Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2586/15.4T8LOU-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO PROMESSA COM EFICÁCIA REAL
PENHORA SOBRE IMÓVEL
ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RP201906132586/15.4T8LOU-B.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EMBARGOS DE TERCEIRO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 176, FLS 202-216)
Área Temática: .
Sumário: I - Os embargos de terceiro constituem o meio processual idóneo para a efectivação de qualquer direito do embargante incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo que ter, necessariamente, por fundamento a posse, mas a existência de qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada.
II - Não tem sido tratada consensualmente a questão de se saber se o contrato-promessa, existindo tradição, transmite para o promitente-comprador a posse sobre o bem que prometeu adquirir.
III - Tal questão deve ser analisada casuisticamente, em função da forma como age o promitente-comprador em relação à coisa objecto do contrato, pressupondo sempre, todavia, a tradição da mesma.
- Cabe ao embargante a prova dos fundamentos do seu direito: artigo 342º do Código Civil. Assim, sobre ele recai o ónus probatório de demonstrar que a penhora, a apreensão ou entrega judicialmente ordenada e a incidir sobre determinados bens ofende direitos que ele tem sobre esses mesmos bens, merecedores de tutela.
- Não é incompatível com os direitos do promitente comprador, que outorgou contrato-promessa com eficácia real, a realização de penhora sobre o bem objecto daquele contrato, não impedindo a penhora a faculdade de ele obter o cumprimento ou execução específica do contrato no âmbito da acção executiva, ou mesmo fora dela.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2587/15.4T8LOU-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Execução de Lousada – J1

Relatora: Judite Pires
1.ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2.ª Adjunta: Des. Inês Moura

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
Por apenso à execução comum que B…, SA instaurou contra C…, veio D… deduzir embargos de terceiro, alegando ser a única dona e legítima possuidora da metade do imóvel penhorado nos autos principais.
Para tal, argumentou que, juntamente com o executado, era proprietária de metade indivisa do prédio que foi penhorado e que, cerca de 2 anos antes da penhora, pretendeu adquirir a metade indivisa deste. Como não havia licença de habitabilidade, não puderam celebrar a respectiva escritura pública, pelo que celebraram contrato-promessa de compra e venda ao qual atribuíram eficácia real. Mais alegou que procedeu ao pagamento da totalidade do preço e que houve tradição da coisa, pelo que concluiu pela incompatibilidade da penhora com a posse que passou a exercer, bem como com o direito real de aquisição que possui sobre o bem penhorado.
Citados para contestar, o executado nada disse, tendo o exequente contestado, impugnando os factos alegados pela embargante no que concerne à posse e ao pagamento do preço, alegando ainda que a penhora não é incompatível com o direito real de aquisição, por força do disposto no art.º831.º do C.P.C., que permite o recurso à execução específica na acção executiva.
Foi proferido despacho saneador, que declarou a validade e regularidade da instância, tendo nele sido fixado o valor da causa, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedentes os embargos, determinou o levantamento da penhora realizada nos autos principais.
Não se conformando a exequente com a sentença proferida, dela interpôs recurso para esta Relação, findando as alegações com as seguintes conclusões:
Nota prévia, todos os elementos probatórios referidos nas conclusões que se seguem são os que vão referidos nas alegações que antecedem, designadamente
1ª – Enferma de erro de julgamento a decisão da matéria de facto provada quanto aos pontos 7, 8, 10, 11 e 12 do elenco de factos provados;
2ª – A alteração da matéria de facto vertida nos artigos 7, 8 e 10 que se reportam à queda propriamente dita resulta na correta valoração dos seguintes meios de prova:
i. Não se encontrar nos autos qualquer elemento probatório que suporte a existência de pagamentos de € 15.000,00 dados como provados na sentença;
ii. A desconsideração absoluta da falta de credibilidade das declarações prestadas pelo Executado quando confrontadas pelas declarações prestadas pela testemunha E…, referindo este último que foram os pais da Embargante e não esta quem fez os pagamentos ao passo que o Executado refere ter recebido da Embargante;
iii. A circunstância do cheque de €26.000,00 ter sido depositado na conta da própria emissora que se por um lado emite um cheque de pagamento, por outro lado deposita-o na sua conta bancária.
3ª – Assim, devem considerar-se como “Não Provados” os factos 7, 8 e 10 da sentença em toda a sua extensão;
4ª – A alteração da matéria vertida nos factos 11 e 12 resulta da correta valoração dos seguintes meios de prova:
i. Errada valoração do depoimento da testemunha F… que refere sem margem para dúvidas que são Embargante e Executado quem paga as despesas da casa sobre a qual índice a penhora em causa nos autos;
ii. Errada valoração do depoimento da testemunha G… que refere que encontra o Executado na casa da Embargante e bem assim que quem vive com a mãe do executado e quem cuida desta é uma irmã do executado – e por conseguinte não o próprio;
iii. Errada valoração do depoimento da testemunha H… que se refere a Embargante e Executado como marido e mulher e que nem sequer consegue concretizar onde vive o executado de quem diz ser amigo há cerca de 20 anos;
iv. A sentença desconsidera ainda o nascimento da filha da Embargante e do Executado que foi concebida meros meses depois da celebração do contrato promessa de compra e venda, numa clara indiciação de que ambos viviam maritalmente;
5ª – A prova da posse é consabidamente das mais complexas de obter em direito, sendo ónus da Embargante fazer prova dos factos que alega;
6ª – Sendo uma prova com estas particularidades, é necessário que haja uma certeza inabalável dos factos que se dão como provados, pelo que se exige que sobre os factos que demonstram a posse não haja qualquer tipo de dúvida, o que no caso em apreço e por referencia aos indicados meios de prova, manifestamente não sucede.
6ª - Assim, devem considerar-se “Não Provados” os factos 11 e 12 da sentença em toda a sua extensão;
7ª - Falecendo a prova dos factos vindos de referir nas conclusões antecedentes, têm necessariamente que improceder os embargos de terceiro de que a Embargante lançou mão, mantendo-se a penhora sobre o imóvel.
