo-se à data do acidente se tratou de lapso, pretendendo aludir à data da propositura da ação, o mês de janeiro de 2021.
A alegação constante da petição inicial é a seguinte:
25º
À data do acidente, a autora tinha 43 anos de idade – Doc. 8.
26º
Exercia as funções profissionais de Agente Principal da Polícia de Segurança Pública, em virtude das quais auferia a quantia mensal líquida de 1.462,69€ - Doc. 9.
O doc. 9 refere-se ao vencimento de janeiro de 2021, constando que o valor líquido a receber pela A. é de € 1.462,69
Tal doc. foi impugnado no art.º 19.º da contestação.
Embora, uma vez explanada a questão, se compreenda o lapso, a correção do mesmo não pode operar por via de recurso. A A. alegou que o montante do vencimento à data do acidente era € 1.462,69, o que, como a própria reconhece, não corresponde à realidade.
Não se entrevê, assim, fundamento para dar como assente vencimento referente ao mês da propositura da ação.
Indefere-se, por isso, a alteração visada.
A recorrente peticiona que se dê como assente que as sequelas do acidente se agravarão no futuro.
A matéria que o tribunal de 1.ª instância deu como não provada consiste no tema da prova segundo o qual a situação iria evoluir, com a idade, para uma artrose nas articulações temporomandibulares.
O tribunal fundou desta forma a circunstância de ter dado a matéria como não provada: não consta do relatório médico legal a referência a essa evolução (para uma artrose), mas apenas de que se perspetiva um dano futuro consistente no agravamento das sequelas, como previsão fisiopatologicamente certa e segura, obrigando a uma revisão futura do caso, pelo que tal factualidade se teve por não provada.
Do relatório do Instituto de Medicina Legal consta o seguinte:
Na situação em apreço é de perspetivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico).
Afigura-se-nos um rigorismo inadequado fundar a ausência de prova do agravamento das sequelas no facto de a expressão médico-legal não coincidir com a constante do tema da prova.
Assim, por existir indicação médica imparcial de que o agravamento irá ter lugar, adita-se aos factos assentes o seguinte:
- Perspetiva-se a existência de dano futuro consistente no agravamento das sequelas, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico.
A recorrente pretende que seja dado como assente que por força do acidente viu alterado o seu ritmo de vida diário.
Da prova testemunhal produzida, avultando o depoimento de CC, marido da A. e de DD, sua amiga, emerge que a frequência da fisioterapia, as deslocações de natureza médica e as limitações físicas tiveram repercussão no dia a dia da A.. Como é natural, o acréscimo de obrigações de índole médica e as limitações percecionadas pela A. retiraram-lhe tempo, tendo ainda sido referida a diminuição do convívio social. É também plausível que as alterações que foi forçada a introduzir na preparação da sua alimentação e na escolha dos alimentos a ingerir, no sentido de uma dieta mais líquida, hajam contribuído para a mudança.
Assim, introduz-se na matéria assente, o seguinte:
- A frequência da fisioterapia, as deslocações de natureza médica e as alterações que teve que introduzir na sua alimentação e na respetiva preparação alteraram o ritmo de vida da A..
No que concerne à matéria de facto, a A. pretende que seja dado como assente que ficou com um dano estético de dois pontos e de uma IPG de 6 pontos.
Foi dado como provado que os serviços clínicos da Ré consideraram um dano estético no grau 2.
Alega a recorrente que não tendo o IML referido qualquer dano estético, mas constando no relatório de avaliação do dano corporal elaborados pelos serviços clínicos da R. e estando provados factos que configuram um dano estético - estalidos na zona dos ATMs, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso - deve ser dado como provado que “a A. sofreu um dano estético no grau 2”.
A prova produzida no que se refere ao dano estético está já consubstanciada nos factos assentes, isto é, que os serviços clínicos da R. fixaram o dano estético em 2 pontos. Não tendo havido fixação a este propósito pelo Instituto de Medicina Legal, sem que a A. se houvesse insurgido, não se entrevê fundamento para proceder ao acrescento pedido.
