Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4973/22.4T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: GERMANA FERREIRA LOPES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
RECONHECIMENTO DO DIREITO AO SUBSÍDIO POR DESPESAS DE FUNERAL / LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP202509244973/22.4T8MAI.P1
Data do Acordão: 09/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE. REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I – As nulidades da sentença previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil sancionam vícios formais, de procedimento – errore in procedendo - e não patologias que eventualmente traduzam erros judiciais – error in judicando.
II - A nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, só se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, quer no respeitante aos factos, quer no tocante ao direito e não já, portanto, quando esteja apenas em causa uma motivação deficiente, medíocre ou até errada.
III – A nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea d) do n.º 1 do preceito em referência, sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º do CPC, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais, importando não confundir questões com factos, argumentos, razões ou considerações.
IV – Nos termos do artigo 66.º da NLAT o direito ao subsídio por despesas de funeral pode ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares e equiparados do sinistrado (n.º 3), tendo direito a tal subsídio quem comprovadamente tiver efetuado o pagamento destas (n.º 4).
V – Daqui decorre que o pedido de pagamento das despesas de funeral se insere no âmbito do direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho e que a legitimidade para o formular não pressupõe a qualidade de beneficiário, sendo mesmo, num desvio ao disposto pelo artigo 2.º da NLAT, extensivo a terceiros.

[Sumário elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho)]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação/Processo nº 4973/22.4T8MAI.P1


Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Valongo - Juiz 2



Relatora: Germana Ferreira Lopes
1º Adjunto: António Luís Carvalhão
2º Adjunto: Rui Manuel Barata Penha






Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:




I - RELATÓRIO[1]


O presente processo emergente de acidente de trabalho (mortal), respeita ao sinistrado AA.
Na fase conciliatória dos autos, foi designada tentativa de conciliação, para a qual foram convocados os pais do Sinistrado, BB e CC e a Seguradora Companhia de Seguros A..., SA, sendo que estes, para além do mais, aí reclamaram a quantia de € 2.741,00 relativa a despesas de funeral
Nessa diligência frustrou-se a conciliação, uma vez que a Seguradora apesar de aceitar a existência do contrato de seguro que abrange o Sinistrado pela retribuição anual invocada, declarou não aceitar a caraterização do evento como acidente de trabalho, referindo que se tratou de uma doença súbita. A Seguradora nada aceitou pagar.

Nessa sequência, os Autores, pais do Sinistrado, apresentaram petição inicial para dar início à fase contenciosa dos autos, em que é Ré a Companhia de Seguros A..., SA, pedindo:

a) Seja declarado que o acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado, ocorrido no dia 31 de agosto de 2022, se qualifica como acidente de trabalho;

b) Seja a Ré condenada a pagar a cada um dos Autores, a título de pensão por morte, a quantia de 1.480,50 Euros até perfazerem a idade da reforma por velhice, e de 1.974,00 Euros a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;

c) Seja a Ré condenada a pagar aos Autores, a título de subsídio pelas despesas do funeral, a quantia de 2.741,00 Euros;

d) Seja a Ré condenada a pagar, a cada um dos Autores, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante de 20.000,00 Euros;

e) Seja a Ré condenada a pagar, a cada um dos Autores, a título de indemnização pela perda do direito à vida, o montante de 50.000,00 Euros [1/2 de 100.000,00 Euros];

f) Seja a Ré condenada a pagar, a título de despesas de deslocação ao Tribunal, a quantia de 15,00 Euros.

Valores estes acrescidos de juros de mora à taxa legal.

No articulado de petição inicial, como se menciona na decisão recorrida, pese embora não conste do pedido formulado a final, pretendiam ainda os Autores o pagamento do valor de € 435,36 a título de indemnização pelo período de incapacidade absoluta para o trabalho que o Sinistrado sofreu.
Para tanto, alegaram, em substância, que o seu filho, em 31-08-2022, sofreu um acidente de trabalho quando exercia funções enquanto trabalhador independente, acidente do qual resultaram lesões que lhe provocaram a morte, sendo que o Sinistrado tinha celebrado e em vigor um contrato de seguro nos termos do qual este transferiu a responsabilidade infortunística emergente acidentes de trabalho para a Ré Seguradora.

A Ré Seguradora contestou, mantendo, em síntese, a posição já assumida na tentativa de conciliação da fase conciliatória do processo, pugnando pela respetiva absolvição do peticionado.

Foi proferido convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, no sentido de os Autores esclarecerem quais os rendimentos que, à data do falecimento de AA, auferiam, individualmente ou conjuntamente.
Os Autores responderam ao convite, apresentando petição inicial aperfeiçoada.

Por requerimento refª citius 39967472, vieram os Autores declarar “desistir do seu pedido referente à pensão por morte do sinistrado, concretizado nos artigos 98.º a 105.º do seu articulado”, por reconhecerem não reunir os pressupostos que determinam a qualidade do direito a essa pensão, requerendo que fosse julgada válida a desistência de parte do pedido relativo ao peticionado por pensão por morte do Sinistrado.

Nessa sequência, foi proferida decisão refª citius 460560734 com o seguinte teor:

“Tratando-se de direitos indisponíveis, não é admissível a desistência apresentada – cfr. artigos 78º da Lei 98/2009, de 4/09 (LAT) e 289º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – pelo que não a homologo.


