Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
845/20.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA SUBJETIVA
Nº do Documento: RP20220622845/20.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, sem necessidade de aviso prévio com invocação de justa causa, a que alude o art.º 394.º do CT/2009, pode ser fundada num comportamento ilícito do empregador ou resultante de circunstâncias objetivas, relacionadas com o trabalhador ou com a prática de atos lícitos pelo empregador – dizendo-se no primeiro caso que estamos perante resolução fundada em justa causa subjetiva e, no segundo, por sua vez, fundada em justa causa objetiva.
II - A dimensão normativa da cláusula geral de rescisão exige mais do que a mera verificação material de um qualquer dos comportamentos do empregador elencados, sendo ainda necessário que desse comportamento culposo resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que seja inexigível ao trabalhador – no contexto da empresa e considerados o grau de lesão dos seus interesses, o caráter das relações entre as partes e as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes – a continuação da prestação da sua atividade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 845/20.5T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Aveiro

Recorrente: C...,Lda.
Recorrida: AA
_____________
Nélson Fernandes (relator)
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
1. AA intentou ação com processo comum contra J... Unipessoal, Lda., e C...,Lda., pedindo o reconhecimento de justa causa na rescisão que operou do contrato de trabalho celebrado com as Rés e a condenação solidária destas a pagarem-lhe as quantias de €300,00 a título de férias não gozadas, €600,00 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e subsidio de Natal de 2019, €550,90 a título de omissão de formação obrigatória e €5.500,00, a titulo de indemnização pela cessação do contrato de trabalho com justa causa.
Para tanto alegou, em síntese: ter celebrado com a 1ª Ré, em 18.01.2010, um contrato de trabalho a termo certo, que foi sucessivamente renovado, pelo que se encontra efetiva, exercendo as funções de empregada de balcão – das 7h às 14h uma semana, e das 14 h às 20h30 outra semana, de segunda-feira a sábado (embora constasse do contrato de trabalho o período de trabalho de 40 horas, fazia mais horas que eram pagas à parte) –, no estabelecimento comercial denominado C...,Lda., ora 2.ª Ré, mediante a remuneração do salário mínimo nacional; as Rés tinham por hábito atrasar-se no pagamento do seu vencimento, sem qualquer justificação, sendo que esta situação já se vinha mantendo desde o ano de 2017, vencimento que deveria ser pago no último dia útil do mês de acordo com a clausula 7ª do contrato (assim: no dia 16.06.2017 foi depositado o vencimento respeitante ao mês de maio de 2017; o vencimento do mês de junho de 2017 foi pago pelas rés no dia 13.07.2017; o de julho de 2017 em 18.08.2017; e o de agosto de 2017 a 12.09.2017; apenas em 26.09.2017 foi pago o subsidio de ferias, posteriormente ao gozo de férias; o vencimento do mês de setembro de 2017 foi pago em numerário a 26.10.2017 e o do mês de Outubro de 2017 também o foi a 09.11.2017. O vencimento do mês de novembro de 2017 foi pago a 19.12.2017; o do mês de dezembro a 15.01.2018; em 19.02.2018, pagaram o vencimento do mês de janeiro de 2018, em numerário; em 15.03.2018, pagaram o vencimento do mês de fevereiro de 2018, também em numerário; em 13.04.2018, pagaram o vencimento de março de 2018, e a 15.05.2018 o vencimento do mês de abril de 2018 e assim sucessivamente, os meses subsequentes do ano de 2018 e no ano de 2019, mas sempre atrasado; o subsidio de natal de 2018 foi pago em 5.03.2019); tais atrasos no pagamento do seu vencimento repercutiam-se no pagamento das despesas do seu agregado familiar, que tinha com a alimentação, vestuário, luz, gás e na educação do seu filho, pois o mesmo frequentava o 12º ano de escolaridade, provocando grandes constrangimentos na gestão da sua vida familiar e dificuldades económicas; por causa de tais atrasos, reiterados e sucessivos, em carta registada com AR, comunicou à ora 2.ª Ré a resolução/cessação com justa causa do contrato de trabalho, alegando, entre outras, a falta culposa do pagamento pontual das retribuições devidas, omissão na progressão da categoria profissional, omissão de formação obrigatória; na sequência dessa carta, a 2.ª Ré emitiu a carta datada de 6.05.2019 de folhas 17 verso; apenas lhe foi paga a quantia de €237,69, uma vez que foi entendido que não tinha respeitado o aviso prévio; gozou férias entre 9.03.2019 a 16.03.2019, mas, no entanto, não lhe foi pago o subsidio de férias antes do gozo das mesmas, além de que não gozou 15 dias de férias e, como tal, deverão ser pagos; acresce que também não lhe foi paga a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas por formação e que não lhe foi proporcionada, sendo que já não tinha formação na área que exercia, desde há 5 anos; não teve qualquer progressão na carreira, ao longo dos anos que trabalhou para as Rés como empregada de balcão; sendo-lhe devidos créditos salariais no valor global de €7.000,09, como já recebeu a quantia de € 237,69, o montante ainda em divida perfaz apenas €6.763,21; todas as referidas violações dos seus direitos e garantias tornaram impossível a manutenção da relação de trabalho.

1.2 Contestaram as Rés:
- A 1.ª Ré, J... Unipessoal, Lda., alegando, além do mais, que se encontra liquidada e extinta desde 5.01.2012, conforme certidão permanente que apresenta;
- A 2.ª Ré, C...,Lda., por sua vez, impugnou o alegado pela Autora nos artigos 6º a 23º e 27º a 36º da petição inicial, e alegou: que os extratos bancários juntos não são o meio idóneo para a demostração dos pagamentos que efetuou; de todo o modo, diz, todos os salários foram pagos à Autora, não tendo ficando nenhum por liquidar; quanto ao grau de lesão dos interesses da trabalhadora, pelo próprio extrato bancário verifica-se que a mesma nunca esteve claramente numa situação de penúria ou sufoco financeiro, mantendo ao longo de todo o tempo uma liquidez que lhe permitia manter a sua vida; a autora não aduz factos concretos que permitam perceber essas invocações, referindo tão somente questões genéricas como constrangimentos na gestão familiar e com o filho que frequentava o 12º ano, quando todos sabemos que, pelo tipo de rendimentos auferidos pela Autora, esta teria comparticipações estatais nos seus estudos; sobre o caracter das relações entre as partes, estamos a falar de uma microempresa familiar com poucos trabalhadores e uma capacidade limitada de tesouraria que, cumprindo todos os seus deveres e obrigações, poderia, eventualmente, incorrer em pequenos atrasos nos pagamentos salariais, mas que, se a autora invocasse urgência no pagamento do seu salário, dado o ambiente de proximidade, certamente a Ré não recusaria, bem como ajudava em momentos de maior dificuldade, como o fez em inúmeras ocasiões; a Autora, pessoa conflituosa, manteve durante o período contratual uma animosidade com a trabalhadora que fazia as manhãs, BB, criando problemas e tensões no ambiente laboral, só atenuando pelo facto de as duas trabalhadoras fazerem turnos diferentes, foi este mau ambiente que terá espoletado a vontade da Autora para se desvincular do contrato, procurando um novo emprego, tendo arranjado trabalho logo de imediato em 29.04.2019, sendo esta a verdadeira razão que subjaz à sua saída e não a que vem mencionada nestes autos; inexistiu qualquer justa causa para a resolução do contrato de trabalho por parte da Autora, constituindo o pedido formulado um claro abuso de direito. Concluiu que a ação deve ser julgada improcedente, e, em consequência, ser absolvida de todos os pedidos.

1.3. Depois de fixado o valor da causa em €6 763,21, aquando do saneamento dos autos, foi absolvida a 1.ª Ré da instância, invocando-se o disposto nos artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, al. c), do Código de Processo Civil (CPC).
De seguida, com base no disposto nos artigos 49.º, n.º 3, e 62.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), dispensou-se “a realização da audiência prévia e a enunciação dos temas e prova.”