No que se refere à incapacidade, o IML fixou o Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica em 6 pontos, mais precisamente, pela perturbação pós-traumática da articulação temporomandibular bilateral 0,05000 e pela cervicalgia referida, pelo mecanismo, sem lesão documentada, 0,05950, num total de 5,950 pontos.
Independentemente de o pedido formulado pela A. integrar ou não a cervicalgia, a matéria de facto adquirida deve espelhar de forma tão concreta quanto possível a prova produzida nos autos, mormente quando esta consta de relatório pericial, atentas todas as soluções plausíveis de direito.
Em consequência, acrescenta-se aos factos assentes o seguinte:
- No que se refere à incapacidade, o IML fixou o Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica em 6 pontos.
*
Em conclusão, aditam-se os factos que se seguem à matéria já adquirida.
38 - Perspetiva-se a existência de dano futuro consistente no agravamento das sequelas, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico.
39 - A frequência da fisioterapia, as deslocações de natureza médica e as alterações que teve que introduzir na sua alimentação e na respetiva preparação alteraram o ritmo de vida da A..
40 - No que se refere à incapacidade, o IML fixou o Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica em 6 pontos.
*
b - Do montante da indemnização fixada a título de dano biológico e dano não patrimonial
Com o aumento resultante da ampliação do pedido, a apelante pediu a condenação da R. a suportar o pagamento de € 15.500,00 a título de dano biológico (ponto 16 das conclusões).
O tribunal fixou a indemnização em € 12.000,00, sendo € 9.000,00 pelo dano biológico em sentido estrito e € 3.000,00 pelo dano não patrimonial.
Em sede de recurso, a apelante pugna pela fixação da indemnização atinente ao dano biológico no quantitativo correspondente à quantia inicialmente pedida acrescida da ampliação, ou seja, € 15.500,00.
Com interesse mais direto para a fixação da indemnização apurou-se que a A. tinha 42 anos à data do acidente, que a R. considerou uma IPG de 5 pontos, um quantum doloris de 4 e um dano estético de 2, que o IML fixou o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica em 6 pontos, que a A. continua a sentir dores de cabeça frequentes, cansaço e estalidos na zona da articulação têmporo-mandibular, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso, que quando ingere alimentos um pouco mais duros, sente dor na zona das articulações têmporo-mandibulares, que estes condicionalismos afetam o seu dia-a-dia e que se perspetiva a existência de dano futuro por agravamento das sequelas,
Está em causa a fixação de indemnização por dano biológico, termo que tem vindo a entrar na terminologia da doutrina e da jurisprudência nacionais por influência direta da doutrina e da jurisprudência italiana. Na jurisprudência portuguesa o conceito tem vindo a ser utilizado sobretudo a respeito da fixação de indemnizações em caso de acidentes de viação (cf. ac. do S.T.J. de 26.01.2012, proc. 220/2001-7.S1, João Bernardo, com resenha histórica do conceito e construção do dano biológico, consultável in http://www.dgsi.pt/, tal como os demais acórdãos que vierem a ser nomeados).
O dano biológico tem uma componente física e psíquica, repercutindo-se na vida concreta do lesado. Neste sentido, entende-se que tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano não patrimonial, o que só casuisticamente é verificável. Há que avaliar se a lesão originará durante o período da vida ativa do lesado e/ou para além dele, uma perda da capacidade de ganho ou uma afetação das potencialidades somática, psíquica ou intelectual, a latere do agravamento natural resultante da idade. Tem a natureza de perda in natura que o lesado sofreu nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar (cf. ac. do S.T.J., de 21-4-2022, proc. 96/18.9T8PVZ.P1.S1, Fernando Baptista).
Lê-se no ac. do S.T.J. de 18-10-2018 (proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1, Helder Almeida): a doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida.