*

Em face do valor que os autores vieram esclarecer auferir à data da morte de AA, afigura-se ao tribunal que os mesmos não revestem a qualidade de beneficiários para efeitos da LAT.

Daqui decorre que, quanto aos pedidos relativos à pensão por morte e de pagamento de despesas de deslocação, os mesmos não poderão proceder e, quanto aos demais pedidos – de indemnização por incapacidade temporária, subsídio de despesas por funeral, indemnização por danos não patrimoniais e por perda do direito à vida – se verificará a incompetência material deste tribunal, tal como decidido, em situação semelhante, no Acórdão da Relação do Porto, de 28/11/2022, disponível em www.dgsi.pt.

Importa, assim, dar às partes oportunidade para se pronunciarem quanto a estas questões, para o que determino a realização de uma audiência prévia com o fim previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC (não obstante não estar prevista no processo especial para efectivação de direitos resultantes de acidentes de trabalho a possibilidade de realização desta diligência, determina-se a realização da mesma ao abrigo dos artigos 3º e 6º do CPC.

Assim, para o efeito, designo o dia 28/10, às 9h30m, sem prejuízo da impossibilidade de algum dos Srs. Advogados.”

Foi realizada a audiência prévia, no âmbito da qual foi cumprido o contraditório, sendo que, conforme se alcança da ata refª citius 465028158, os Autores pugnaram pela competência material do Tribunal relativamente ao pagamento das despesas com o funeral e quanto à caraterização do acidente e a Ré, por sua vez, pugnou pela ilegitimidade dos Autores e pela incompetência material do Tribunal em lhes atribuir qualquer pensão.

Nessa sequência, o Tribunal a quo, depois de referir entender estar apto a decidir a exceção dilatória de incompetência material desse Tribunal e do mérito da causa, proferiu em sede de audiência prévia “Despacho saneador sentença”, com o seguinte teor (transcrição[2]):
«Fixo em 145.717€ o valor da acção (artigos 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 120.º, n.º 2 do CPT).

*


(…)