1.4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Nestes termos, e em face do exposto, decido julgar a ação procedente, e, consequentemente,
A- Reconhecer como lícita (por verificação de justa causa) a resolução do contrato de trabalho por parte da autora AA ocorrida a 02.05.2019;
B- Condenar a Ré “C...,Lda.” a pagar à autora:
B.1 - a quantia de €600,00 (seiscentos euros), a título de subsídio de férias do ano de 2018:
B.2. -a quantia de €409,99 (quatrocentos e nove euros e noventa e nove cêntimos), a título de retribuição de férias não gozadas, correspondente a 15 dias;
B.3.- a quantia de €401,10 (quatrocentos e um euros e dez cêntimos), a título de retribuição de férias e subsídio de férias no ano da cessação do contrato;
B.4. a quantia de €200,55 (duzentos euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de subsídio de Natal do ano da cessação do contrato:
B.5. a quantia de €403,78 (quatrocentos e três e setenta e oito cêntimos), a título de formação profissional não ministrada;
B.6. a quantia de €3.175,33 (três mil cento e setenta e cinco euros e trinta e três cêntimos), a título de indemnização pela cessação do contrato de trabalho; o que perfaz o montante global de €5.190,75 (cinco mil cento e noventa euros e setenta e cinco cêntimos) a que deverá acrescer a retribuição do mês de Abril de 2019, no valor de €600,00 (seiscentos euros) e ser deduzido o valor de €237,69 (duzentos e trinta e sete euros e sessenta e nove cêntimos), já recebido pela autora.
Custas a cargo da autora e da ré, na proporção do respectivo decaimento (artigo 527.º, n.os 1 e 2 do Código do Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho).
Valor da acção: o estabelecido aquando da elaboração do despacho saneador (folhas 49) - €6.763,21.
Registe e notifique.”

2. Inconformada, apresentou a Ré recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as respetivas conclusões, nos termos que agora se transcrevem:
“I A autora, nas suas declarações de parte, diz o seguinte:
“Há três anos a esta parte, os atrasos no pagamento eram entre 8 e no máximo, 20 dias de atraso” – 11,55 min. a 12,10 min e 12,54 min. a 13,04 min. da gravação
“Enquanto eu tinha o meu pai, o meu saldo bancário estava sempre alto, porque eu vivia com a reforma do meu pai. Após a morte do meu pai, eu só vivia com o meu ordenado mínimo e foi aí que começou a descambar” – 35,00 min. a 35,14 min. da gravação
“Eu fui para outro lado trabalhar e fiquei a ganhar mais” – 43,55 min. a 44,10 min. Da gravação
“Eu não ia pôr uma carta de despedimento se eu não podia dar-me ao luxo de ir para casa tendo um filho ainda para criar, não me dava ao luxo de ficar sem trabalho e ficar sem ganhar nada! Tive de arranjar um trabalho para poder pôr a carta de despedimento para poder seguir a minha vida em frente” – 44,32 min. a 44,55 min. da gravação.
II Estas declarações de parte, produzidas em audiência de julgamento demonstram inequivocamente as motivações da Recorrida:
1. Foi que a partir da morte do seu pai, que valor salarial recebido se tornou insuficiente para fazer face ás suas despesas.
Não foram os atrasos que espoletaram esta situação. O pagamento dos salários em meados do mês seguinte – apesar de inadequado - consolidou-se nos hábitos daquela pequena empresa, tornando-se expectável para os seus trabalhadores o seu recebimento naquelas datas.
2. A carta de resolução contratual com justa causa, enviada á entidade patronal (e junta aos autos na p.i. como doc. nº 7), só foi enviada quando a oportunidade surgiu, ou seja, depois de a autora ter arranjado um novo trabalho onde ganharia um salário mais alto.
Como fica claro, a própria carta de resolução do contrato de trabalho emitida pela trabalhadora não revela quaisquer valores em dívida com atrasos superiores a 60 dias.
III Subsistindo o regime de pagamento de salários entre o dia 8 e o dia 20 do mês subsequente desde, pelo menos, há três anos, sem qualquer oposição da Recorrida, antes, com o seu assentimento, a invocação desses atrasos para fundamentar a justa causa de resolução do contrato apresenta-se como abusiva, nos termos do art. 334º do Código Civil, tornando ilícita a resolução.
IV Não houve qualquer facto que ficasse demonstrado, que constituísse grave lesão para a trabalhadora, de forma a consubstanciar uma grave violação pelo empregador das obrigações contratuais (arts. 351º/3 por remissão do art. 394º/4) e tornasse imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
V A culpa da Recorrente não se verificou em todo este processo, nem a sentença a densifica, como deveria, em factos conducentes a esse desiderato.
É a própria sentença que reconhece que:
“… a ré é uma empresa de cariz familiar, que à data contava com cerca de 9/10 trabalhadores, bem assim que tinha dificuldades de tesouraria, dependendo dos pagamentos que eram efectuados pelos clientes, que pagavam com atrasos, e que sempre satisfez os pedidos das trabalhadoras para pagar os vencimentos…” (pág. 12 da sentença).
VI A sentença fez uma incorreta interpretação do artº 394, nº 4 do Código do Trabalho
Termos em que,
Julgando procedente a presente Apelação, absolvendo a Ré do pedido, farão V. Exas. a costumada justiça”

2.1. Contra-alegou a Autora, concluindo do modo seguinte:
“1. A recorrente deve nas conclusões da sua alegação indicar os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles pontos concretos de facto (respostas alternativas).
2. A recorrente no presente recurso não indica os concretos pontos de facto que considera mal julgados e não indica / invoca matéria que deva ser dada como provada, propondo a respetiva redação.
3. A recorrente não cumpriu com o ónus da impugnação previsto no mencionado artigo 640 do CPC e, como tal, o recurso deve ser rejeitado.
Se assim não se entender:
4. As declarações de parte da recorrida do minuto 25.10 ao minuto 26.05 da gravação e do minuto 26.50 ao minuto 26.58 da gravação, e que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, infirmam o que a recorrente pretende alcançar com as transcrições efetuadas (35.00 minutos a 35.14 minutos da gravação; 35.51 minutos a 35.59 minutos da gravação; 43,55 minutos a 44.10 minutos da gravação e de 44,32 minutos a 44,55 minutos da gravação) e que aqui também se dão por integralmente reproduzidas.
5. No caso em apreço a falta de pagamento pontual da retribuição confere ao trabalhador a faculdade de fazer cessar / resolver o contrato de trabalho com justa causa e existe falta culposa do pagamento pontual da retribuição e dos subsídios por parte da recorrente (factos provados dos pontos 1.1.10 a 1.1.20 da sentença a quo, factos esses que aqui se dão por inteiramente reproduzidos).
6. A recorrida provou a culpa da recorrente face à presunção estatuída no nº 1 do artigo 799 do CC e que não foi ilidida pela recorrente.
7. A justa causa deve ser interpretada de modo menos rigoroso comparativamente à cessação de contrato de trabalho por iniciativa do empregador e despedimento com fundamento culposo do trabalhador.
8. A justa causa deve ser grave e tornar inexigível para o trabalhador a manutenção do seu contrato de trabalho, o que aconteceu no caso em apreço.
9. A retribuição ou salário é o principal, senão o único meio de subsistência para o trabalhador e para o seu agregado familiar e está consagrado constitucionalmente no artigo 59, nº 1 da CRP, bem como no artigo 23, nº 3 da Declaração dos Direitos do Homem.
10. O salário é essencial para a organização das necessidades mais básicas do trabalhador e a falta culposa e consecutiva do seu pagamento pontual é considerada grave e apta a tornar imediatamente impossível a continuação do vínculo laboral.
11. No caso em apreço, o atraso crónico e sucessivo no pagamento das remunerações e subsídios por parte da recorrente, pelo menos entre junho de 2017 e abril de 2019, causaram à recorrida constrangimentos na gestão da sua vida familiar e provocaram dificuldades e problemas económicos.
12. O abuso de direito invocado pela recorrente não colhe uma vez que os factos dados como provados na sentença, e que não mereceram impugnação por parte da recorrente, conduzem à licitude da resolução do contrato de trabalho e, como tal, a uma correta aplicação do artigo 394 do CT.
Mantendo a sentença a quo proferida Vª Exªs FARÃO JUSTIÇA!”