No ac. do S.T.J. de 10-11-2016 (proc. 175/05.2TBPSR.E2.S1, Lopes do Rego) consigna-se que ao avaliar e quantificar o dano patrimonial futuro, pode e deve o tribunal reflectir também na indemnização arbitrada a perda de oportunidades profissionais futuras que decorra do grau de incapacidade fixado ao lesado, ponderando e reflectindo por esta via na indemnização, não apenas as perdas salariais prováveis, mas também o dano patrimonial decorrente da inevitável perda de chance ou oportunidades profissionais por parte do lesado.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o dano biológico remete mais acentuadamente para as consequências patrimoniais da incapacidade geral ou funcional do lesado (cf. ac. do S.T.J de 24-2-2022, proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Maria Graça Trigo).
Em suma, dano biológico é o prejuízo na qualidade de vida do lesado, no que ela poderia ter sido e que, por causa da lesão, não é, nem será, a afeção do dia a dia, nas relações sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. É um dano de perda imediata e para o futuro, eventualmente mais gravoso com o passar dos anos. Poderá vir a demandar esforços acrescidos em todas ou nalgumas das vertentes identificadas da potencial vida do lesado. Tem em consideração que a desvalorização funcional comporta um esforço suplementar e uma diminuição da qualidade de vida futura. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para em termos de diminuição de proventos. Suscita especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes.
No caso vertente, de essencial neste conspecto, apurou-se que a A. tinha 42 anos à data do acidente, que sente dores de cabeça frequentes, cansaço e estalidos na zona da articulação têmporo-mandibular, desequilíbrios, dificuldades na abertura da boca e dificuldades na articulação de palavras durante o discurso, bem como dificuldade em mastigar alimentos mais duros.
Escreveu Laurinda Gemas (Revista Julgar n.º 8, 2009, nota de rodapé 57): a quase estagnação dos montantes indemnizatórios atribuídos a título de danos não patrimoniais não é fácil de ultrapassar, para ela contribuindo, por um lado, o baixo valor dos pedidos formulados (registando-se, por razões sociológicas, um certo “pudor em pedir dinheiro” para compensar uma dor que é irreparável, sendo frequentes as decisões judiciais que reconhecem a moderação do pedido); por outro lado, o não reconhecimento pelos tribunais da relevância da função punitiva da responsabilidade civil no âmbito dos acidentes de viação (uma vez que a condenação recai, em regra, sobre a seguradora) e também a necessidade de recurso comparativo às decisões proferidas em casos idênticos. Por isso, embora frequentemente invocada a necessidade de tendencial ampliação dos montantes indemnizatórios, essa subida não tem sido generalizada, por forma a acompanhar a subida do custo de vida e o mais amplo reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (vida, integridade física e saúde).
A realidade, porém, é que este texto, de 2009, está marcado pelo tempo. Paulatinamente, os montantes indemnizatórios têm vindo a ser atualizados, refletindo a relevância crescente conferida a prejuízos da natureza daqueles sob discussão.
Inexistindo uma tabela a aplicar pelos tribunais, a fim de tornar as indemnizações tão equilibradas quanto possível, e com vista a introduzir segurança no sistema, há que proceder a uma análise comparativa.
O decurso dos anos - tratando-se, no caso concreto, de acidente recente de 2018 - e o acentuado o fenómeno inflacionista em curso menos devem fazer propender para a diminuição de valores.
Atente-se em que se parte do pressuposto de que, fixada indemnização com base na equidade, o tribunal de recurso apenas deve intervir quando os montantes fixados estejam em dissonância com aqueles que vêm sendo jurisprudencialmente fixados. O tribunal de primeira instância beneficia de uma imediação, de uma proximidade do caso concreto que melhor o permite aquilatar, o que se perde por via de recurso.