Da incompetência material deste Tribunal: a competência judiciária em razão da matéria é de natureza e ordem pública e apenas decorre da lei, sendo que a sua fixação apreciar-se-á em função da natureza da matéria a decidir
A competência material do tribunal é determinada e aferida pelos termos em que a acção é apresentada pelo autor, devendo atentar-se nos termos em que foi proposta a acção quer quanto aos seus elementos objectivos quer quanto aos seus elementos subjectivos, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas feitas pelo autor ou mesmo o juízo de prognose que se possa fazer quanto à viabilidade da pretensão.
De acordo com o disposto no artigo 126º, nº 1, al. c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível (…) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
Os valores que os autores reclamam nas al. d) e e) do pedido - indemnização por danos não patrimoniais e indemnização pela perda do direito à vida – constituem um direito que cabe jure proprio aos familiares referidos no artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil – o dano morte (ou do direito à vida) e os danos sofridos pelos autores com a morte do seu filho – e um direito que nasceu na esfera jurídica do sinistrado e foi transmitido, por via sucessória aos seus herdeiros – dano sofrido pelo sinistrado com a antecipação da morte.
Ora, pese embora estes pedidos radicarem no invocado acidente de trabalho, a verdade é que configuram prestações que derivam do direito civil e não do diploma que regula a reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais (Lei n.º 98/2009, de 4/09 (LAT).
De facto, nos termos do disposto no artigo 2.º, nº 1 deste diploma, o trabalhador tem direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho nos termos previstos na presente lei.
Esta reparação, prevista nos artigos 23º das LAT pode ser em espécie ou em dinheiro, estando as prestações em dinheiro previstas no artigo 47º.
Ora, estão aqui em causa apenas prejuízos de natureza não patrimonial sofridos em consequência do acidente de trabalho.
A única excepção a esta regra é a dos casos previstos no artigo 18º, nº 1 da LAT - acidentes de trabalho provocados pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou que sejam resultado de falta de observância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho – nos quais a indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
No caso dos autos, não foi invocada pelos autores a situação a que alude o citado artigo 18º.
Acresce que, como infra se explicará, os autores não reúnem as condições para serem tidos como beneficiários do sinistrado, sendo sim seus herdeiros, o que lhes confere o direito a reclamar a indemnização ora em causa no foro civil e não no foro laboral.
Como se lê no Acórdão da Relação do Porto de 12/01/2016 sem situação similar à dos autos (mas em que havia sido invocada a violação de regras de segurança por parte do empregador) “Significa isto que a presente ação não busca o seu enquadramento jurídico na legislação especial concernente aos acidentes de trabalho. Surge, outrossim, como uma ação de responsabilidade civil em que, embora radicando na ocorrência de um acidente configurado como sendo de trabalho, os autores não reúnem nem a qualidade de sinistrados nem foram reconhecidos como sendo beneficiários do sinistrado em termos da legislação laboral” – disponível em www.dgsi.pt.
Igual entendimento foi seguido no Acórdão da mesma Relação, datado de 28/11/2022, disponível no mesmo sítio.
Não é, assim, o tribunal do trabalho materialmente competente para o conhecimento dos pedidos de condenação da ré no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais e indemnização pela perda do direito à vida, por estarem fora do âmbito laboral.
A incompetência material constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que pode ser conhecida até ao trânsito em julgado da sentença que conheça o mérito da causa, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – artigos 96º, al. a), 97º, nº 1, e 99º, do Código de Processo Civil, ex vi art. 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo de Trabalho.
Prosseguindo.
Noutra ordem de considerações, com pertinência para a decisão da causa, face à posição assumida pelas partes nos articulados, ao assento de óbito de fls. 116 e à cópia do procedimento de habilitação de herdeiros podem ter-se, desde já, como provados os seguintes factos:
A) No dia ../../2022 faleceu AA, no estado de solteiro sem descendentes.
B) BB e CC, pais de AA, auferiram no ano de 2022, rendimentos anuais no valor de 28.282,38€.
Estabelece o artigo 2º da LAT que os trabalhadores e os familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos na presente lei.
De acordo com o disposto no artigo 57.º, n.º 1 da LAT, em caso de morte, a pensão é devida aos seguintes familiares do sinistrado:
a) Cônjuge ou pessoa que com ele vivia em união de facto;
b) Ex-cônjuge ou cônjuge judicialmente separado à data da morte do sinistrado e com direito a alimentos;
c) Filhos, ainda que nascituros, e os adoptados, à data da morte do sinistrado, se estiverem nas condições previstas no n.º 1 do artigo 60.º;
d) Ascendentes que, à data da morte do sinistrado, se encontrem nas condições previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 49.º;
e) Outros parentes sucessíveis que, à data da morte do sinistrado, com ele vivam em comunhão de mesa e habitação e se encontrem nas condições previstas no n.º 1 do artigo 60.º.
No caso, os ora autores são ascendentes do sinistrado AA, invocando que este faleceu na sequência de um acidente, quanto exercia funções como trabalhador independente, actividade cujo exercício estava coberto por uma apólice de seguro.
Os autores enquadram-se na situação prevista no aludido artigo 57º, nº 1, al. d) que refere que, os ascendentes têm direito à reparação dos danos no caso de morte do sinistrado, caso se encontrem nas condições previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 49.º, ou seja, quando auferirem rendimentos individuais de valor mensal inferior ao valor da pensão social ou que conjuntamente com os do seu cônjuge ou de pessoa que com ele viva em união de facto não exceda o dobro deste valor.
Quer isto dizer que, ao contrário dos familiares elencados nos artigos a), b) e c), cuja qualidade de beneficiários resulta apenas dessa relação familiar com o sinistrado, no caso dos ascendentes exige-se também que aufiram rendimentos até um determinado valor.
Como é sabido estas prestações indemnizatórias para reparação de acidentes de trabalho estão ligadas à dependência económica dos familiares dos sinistrados, sendo esse o seu fundamento, o que se mostra evidente no facto de os filhos dos sinistrados falecidos perderem o seu direito à pensão quando a partir de certa idade deixam de estudar, excepção feita a serem portadores de deficiência ou doença crónica, ou na situação de o cônjuge do sinistrado casar novamente ou passar a viver em união de facto, caso em que receberá o triplo do valor da pensão anual de uma só vez.
Essa dependência económica traduz-se, no caso da qualificação dos ascendentes como beneficiários do sinistrado, no valor diminuto que os mesmos recebem - inferior ao valor da pensão social -, pressuposto que se exigia também na anterior LAT – Lei 100/97, de 13/9 – quando se atribuía a qualidade de beneficiário ao ascendente desde que o sinistrado contribuísse regularmente para o seu sustento.
Como se lê no citado Acórdão da Relação do Porto de 12/01/2016 “… não basta que o acidente em causa se possa qualificar como de trabalho, sendo ainda necessário, em caso de morte do trabalhador, que o requerente seja um dos beneficiários previstos no art. 20º da LAT (caso contrário, pura e simplesmente, a situação encontrar-se-á fora da “reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho) e que se encontre em causa a típica reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho – a compensação pela perda da capacidade de ganho da vítima, sob a forma de pensão anual”.
Isto posto, à data do falecimento do sinistrado, os aqui autores auferiam rendimentos cujo valor é claramente superior ao do valor da pensão social, que, à data do falecimento era de 278,05€ (cfr. Portaria n.º 301/2021, de 15/12).
Nesta conformidade, não estão verificadas todas as condições para que os autores se possam considerar beneficiários do seu falecido filho, pelo que não lhes assiste direito a receber, nesta sede, os valores fixados na LAT, a saber: a pensão por morte, as despesas de deslocação a que alude o artigo 39º da LAT, o subsídio pelas despesas do funeral e, bem assim, o valor reclamado a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta para o trabalho.
*


Nestes termos e, pelo exposto:
a) declaro este tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado nas alíneas d) e e), absolvendo a ré da instância quanto aos mesmos, e
b) no mais, julgo a acção totalmente improcedente e absolvo a ré dos pedidos contra si formulados nas al. a), b), c) e f) e bem assim quanto ao valor reclamado a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta para o trabalho.
Custas pelos autores.
Notifique.».