8ª – A alteração da matéria provada nos termos precedentemente descritos terá a consequência de determinar a improcedência dos embargos, por não provados, uma vez que a prova da posse era essencial para que os mesmos pudessem proceder.
Sem prescindir, mesmo que se entenda que a decisão de facto não merece reparo, tem a ação que improceder,
9ª – A sentença proferida violou o artigo 755º nº 1 do Código de Processo Civil na media em que é este o normativo que se deve aplicar ao caso concreto uma vez que não houve concretização do direito de propriedade na esfera da embargante;
10ª – O único direito que a esta assiste, face à matéria de facto dada como provada é o de ser graduada como credora detentora do direito de retenção, â frente da Exequente e de ser paga até à medida do crédito que resultou provado.
Termos em que revogando a sentença proferida nos presentes autos e substituindo-a por outra que julgue totalmente improcedentes os embargos, farão V. Exas., a costumada JUSTIÇA!
O apelado C… apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- Se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;
- Consequências jurídicas da eventual alteração da decisão relativa à matéria de facto;
- Mantida tal decisão, se ainda assim devem proceder os embargos de terceiro e ser levantada a penhora.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1 – Os presentes autos deram entrada em 29/05/2015.
2 – A sentença que constitui título executivo nestes autos foi proferida em 04/12/2014, tendo a acção dado entrada em 19/11/2013.
3 - Em 24/04/2015 foi registada a penhora de ½ do prédio melhor identificado nos autos.
4 – Tal prédio havia sido doado ao executado e à embargante em 16/03/1995, pelos pais da embargante.
5 – Em 21/03/2013 embargante e executado celebraram o contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, constante de fls. 18 a 20 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
6 – Tal contrato foi registado em 22/03/2013.
7 – Aquando da celebração do referido contrato, as partes pretendiam celebrar o contrato de compra e venda definitivo, nomeadamente o executado pretendia vender à embargante a sua metade indivisa no prédio em causa.
8 - Apenas não o tendo feito pelo facto do prédio não possuir a respectiva licença de habitabilidade.
9 - A qual apesar de várias vezes pedida ainda não foi concedida, à data de hoje.
10 – Não obstante essa impossibilidade, a embargante procedeu ao pagamento da totalidade do preço acordado e plasmado no contrato de promessa supra identificado (41.000€).
11 – E passou a actuar como possuidora da totalidade do prédio penhorado, por forma corresponde ao direito de propriedade.
12 – Tendo passado a utilizar o prédio na sua totalidade, como coisa totalmente sua, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, convicta de que estava a exercer um direito próprio.
13 – A menor I… nasceu em 28/01/2015 e foi registada como sendo filha da assistente e do executado.
14 – O prédio em questão estava onerado com hipotecas a favor da J…, tendo esta renunciado às mesmas em 17/01/2013.
III.2. A mesma instância considerou não provados “quaisquer outros factos alegados nos articulados, nem tampouco quaisquer factos que vão para além dos factos dados como assentes ou que se mostrem em contradição com os mesmos”.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
A apelante em sede recursiva manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, concretamente no que concerne à vertida nos pontos 7), 8, 10), 11) e 12) da sentença impugnada, que, no seu entender, devia ter sido julgada não provada.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[4].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[5], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
Como decorre do artigo 607.º, n.º 5 do CPC, a prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal, solução que emana do artigo 396.º do Código Civil.
Livre apreciação que, todavia, não se confunde com arbítrio na apreciação desse meio de prova[6], “mas antes a ausência de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam”[7].
Trata-se de um meio probatório de particular importância[8], pela amplitude da sua produção, sendo o mais frequentemente usado em instrução, mas também por ser o único existente ou o único praticável.
Paralelamente, é também o meio probatório que reúne maiores riscos de falibilidade: por perigo de infidelidade da percepção e da memória da testemunha, por perigo de parcialidade da mesma, designadamente[9].
Por isso, e sem pôr em causa a liberdade de julgamento, deve o julgador colocar especial cuidado na avaliação e ponderação dos testemunhos prestados em audiência, valorando-os com um prudente senso crítico, pesando não apenas o seu sentido objectivo, mas ainda a forma como se manifestam.
De acordo com o n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Lebre de Freitas, cujo pensamento se pode reconduzir à tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos em termos de valoração das declarações de parte, defende que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”[10].
Carolina Henriques Martins[11], sustenta, por seu turno que “[...] não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objecto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objectivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, [...] também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório”.
Miguel Teixeira de Sousa, tomando posição sobre a mesma específica questão, escreveu: Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender (…) que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis”[12].
Já Mariana Fidalgo[13] especifica: “[...] ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objecto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova”.
A propósito da valoração a atribuir aos documentos particulares, retira-se do Acórdão da Relação de Coimbra de 02.06.2009[14]: “de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos 373.º a 375.º faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Uma coisa, porém, é a prova plena, que só funciona nas relações declaratário -declarante, e na medida em que as declarações sejam prejudiciais a este, outra, muito diferente, o valor do documento como elemento de prova.
A prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante; no mais, o documento é um elemento de prova igual a tantos outros, que o tribunal apreciará livremente”.
Ouviu-se na íntegra os depoimentos gravados de quem, em audiência, depôs acerca da matéria sobre a qual incide a impugnação da recorrente.
- As testemunhas G…, que há cerca de 20 anos namora com uma irmã da embargante, a quem, por virtude desse relacionamento, conhece bem, assim como o executado, e H…, que foi sócio de uma empresa de contabilidade que prestou serviços, nessa área, para o executado até fechar o gabinete, há 3 ou 4 anos atrás, dizendo mal conhecer a embargante, com quem nunca teve uma relação próxima, mencionaram o facto de embargante e executado terem, durante anos, vivido como um casal, tendo, no entanto, se separado há aproximadamente seis anos, passando o executado a viver com a mãe, na localidade …, e que tal situação se mantém, apesar de ele e a embargante terem em comum uma filha, com cerca de 4 anos de idade, adiantando ainda ser a embargante quem habita a casa penhorada, agindo como se fosse a única proprietária da mesma.