Vejamos alguns casos concretos de avaliação pelos tribunais de recurso, já que importa, não normalizar ou padronizar as indemnizações, mas conferir alguma unidade ao sistema jurídico, tornando tão previsíveis, quanto possível e desejável, as decisões judiciais.
No ac. do S.T.J. de 16-6-2016 (proc. 1364/06.8TBBCL.G1.S2, Tomé Gomes), decidiu-se que “tendo a A. a idade de 40 anos, à data da consolidação das sequelas, e permanecendo com uma incapacidade genérica de 6%, em termos de rebate profissional, compatível embora com a sua atividade profissional, mas não conseguindo realizar ou só executando com grande dificuldade tarefas que exigem maior esforço físico ou que requerem a sua posição de sentada por períodos mais ou menos prolongados, o que é de molde a influir negativamente e sobremaneira na sua produtividade como costureira, sendo ainda tais limitações suscetíveis de reduzir o leque de possibilidades de exercer outra atividade económica similar, alternativa ou complementar, e de se traduzir em maior onerosidade no desempenho das tarefas pessoais, mormente das lides domésticas, o que se prevê que perdure e até se agrave ao longo do período de vida expetável, mostra-se ajustada a indemnização de € 25.000,00 para compensar o dano biológico na sua vertente patrimonial”.
No ac. da Relação de Lisboa de 26-9-2017 (proc. 10421/14.T2SNT-7, Carlos Oliveira), tendo o lesado 43 anos, sendo o défice funcional permanente da integridade física de 7 pontos, ponderando-se o rendimento mensal mínimo garantido, fixou-se uma indemnização de € 13.000,00.
No ac. do S.T.J. de 6-12-2017 (proc. nº 559/10.4TBVCT.G1.S1, Maria Graça Trigo), à lesada com défice funcional de 2 pontos, 31 anos de idade, operária fabril que apresenta cervicalgias, sempre que roda a coluna cervical para a esquerda e para a direita, sempre que a flecte para a esquerda e para a direita, sempre que a flecte no sentido ante-posterior, foi atribuída indemnização de € 20.000,00.
No ac. do S.T.J. de 28-02-2019 (proc. 1940/14.5T8CSC.L1.S1, Nuno Pinto Oliveira) decidiu-se que o montante de € 50.000 euros era adequado a indemnizar o dano biológico sofrido pela lesada em acidente de viação, na consideração das seguintes circunstâncias: (i) a autora tinha 28 anos de idade, (ii) ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 20 pontos, (iii) era estudante e sofreu uma diminuição da sua capacidade de concentração pelo período de dois anos, o que implicou um esforço acrescido, (iv) não consegue ficar muito tempo na mesma posição, (v) o eczema e impossibilidade de permanecer muito tempo de pé limitaram a escolha da especialidade médica da autora, (vi) actualmente exerce a profissão de médica e as lesões sofridas limitam a capacidade de trabalho e de resistência na sua vida profissional.
No ac. da Relação de Guimarães de 30-5-2019 (proc. 1760/16.2T8VCT.G1, Margarida Sousa), tendo o lesado 48 anos aquando da consolidação médico-legal das lesões, sendo o défice funcional de 4 pontos, a indemnização foi de € 15.000,00.
No ac. da Relação do Porto de 12-7-2021 (proc. 3924/18.5T8AVR.P1, Eugénia Cunha), tendo o lesado 52 anos de idade e ficado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, sendo o quantum doloris no grau 5/7 e o dano estético permanente no grau 3/7, fixou-se uma indemnização de € 40.000,00.
No ac. do S.T.J de 24-2-2022 (proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Maria Graça Trigo), tendo o lesado 34 anos à data do sinistro e ficado com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, tendo apenas sido feita prova do seu rendimento anual ao tempo do acidente (€ 7.798,00), estando em causa lesões com significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores (atingidos pelas lesões), atribuiu-se uma indemnização de € 50.000,00.