Os Autores vieram interpor recurso de apelação, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem):

(…)

A Ré Seguradora apresentou contra-alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões:

(…)

Foi proferido pelo Tribunal a quo despacho (refª citius 466482861) a admitir o recurso de apelação interposto, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Nesse mesmo despacho pronunciou-se o Tribunal a quo sobre as nulidades invocadas nos seguintes termos:
“Das nulidades: afigura-se-me não se verificar nenhuma das apontadas nulidades, uma vez que, como é referido na decisão sob recurso, não cumpre apreciar nesta sede da existência do invocado acidente de trabalho, entendendo que na decisão constam os fundamentos, quer de facto, quer de direito, que sustentam a decisão proferida. Contudo V.ªs Ex.ª melhor decidirão.”


O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87º, nº 3, do CPT, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento, aí se lendo, para além do mais, o seguinte:
“(…) tal como consta da douta sentença recorrida, em face da matéria de facto apurada não estão verificadas as condições legais – nos termos da respetiva fundamentação jurídica e que nos abstemos de reproduzir - para que os autores/recorrentes se possam considerar beneficiários do seu falecido filho, e, assim, não lhes assiste direito a receber, nesta sede, os valores fixados na LAT, nomeadamente o subsídio pelas despesas do funeral.
No que diz respeito à procedência do pedido de qualificação, como acidente de trabalho, do sinistro sofrido pelo falecido AA em 31 de agosto de 2022, também é nosso entendimento que não cumpre apreciar nesta sede da existência do invocado acidente de trabalho, uma vez que os recorrentes não reúnem as condições legais para que possam considerar-se beneficiários do seu falecido filho.”

Os Recorrentes apresentaram resposta ao parecer, manifestando a respetiva discordância. Argumentam, em substância, que: a LAT não condiciona o pagamento das despesas de funeral à qualidade de beneficiário, admitindo a possibilidade de este direito ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares do sinistrado, bastando que comprovadamente tenham efetuado o pagamento de tais despesas (artigo 66.º, n.ºs 3 e 4 da LAT); contrariamente ao sustentado pelo Ministério Público não será pelo facto de os Recorrentes não reunirem as condições para serem considerados beneficiários do Sinistrado que, automaticamente, o Tribunal a quo fica liberado de se pronunciar fundamentadamente sobre a qualificação do acidente que vitimou o Sinistrado como de trabalho, conforme peticionaram os Recorrentes.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.


***


II – Questões a resolver

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[3], aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho[4]].

Assim, as questões a apreciar e decidir são:

(1) Saber se ocorrem as invocadas nulidades da sentença

– por omissão de pronúncia [artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC];

- por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC];

(2) Saber se o Tribunal a quo errou no julgamento – saber se o Tribunal a quo não podia ter concluído pela improcedência do pedido de declaração do acidente que vitimou o Sinistrado como acidente de trabalho e, bem assim, do pedido de condenação da Recorrida no pagamento das despesas de funeral.

Sublinhe-se que os Recorrentes não dirigem o recurso sobre o despacho saneador sentença na parte em que:

- Declarou o tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado nas alíneas d) e e) – de condenação da Ré a pagar, a cada um dos Autores, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante de 20.000,00 Euros e a título de indemnização pela perda do direito à vida, o montante de 50.000,00 Euros [1/2 de 100.000,00 Euros] – e absolveu a Ré da instância quanto a tais pedidos;

- Julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos de condenação da Ré a pagar:

* a cada um dos Autores, a título de pensão por morte, a quantia de 1.480,50 Euros até perfazerem a idade da reforma por velhice, e de 1.974,00 Euros a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho (alínea b))

* aos Autores a quantia de 15,00 Euros a título de despesas de deslocação ao Tribunal (alínea f);

* aos Autores o valor reclamado a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta para o trabalho.

Nesta conformidade, e quanto ao decidido que não foi objeto de recurso, a decisão transitou em julgado.


***


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Para a decisão do presente recurso, importa ter presente a factualidade que decorre do desenvolvimento processual relevante que emerge do relatório efetuado em I.

Por outro lado, o Tribunal a quo face à posição assumida pelas partes nos articulados, ao assento de óbito e ao procedimento de habilitação de herdeiros juntos aos autos, considerou estarem naquela fase provados os seguintes factos:

A) No dia ../../2022 faleceu AA, no estado de solteiro sem descendentes.

B) BB e CC, pais de AA, auferiram no ano de 2022, rendimentos anuais no valor de 28.282,38€.


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IV – APRECIAÇÃO/CONHECIMENTO

1 – Das invocadas nulidades da sentença

Os Recorrentes invocam, em primeira linha, que a sentença padece do vício de nulidade por omissão de pronúncia sobre factos relevantes para a decisão da causa e invocados pelas partes. Argumenta que constituindo objeto do presente litígio a questão de saber se o acidente que vitimou o acidente de trabalho é qualificável como tal para efeitos da LAT, então deveria o Tribunal a quo ter, previamente acertado como provados e não provados os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados e deveria ter ponderado a prova existente quanto à qualificação do acidente como sendo de trabalho, o que não fez.

Doutro passo, invocam o vício de nulidade da sentença por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de improcedência dos pedidos de reconhecimento do acidente como sendo de trabalho e de condenação da Recorrida no pagamento das despesas de funeral.

Em consonância com o entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, assinala-se, desde já, que as causas de nulidade constantes do elenco do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, não incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário[5].