Dizendo ter assistido ao negócio, acompanhando o executado ao escritório do advogado Dr. K…, onde também a embargante se dirigiu, acompanhada de um familiar, a testemunha H… esclareceu terem a embargante e o executado recorrido ao contrato-promessa, a conselho do advogado, na impossibilidade de, por falta de licença de habitabilidade, formalizarem a compra e venda, negócio que era propósito de ambos concretizarem. Confirma ainda haver o executado formulado pedido para deixar de ser ele a pagar o IMI devido pelo imóvel.
- Prestando declarações, o executado confirmou haver recebido da embargante o preço de € 41.000,00, acordado pela venda do direito a metade do imóvel de que, com ela, foi comproprietário, recebendo dela um cheque no valor de € 26.000,00, referindo que o remanescente do preço (€ 15.000,00) ela foi-lhe pagando.
Por determinação oficiosa do tribunal foram juntas aos autos cópias das declarações de rendimentos (IRS) do executado e da embargante - que atestam que as declarações relativas aos anos de 2012 a 2016, inclusive, foram apresentadas separadamente por executado e embargante.
Também por iniciativa oficiosa do tribunal, que pretendeu indagar quais as residências declaradas pelo executado nos últimos dez anos, foram juntos aos autos os pedidos de bilhete de identidade e de cartão de cidadão por ele apresentados, verificando-se que nenhum deles coincide com a residência da embargante.
Mostram-se ainda juntas aos autos as informações solicitadas à J…, delas resultando que o cheque no valor de € 26.000,00 foi sacado da conta n.º …………., da qual a embargante é a uni-titular, o qual foi apresentado no dia 14.01.2013 para se depositado na conta à ordem n.º …………., da qual são co-titulares executado e embargante. De acordo com a informação também prestada pela referida instituição bancária, nem a conta sacada nem a conta beneficiária do depósito do cheque estão associadas ao mútuo garantido pela hipoteca constituída sobre o prédio sobre o qual veio a recair a penhora.
A decisão recorrida fundamenta deste modo a decisão proferida quanto aos factos nela considerados provados: Para dar como assentes tais factos o Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, cujo teor é inequívoco, não se podendo fazer interpretações para além do referido teor, nem retirar conclusões que não estejam aí plasmadas (penhora, contrato-promessa, ónus sobre o prédio, renuncia hipotecária, data de entrada da acção, data da prolação de sentença que constitui título executivo nestes autos, licença de habitabilidade, certidão de nascimento da filha do executado e da embargante).
Quanto às questões controvertidas, nomeadamente pagamento de preço e posse da totalidade do imóvel o tribunal irá pronunciar-se de forma mais pormenorizada.
Assim e desde logo, as testemunhas indicadas pela embargante (F… – amigo de embargante e executado - e G… – namorado da irmão da D…) e o próprio executado referiram que embargante e executado viveram juntos durante anos e que, há cerca de 5/6 anos, separaram-se, passando o executado a viver com a sua mãe em … (cerca de 7 Km do imóvel penhorado).
Mais referiram que tinham conhecimento que o prédio tinha sido doado pelos pais da embargante e que foi o executado e a embargante quem suportou as obras de reconstrução. Disseram igualmente que têm conhecimento que embargante e executado têm uma filha com cerca de 4 anos, mas referiram que o executado continua a viver com a mãe, tendo a embargante ficado a viver na casa, passando a agir como proprietária da totalidade da mesma.
Já a testemunha H…, contabilista que trabalhou com o executado, durante cerca de 30 anos, confirmou que assistiu à realização do negócio da compra e venda de parte do imóvel, referindo que perante a impossibilidade de efectuarem a compra e venda definitiva por falta de licença de habitabilidade, as partes recorreram ao contrato-promessa, por indicação do advogado. Mais disse que não houve qualquer conluio neste negócio, sendo que as partes queriam mesmo efectuar a venda, confirmando inclusivamente o pedido efectuado pelo executado para deixar de pagar o IMI.
Por sua vez, o executado confirmou ainda os factos alegados pela embargante na petição inicial, referindo ter recebido a totalidade do preço acordado - 41.000€ - 26.000€ por cheque e 15.000€ em diversos pagamentos por numerário ou encontro de contas. Mais justificou o facto da doação ter sido efectuada a ele e à embargante e não apenas à embargante (a embargante era filha dos proprietários e na altura estava no inicio do relacionamento e não estavam casados), com o facto de na altura possuir uma conta poupança-habitação e de, como tal, necessitar de ser proprietário do prédio, para poder desbloquear tal verba para a construção da casa. Por fim, confirmou que custearam a meias as obras da reconstrução da casa.
Já a testemunha indicada pelo exequente apenas referiu conhecer o executado pro ser cliente do B…, tendo o mesmo admitido a dívida e prometido que a iria pagar, apresentando-se sempre como proprietário duma casa, que podia servir como garantia do pagamento dessa dívida.
Por outro lado e para decisão desta questão especifica (pagamento do preço e posse de boa fé da totalidade do imóvel) há que atentar em 3 factos provados por documento, designadamente:
- conforme consta da informação dada pela J…, o cheque de 26.000€ que foi utilizado para pagamentos do preço acordado pelas partes, foi emitido de uma conta particular da embargante e não de uma conta conjunta da embargante e do executado.
- antes de celebrar o contrato-promessa de compra e venda com a embargante, o executado procedeu ao pagamento da dívida do mútuo à J…, permitindo o levantamento das hipotecas;
- o contrato de promessa de compra e venda foi celebrado 8 meses antes da entrada em juízo da acção que constitui título executivo nestes autos, sendo que nessa acção o executado deduziu pedido reconvencional, que improcedeu.