No ac. do S.T.J. de 21-4-2022 (proc. 96/18.9T8PVZ.P1.S1, Fernando Baptista): datando o acidente de 1-2-2015, sendo o défice funcional permanente de 2, tendo a vítima com 51 anos de idade, com profissão de enfermeira instrumentista, sendo o défice compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas a exigir esforços suplementares, a indemnização por dano biológico foi de € 22.000,00.
No ac. do S.T.J. de 11-10-2022 (proc. 1822/18 1T8PRT.P1.S1, Ricardo Costa), com acidente ocorrido em 23/12/2015, em que a vítima tinha 35 anos de idade, era médico e professor, ficou com défice funcional permanente de 3 pontos, com necessidade de esforços suplementares no desempenho habitual da atividade profissional, a indemnização por dano biológico foi de € 30.000,00.
No ac. de 17-1-2023 (proc. 5986/18.6T8LRS.L1.S1, António Barateiro Martins), tendo a lesada 23 anos na data do acidente e tendo ficado com uma incapacidade de 14,8 pontos, sem rebate profissional, mas com sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional, entendeu-se equitativo fixar a indemnização por tal dano biológico em € 50.000,00.
Compulsada esta resenha, afigura-se-nos que o montante fixado, por confronto com a jurisprudência mais recente, e sem descurar o caso concreto, ficou aquém do razoável.
As limitações são penosas e inabilitantes e prolongar-se-ão por todos os anos para a A. expectavelmente vindouros.
Fixa-se, pois, atualisticamente, o valor indemnizável do dano biológico no montante pedido de € 15.500,00.
Realça-se que se a recorrida atingir a idade correspondente à esperança média de vida das mulheres portuguesas (de acordo com a publicação do INE “Tábuas de Mortalidade em Portugal - NUTS - 2019-2021-, em 2022, de 83, 37 anos), o valor da indemnização, se dividido por esse lapso de tempo, corresponderá a menos de € 400,00 anuais.
*
No que concerne ao pedido de indemnização por danos de natureza não patrimonial a A. formulou pedido de € 13.400,00. Em ampliação, pediu que a R. fosse condenada a pagar-lhe ainda € 3.500,00, o que corresponde a um total de € 16.900,00. Na sentença recorrida aos danos não patrimoniais foi feita corresponder uma indemnização de € 3.000,00.
A reparação de um dano deve, em princípio, como já se disse, servir para reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562.º do C.C.).
A indemnização pode ser alcançada de duas formas: ou através da reconstituição natural, em espécie ou específica, ou mediante uma compensação monetária, em dinheiro.
O nosso Código Civil, como se viu, consigna o princípio geral da indemnização em espécie.
Esta reconstituição, obviamente, é impossível quanto aos danos não patrimoniais em geral e no tocante ao dano morte em particular.
Trata-se, por isso, de impor ao ofensor uma sanção em benefício do ofendido, sanção, que, pela própria natureza das coisas, só poderá consistir em facultar a este um substituto pecuniário.
É que, fora das hipóteses em que a infração cometida tivesse carácter criminal ou disciplinar e não existindo danos patrimoniais, o infrator escaparia a toda e qualquer sanção, sem embargo da lesão causada na esfera pessoal de outros, o que só é aceitável para quem tenha uma visão inteiramente não punitiva da responsabilidade civil.
Por outra parte, entende-se que determinadas satisfações de ordem material, intelectual ou espiritual, proporcionadas por um maior bem-estar económico poderão, de algum modo, ainda que imperfeitamente, minorar o dano não patrimonial sofrido.
Dispõe o art.º 496.º/1 do C.C. que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela de direito. A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a sua gravidade (art.º 496.º/1 do C.C.).
E o n.º 3 deste mesmo art.º que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º.
O art.º 494.º para o qual este último remete estabelece que quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
No art.º 496.º apela-se a um conceito normativo de dano (normativer Schadensbegriff). O dano não é qualquer prejuízo sentido ou afirmado por alguém como tal. Apesar de a ordem jurídica o não definir em geral, ele deve justificar-se por aplicação de critérios normativos, alicerçar-se numa ponderação da ordem jurídica. (Frada, Manuel Carneiro da, Direito Civil Responsabilidade Civil O Método do Caso, Almedina, 2006, pp. 89-90).