As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto ou de direito. Tais nulidades sancionam, pois, vícios formais, de procedimento – errore in procedendo – e não patologias que eventualmente traduzam erros judiciais - errore in judicando.

Conforme se evidencia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-04-2021[6] (citando), «[p]or vezes torna-se difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, que é aquele que está na origem da decisão.

No acórdão do STJ de 30/9/2010[3], refere-se que “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”.

Porque assim é, as nulidades da decisão, previstas no artigo 615º do CPC são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.

Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito.» [fim de citação].

Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, é a chamada nulidade por omissão de pronúncia.

Ora, a decisão queda-se aquém do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar de questões que deveria conhecer, no caso da omissão de pronúncia.

O prescrito na citada alínea d) está em consonância com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, que dispõe: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

A nulidade em referência serve, pois, de cominação para o desrespeito do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, reconduzindo-se os vícios aí previstos à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.

Como constitui também entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência os argumentos convocáveis para se decidir certa questão não se identificam necessária e coincidentemente com a própria questão a decidir, em si mesma considerada. Ou seja, questões e argumentos não se confundem, sendo que o dever de decisão é circunscrito à apreciação daquelas.

Sobre esta matéria, e no mesmo sentido, vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8-03-2023[7], 10-12-2020[8], 10-04-2024[9] e de 1-02-2023[10].

Assim, como se assinala no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-03-2023, [a] nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º l, d), do CPC1), sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais2 (isto é, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções) suscitadas pelos litigantes, ou de que se deva conhecer oficiosamente, cuja resolução não esteja prejudicada pela solução dada a outras, questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).».

A nulidade em referência, como se expõe no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, “apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não, como é pacífico, os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.”

Importa, pois, não confundir questões com factos, argumentos, razões ou considerações.

Apelando aos ensinamentos de Alberto dos Reis[11], o que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.

Questões a decidir no sentido do artigo 608.º, n.º 2, são as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para as mesmas concorrem.

Não são questões a decidir os factos, nem a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista. O facto material é um elemento para a solução da questão, não é a questão em si mesma. O juiz não está obrigado a apreciar cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, sendo certo que o facto de não lhes fazer referência – eventualmente por não ter considerado tais factos como relevantes no tratamento da questão – não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. A circunstância de não ter sido feita menção a um facto que poderia relevar no âmbito da valoração e aplicação das regras de direito não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia prevista no artigo 615.º, alínea d), do Código de Processo Civil. A sua falta pode consubstanciar um errore in judicando ou erro judicial, mas não o indispensável errore in procedendo (vício formal), que carateriza as nulidades da sentença previstas no artigo 615.º do CPC.

Por sua vez, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Esta nulidade, como tem sido afirmado na jurisprudência, só se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, quer no respeitante aos factos, quer no tocante ao direito e não já, portanto, quando esteja apenas em causa uma motivação deficiente, medíocre ou até errada. Nesse mesmo sentido aponta a doutrina[12].

Como se pode ler no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-04-2024[13] (citando), «[o] vício relativo à falta de fundamentação correlaciona-se com o dever de fundamentação das decisões que se impõe ao julgador “por imperativo constitucional e legal (artigos 208.º, n.º1, da Constituição e 154.º, n.º1, do CPC) tendo ainda a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma e com a própria garantia do direito ao recurso (as partes precisam de ser elucidadas quanto aos motivos da decisão, sobretudo a parte vencida, para poderem impugnar os fundamentos perante o tribunal superior)” (acórdão deste Supremo Tribunal de 04-06-2019, proc. n.º 64/15.2T8PRG-C.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt).

No entanto, como é sublinhado pela doutrina (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 736) e afirmado, de forma constante, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 11-02-2015 (proc. n.º 422/2001.L1.S1), não publicado, de 14-01-2021 (proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1), in www.dgsi.pt, e de 17-01-2023 (proc. n.º 5396/18.5T8STB-A.E1.S1), não publicado), só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, gera a nulidade do acórdão, não integrando tal vício a fundamentação deficiente, errada ou não convincente.»[fim de citação].

Só a ausência absoluta de uma qualquer motivação seja de facto, seja de direito conduz, pois, à nulidade da decisão.

Perante o sobredito enquadramento, e revertendo ao caso dos autos, entendemos que, ao contrário do sustentado pelos Recorrentes, não se verifica qualquer vício de nulidade da sentença recorrida.

Por um lado, e quanto à invocada “omissão de pronúncia” a sentença recorrida não deixou de apreciar qualquer questão que lhe cumprisse apreciar, relembrando-se que o vício de nulidade por omissão de pronúncia se reporta a questões, não se podendo confundir questões com factos.

O Tribunal recorrido não omitiu o tratamento e a solução das questões suscitadas (questões no sentido acima definido), pelo que não se verifica a invocada nulidade por omissão de pronúncia.

Por outro lado, e quanto à alegada “falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” na parte da decisão objeto de recurso, como vimos, para que se verificasse a nulidade com esse fundamento teria que existir uma absoluta falta de fundamentação da decisão proferida, o que não é o caso.

Da sentença recorrida não ressalta uma carência absoluta de fundamentação nem de facto, nem de direito, pois para além de se ter feito constar os fundamentos de facto, especificou-se também o direito aplicado para justificar a decisão.