Ora, com todos depoimentos, com os documentos juntos aos autos e com os facto supra expostos, entendemos dar credibilidade à versão da embargante, nomeadamente quanto à questão da posse e do pagamento do preço.
Na verdade e muito intimamente conexionado com a posse está a possibilidade do negócio ser meramente simulado e as partes apenas quererem efectuar a compra e venda para que o executado não ficasse com qualquer património que pudesse responder pela dívida à exequente, bem sabendo a embargante que o imóvel continuava a pertencer a ambos.
Tal hipótese (simulação) tem como elementos abonatórios o notório interesse do executado e da embargante nesta dissipação de património, bem como o facto das partes terem uma filha em comum, concebida e nascida após o alegado fim do relacionamento, o que pode indiciar que a relação nunca tenha terminado.
Porém, tal versão é contrariada não só pelos depoimentos prestados, mas também por outros factos que já expusemos e que nos levam a concluir por essa ausência de conluio.
Assim e desde logo, nunca se pode pôr de parte a possibilidade de reconciliação do casal, sendo que tal situação acontece com muita frequência nos nossos dias, quase se podendo afirmar que corresponde a uma certa normalidade dos factos e não a uma excepção.
Por outro lado e se a intenção fosse dissipar o património, não se percebe o motivo do executado e da embargante terem liquidado o empréstimo à J…, não fazendo sentido retirar os ónus sobre o imóvel para que o mesmo pudesse ficar livre para poder responder pelo pagamento de eventuais dívidas. A contrapor esta observação, poder-se-ia referir que o pagamento foi efectuado dois meses antes da elaboração do contrato e que as partes estariam convictas que iriam celebrar o contrato definitivo ou que as partes poderiam estar apenas a acautelar um eventual vencimento da dívida à J…, com as consequentes agravações em caso de resolução contratual. Contudo tal não resulta inequivocamente dos autos, pelo que não demos grande relevância a este facto.
Também o pagamento ficou assente, pois que para além das declarações do executado, tivemos em conta o cheque constante dos autos e a informação prestada pela J… relativamente á titularidade da conta a que o cheque em causa dizia respeito (embargante).
Acresce que na altura em que foi efectuada a transacção (Março de 2013) ainda não havia qualquer acção judicial – só foi interposta em Novembro desse ano – pelo que não podemos extrapolar e concluir por uma intenção de dissipação de património.
Por fim, também as declarações das testemunhas e as declarações de IRS constantes dos autos apontam para vidas e patrimónios separados, residindo a embargante no imóvel penhorado e o executado na casa de sua mãe, o que conjuntamente com os restantes elementos probatórios é indiciador de que o imóvel em causa pertence na sua totalidade à embargante, actuando ela como legitima proprietária e possuidora da totalidade do mesmo, estando perfeitamente convicta da sua propriedade sobre a totalidade do bem.
Ponderando, no seu conjunto, os elementos de prova indicados e procedendo a uma análise crítica dos mesmos, não comungamos da certeza expressa na referida decisão, designadamente quanto ao pagamento do preço e posse pela embargante da totalidade do prédio, como se dele fosse (a única) proprietária.
- Quanto ao pagamento (ponto 10.º dos factos provados):
É ele confirmado pelo executado[15]. Tal não nos surpreende, considerando, além do mais, o facto de executado e embargante terem uma filha em comum – concebida e nascida após elaboração e assinatura do contrato-promessa constante dos autos -, terem sido representados pelo mesmo mandatário judicial[16], e de o cheque de € 26.000,00, entregue pela embargante alegadamente como forma de pagamento de parte do preço acordado pela venda (prometida) do direito a ½ do imóvel de que, com o executado, é comproprietária ter sido depositado em conta, à ordem, de que são ambos co-titulares.
Temos por evidente que não foi produzida prova bastante da demonstração do alegado pagamento do preço (€ 41.000,00).
É certo que a embargante emitiu a favor do executado um cheque no valor de € 26.000,00, sacado de uma conta bancária de que era ela a única titular.
Mas esse cheque foi creditado numa outra conta, à ordem, da qual ela, juntamente com o executado, era também co-titular, não sendo verdade, ao contrário do que sustenta o executado nas suas contra-alegações, que essa conta “foi associada ao mútuo com garantia hipotecária e, como tal, necessariamente tinha de ser titulada pela embargante e pelo seu então companheiro, ambos co-obrigados no mútuo”, sendo que é a própria J… a desmentir esse facto na informação enviada ao tribunal com data de 5.07.2018.
E quanto ao remanescente do preço (€ 15.000,00), que o executado alega ter recebido da embargante, nenhuma prova, para além das suas próprias declarações, foi produzida nos autos de que tal pagamento ocorreu: para além do executado - parte claramente interessada no desfecho dos embargos de terceiro, e cujas declarações não merecem credibilidade -, ninguém confirmou esse pagamento, do qual, de resto, não existe comprovativo documental[17].
- Relativamente à alegada posse (exclusiva) da embargante sobre a totalidade do prédio (pontos 11.º e 12.º dos factos provados):
Ainda que não coincidente com a localização geográfica da casa sobre a qual recaiu a penhora sendo declarada pelo próprio, a residência do executado constante dos vários documentos juntos aos autos (requisição do bilhete de identidade/cartão de cidadão, Segurança Social, domicílio fiscal), sem o concurso de outros elementos probatórios é claramente insuficiente para se concluir, com a necessária segurança, pela existência daquela alegada factualidade.
Para convencerem que é a embargante quem exerce, em exclusivo, actos possessórios sobre o imóvel, na sua totalidade, de forma correspondente ao direito de propriedade, afirmaram em audiência as testemunhas G… e H… que executado e embargante, que viveram maritalmente um com o outro, se separaram há cerca de seis anos, tendo ele ido viver com a mãe, na localidade …, ficando a embargante a habitar a casa sobre a qual recaiu a penhora, comportando-se como se fosse dona da mesma.