A compensação por danos não patrimoniais, para responder atualizadamente ao comando do art.º 496.º do C.C. e constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Não está em causa verdadeiramente em causa uma indemnização, mas apenas encontrar o montante adequado de uma compensação por danos não patrimoniais, de acordo com o disposto nos arts. 494.º e 496.º do C.C..
Torna-se forçoso encontrar um quantitativo dentro dos padrões jurisprudenciais em vigor, que possa, porventura, servir para suportar o custo de lenitivos do sofrimento.
Antes de mais, sempre se repetirá que os danos não patrimoniais em questão são obviamente de molde a merecer a tutela do direito. Estão em causa não só os sofrimentos experimentados pela A. no momento do acidente e dias subsequentes, as dores e os transtornos que se seguiram, no caso envolvendo deslocações ao médico e a hospitais, exames, fisioterapia. Há que ponderar as mudanças no quotidiano, as dependências de terceiros, as limitações nas atividades correntes, os esforços acrescidos, o receio de sequelas, como o próprio sofrimento ao longo dos anos vindouros, que não se incluem no dano biológico.
No âmbito da indemnização por danos não patrimoniais assume fundamental relevo a equidade. A apelante expôs um mosaico de decisões jurisprudenciais em abono da sua tese, fundando os valores indemnizatórios no quantum doloris e nos pontos de desvalorização. Cremos, todavia, que aquilo em que há que atentar mais especificamente é no sofrimento em concreto da sinistrada.
Como se lê no ac. do S.T.J. de 2-2-2023 (proc. 2501/10.3TVLSB.L1.S1, Ana Paula Lobo), na avaliação dos danos não patrimoniais, em que o critério da sua fixação segundo a equidade é o único aplicável cremos difícil a definição de um padrão indemnizatório seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça por mais minuciosa que seja a análise dos dados disponíveis em cada processo e em cada fundamentação da indemnização arbitrada. O número de variáveis a considerar é muito elevado dado que cada decisão se molda ao caso concreto com idades, profissões, situações profissionais, sociais, económicas e culturais muito diversas, é escrita por uma pluralidade de juízes com a sua própria visão do direito e do mundo, num mosaico plurifacetado em que será possível delinear pouco mais que tendências e, mesmo estas, fortemente condicionadas não pela justiça do caso concreto mas pelos espartilhos processuais que condicionam, quando não afunilam e fazem descolar da realidade as decisões exclusivamente de direito nos recursos de revista.
Os critérios sempre fundamentalmente em análise consistem na idade do lesado e consequente esperança média de vida, ou seja, o número de anos durante os quais é expectável que venha a ter que suportar os sofrimentos físicos e imateriais inerentes ao défice permanente, o grau deste - ainda que défices de nível razoavelmente díspar atinjam indemnizações similares - e as dores envolvidas.
A estes critérios aferidores acresce uma plêiade de factos avulsos, como sejam as concretas circunstâncias que se seguiram ao evento desencadeador da responsabilidade civil, a sua duração e impacto na vida do sinistrado.
Está em causa um juízo de justiça concreta, não sindicável ou aferível por uma base normativa, o que torna a questão mais sensível e de difícil avaliação.
No caso concreto afigura-se-nos que na sentença recorrida existe um desvio razoável, no sentido da exiguidade, à suposta média. Entende-se, por conseguinte, ser de aumentar a indemnização a título de danos não patrimoniais para a quantia de € 12 000, 00, montante ponderado ao dia de hoje.
*
B - Do recurso interposto pela R.
a - Defende a R. que a A. não tem direito a receber o valor da indemnização fixada pelo dano biológico na vertente patrimonial - que na 1.ª instância foi feito corresponder a € 9.000,00 - por ter sido atribuída uma indemnização de € 12.474,81 a perceber pela A. enquanto acidente de serviço.