Não se verifica, pois, a nulidade em causa, tendo em conta que inexiste falta absoluta de fundamentação. Distinto é saber se ocorreu erro de julgamento, questão que não cumpre neste momento apreciar.

Em conclusão, percorrendo as alegações e conclusões da apelação, o que sucede é que os Recorrentes discordam da sentença proferida, assentando a sua discordância em eventuais erros de julgamento, mas o error in judicando, como vimos, não consubstancia qualquer um dos vícios de nulidade da sentença previsto no artigo 615.º do CPC.

Na verdade, podem os Recorrentes divergir do entendimento seguido, seja quanto ao juízo de suficiência dos factos considerados assentes na fase do saneamento para o conhecimento do mérito dos pedidos em causa no presente recurso, seja quanto à subsunção e aplicação aos factos do direito, sendo certo que tal divergência e juízo não tem assento no vício de nulidade da sentença.

Pelo exposto, e sem necessidade de considerações adicionais, conclui-se que a decisão recorrida não enferma dos invocados vícios formais de nulidade, improcedendo as conclusões de recurso quanto à arguida nulidade da sentença.


***


2) Saber se o Tribunal a quo errou no julgamento – saber se o Tribunal a quo não podia ter concluído pela improcedência do pedido de declaração do acidente que vitimou o Sinistrado como acidente de trabalho e, bem assim, do pedido de condenação da Recorrida no pagamento das despesas de funeral

Nesta sede, os Recorrentes sustentam, em síntese, o seguinte: como narrado nos artigos 13.º a 25.º da petição inicial, o sinistro ocorreu no local e no tempo de trabalho e provocou-lhe a morte, existindo nexo de causalidade entre o evento ocorrido em 31-08-2022 e a morte ocorrida em ../../2022, no contexto de permanente continuidade sintomatológica, pelo que estão reunidos os pressupostos para que se conclua pela existência de acidente de trabalho e consequente aplicação da Lei n.º 98/2009, de 4-09[14]; o artigo 66.º da NLAT institui o subsídio por despesas de funeral, o qual pode ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares e equiparados do sinistrado, tendo direito a tal subsídio quem comprovadamente tiver efetuado o pagamento destas e, portanto, independentemente da qualidade de beneficiários. Concluem que nunca poderia o Tribunal a quo ter julgado improcedentes os pedidos de declaração do acidente que vitimou o Sinistrado como acidente de trabalho e de condenação no pagamento das despesas de funeral tendo por base a circunstância de os Recorrentes não apresentarem a qualidade de beneficiários.

A Recorrida, por sua vez, defende o julgado, concluindo pela improcedência do recurso. Argumenta que os Recorrentes são ascendentes do Sinistrado e nos termos do artigo 57.º, n.º 1, alínea d), da NLAT os ascendentes têm direito à reparação dos danos no caso de morte do sinistrado, caso se encontrem nas condições previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 49.º do mesmo diploma legal - ou seja, quando auferirem rendimentos individuais de valor mensal inferior ao valor da pensão social ou que conjuntamente com os do seu cônjuge ou de pessoa que com ele viva em união de facto não exceda o dobro desse valor -, pelo que os Recorrentes não têm direito às prestações peticionadas nos termos da NLAT.

O Exmº Procurador-Geral emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Considera que, em face da matéria de facto apurada não estão verificadas as condições legais para que os Autores/Recorrentes se possam considerar beneficiários do seu falecido filho, e, assim, não lhes assiste direito a receber, nesta sede, os valor fixados na NLAT, nomeadamente o subsídio pelas despesas do funeral. Já no que respeita ao pedido de qualificação como acidente de trabalho manifesta o entendimento que não cumpre apreciar nesta sede da existência do invocado acidente de trabalho, uma vez que os Recorrentes não reúnem as condições legais para que possam considerar-se beneficiários do seu falecido filho.

No que respeita à decisão recorrida, já tivemos oportunidade de a transcrever no relatório supra em I.

Vejamos.

Importa relembrar que apenas é objeto de recurso a parte do despacho saneador sentença que decidiu pela improcedência e absolvição da Ré dos pedidos formulados pelos Autores sob as alíneas a) e c) – ou seja, de reconhecimento do acidente invocado como de trabalho e de condenação da Ré no pagamento aos Autores da quantia de € 2.741,00 a título de subsídio de despesas do funeral. Quanto ao mais decidido no despacho saneador sentença, que não foi objeto de recurso, mostra-se transitado em julgado.

Não existe controvérsia entre as partes, tratando-se, aliás, de facto sobre o qual existiu acordo na tentativa de conciliação que existia um contrato de seguro que abrangia o Sinistrado, trabalhador independente, em termos de responsabilidade infortunística pela retribuição anual auferida e invocada pelos Autores de € 9.870,00 (€ 705,00 x 14) – a Seguradora isso declarou aceitar em sede de tentativa de conciliação, sendo certo que no artigo 2.º e 3.º da contestação “confirma que AA, transferiu para si a responsabilidade infortunística laboral emergente de acidentes de trabalho mediante o Contrato de Seguro do Ramo Acidentes de Trabalho Particulares, ou seja, enquanto trabalhador independente, titulado pela apólice n.º ...07, já junta aos presentes autos na fase conciliatória, com base na retribuição anual de € 9.870,00, correspondente a € 705,00 x 14 meses, conforme comunicado pela sociedade segurada e plasmado na apólice de seguro (já junta aos autos na fase conciliatória)”. A Seguradora aceitou, aliás, expressamente na contestação o artigo 3.º da petição inicial onde foi alegado que à data do sinistro AA havia celebrado com a Ré um seguro de acidentes de trabalho para particulares com o referido nº de apólice, a qual foi junta na fase conciliatória pela Seguradora.