Os seus depoimentos não revelaram, porém, isenção e coerência suficientes para lhes ser conferida credibilidade.
O primeiro mantém ligação afectiva com uma irmã da embargante, com a qual diz namorar há vinte e tal anos, considerando a embargante “quase” cunhada, referindo-se ao executado também como “quase” cunhado ou cunhado “emprestado”, relacionamento que claramente influenciou o seu depoimento, mostrando-se evasivo quando confrontado com questões concretas, como quando lhe é perguntado se o executado voltou a viver na casa que partilhou com a embargante ou se lá o encontrava, perguntas às quais procurou esquivar-se.
Também o depoimento da testemunha H…, amigo do executado há cerca de 20 anos e que, segundo afirma, o acompanhou ao escritório do advogado aquando da celebração do contrato-promessa, e a quem, também de acordo com palavras suas, aquele revelou que formulara um pedido para deixar de ser ele (executado) a pagar o IMI, mostrou parcialidade, evidenciando claro comprometimento com uma defesa compatível aos interesses de executado e embargante, que têm em comum uma filha nascida e gerada após o alegado rompimento e separação do casal.
Também esta testemunha claramente se mostrou evasiva em algumas respostas, quando questionado sobre questões objectivas, designadamente quanto ao local onde reside o executado, limitando-se a afirmar que presume que viva em …, por o encontrar no café da localidade e por ver estacionado o carro à porta da casa da mãe, sendo que se trata de questão para a qual seria exigível maior segurança e certeza na resposta, sendo o executado seu amigo de longa data e com o qual mantém uma relação de confiança tal que o acompanha ao escritório do advogado para assistir à celebração do contrato-promessa, e estando em causa uma pequena localidade, onde seguramente todos se conhecem e sabem das moradas dos habitantes.
- Quanto às razões subjacentes à celebração do contrato-promessa (pontos 7.º e 8.):
Além da embargante e do executado, também aqui em sintonia, apenas a testemunha H… confirma que era propósito de ambos a celebração do contrato definitivo de compra e venda, só não o tendo feito por falta de licença de habitabilidade.
Também nesta parte não se mostra convincente tal depoimento, prestado por quem invoca como razão de ciência a circunstância de ter presenciado a celebração do contrato-promessa, sem que seja fornecida explicação plausível para justificar essa presença, no escritório de advogado, estando em causa negócio a que era totalmente alheio.
Não pode deixar de se anotar o facto de o pedido de licença ter sido formulado a 31.01.2013, data posterior à emissão e apresentação para depósito do cheque emitido pela embargante, no valor de € 26.000,00, tendo a embargante sido informada do indeferimento daquele pedido por ofício da Câmara Municipal … de 23.04.2018, onde se dá conta que “a autorização de utilização requerida em 2013 foi indeferida e comunicada a decisão da comissão de vistorias ao abrigo do ofício …./…. datado de 15/03/2013, uma vez que a obra estava em desconformidade com o projecto licenciado, nomeadamente a forma de cobertura e alpendre”, pelo que não se vê razão para, logo em 21.03.2013, ser celebrado o contrato-promessa, sem antes proceder à rectificação da obra, ajustando-a ao projecto licenciado.
Por outro lado, dizer-se, como sustenta a decisão sob recurso, que “antes de celebrar o contrato-promessa de compra e venda com a embargante, o executado procedeu ao pagamento da dívida do mútuo à J…, permitindo o levantamento das hipotecas” e que “o contrato de promessa de compra e venda foi celebrado 8 meses antes da entrada em juízo da acção que constitui título executivo nestes autos, sendo que nessa acção o executado deduziu pedido reconvencional, que improcedeu”, não são argumentos suficientemente consistentes para validar as invocadas razões para a celebração do contrato-promessa.
A circunstância de a acção no âmbito da qual se formou o título executivo ter dado entrada em juízo a 19.11.2013, depois de celebrado o contrato-promessa, não significa que não tivesse o executado, à data daquela celebração, conhecimento das dívidas que tinha para com a exequente, referentes a vários fornecimentos de mercadoria não pagos, sendo, no mínimo, expectável, até pelo seu elevado valor, que, não solvidas as mesmas, recorresse a credora à via judicial para reclamar esse pagamento[18].
Quanto ao pagamento da dívida à J… referente a contratos de mútuo com ela celebrado e ao distrate das hipotecas constituídas sobre o imóvel em garantia daquelas dívidas, não se vê razão que desaconselhasse tal procedimento mantendo-se o imóvel, como pretende assegurar a embargante, na sua total disponibilidade e esfera jurídica.
Conclui-se, pois, pelas apontadas razões, que, recaindo sobre a embargante o ónus de prova dos factos por si alegados fundamentadores dos embargos deduzidos, como resulta do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, a prova produzida acerca da matéria contida nos segmentos decisórios impugnados não permite formular um juízo positivo acerca da sua verificação ou existência.
Deste modo, procedendo a impugnação recursivamente deduzida à decisão relativa à matéria de facto, altera-se tal decisão, julgando não provados os factos constantes dos pontos 7.º, 8.º, 10.º, 11.º e 12.º, em primeira instância considerados provados.
2. Da aplicação do Direito aos factos fixados.
Segundo o artigo 1285.º do Código Civil, “o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo”.
Por seu turno, dispõe hoje o n.º 1 do artigo 342.º do Código de Processo Civil que “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”, acrescentando o nº2 que “não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência”.
À excepção da remissão, no n.º 2, para o “processo especial de recuperação da empresa e de falência” que foi actualizada com a referência ao processo de insolvência, o artigo 342.º reproduz o artigo 251.º do pretérito Código de Processo Civil.