2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

3. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso.
*
Respeitadas as formalidades legais, cumpre decidir:

II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do CPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87º, n.º 1, do CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) matéria de facto (1.1) recurso sobre a matéria de facto; (1.2) intervenção oficiosa; (2) Dizendo de direito / da resolução do contrato com invocação de justa causa / demais decidido.
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III – Fundamentação
A) De facto
O Tribunal recorrido fez constar da sentença, como “factos provados”, o seguinte:
1.1.1 A ré C..., Lda é dona e legitima possuidora de um estabelecimento de padaria, pastelaria, doçaria, snack- bar e refeições rápidas, denominado “...”, instalado e a funcionar no rés do chão do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Estarreja.
1.1.2. Em 31 de Julho de 2008 foi celebrado entre a ré e a sociedade J... Unipessoal, Lda., um contrato de cessão de exploração do supra referido estabelecimento, pelo prazo de cinco anos, cujo inicio se verificou em 1 de Agosto de 2008, de que a cópia se encontra a folhas 31 verso e 32 e o teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
1.1.3. Em 18.01.2010, a sociedade J... Unipessoal, Lda celebrou com a autora um contrato de trabalho a termo certo, cuja cópia se encontra a folhas 6 verso a 7 verso, de que o teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que foi sucessivamente renovado.
1.1.4. A autora trabalhou sob as ordens e direcção da sociedade J... Unipessoal, Lda entre 18.01.2010 e 31.05.2010.
1.1.5.A partir de Junho de 2010, o estabelecimento passou a ser explorado pela ré.
1.1.6 Desde então a autora passou a trabalhar sob as ordens de direcção desta, nos mesmos termos em que havia sido acordado no contrato referido em 1.1.3..
1.1.7. Na sequência do contrato referido em 1.1.3., a autora passou a exercer as funções de empregada de balcão no estabelecimento comercial acima referido, mediante a remuneração correspondente ao valor do salário mínimo nacional, sendo em 2019 no valor de €600,00.
1.1.8. A autora trabalhava das 8h e 30m às 14h numa semana, e na semana seguinte das 14h às 20h 30m, de segunda a sábado.
1.1.9 Não tinha subsidio de alimentação, pois tomava as refeições no estabelecimento referido em 1.1.1.
1.1.10 De acordo com a cláusula 7ª do contrato referido em 1.1.3, a retribuição deveria ser liquidada no último dia de cada mês.
1.1.11 A partir de 2017 a ré começou a atrasar-se no pagamento da retribuição.
1.1.12. Desde pelo menos 16.06,2017 e até abril de 2019, os vencimentos foram pagos pela ré à autora quase sempre depois do dia 10 do mês seguinte, e em alguns meses para lá do dia 20.
1.1.13. Durante esse período, os subsídios de férias foram pagos pela ré à autora depois do gozo das férias, e os de Natal depois desta época festiva.
1.1.14. O vencimento do mês de Janeiro de 2019 foi pago pela ré à autora em 15.02.2019.
1.1.15. O subsídio de Natal de 2018 foi pago pela ré à autora, em 05.03.2019.
1.1.16. No ano de 2019, a autora gozou férias de 9.03 a 16.03, sem que estas lhe tivessem sido pagas.
1.1.17. Em 21.03.2019, a ré pagou à autora o vencimento do mês de Fevereiro de 2019.
1.1.18. Em 16.04.2019, a ré pagou à autora o vencimento do mês de Março de 2019.
1.1.19. Estes atrasos no pagamento do vencimento da autora, repercutiam-se no pagamento das despesas do seu agregado familiar, que àquela tinha com a alimentação, vestuário, luz, gás e na educação do seu filho, provocando grandes constrangimentos na gestão da sua vida familiar.
1.1.20. A autora sentia dificuldades económicas.
1.1.21. Mediante carta registada, com aviso de recepção, com data de 26 de abril de 2019 e recebida a 2 de Maio de 2019, a autora comunicou à ré, a resolução/cessação com justa causa do contrato de trabalho, alegando, entre outras,” falta culposa do pagamento pontual do valor total das retribuições vencidas, isto é, não pagamento do subsidio de férias gozadas no período de 9.03.2019 a 16.03.2019; falta culposa do pagamento pontual do valor das retribuições, dos últimos 3 meses, isto é, o pagamento é feito com atraso, nomeadamente ao dia 16 dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019; violação culposa de garantias legais e convencionais do trabalhador: a) omissão de formação obrigatória, b) omissão na progressão da categoria profissional”, com o teor de folhas 17 verso, que se dá aqui por integralmente reproduzido.
1.1.22. Na sequência da carta enviada pela autora, a ré, através da sua sócia-gerente, emitiu a carta datada de 06 de Maio de 2019, com o conteúdo de folhas 18 verso, que se dá aqui por integralmente reproduzido.
1.1.23. Nessa ocasião, a autora tinha direito ao pagamento da quantia de €2.163,63, a título de créditos salariais, conforme recibo de remunerações de folhas 19, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
1.1.24. A ré pagou à autora apenas a quantia de €237,69, por não reconhecer a existência de justa causa e ter deduzido ao valor em divida o valor da indemnização correspondente ao pré-aviso em falta.
1.1.25. A autora não tinha formação na área da profissão que exercia, desde há 5 anos.
1.1.26. A autora não teve qualquer progressão na carreira, ao longo dos anos que trabalhou para a ré.
1.1.27. A ré é uma empresa de cariz familiar e à data contava com cerca de 9/10 trabalhadores.
1.1.28. A ré tinha dificuldades de tesouraria, dependendo dos pagamentos que eram efectuados pelos clientes, que pagavam com atrasos.
1.1.29. A ré sempre satisfez os pedidos das trabalhadoras para pagar os vencimentos.”
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Fez-se ainda constar:
- “Inexistem factos não provados”.
- “O demais alegado na petição inicial e na contestação e que não consta dos Factos Provados é conclusivo e/ou consubstancia considerações de direito e/ou irrelevantes para a decisão da causa.”
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B) Discussão
1. Matéria de facto
1.1. Recurso sobre a matéria de facto
1.1.1. Critérios de admissibilidade
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, nomeadamente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente, o qual, porém, nesses casos, deve observar os ónus de impugnação previstos no artigo 640.º, do CPC, em que se dispõe:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Nas palavras de Abrantes Geraldes, “(…) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”[1]. Contudo, como também sublinha o mesmo autor, “(…) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”[2].
Tendo por base os supra citados dispositivos legais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[3] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes, da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[4]. Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”.
Discorrendo sobre a matéria, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2016[5]: “(…) Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. (…)”. Observa-se também no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de julho de 2016[6] o seguinte: “(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).”[7]. Do mesmo modo, agora no Acórdão do mesmo Tribunal de 14 de outubro de 2020[8], que, “pretendendo o recorrente impugnar a decisão do tribunal de 1ª instância, proferida sobre a matéria de facto, perante um tribunal de 2.ª instância, que não intermediou a produção da prova, é razoável que se exija ao recorrente que identifique os pontos de facto que impugna por referência aos articulados, aos temas da prova ou aos factos julgados não provados na sentença, sob pena de não se conhecer do recurso nessa parte”, fundando-se esta exigência “nos princípios do dispositivo e da cooperação, tendo por objetivo a justa composição do litígio”. Afirmando-se, ainda, neste caso no Acórdão de 5 de setembro de 2018[9], que “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” – afirmando-se que “não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna” –, não deixaremos de esclarecer, por último, que se admite que tal indicação possa ser realizada conjuntamente para mais do que um facto, caso se trate de factos diretamente relacionados.

1.1.2. Aplicação dos critérios antes enunciados
Tendo em consideração o regime antes indicado, a que daremos agora aplicação, constata-se que a Recorrente, nas conclusões, apenas fez constar o seguinte:
«I A autora, nas suas declarações de parte, diz o seguinte:
“Há três anos a esta parte, os atrasos no pagamento eram entre 8 e no máximo, 20 dias de atraso” – 11,55 min. a 12,10 min e 12,54 min. a 13,04 min. da gravação
“Enquanto eu tinha o meu pai, o meu saldo bancário estava sempre alto, porque eu vivia com a reforma do meu pai. Após a morte do meu pai, eu só vivia com o meu ordenado mínimo e foi aí que começou a descambar” – 35,00 min. a 35,14 min. da gravação
“Eu fui para outro lado trabalhar e fiquei a ganhar mais” – 43,55 min. a 44,10 min. Da gravação
“Eu não ia pôr uma carta de despedimento se eu não podia dar-me ao luxo de ir para casa tendo um filho ainda para criar, não me dava ao luxo de ficar sem trabalho e ficar sem ganhar nada! Tive de arranjar um trabalho para poder pôr a carta de despedimento para poder seguir a minha vida em frente” – 44,32 min. a 44,55 min. da gravação.
II Estas declarações de parte, produzidas em audiência de julgamento demonstram inequivocamente as motivações da Recorrida:
1. Foi que a partir da morte do seu pai, que valor salarial recebido se tornou insuficiente para fazer face ás suas despesas.»
Ora, em face de tal invocação, a ser intenção da Recorrente a de dirigir o recurso à impugnação da matéria de facto, então, tal como aliás a Recorrida o invoca nas contra-alegações, torna-se evidente que não foram cumpridos os ónus de impugnação, a que antes aludimos, previstos no artigo 640.º do CPC, pois que, fazendo-se é certo referência ao que diz ter resultado das declarações de parte da Autora, localizando também as passagens no registo da gravação, no entanto, não é dirigido afinal o recurso a um qualquer ponto de facto, provado ou não provado, que se identifique, e que na ótica da Recorrente fosse inadequadamente julgado – não indicando também redação alternativa.
Em face do exposto, não se tratando de falta que possa ser suprida através de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, rejeita-se a apreciação do recurso nesta parte.
Não obstante, incluindo-se dentro dos poderes atribuídos no artigo 662.º, também, a possibilidade de intervenção oficiosa pelo Tribunal da relação, consideramos que essa intervenção se justifica no caso, como melhor explicaremos de seguida.