Efetivamente, porque o acidente que deu causa aos autos foi um acidente em serviço, a A. foi submetida a junta médica da Caixa Geral de Aposentações, que lhe reconheceu uma IPP de 5%. Foi fixado um capital de remição de € 12.474,18 e o pagamento está suspenso até que a A. adquira condição que permita o pagamento.
Anote-se que esse pagamento não foi efetuado por não ser cumulável com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente na capacidade geral de ganho, de acordo com o disposto no art.º 41.º/1/b) do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais Ocorridos ao Serviço da Administração Pública (aprovado pelo decreto-lei 503/99, de 20 de novembro).
Sustenta a R. que a perceção pela A., no âmbito destes autos, de indemnização pelo dano biológico na vertente estritamente patrimonial corresponderia a uma dupla indemnização, já que o dano em causa seria o mesmo.
Afigura-se-nos que não lhe assiste razão. A indemnização fixada pela Caixa Geral de Aposentações reporta-se à capacidade de trabalho, ao acréscimo de esforço emergente das consequências do acidente. Já a indemnização pelo dano biológico extravasa tal âmbito, destinando-se a reparar prejuízos na esfera jurídica do sinistrado no seu conjunto, que vão, como é bom de ver, muito para além da esfera laboral.
Como se lê no ac. da Relação do Porto de 13-3-2023 (proc. 8085/17.4T8PRT.P1, Fernanda Almeida), a indemnização pelo dano biológico permite reparar, para além da perda ou redução da capacidade de trabalho do lesado, o desempenho de outras atividades e tarefas, inclusive domésticas, que têm um valor económico e que, ficando o lesado incapaz de as realizar, acarretarão um dano patrimonial. Assim, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, esta não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado este na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, pois estamos perante dois danos de natureza diferente.
E no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 31-1-2023 (proc. 795/20.5T8LRA.C1.S1, Manuel Aguiar Pereira): do facto de o lesado em acidente simultaneamente de viação e de trabalho ter recebido a indemnização por acidente de trabalho acordada com a seguradora responsável pela reparação do sinistro no respetivo processo laboral não resulta que não possa haver lugar a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico sofrido, se as sequelas definitivas do acidente forem de molde a fazer prever a sua ocorrência.
Também o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 17-11-2021 (3496/16.5T8FAR.E1.S1, Ferreira Lopes) sumaria que sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento pelo lesado de um certo capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir.
*
b - Do momento a partir do qual devem ser contabilizados juros de mora sobre os montantes fixados a título de indemnização
A sentença proferida condenou ao pagamento de juros sobre a indemnização desde a data da citação, não existindo menção à data que se tomou em consideração para efeitos de fixação de indemnização.
A R. Seguradora sustenta que os juros apenas deverão ser contabilizados a partir da data da prolação da sentença.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 9-05-2002, publicado no DR I Série-A, de 27-06-2002, fixou jurisprudência no sentido de que sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora e não a partir da citação.
Os montantes indemnizatórios foram alterados por esta Relação, esclarecendo-se que as quantias fixadas o foram atualisticamente.
Assim, os juros de mora serão apenas devidos a partir do dia do presente acórdão.
*
V - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se:
- em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A., alterando-se a decisão recorrida quanto ao montante da indemnização, fixando-se o montante da indemnização por dano biológico em € 15.500,00 e por danos de natureza não patrimonial em € 12.000,00 e
- em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela R..
*
As custas do recurso interposto pela A. serão suportadas por esta e pela R. na proporção de 1/5 para a 1.ª e de 4/5 para a 2.ª e as custas do recurso interposto pela R. serão suportados por esta na totalidade (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
*
Porto, 13-11-2023
Teresa Fonseca
Anabela Morais
Fátima Andrade