Doutro passo, não vem colocado em crise no presente recurso, nem, aliás, existe controvérsia entre as partes que, tratando-se de um trabalhador independente e de um evento ocorrido em 31-08-2022, o regime legal a ter em consideração em termos de reparação infortunística é o previsto na NLAT.

De facto, o legislador contemplou a reparação infortunística dos "trabalhadores independentes”, ou seja, daqueles que exercem uma atividade por conta própria, em termos idênticos aos trabalhadores por conta de outrem.

Nos termos do artigo 4.º, n.º 2 da Lei nº 7/2009 de 12 de fevereiro (que aprovou a revisão do Código de Trabalho), o trabalhador que exerça atividade por conta própria deve efetuar um seguro que garanta o pagamento das prestações previstas nos artigos 283.º e 284.º do Código de Trabalho e respetiva legislação regulamentar (NLAT, no que respeita ao regime de reparação de acidentes de trabalho).

Dispõe o artigo 184.º da NLAT que a regulamentação relativa ao regime do seguro obrigatório de acidentes de trabalho de trabalhadores independentes consta de diploma próprio.

O diploma legal que regulamenta o seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes é o Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio.

Refira-se que a NLAT contém uma norma remissiva – artigo 181º - nos termos da qual as remissões de normas contidas em diplomas legislativos para a legislação revogada com a entrada em vigor da referida lei consideram-se referidas às disposições correspondentes do Código do Trabalho e daquela lei.

Como tal, as referências à Lei n.º 100/97 de 13 de setembro e ao Decreto-Lei n.º 143/99 de 30 de abril – que foram revogados pela Lei n.º 98/2009 (cfr. o seu artigo 186.º) contidas no citado Decreto-Lei n.º 159/99 consideram-se como sendo feitas às disposições correspondentes da Lei n.º 98/2008 de 4 de setembro.

No presente caso, em face da factualidade assente por acordo na própria fase conciliatória dos autos, verifica-se que o Sinistrado tinha o risco da sua atividade transferido por contrato de seguro, pela totalidade da retribuição auferida, de modo a ficar protegido, enquanto trabalhador independente, garantindo um regime de reparação em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem.

Por outro lado, está assente, não vindo colocado em crise no recurso, que: o Sinistrado faleceu no dia ../../2022, no estado de solteiro sem descendentes; que os Autores são pais do Sinistrado e auferiram no ano de 2022, rendimentos anuais no valor de € 28.282,38.

Os Autores reconhecem que não reúnem as condições pressupostas na alínea d) do n.º 1 do artigo 57.º da NLAT que, por sua vez, remete para a alínea d) do n.º 1 do artigo 49º do mesmo diploma – ascendente com rendimentos individuais de valor mensal inferior ao valor da pensão social ou que conjuntamente com o seu cônjuge ou de pessoa que com ele viva em união de facto não exceda o dobro desse valor [cfr. Portaria n.º 301/2021, de 15-12] -, para que lhes possa ser reconhecida a qualidade de beneficiários legais.

Partindo desse pressuposto e com esse fundamento – de que os Autores não reúnem as condições para serem considerados beneficiários do Sinistrado -, concluiu o Tribunal a quo que não assiste aos Autores direito a receber o subsídio pelas despesas do funeral previsto na NLAT e, bem assim, julgou improcedentes os pedidos formulados pelos Autores sob as alíneas a) e c) [a) Seja declarado que o acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado, ocorrido no dia 31 de agosto de 2022, se qualifica como acidente de trabalho; c) Seja a Ré condenada a pagar aos Autores, a título de subsídio pelas despesas do funeral, a quantia de 2.741,00 Euros], dos mesmos absolvendo a Ré Seguradora.

Sucede que a decisão recorrida não se poderá manter quanto a tais segmentos decisórios.

Na verdade, nos termos do artigo 23.º, alínea b), da NLAT, “[o] direito à reparação compreende as seguintes prestações: (…) b) Em dinheiro – indemnizações, pensões e subsídios previstos na presente lei”.

E, entre tais prestações em dinheiro, consta no artigo 66.º da NLAT o denominado “Subsídio por despesas de funeral”.

Dispõe este último normativo o seguinte:

“1. O subsídio por despesas de funeral destina-se a compensar as despesas efetuadas com o funeral do sinistrado.

2. O subsídio por despesas de funeral é igual ao montante das despesas efetuadas com o mesmo, com o limite de quatro vezes o valor de 1,1 IAS, aumentado para o dobro se houver trasladação.

3. O direito ao subsídio por despesas de funeral pode ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares e equiparados do sinistrado.

4. Tem direito ao subsídio por despesas de funeral quem comprovadamente tiver efetuado o pagamento destas.

(…)”.