1.2. Intervenção oficiosa
Como o dissemos antes, consideramos que se justifica a nossa intervenção oficiosa no âmbito da matéria de facto.
Desde logo, no ponto 1.1.21 da factualidade provada, dizendo esse apenas diretamente respeito ao conteúdo da carta que no mesmo se faz expressamente referência (“teor de folhas 17 verso, que se dá aqui por integralmente reproduzido”), será então o conteúdo dessa carta, até pela relevância que assume como comunicação da resolução do contrato e ainda em face da formalidade exigida por lei, que deve constar desse ponto.
Por decorrência do exposto, oficiosamente, o referido ponto passa a ter a redação seguinte:
“1.1.21. Mediante carta registada, com aviso de recepção, com data de 26 de abril de 2019 e recebida a 2 de Maio de 2019, a autora comunicou à ré o seguinte:
“Venho pela presente, nos termos e efeitos do artº 394º, 395º e 396º do Código do Trabalho, comunicar-lhe a resolução / cessação com justa causa, com efeitos imediatos, do meu contrato de trabalho.
A minha resolução unilateral do contrato fundamenta-se na imputação que lhe faço dos seguintes factos:
i) Falta culposa do pagamento pontual do valor total das retribuições vencidas, isto é, não pagamento do subsidio de férias gozadas no período de 9.03.2019 a 16.03.2019.
ii) Falta culposa do pagamento pontual do valor das retribuições, dos últimos 3 meses, isto é, o pagamento é feito com atraso, nomeadamente ao dia 16 dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019.
iii) Violação culposa de garantias legais e convencionais do trabalhador:
a) Omissão de formação obrigatória.
b) Omissão na progressão da categoria profissional.
Fico a aguardar o envio, no prazo de 5 dias úteis, da Declaração Modelo 5044 da Segurança Sociakl e do Certificado de Trabalho, do cálculo e do pagamento de todos os meus créditos vencidos, bem como à respectiva indemnização, nos termos do nº 1 do artº 396º do Código de Trabalho.”

Por outro lado, constata-se que se inseriram, na decisão proferida sobre a matéria de facto, juízos valorativos / menções conclusivas que aquela não devem integrar, por terem relevância no âmbito da aplicação do direito no caso.
Como evidencia Anselmo de Castro[10], sendo “factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, porém, “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos)”, do que resulta “não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”. Do mesmo modo, no âmbito da Jurisprudência, designadamente dos tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, tem sido entendimento que as conclusões ou juízos valorativos, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa, apenas devem / podem extrair-se de factos materiais, devidamente concretizados, que, tendo sido alegados, tenham sido objeto da instrução e discussão da causa, sendo como base nesses que, mas já em momento posterior, assim aquando da aplicação do direito, devem depois ser formuladas tais conclusões ou juízos valorativos. Refere-se no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de julho de 2021[11], a esse respeito, citando-se Helena Cabrita[12], que “[o]s factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”.
O regime que antes se expôs tem aplicação ao uso da expressão «grandes» no ponto 1.1.19, pois que se traduz em mera adjetivação dos constrangimentos na gestão da vida familiar aí mencionados, devendo por essa razão ser expurgada – passando a constar: “1.1.19. Estes atrasos no pagamento do vencimento da autora, repercutiam-se no pagamento das despesas do seu agregado familiar, que aquela tinha com a alimentação, vestuário, luz, gás e na educação do seu filho, provocando constrangimentos na gestão da sua vida familiar”.

Como o é, ainda, aliás com maior relevância, ao conteúdo do ponto 1.1.23., pois que a questão de saber se a Autora tinha ou não direito ao pagamento da quantia nesse mencionada, envolvendo já necessariamente a apreciação e aplicação de questão de direito na presente ação, não deve, enquanto tal, ter assento na factualidade provada, do que decorre, sendo essa a materialidade que deve constar, pois que o que está em causa, como aí se diz expressamente, é o conteúdo do recibo de remunerações de folhas 19, que se refere dar-se por reproduzido. Daí que deva constar desse ponto precisamente esse conteúdo, ou seja:
1.1.23. Do recibo emitido pela Ré datado de 24/04/2019, junto a fls 19 e que aqui se dá por reproduzido, consta como “Total dos abonos” da autora o valor de €2163,63 (€600,00 de vencimento, €200,00 de “Ret.Prop.Subs.Natal”, €327,27 de “Retrib.Mês de férias”, €218,18 de “Retr.Prop.Mês Férias” e €818,18 de “Retr.Prop.Sub.Férias), como “Total dos Descontos” o valor de €1925,94 (€1200,00 “Indem. Falta Aviso Prévio”, €235,90 de “Taxa Social única”, €471,00 de “I.R.S.” e €19,04 de “Falta c/perda remun.”) e como “Líquido a receber em Euros” o montante de €237,69.