Com a reforma do processo civil empreendida em 1995[19], os embargos de terceiro deixaram de constituir processo especial e de ser tratados como acção possessória, passando a integrar-se nos incidentes de instância, perspectivando-se como “verdadeira subespécie da oposição espontânea, caracterizada por se inserir num processo que comporta diligências de natureza executiva (penhora ou qualquer outro acto de apreensão de bens) judicialmente ordenadas, opondo o terceiro embargante um direito próprio, incompatível com a subsistência dos efeitos de tais diligências (…)“considerou-se que, em termos estruturais, o que realmente caracteriza os «embargos de terceiro» não é tanto o carácter «especial» da tramitação do processo através do qual actuam – que se molda essencialmente pela matriz do processo declaratório, com a particularidade de ocorrer uma fase introdutória de apreciação sumária da viabilidade da pretensão do embargante -, mas a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante”[20] .
Como esclarece Amâncio Ferreira[21], “hoje, os embargos de terceiro não se apresentam, no sistema da lei processual, como um meio possessório, mas antes como um incidente da instância, como uma verdadeira subespécie da oposição espontânea, sob a denominação de oposição mediante embargos de terceiro (arts. 351 e segs.). E assim como é do conceito de oposição (art. 342 nº 1), encontramo-nos perante um incidente que permite a um terceiro intervir numa causa para fazer valer, no confronto de ambas as partes, um direito próprio, total ou parcialmente incompatível com as pretensões por aquelas deduzidas.”
“Os embargos de terceiro são uma forma particular de reclamação tendo em vista a revisão pelo mesmo órgão jurisdicional da questão sobre a qual incidiu a decisão que ordenou a diligência posta em causa.
Este procedimento caracteriza-se, essencialmente, pela posição do embargante, o qual se “introduz” num processo pendente entre outras partes, a fim de obstar à efectivação de um seu direito, incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto judicial de afectação ilegal daquele mesmo direito”[22].
Ou seja, “os embargos de terceiro, no Código de Processo Civil revisto, passaram a constituir o meio processual idóneo para a efectivação de qualquer direito de embargante incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo que ser, necessariamente, alegada a posse, mas sim um qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada, tendo-se alargado, expressa e deliberadamente, por via legislativa, o âmbito de tal procedimento”[23].
Mas, constituindo os embargos de terceiro um meio de defesa da posse ofendida, por quem é alheio à acção executiva, isto é terceiro, essa posse não pode ser uma posse precária, mas antes uma posse real, efectiva, que se consubstancia no exercício de poderes de facto sobre a coisa penhorada, não se exigindo a posse jurídica[24].
Cabe ao embargante a prova dos fundamentos do seu direito: artigo 342.º do Código Civil. Assim, sobre ele recai o ónus probatório de demonstrar que a penhora, a apreensão ou entrega judicialmente ordenada e a incidir sobre determinados bens ofende direitos que ele tem sobre esses mesmos bens, merecedores de tutela.
A embargante, que não é parte no processo executivo onde foi realizada a penhora, lançou mão do procedimento de embargos de terceiro como reacção ao que considera, por virtude daquela diligência e efeitos que dela advêm, uma ofensa à posse que afirma ter sobre a totalidade do prédio de que, com o executado, é comproprietária, posse essa (segundo alega, total e exclusiva) que passou a exercer na sequência do contrato-promessa de compra e venda, a que as partes atribuíram eficácia real, que celebrou com o executado, comproprietário na proporção de ½.
Sendo incontroversa a qualidade de terceira da embargante, importa questionar se o contrato-promessa em que se apoia para reagir contra a penhora legitima o recurso a esse meio de reacção processual.
Como se disse, a procedência dos embargos de terceiro exigem do embargante a alegação e posterior prova da sua posse[25] em relação ao bem sobre o qual incidiu a penhora, ou “qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens” ou a existência de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que fala o nº1 do artigo 342º do Código de Processo Civil.
Fundando o embargante o direito de reagir, através do mecanismo processual que se vem analisando, contra algum dos actos mencionados na mencionada disposição legal, em contrato-promessa que tenha por objecto algum dos bens por eles atingido, terá, assim, de alegar e de provar que tal bem lhe foi antecipadamente entregue e que passou a exercer sobre ele posse, a qual não se confunde com a mera detenção.
A questão não tem sido tratada de forma consensual pela jurisprudência. Assim:
Para uma das correntes jurisprudenciais, o contrato-promessa, por si só, não transmite a posse. Havendo tradição da coisa, o promitente-comprador adquire o corpus possessório, mas não o animus: é um mero detentor ou possuidor precário. O direito real de garantia de que goza não é susceptível de posse, não podendo, por isso, fundamentar recurso a embargos de terceiros, assistindo-lhe apenas o direito ao reconhecimento do seu crédito em resultado de incumprimento contratual.
Outra das posições reconhece ao promitente-comprador, operada a tradição da coisa objecto do contrato-promessa, a possibilidade de recurso aos meios possessórios nos mesmos moldes de que goza o credor pignoratício - artigos 759º, nº 3 e 670º, al. a), ambos do Código Civil -, não questionando, neste caso, a existência da posse.
Numa outra linha de entendimento, sempre no pressuposto de ter havido tradição da coisa, há quem atribua ao promitente-comprador a qualidade de um verdadeiro possuidor – e não mero detentor -, beneficiando de tutela possessória, em relação ao bem entregue, se os actos materiais exercidos sobre ele forem acompanhados do animus possidendi, isto é, se ele actuar com animus rem sibi habendi[26].
A questão deve, em todo o caso, ser analisada casuisticamente, em função da forma como age o promitente-comprador em relação à coisa objecto do contrato, pressupondo sempre, todavia, a tradição da mesma[27].
Como já Pires de Lima e Antunes Varela[28] defendiam, “o contrato-promessa [...] não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário […].