Daqui decorre que, como se dá nota no muito recente Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 16-06-2025[15], o pedido de pagamento das despesas de funeral se insere no âmbito do direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho e que a legitimidade para o formular, ao contrário do que foi pressuposto pelo Tribunal a quo, não pressupõe a qualidade de beneficiário, «sendo mesmo, num desvio ao disposto pelo artigo 2.º da NLAT, extensivo a terceiros».

No caso, os Autores invocaram expressamente na petição inicial que despenderam com o funeral do Sinistrado a quantia de € 2.741,00, remetendo para um documento que juntaram, sendo que tal matéria e documento foram objeto de impugnação por parte da Seguradora, consubstanciando, pois, matéria controvertida.

Do mesmo passo, mostra-se controvertida a materialidade fáctica invocada pelos Autores para sustentar o pretendido reconhecimento do evento invocado como sendo um acidente de trabalho (cfr. articulados apresentados pelas partes), sendo certo que é com base nessa causa de pedir [alegação da ocorrência do acidente de trabalho que vitimou o trabalhador independente, na vigência de contrato de seguro de acidentes de trabalho particulares – de trabalhador independente, e alegação de que os Autores suportaram as despesas de funeral do sinistrado] que os Autores alicerçam a pretendida responsabilização da Ré Seguradora pelo pagamento da prestação reparatória prevista na NLAT, consistente no pagamento do subsídio por despesas de funeral do sinistrado.

Ora, tratando-se o subsídio de funeral de uma prestação reparatória prevista na NLAT, destinando-se a compensar as despesas efetuadas com o funeral do sinistrado, com a particularidade do direito ao mesmo poder ser reconhecido a pessoas distintas dos familiares e equiparados do sinistrado, desde que comprovadamente tenham efetuado o pagamento dessas despesas (artigos 66.º, n.ºs 1, 3 e 4 da NLAT), o facto de os Autores não reunirem os pressupostos para serem considerados beneficiários não dita a improcedência do pedido de pagamento do subsídio por despesas de funeral (como, aliás, não dita a improcedência do pedido de reconhecimento do acidente como de trabalho), como foi pressuposto nos segmentos decisórios recorridos.

Assiste, pois, razão aos Recorrentes quando pugnam pela revogação da decisão que julgou improcedentes os pedidos formulados pelos Autores sob as alíneas a) e c).

No entanto, mostrando-se controvertidos os factos atinentes quer à matéria relativa à qualificação do invocado evento como de trabalho, quer à matéria referente ao invocado pagamento das despesas de funeral, forçoso é concluir que o estado do processo não permite ainda (como não permitia ao Tribunal a quo) conhecer do mérito da causa quanto aos pedidos deduzidos pelos Autores sob as alíneas a) e c).

Em conclusão, impõe-se revogar o saneador-sentença na parte recorrida em que decidiu pela improcedência e absolvição da Ré Seguradora dos pedidos formulados nas alíneas a) e c) da petição inicial, havendo a ação que prosseguir quanto ao conhecimento de tais pedidos, nomeadamente para efeitos do n.º 1, alínea c) e n.º 2 do artigo 131.º do CPT, e tramitação subsequente.

Custas do recurso pela Recorrida/Seguradora (artigo 527.º do CPC).


*

***


V – DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar o saneador-sentença na parte recorrida em que decidiu pela improcedência e absolvição da Ré Seguradora dos pedidos formulados nas alíneas a) e c) da petição inicial [a) Seja declarado que o acidente de trabalho sofrido pelo Sinistrado, ocorrido no dia 31 de agosto de 2022, se qualifica como acidente de trabalho; c) Seja a Ré condenada a pagar aos Autores, a título de subsídio pelas despesas do funeral, a quantia de 2.741,00 Euros], devendo os autos seguir os seus ulteriores termos legais para o conhecimento de tais pedidos, nomeadamente para efeitos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do CPT, e tramitação subsequente.

Custas do recurso pela Recorrida/Seguradora.

Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Notifique e registe.


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(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)

Porto, 24 de setembro de 2025

Germana Ferreira Lopes [Relatora]


António Luís Carvalhão [1º Adjunto]


Rui Manuel Barata Penha [2º Adjunto]

_________________________________
[1] A sua elaboração teve por base a consulta (no citius) do presente processo.
[2] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[3] Adiante CPC.
[4] Adiante CPT.
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição revista e Actualizada, Coimbra Editora, Almedina, 1985, página 686.
[6] Processo n.º 3340/16.3T8VIS-A.C1.S2, Relator Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, – acessível in www.dgsi.pt, site onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso.
[7] Processo n.º 16978/18.5T8LSB.L2.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado.
[8] Processo n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, Relatora Conselheira Maria do Rosário Morgado.
[9] Processo n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1, Relator Conselheiro Nelson Borges Carneiro.
[10] Processo n.º 252/19.2T8OAZ.P1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes.
[11] Código de Processo Civil, Anotado, volume 5º, página 143.
[12] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, página 687/688.
[13] Processo n.º 5223/19.6T6STB.E1.S1, Relatora Conselheira Maria da Graça Trigo.
[14] Adiante designada por NLAT.
[15] Processo n.º 1699/22.2T8BRG-A.P1, relatado pela Desembargadora Maria Luzia Carvalho. No mesmo sentido o Acórdão desta Secção Social de 23-06-2021, processo n.º 3382/15.6T8PNF, Relator Desembargador Jerónimo Freitas.