Avançando-se na análise, também com relevância determinante, constata-se que, na mesma pronúncia em sede de matéria de facto – como ainda mais tarde no âmbito da aplicação do direito –, não atendeu o Tribunal a quo ao regime que resulta expressamente do n.º 3 do artigo 398.º do Código do Trabalho – “Na acção em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do artigo 395.º” –, ou seja, que é apenas em face dos motivos invocados pelo trabalhador na comunicação de resolução do contrato com invocada justa causa que se afere a procedência daqueles motivos (principio da vinculação temática).
Pronunciando-se sobre esse regime, dispensando-se aqui maiores considerações da nossa parte, resulta do recente Acórdão desta Secção e Relação de 4 de abril de 2022[13], o seguinte (transcrição):
«(…) Dispõe o art. 395º, nº 1, do CT/2009, que “1 – O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, (…)”, norma esta idêntica ao anterior art. 442º do CT/2003.
Ou seja, a resolução, com invocação de justa causa, do contrato de trabalho pelo trabalhador, depende, em primeiro lugar, da observância dos requisitos de forma a que se reporta o mencionado preceito – forma escrita, com indicação sucinta dos factos que a justificam-, formalidade esta que, como condição da licitude da resolução com justa causa, tem natureza ad substantiam, delimitando, o seu conteúdo, a invocabilidade em juízo dos factos susceptíveis de serem apreciados para tais efeitos.
Esclareça-se que essa natureza não é extensiva à eficácia da resolução, uma vez que esta, ainda que ilícita, produz sempre os efeitos extintivos do contrato de trabalho. Mas, para efeitos de resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa, a sua exigência não tem por finalidade a mera prova da declaração, não visando efeitos meramente probatórios, antes condicionando a possibilidade do conhecimento judicial dos factos que, eventualmente, hajam sido determinantes da resolução. Tal requisito de forma, como condição da licitude da resolução, não tem, pois, natureza meramente probatória (ad probationem). Aliás, a situação é semelhante à que ocorre no despedimento promovido pelo empregador com invocação de justa causa, residindo a única diferença quanto ao grau de exigência na descrição dos factos que justificam a resolução e o despedimento.
E que assim é decorre não apenas do citado preceito, bem como do art. 364º, nº 1, do Cód. Civil, como também do art. 398º, nº 3, do CT/2009 nos termos do qual apenas são atendíveis para justificar a justa causa de resolução do contrato de trabalho os “factos constantes da comunicação referida no nº 1 do artigo 395º”.
Do referido decorre que mesmo que o trabalhador possa, eventualmente, ter fundamento para resolver o contrato de trabalho, terá de comunicar, por escrito, ao empregador, ainda que de forma sucinta, os factos que a justificam, indicação que não se basta com a mera alusão a conceitos, imputações vagas e conclusivas ou juízos de valor, que nem factos são, sequer.
Como diz Ricardo Nascimento, in Da Cessação do Contrato de Trabalho, Em especial por iniciativa do Trabalhador, Coimbra Editora, pág. 246, “Não obstante, embora a indicação dos motivos que fundamentam a resolução contratual por parte do trabalhador possa ser efectuada de forma sucinta, os mesmos têm, cum grano salis, que delimitar espacio-temporalmente os factos integradores desses motivos. Só esses factos, e não outros, podem ser invocados judicialmente, em sede de ação indemnizatória.”.
[cfr. Acórdão desta Relação de 26.03.2012, Proc. 1282/10.5TTBRG.P1, relatado pela ora relatora, in www.dgsi.pt].
Pedro Furtado Martins, in Cessação do Contrato de Trabalho, 3ª Edição, Principia, pág. 532/533 refere que:
“I. Na comunicação da resolução deve o trabalhador fazer a «indicação sucinta dos factos que a justificam”, sendo a partir dessa indicação que se afere da procedência dos motivos alegados para a resolução – artigo 398º, nº 3.
Diferentemente do que sucede com a nota de culpa, não se exige uma «descrição circunstanciada dos factos», mas apenas uma «indicação sucinta» dos mesmos.
Compreende-se a diferença. No primeiro caso, a descrição factual insere-se num procedimento de despedimento, sendo essencial para a defesa do trabalhador, já que as suas possibilidades de defesa dependem do conhecimento dos factos de que é acusado. No segundo, trata-se somente de anunciar à contraparte o fundamento de uma resolução imediata, em termos tais que permitam, se necessário, a apreciação judicial da justa causa alegada”. E, em nota de rodapé 28, cita o Acórdão do STJ de 5.11.1007 (97S105, sousa Lamas), em cujo sumário se escreveu: “Limitando-se o trabalhador a invocar, na comunicação da rescisão e quanto aos motivos da mesma, meras ilações e consequências de factos que não especifica, utilizando termos opinativos e conclusivos, impossibilitando a avaliação da gravidade do comportamento do empregador não podendo, por isso, aferir-se da verificação da impossibilidade imediata da subsistência da relação de trabalho".
Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho Parte II, Situações Laborais Individuais, 3ª edição, página 1018, refere que “(…) a descrição clara dos factos justificativos da resolução é importante, uma vez que, em caso de impugnação judicial da resolução, são estes factos os únicos atendíveis pelo tribunal, nos termos do art.398º, nº3”.
João Leal Amado, Contrato de Trabalho, Noções básicas, 2016, Almedina, pág. 384, refere que ao procedimento para resolução do contrato “Não é, pois, indispensável proceder a uma descrição circunstanciada dos factos, bastando uma indicação sucinta dos mesmos, de modo a permitir, se necessário, a apreciação judicial da justa causa invocada pelo trabalhador”.
Para além da jurisprudência indicada na decisão recorrida, cfr. designadamente [todos in www.dgsi.pt]:
- Acórdão desta Relação de 15.02.2012, Proc. 1020/10.2TTPRT.P1 [Maria José Costa Pinto]:
“A declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos trinta dias subsequentes ao conhecimento desses factos (artigo 395.º, n.º 1 do Código do Trabalho) e, nos termos do n.º 3 do art.º 398.º, na acção em que for apreciada a ilicitude da resolução apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do art.º 395.º.
Ou seja, dessa indicação depende a atendibilidade dos factos invocados pelo trabalhador para justificar a cessação imediata do contrato[1].
Contudo, à semelhança do que era entendido pela jurisprudência no âmbito da LCCT aprovada pelo Decreto-Lei n.° 64-A/89 de 27 de Fevereiro, consideramos que a regra de que na acção judicial destinada a apreciar a ocorrência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho apenas são atendíveis os factos indicados na comunicação escrita feita pelo trabalhador tem de ser conjugada com a estipulação do preceito que apenas exige, nessa comunicação escrita, a "indicação sucinta dos factos que a justificam" (actualmente o n.º 1 do art. 395.º)[2].
Daqui decorre que o trabalhador não pode vir invocar na acção judicial fundamentos fácticos diferentes dos mencionados na carta de resolução, é certo, mas que também não está impedido de alegar e provar a ocorrência de factos circunstanciais que, tendo conexão com os fundamentos sucintamente invocados na carta, se mostrem pertinentes para o tribunal avaliar da gravidade destes e da sua natureza inviabilizadora da manutenção da relação laboral.”.
- Acórdão da Relação do Porto de 20.11.2017, Proc. 10948/14.0T8PRT.P1 [Nelson Fernandes], de cujo sumário consta que: “V. Invocações vagas não permitem ter por devidamente cumprida a exigência que resulta do nº 1 do artigo 395º, do CT/2009, de indicação, ainda que sucinta, dos factos que justificam a justa causa invocada para a resolução do contrato, sendo que é essa indicação que delimita, depois, a invocabildiade em juízo dos factos susceptíveis de serem apreciados para efeitos de apreciação da justa causa”.
- Acórdão da Relação do Porto de 07.12.2018, Proc. 1953/17.5T8VFR.P1 [Jerónimo Freitas], no qual se refere que: “(…). Justamente porque na apreciação judicial da licitude da resolução apenas são atendíveis os factos que foram invocados para a justificar, mas também porque essa comunicação tem que permitir que para o empregador sejam perceptíveis os fundamentos invocados na resolução do contrato, a expressão “indicação sucinta dos factos”, embora possa sugerir outra leitura, deve ser entendida no sentido de que o trabalhador não está dispensado de concretizar, com o mínimo de precisão, os factos que estão na base da sua decisão”.
- Acórdão do STJ de 31.10.2018, Proc. 16066/16.9T8PRT.P1.S1 [Chambel Mourisco], de cujo sumário consta que: “I. O art.º 395.º, nº1, do Código do Trabalho exige que a comunicação do trabalhador ao empregador com vista à resolução do contrato de trabalho deve conter a indicação sucinta dos factos que a justificam. II. Cumpre a referida disposição legal a comunicação enviada pelo trabalhador ao empregador, na qual fez consignar que pretende a resolução imediata, com justa causa, do contrato de trabalho, por motivo de violação do direito de continuar a exercer efetivamente a atividade para a qual foi contratado, na medida em que indica de forma sucinta o fundamento da resolução, com recurso a uma expressão de base factual.”
Ou seja, de tudo quanto ficou referido retira-se que, nos termos dos arts. 395º, nº 1, e 398º, nº 3, do CT/2009, o trabalhador, na comunicação da resolução do contrato, deve proceder à indicação sucinta dos factos que a justificam, sendo que, na acção judicial em que for apreciada a licitude dessa resolução apenas são atendíveis, para a justificar, os factos constantes dessa comunicação; ainda que, a nosso ver, não seja exigível um grau de circunstanciação fáctica tão rigoroso como o que é exigível na nota de culpa para o despedimento com invocação de justa causa, é, ainda assim, exigível um grau mínimo de indicação fáctica que permita ajuizar da concreta factualidade que consubstancia a invocada justa causa de resolução, sendo certo que apenas os factos (essenciais) constantes dessa comunicação poderão relevar para a sua apreciação; tal exigência não é compatível com meras afirmações de direito, conclusivas, genéricas ou opinativas.
É ainda de referir que se nos afigura que o prazo de 30 dias previsto no nº 1 do citado art. 395º consubstancia um prazo de caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, pelo que, nessa medida e uma vez que impeditiva de tal direito, integra matéria de excepção, competindo ao empregador a alegação e prova dos factos integradores dessa excepção – art. 342º, nº 2, do Cód. Civil. Aliás, à semelhança do que ocorre com o prazo (este de 60 dias), também de caducidade, do exercício, pelo empregador, do procedimento disciplinar a que se reporta o art. 329º, nº 2, do CT/2009. Neste caso (procedimento disciplinar), é ao trabalhador, porque tratando-se de matéria de excepção (impeditiva do direito do empregador ao exercício da acção disciplinar), que compete a alegação e prova dos factos integradores dessa caducidade. Da mesma maneira, embora ao contrário, estando em causa a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, caberá ao empregador o ónus de alegação e prova da caducidade desse direito.
Tal não significa, contudo, que não deva o trabalhador, na comunicação da resolução do contrato de trabalho e em cumprimento do art. 395º, nº 1, localizar temporalmente os factos que invoca para justificar a resolução, sendo certo que tal se mostra também necessário, não apenas para permitir ao empregador apreender e/ou compreender a razão da resolução, mas também para permitir ao tribunal ajuizar da justa causa invocada, designadamente da impossibilidade / inexigibilidade da manutenção da relação laboral. (…)»
Aplicando ao caso o regime antes mencionado – assim nomeadamente de que, nos termos dos artigos 395.º, n.º 1, e 398.º, n.º 3, do CT/2009, o trabalhador, na comunicação da resolução do contrato, deve proceder à indicação sucinta dos factos que a justificam, como ainda, também, que na ação judicial em que for apreciada a licitude dessa resolução apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes dessa comunicação –, constata-se que no caso, como aliás a Recorrente o refere no corpo das alegações, da carta de resolução do contrato enviada pela Autora, no que se refere a invocada falta do pagamento de retribuições, apenas consta o “não pagamento do subsídio de férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019” e, “dos últimos três meses, isto é, o pagamento com atraso, nomeadamente ao dia 16 dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019”, dizendo-se de seguida que “a falta pontual dos pagamentos supra referidos determinam que eu tenha dificuldades económicas na minha vida pessoal e situação familiar”, razão pela qual, atenta a aplicação do antes mencionado principio da vinculação temática, não podem ser atendidos na presente ação, em que está em causa a apreciação da fundamentação da resolução do contrato pela Autora com justa causa, quaisquer outros factos que a mesma tenha alegado na presente ação mas que extravasem aqueles motivos que invocou na carta de resolução[14], do que resulta, assim o entendemos, que contraria o analisado regime legal a inclusão e posterior atendimento pelo Tribunal a quo na sua decisão, por referência ao quadro factual considerado provado, o seguinte:
- tudo o que consta do ponto 1.1.11 (“A partir de 2017 a ré começou a atrasar-se no pagamento da retribuição.”);
- quanto ao ponto 1.1.12, quer a sua parte inicial, quando se fez constar “Desde pelo menos 16.06.2017…”, mas também, ainda, quanto à referência genérica aos vencimentos, quando se refere terem sido pagos “quase sempre depois do dia 10 do mês seguinte, e em alguns meses para lá do dia 20”, pois que, apenas podendo ser considerados, por serem os únicos invocados na carta de resolução, os vencimentos de janeiro, fevereiro e março de 2019”, no entanto é desnecessária, quanto a esses, a inclusão no mencionado ponto, já que a factualidade referente a esses consta, respetivamente, dos pontos 1.1.14. (“O vencimento do mês de Janeiro de 2019 foi pago pela ré à autora em 15.02.2019”), 1.1.17. (“Em 21.03.2019, a ré pagou à autora o vencimento do mês de Fevereiro de 2019”) e 1.1.18. (“Em 16.04.2019, a ré pagou à autora o vencimento do mês de Março de 2019”) – a que acresce, em face dessa materialidade, que a menção constante do ponto 1.1.12 “quase sempre depois do dia 10 do mês seguinte, e em alguns meses para lá do dia 20”, se traduz em mero juízo ou conclusão a retirar daquela materialidade;
- sobre o ponto 1.1.13 (“Durante esse período, os subsídios de férias foram pagos pela ré à autora depois do gozo das férias, e os de Natal depois desta época festiva”), pela mesma razão, apenas se fazendo referência na carta de resolução ao “não pagamento do subsídio de férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019”, tudo o mais, ou seja quanto aos demais subsídios de férias e na totalidade quanto a subsídios de Natal, não pode ser atendido na presente ação. Daí que a redação deste ponto apenas possa comportar o subsídio de férias referente às férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019;
- todo o conteúdo do ponto 1.1.15. (“O subsídio de Natal de 2018 foi pago pela ré à autora, em 05.03.2019”), pois que não invocado na carta de resolução.
Daí que, oficiosamente, se deva considerar não escrito, por contrariar o regime legal antes mencionado de não poder ser atendido na presente ação, o conteúdo dos pontos 1.1.12., 1.1.13. e 1.1.15. e, quanto ao ponto 1.1.13., esse só poderá ser considerado com a redação seguinte:
“1.1.13. “O subsídio de férias referente às férias a que se alude no ponto 1.1.19. foi pago pela ré à autora depois do gozo dessas férias.”