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, nesse estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são praticados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.2010[29] “uma das hipóteses que tem vindo a ser apontada com base neste entendimento tem sido a de ter havido pagamento da totalidade do preço aliado à entrega da coisa, com a prática, a partir desse momento, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa. […] a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e nesse estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade”, podendo a entrega ser perspectivada como antecipação do próprio cumprimento do contrato[30].
Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2018[31] refere: “Por regra, tal como ensina Antunes Varela [..], o contrato promessa, sendo um negócio meramente obrigacional, não transmite, por si só, a posse ao promitente-comprador. Mesmo nos casos em que ocorre a tradição da coisa, antes da celebração da escritura definitiva de compra e venda, o promitente-comprador, adquirindo, embora, o corpus possessório, não adquire o animus possidendi, ficando, por isso, investido na qualidade de mero detentor ou possuidor precário. Todavia, esta regra não é absoluta. Com efeito, e como nos dá conta o Acórdão do STJ de 23.05.2006 [..], vem sendo entendimento deste Supremo Tribunal, que «a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio»[..]. Quer isto dizer que, casos existem, em que a posse resultante da tradição da coisa pode assumir todas as características que definem a posse verdadeira e própria, a que alude o art. 1251º do C. Civil, juntando ao corpus também o animus correspondente ao direito real em causa [..]. Nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.04.2012 (revista nº 299/05.6TBMGD.P1.S1) «excepcionalmente, a tradição material da coisa a favor do promitente-comprador pode conferir a posse, para efeitos de usucapião, como sucede nas hipóteses em que a tradição ocorre, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de transmitir, em definitivo, o direito prometido, e passando o promitente-comprador, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa entregue”.
Por outro lado, como sustenta Lebre de Freitas[32], a posse do promitente comprador é exercida na expectativa duma aquisição futura, mas enquanto esta não tiver lugar, não terá nunca como suporte um direito real, cuja presunção de titularidade tão pouco fará sentido, cedendo tal posse perante a garantia da penhora de um bem do executado.
Ou, como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 27.11.2014, citado na decisão impugnada, “a simples posse só constitui fundamento de embargos de terceiro se, e enquanto, não ficar esclarecida a questão do direito de propriedade, cedendo perante este, como resulta claramente, do preceituado no art. 1278.º do C. Civil e, mais especificamente em sede de embargos de terceiro, do art. 357.º 2 do CPC, na redacção em vigor na data em que foi proferida a decisão recorrida. No fundo, a tutela possessória assenta na presunção da titularidade do direito possuído, sendo afastada logo que essa presunção se mostre ilidida”.
Ora, e voltando de novo à situação discutida nos autos, a embargante convoca como fundamento para os embargos de terceiro que deduz a circunstância de haver celebrado com o executado contrato-promessa de compra e venda do direito a metade do imóvel de que este é titular, pagando na íntegra o preço convencionado, e que a partir da celebração do referido negócio passou a exercer actos possessórios também sobre a metade do prédio que, em compropriedade, pertencia ao promitente vendedor/executado, passando a utilizar o prédio na sua totalidade, como coisa totalmente sua, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, convicta de que estava a exercer um direito próprio.
Porém, não logrou a mesma provar, como lhe competia, a circunstância factual fundamentadora dos embargos de terceiro que deduz, não resultando provado que haja pago qualquer quantia ao promitente vendedor e que tenha passado a praticar sobre todo o prédio os alegados actos materiais, caracterizadores do corpus, e que tenha actuado com animus possidendi.
Poderá dessa constatação resultar a supressão de qualquer tutela dos direitos que advêm, para a promitente compradora, da celebração do contrato-promessa de compra e venda com eficácia real?
Prevê o n.º 1 do artigo 413.º do Código Civil que “À promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”.
Tratando-se de promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, poderão as partes atribuir-lhe eficácia real desde que nele expressem essa vontade e o inscrevam no registo.
Embargante e executado celebraram entre si contrato-promessa de compra e venda relativo a imóvel, nele declarando atribuir-lhe eficácia real, tendo procedido à sua inscrição no registo.
Segundo Ana Prata[33]: “a eficácia real do contrato promessa traduzir-se-á na possibilidade de o contrato promessa ser invocado contra terceiros que, subsequentemente ao registo dessa promessa, venham a adquirir direitos incompatíveis com o seu cumprimento”.
Sobre os efeitos decorrentes do registo no contrato promessa com eficácia real, precisa Mónica Jardim[34]: “O registo de contrato promessa dotado de eficácia real garante a pretensão creditória à celebração do contrato prometido e assegura também o direito real que pode ver a ser adquirido no futuro. O registo definitivo em apreço atribui ao direito de crédito decorrente do contrato promessa, uma eficácia equiparada à dos direitos reais, afastando, por conseguinte, o perigo de ele vir a ser inviabilizado, no todo ou em parte, por actos de alienação ou de oneração do objecto do contrato promessa registados posteriormente”.
Sobre o objecto do contrato-promessa em causa veio a recair, entretanto, penhora, posteriormente registada.
Poderá questionar-se se o acto da penhora com registo subsequente ao registo do contrato-promessa de compra e venda dotado de eficácia real constitui direito incompatível com o da promitente compradora naquele contrato.
A resposta terá de ser negativa, não constituindo a penhora obstáculo legal à execução específica do contrato-promessa mesmo no âmbito do próprio processo executivo.
Sob a epígrafe “Venda Directa”, dispõe o artigo 831.º do Código de Processo Civil: Se os bens houverem por lei, de ser entregues a determinada pessoa ou tiverem sido prometidos vender, com eficácia real, a quem queira exercer o direito de execução específica, a venda é-lhe feita directamente.
O preceito em causa visa harmonizar os direitos do promitente comprador e os efeitos erga omnes do contrato-promessa dotado de eficácia real com o fim prosseguido pela acção executiva, que prossegue a satisfação coerciva dos direitos dos credores, acautelando tal normativo os interesses e direitos quer do promissário, quer do exequente e, eventualmente, de credores reclamantes, se os houver. A venda directa prevista no referido artigo 831.º facultará a obtenção de fundos para satisfação do crédito do exequente (e/ou dos credores reclamantes), estando ela, porém, condicionada quanto ao preço[35], assegurando ao promitente comprador do bem penhorado, também por esta via, o cumprimento do contrato prometido.
Mas não estando a acção executiva ainda na fase da venda, e não querendo (nem tal lhe sendo exigível) por ela esperar o promitente comprador que queira obter a execução específica do contrato, sempre na pendência do processo executivo poderá propor acção de execução específica do contrato-promessa, suspendendo-se a venda judicial que venha entretanto a ter lugar na execução, pelo menos quanto ao bem objecto do contrato-promessa, se a questão da execução específica ainda não se achar definitivamente decidida na acção declarativa.
Não sendo a penhora, subsequente à celebração do contrato-promessa em discussão nos autos, incompatível com os direitos que a celebração de tal contrato, dotado de eficácia real, confere à embargante, promitente compradora, que poderá exercê-los nos termos que deixam consignados, não se vê razão que obste ao prosseguimento da execução quanto ao bem/direito penhorado, não havendo fundamento, pelo menos, nesta fase, para ordenar o levantamento dessa penhora.
Procedendo, por conseguinte, o recurso, a decisão recorrida haverá de ser revogada, ordenando-se o prosseguimento da execução, com manutenção da penhora realizada.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, de facto e de Direito, revogando a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene o prosseguimento da execução, mantendo-se a penhora nela efectuada.
Custas: pelo apelado C… que, respondendo às alegações da apelante, pugnou pela manutenção do decidido.

Porto, 13 de Junho de 2019
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
____________
[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 157.
[5] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[6] Até porque sobre o julgador recai, como já se mencionou, o dever de fundamentar a sua convicção no que concerne ao julgamento da matéria de facto.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra, 19.01.2010, processo nº 495/04.3TBOBR.C1, www.dgsi.pt
[8] Na expressão de Bentham, é na prova testemunhal que estão os olhos e os ouvidos da justiça…
[9] Cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, págs. 614, 615; Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 276, 277; Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 342.
[10] “A Acção Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, pág. 278.
[11] “Declarações de Parte”, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.
[12] https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-536.html#links, texto publicado a 20.01.2017.
[13] “A Prova por Declarações de Parte”, FDUL, 2015, pág. 80.
[14] Processo nº 363/07.7TBPCV.C1, www.dgsi.pt.
[15] Que, ainda assim, afirma ter recebido da embargante € 25.000,00, para “levantar as hipotecas”, quando o valor inscrito no cheque que alegadamente lhe foi entregue é de € 26.000,00
[16] Até à audiência prévia embargante e executado foram representados pelo mesmo advogado, o qual também elaborou o contrato-promessa junto aos autos e procedeu às diligências necessárias à sua autenticação e registo e só na sequência do despacho proferido no decurso daquela diligência, que determinou a notificação do ilustre mandatário de ambos para informar qual deles passaria a representar, e optando o mesmo por continuar a representar a embargante, o executado constituiu novo mandatário, Dr. L…, com escritório na Rua …, n.º …, ..º, direito, Porto, onde o primitivo mandatário do executado – que não contesta os embargos de terceiro, mas que, ao contrário da embargante, apresenta contra-alegações -, tem o seu escritório, mas no 4.º andar, esquerdo.
[17] Não basta a declaração do executado no contrato-promessa de já haver recebido o preço para que se tenha como efetivamente concretizado tal pagamento, sabendo-se que essa declaração muitas vezes não traduz mais do que uma afirmação formal, sem correspondência efectiva. Aliás, no caso vertente, é o próprio executado que nas declarações prestadas em audiência refere que a embargante lhe “foi pagando”.
[18] De resto, a própria procuração outorgada pelo requerido/executado tem data anterior à própria propositura da acção à qual foi junta.
[19] Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 e Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9.
[20] cfr. Preâmbulo do Dec.-Lei n.º 329-A/95.
[21] “Curso de Processo de Execução”, 10ª edição, pág. 290.
[22] Acórdão da Relação de Lisboa, 30.11.2000, processo nº 0074228, www.dgsi.pt.
[23] Acórdão da Relação de Lisboa, 11.01.2001, processo nº 0076718, www.dgsi.pt.
[24] Cf. Acórdãos da Relação de Lisboa, 25.05.2000, 22.11.2001, 06.06.2000, processos, respectivamente, 0043016, 0076191, 0000721, e Acórdão da Relação do Porto, 21.03.2000, processo nº 9821443, www.dgsi.pt.
[25] Traduzida esta no exercício de determinados poderes de facto (corpus) sobre a coisa com a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente (animus).
[26] Cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 13.11.2007, processo nº 0724885, www.dgsi.pt. e do Supremo Tribunal de Justiça 19.11.1996, CJ/STJ, Tomo III, pág. 109.
[27] Acórdãos do STJ de 23.05.2006, Processo nº 06A1128 e de 17.04.2007, Processo nº 07A480, ambos in www.dgsi.pt.
[28] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. Rev. e Actualizada, págs. 6 e 7.
[29] Processo nº 860/03.3TLBGS.E1.S1, www.dgsi.pt.
[30] Cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 13.09.2012, processo nº 1223/05.1TBCSC-B.L1-6, www.dgsi.pt.
[31] Processo n.º 584/12.0TCFUN-B.L1.S1, www.dgsi.pt.
[32] “A Acção Executiva Depois da Reforma”, 4ª Edição, Coimbra Editora 2004, págs. 285 e 286.
[33] “O Contrato Promessa e Seu Regime Civil”, 2ª ed., reimpressão, pág. 617.
[34] “Efeitos Substantivos do Registo Predial”, 2015, Reimpressão, pág. 886.
[35] Ao contrário das outras modalidades, em que a venda se efectua pelo melhor preço obtido, na venda directa o preço é o acordado pelos promitentes no contrato-promessa.