2.3. Pelas razões que anteriormente referimos, o elenco factual a atender para dizermos o Direito do caso é aquele que foi considerado em 1.ª instância, mas com as alterações a que procedemos anteriormente.

2. O Direito do caso
2.1. Questão da apreciação da justa causa da resolução do contrato pela Autora
Invoca a Recorrente, em face das conclusões, os seguintes argumentos:
- A sentença fez uma incorreta interpretação do artigo 394.º, n.º 4, do CT, pois que, diz, não foram os atrasos no pagamento da retribuição que espoletaram esta situação – o pagamento dos salários em meados do mês seguinte, apesar de inadequado, consolidou-se nos hábitos daquela pequena empresa, tornando-se expectável para os seus trabalhadores o seu recebimento naquelas datas –, sendo que a carta de resolução contratual com justa causa só foi enviada quando a oportunidade surgiu, ou seja, depois de a Autora ter arranjado um novo trabalho onde ganharia um salário mais alto, ficando claro que a carta de resolução não revela quaisquer valores em dívida com atrasos superiores a 60 dias, sendo que, não se verificando ainda culpa da sua parte (nem a sentença a densifica, como deveria, em factos conducentes a esse desiderato), também não há qualquer facto que ficasse demonstrado que constituísse grave lesão para a trabalhadora, de forma a consubstanciar uma grave violação pelo empregador das obrigações contratuais (arts. 351º/3 por remissão do art. 394º/4) e tornasse imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
- Subsistindo o regime de pagamento de salários entre o dia 8 e o dia 20 do mês subsequente desde, pelo menos, há três anos, sem qualquer oposição da Recorrida, antes, com o seu assentimento, a invocação desses atrasos para fundamentar a justa causa de resolução do contrato apresenta-se como abusiva, nos termos do art. 334º do Código Civil, tornando ilícita a resolução.
Defendendo a Apelada a adequação do julgado, no que é acompanhada pelo Ministério Público junto desta Relação, de seguida passaremos ao conhecimento das delimitadas questões.
Para o efeito, constata-se que da sentença recorrida fez-se constar, neste âmbito, depois de um enquadramento teórico sobre a questão, na sua aplicação ao caso, designadamente o seguinte:
“(…) Regressando ao caso dos autos, a autora, ao resolver o contrato, indica como fundamentos da resolução, o não pagamento do subsidio de férias gozadas no período de 9.03.2019 a 16.03.2019 e o atraso no pagamento das retribuições, nomeadamente ao dia 16 dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019.
A falta de pagamento pontual da retribuição, onde se inclui o atraso de pagamento, constitui motivo de resolução contratual por parte do trabalhador. Todavia, apenas a falta culposa dá direito ao pagamento de uma indemnização, nos termos do artigo 394º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e n.º 3, alínea c) do CT. Com efeito, a falta de pagamento ou a falta de pagamento pontual não culposo, embora possa constituir justa causa de resolução (objectiva), não confere direito à indemnização.
No caso, ficou demonstrado que a partir de 2017 a ré começou a atrasar-se no pagamento da retribuição, sendo que desde pelo menos 16.06,2017 e até abril de 2019, os vencimentos foram pagos por aquela à autora quase sempre depois do dia 10 do mês seguinte, e em alguns meses para lá do dia 20.
Mais se provou que durante esse período, os subsídios de férias foram pagos pela ré à autora depois do gozo das férias, e os de Natal depois desta época festiva; que o vencimento do mês de Janeiro de 2019 foi pago pela ré à autora em 15.02.2019; o subsídio de Natal de 2018 foi pago em 05.03.2019; no ano de 2019, a autora gozou férias de 9.03 a 16.03, sem que estas lhe tivessem sido pagas, que em 21.03.2019, a ré pagou à autora o vencimento do mês de Fevereiro de 2019 e que em 16.04.2019, foi pago o vencimento do mês de Março de 2019.
Da factualidade acima exposta, decorre que a partir de 2017, a ré nunca pagou o salário à autora no dia constante do contrato de trabalho, último dia do mês.
Na sua maioria os atrasos no pagamento não ultrapassam os 60 dias, com excepção do subsidio de Natal de 2018 (que foi pago já em Março de 2019).
Nesta última parte, beneficia a autora da presunção inilidível de culpa no cumprimento atempado da respectiva obrigação de pagamento, contida no artigo 394º, n.º4 do CT ( já acima referida).
No que respeita aos demais atrasos e, embora a autora só mencione os meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019, o certo é que tal enumeração é meramente exemplificativa, e, como tal, tais atrasos que duram desde meados de Junho de 2017 ( cerca de 1 ano e 9 meses) têm de se considerar culposos, até porque a ré não logrou elidir a presunção de culpa resultante do disposto no artigo 799º do Código Civil.
Perante os factos provados, não podemos deixar de considerar que os incumprimentos em causa assumem uma gravidade que, no nosso entender, tornou inexigível a subsistência da relação laboral. Estamos perante um incumprimento reiterado, que perdurou durante 1 ano e 9 meses, traduzido no atraso crónico de pagamento da retribuição e dos subsídios, sendo que o do Natal de 2018 foi pago para lá dos 60 dias.
Considerando a natureza alimentícia do salário, essencial para a organização das necessidades mais básicas do trabalhador, o atraso reiterado do pagamento do salário durante o período referido é excessivo e não pode deixar de considerar-se grave e apto a tornar imediatamente impossível a continuação do vínculo laboral. Os factos revelam uma situação crónica de atraso no pagamento das remunerações. Um trabalhador não pode estar sujeito de forma persistente ao não recebimento pontual das remunerações de trabalho. Aliás no caso dos autos, provou-se que tais atrasos no pagamento do vencimento da autora, repercutiam-se no pagamento das despesas do seu agregado familiar, que àquela tinha com a alimentação, vestuário, luz, gás e na educação do seu filho, provocando grandes constrangimentos na gestão da sua vida familiar e que esta sentia, por isso, dificuldades económicas.
É certo que se provou, de igual modo, que a ré é uma empresa de cariz familiar, que à data contava com cerca de 9/10 trabalhadores, bem assim que tinha dificuldades de tesouraria, dependendo dos pagamentos que eram efectuados pelos clientes, que pagavam com atrasos, e que sempre satisfez os pedidos das trabalhadoras para pagar os vencimentos. Todavia, as dificuldades de tesouraria não são motivo para atrasos tão persistentes e duradouros. Poderiam justificar atrasos pontuais, mas já não atrasos que perduram há mais de 1 ano e que condicionam a vida e a subsistência dos trabalhadores, que não conseguem fazer face ao pagamento das suas despesas. Importa ainda aqui salientar que não havia uma data precisa para pagar os vencimentos e subsídios, o que causa uma indefinição na gestão da vida dos trabalhadores, na medida em que estes não sabem com o que podem contar. De igual modo, não é suposto o trabalhador ter de pedir ao empregador para cumprir com a sua obrigação. Na verdade, se havia esses constrangimentos de tesouraria, era exigível que o empregador chegasse a um acordo com os trabalhadores e alterasse a data da liquidação dos vencimentos, estabelecendo uma data precisa para o seu cumprimento, introduzindo, assim, segurança e definição na vida dos trabalhadores.
Como assim, a continuação da relação de trabalho tornou-se inexigível para a autora, pelo que tinha esta fundamento para resolver com justa causa o contrato de trabalho.
Fica, assim, prejudicada a apreciação do outro fundamento de resolução invocado pela autora.
Conclui-se, assim, pela verificação de todos os requisitos de que a lei faz depender a existência de justa causa na resolução do contrato de trabalho promovida pela autora.”
Apreciando, diremos o seguinte:

2.1.1. Enquadramento prévio da questão
Resulta do artigo 394.º, do CT/2009 (redação vigente à data da resolução):
“1 - Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
2 - Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a) Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
b) Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador, designadamente a prática de assédio praticada pela entidade empregadora ou por outros trabalhadores;
c) Aplicação de sanção abusiva;
d) Falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho;
e) Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
f) Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, incluindo a prática de assédio denunciada ao serviço com competência inspetiva na área laboral, praticada pelo empregador ou seu representante.
3 - Constituem ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador:
a) Necessidade de cumprimento de obrigação legal incompatível com a continuação do contrato;
b) Alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício lícito de poderes do empregador;
c) Falta não culposa de pagamento pontual da retribuição.
d) Transmissão para o adquirente da posição do empregador no respetivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa, nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo 285.º, com o fundamento previsto no n.º 1 do artigo 286.º-A.
4 - A justa causa é apreciada nos termos do n.º 3 do artigo 351.º, com as necessárias adaptações.
5 - Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.”
Assim, em face do que resulta do n.º 1 do citado normativo, o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos”, sendo que, como fator determinante, em face do regime legal, importa ter presente que é “a justa causa apreciada nos termos do n.º 3, do art.º 351.º, com as necessárias adaptações” (n.º 4 do art.º 394.º), bem como que é sobre o trabalhador que impende o ónus de alegação e prova da existência de justa causa – ou seja, que alegue e prove os factos constitutivos do direito a fazer cessar imediatamente o contrato de trabalho (art.º 342.º n.º 1, do Código Civil).
Importa, porém, assinalar, com relevância para o caso que decidimos – pois que a esse regime, com salvaguarda do devido respeito, se não atendeu na nossa ótica adequadamente na sentença recorrida, nos termos que já assinalámos antes aquando da nossa intervenção em sede de matéria de facto –, que é apenas em face dos motivos invocados pelo trabalhador, na comunicação de resolução do contrato com invocada justa causa, que se afere a procedência daqueles motivos, pois que, como também já o assinalámos, “apenas são atendíveis para a justificar” os factos que dela constarem – principio da vinculação temática (n.º 3, do artigo 398.º).
Fazemos de novo esta observação pois que, constando da carta de resolução do contrato enviada pela Autora, no que se refere a invocada falta do pagamento de retribuições, apenas a referência ao “não pagamento do subsídio de férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019” e sobre os salários, os “dos últimos três meses, isto é, o pagamento com atraso, nomeadamente ao dia 16 dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019”, dizendo-se de seguida que “a falta pontual dos pagamentos supra referidos determinam que eu tenha dificuldades económicas na minha vida pessoal e situação familiar”, então, atento o regime que decorre do principio da vinculação temática, como já o dissemos antes em sede da nossa intervenção oficiosa na matéria de facto, não podem ser atendidos na presente ação quaisquer outros factos que a mesma tenha alegado mas que extravasem aqueles que invocou na carta de resolução, sendo que, no caso, não se conseguindo descortinar, aliás, em que se baseou efetivamente o Tribunal a quo para afirmar na sentença que “no que respeita aos demais atrasos e, embora a autora só mencione os meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019, o certo é que tal enumeração é meramente exemplificativa” (e não se percebe pois que, de novo com salvaguarda do respeito que seja devido, não tendo tal afirmação sido depois sequer justificada, assim em face do que pudesse resultar, mesmo por apelo a uma qualquer interpretação, do que conste da carta de resolução, não vislumbramos que o teor da carta permita um tal sentido interpretativo), por entendermos que contraria de modo claro o referido regime legal quer a alegação como a posterior inclusão na factualidade provada e, ainda, depois, o seu posterior atendimento pelo Tribunal a quo na sua decisão de direito, o que constava dos pontos 1.1.11, 1.1.12. e 1.1.15 da factualidade provada – e quanto ao ponto 1.1.13., apenas com o que consta da redação que antes introduzimos (“O subsídio de férias referente às férias a que se alude no ponto 1.1.19. foi pago pela ré à autora depois do gozo dessas férias.”).

2.1.2. O Direito do caso
Como antes o dissemos, para a apreciação na apresente ação da justa causa invocada pela Autora para a resolução do contrato, quanto a valores salariais, apenas se podendo considerar, de acordo com a factualidade provada, à circunstância de o pagamento do subsídio de férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019 ter sido feito após o gozo dessas férias e do pagamento das remunerações dos meses de janeiro, fevereiro e março de 2019, que deveria ser feito até ao final do respetivo mês, o ter sido, respetivamente, em 15.02.2019, 21.03.2019 e 16.04.2019, ou seja, com atraso (pontos 1.1.13, 1.1.14., 1.1.17. e 1.1.18, da factualidade provada), então, mesmo não se considerando a questão da exigência de culpa nesses incumprimentos, não consideramos, diversamente do que se entendeu na sentença, que tais incumprimentos sejam suficientes, nas concretas circunstâncias provadas no caso, para tornar imediatamente impossível a subsistência da relação laboral, até porque, sendo verdade que se provou que a Autora sentia dificuldades económicas e que os referidos atrasos no pagamento do vencimento se repercutiam no pagamento das despesas do seu agregado familiar, provocando constrangimentos na gestão da sua vida familiar (pontos 1.1.19. e 1.1.20.), no entanto, como se provou também, sendo a Ré uma empresa de cariz familiar que à data contava com cerca de 9/10 trabalhadores, que tinha dificuldades de tesouraria, dependendo dos pagamentos que eram efetuados pelos clientes, que pagavam com atrasos, provando-se, ainda, que sempre satisfez os pedidos das trabalhadoras para pagar os vencimentos (pontos 1.1.27. a 1.1.29.).
Sendo assim, restando-nos verificar quanto aos demais motivos invocados na carta de resolução – análise que a sentença considerou desnecessária pelo facto de aí se ter entendido que ocorria justa causa apenas em face do primeiro dos motivos invocados para a resolução, mas que, até em face do que considerámos antes, agora claramente se justifica –, consideramos que, nada mais resultando da factualidade provada que não o que consta dos seus pontos 1.1.25. e 1.1.26., ou seja, que a Autora não tinha formação na área da profissão que exercia desde há 5 anos e que não teve qualquer progressão na carreira ao longo dos anos que trabalhou para a Ré, tais factos, tanto mais que nada mais se alegou sequer nesse âmbito (por exemplo, desde logo para aferir da efetiva relevância, factos que permitissem perceber qual o fundamento e também, sendo esse o caso, qual a progressão em falta e quando é que deveria ter ocorrido), apesar de poderem traduzir-se em incumprimento por parte da Ré, como ainda, para o efeito de se proceder a uma análise global do caso, como é imposto, na consideração ainda dos incumprimentos que antes afirmámos – assim relacionados com o facto de o pagamento do subsídio de férias gozadas no período de 09.03.2019 a 16.03.2019 apenas ter sido feito após o gozo dessas férias e do pagamento das remunerações dos meses de janeiro, fevereiro e março de 2019 terem ocorrido com atrasos situados entre os 15 e os 21 dias –, não são ainda assim suficientes, mais uma vez nas concretas circunstâncias provadas no caso, para tornarem imediatamente impossível a subsistência da relação laboral.
Como escrevemos no Acórdão desta Secção e Relação de 27 de junho de 2019, citando já então o nosso acórdão de 20 de novembro de 2017[15], por assumir também relevância determinante para a solução do caso agora apreciado, “o argumento decisivo, (...) é o de que, contrariamente do que seria pressuposto, os factos invocados na carta de resolução do contrato que obtiveram sustentação factual nos termos anteriormente indicados, não são bastantes para termos como verificada a característica essencial do conceito de justa causa, assim a demonstração de que tais comportamento da entidade patronal, no caso a Ré / recorrente, que lhe poderiam ser imputáveis a título de culpa, pela sua gravidade e consequências, tornassem inexigível a manutenção do vínculo laboral. Dito de outro modo, não consideramos que, no caso, dos comportamentos da Ré que se lograram demonstrar tenham resultado efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que fosse inexigível ao trabalhador, no contexto da empresa e considerados o grau de lesão dos seus interesses, bem como o caráter das relações entre as partes e as demais circunstâncias que no caso se mostram relevantes, a continuação da prestação da atividade pelo trabalhador/Autor – como a dimensão normativa da cláusula geral de rescisão o exige. E, acrescente-se, esse juízo tem também necessariamente presente que a preocupação com a manutenção da relação de trabalho e a diversidade de interesses e de posições das partes devem motivar exigências diversas relativamente ao preenchimento da justa causa de resolução por iniciativa do trabalhador, projetando-se assim a referida preocupação de salvaguarda da relação de trabalho na ponderação do preenchimento daquele conceito.”
Diga-se, por último, a respeito do apelo, feito pelo Ministério Público junto desta Relação, ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de janeiro de 2022[16], em particular à afirmação, constante do seu sumário, de que “A falta de cumprimento pontual da retribuição, sendo a violação de um dos principais deveres do empregador, é justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, independentemente de este último depender ou não dessa retribuição para a sua sobrevivência”, que tal afirmação, em termos gerais não temos razões para a não acompanharmos, sendo que, no entanto, importa porém deixar claro que o caso factual que estava então em análise era, em face do que se provou nos presentes autos, bem diverso, desde logo quanto ao período durante o qual perdurou o incumprimento do dever de pagamento pontual da retribuição – o que bem se evidencia quando aí se fez constar, para além do mais: “(…) o contrato de trabalho corresponde a uma operação económica de intercâmbio entre o trabalho e o salário e muito embora os deveres do empregador sejam muito mais amplos que o dever de pagar a retribuição (abrangendo, por exemplo, também o dever de proporcionar boas condições de trabalho) o incumprimento total e por um período de tempo tão prolongado do dever de pagar a retribuição – sessenta dias – implicará normalmente, na falta de outras circunstâncias que no caso sejam relevantes, o desaparecimento da base de confiança mútua que permite a subsistência do contrato de trabalho. A confiança é uma estrada de dois sentidos e também o empregador deve agir de boa fé (artigo 126.º n.º 1) e com respeito pelos interesses do trabalhador”. (…) Não se ignora que alguma jurisprudência e doutrina defendem que a boa fé pode impor um dever de aviso, quando por exemplo o trabalhador reage porque não lhe foi paga, por vezes durante anos, uma prestação que lhe era devida pelo contrato e cuja natureza retributiva é frequentemente controversa. Mas tal situação é bem diferente da dos autos, em que o empregador não pagou a totalidade da retribuição durante meses. (…)”. Aliás, e mesmo apesar da referida e para nós relevante diferença em relação ao caso que aqui apreciamos, ainda assim o mesmo Acórdão contou com um voto de vencido, assente na consideração, para além do mais, de que os factos provados “não permitem concluir que referida conduta da Ré tenha impossibilitado a subsistência do contrato de trabalho com o Autor”[17].
Por decorrência do exposto, consideramos que, por não estar demonstrada a justa causa para a resolução do contrato, procedendo assim o recurso no âmbito da aplicação do direito, a sentença, nessa parte, deve ser revogada, assim quanto à alínea A) do seu dispositivo, bem como no que se refere à quantia de €3.175,33, que se fez constar da sua alínea B.6, fixada a título de indemnização pela cessação do contrato de trabalho – procedendo assim o recurso nesta parte.

2.2. Demais decidido
Não dirigindo a Recorrente o recurso ao demais decidido na sentença, assim os créditos laborais nessa contabilizados, transitou aquela em julgado nessa parte, razão pela qual está excluída do presente recurso.

A responsabilidade pelas custas impende sobre a Autora / apelada (artigo 527.º do CPC), sem prejuízo de apoio judiciário de que possa beneficiar.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, segue-se o sumário do presente acórdão, da responsabilidade exclusiva do relator:
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IV – DECISÃO:
Acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
1. Em rejeitar o recurso na parte dirigida à reapreciação da matéria de facto;
2. Procedendo-se oficiosamente a alteração da matéria de facto, na procedência do recurso no âmbito da aplicação do direito, em alterar a sentença recorrida, a qual, mantendo-se no mais, é substituída por este acórdão, no qual se exclui a alínea “A” do seu dispositivo e, quanto à alínea “B6”, dessa se excluindo a quantia de €3.175,33, aí fixada a título de indemnização pela cessação do contrato de trabalho.
Custas do recurso pela Apelada e da ação por ambas as partes, na proporção de vencimento / decaimento.

Porto, 22 de junho de 2022
(acórdão assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
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[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222
[2] Op. cit., p. 235/236
[3] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[4] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[5] www.dgsi.pt
[6] processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt
[7] no mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 27 de Outubro de 2016, processo 110/08.6TTGDM.P2.S1, mais uma vez em www.dgsi.pt
[8] Relator Conselheiro Chambel Mourisco, in www.dgsi.pt.
[9] Relator Conselheiro Gonçalves Rocha, mais uma vez em www.dgsi.pt.
[10] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, págs. 268/269
[11] Processo 19035/17.8T8PRT.P1.S1. Conselheiro Júlio Gomes, disponível em www.dgsi.pt
[12] A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 106-107
[13] Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt.
[14] Entre todos, veja-se o Ac. STJ de 28 de janeiro de 2016, Relator Conselheiro António Leones Dantas, in www.dgsi.pt.
[15] In www.dgsi.pt, deste mesmo Coletivo.
[16] Revista 8910/18.2T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes – in www.dgsi.pt.
[17] Conselheira Maria Paula Sá Fernandes.