Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20769/18.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRE PELAYO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
Nº do Documento: RP2023092620769/18.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No caso de a autora ter aceite submeter-se a uma cirurgia de remoção de cálculo renal nas instalações hospitalares da ré, através de médico daquele hospital, que aí lhe foi indicado e por si aceite, ocorreu a celebração dum contrato de prestação de serviços médicos, na modalidade de “contrato total”, inserindo-se neste caso a responsabilidade civil por ato médico, no âmbito da responsabilidade contratual, o que aliás é a regra.
II - Considera-se verificado objetivamente o pressuposto da ilicitude quando ocorra uma lesão da integridade física do lesado que seja completamente estranha ao cumprimento do contrato e cuja gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para a saúde do lesado, inerentes àquela concreta intervenção médica.
III - A responsabilidade em saúde divide-se entre a responsabilidade por má prática/negligencia, com base na violação das leges artis (stricto senso) e a responsabilidade por violação do consentimento informado, quer por falta de informação, quer por falta de consentimento, ou consentimento inválido.
IV - Ocorrem ambas as situações se, não obstante a existência de um cálculo renal considerado de grandes dimensões; a existência de um sistema urinário fragilizado em consequência da existência de tal cálculo e um episodio de cólica renal recente, situações do conhecimento do médico que operou a autora, este opta pela remoção do cálculo renal, mediante método considerado menos “invasivo”, mas mais agressivo na sua execução, o que implicou a rutura do sistema excretor da autora e se, autora não foi informada da existência de tal risco, nem da existência de outros métodos de extração do cálculo renal e respetivos riscos associados.
V - A vertente negativa da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, pelo que admite não só a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano, pelo que, não obstante a autora tenha em consequência da rutura do canal excretor sofrido danos na sua integridade física, duma gravidade considerada algo “invulgar”, tal não afasta a responsabilidade dos réus, devendo ser consideradas na indemnização a calcular também as lesões decorrentes dos adequados tratamentos das lesões decorrentes da primeira cirurgia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 20769/18.5T8PRT.P1

Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira

SUMÁRIO:
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Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto - Juiz 5

Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:
AA interpôs a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra os Réus Fundação ... e BB.
Veio a ser deferida a Intervenção Acessória a requerimento dos Réus, das companhias de seguros A... – Companhia de Seguros, S.A., e B... – Companhia de Seguros, S.A..
A Autora formulou o seguinte pedido na p.i: “A) Serem os réus, solidariamente, condenados a pagar à autora a título de ressarcimento dos danos patrimoniais já liquidáveis a quantia de € 1.828,83, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento; // B) Serem os réus condenados, solidariamente, a indemnizar a autora dos danos patrimoniais e não patrimoniais, tanto os já sofridos como os previsíveis que venha a sofrer, insuscetíveis de serem por ora contabilizados, e que sejam consequência direta dos factos em apreço nos autos, a liquidar em sede de incidente de liquidação posterior”.
Mais tarde procedeu à liquidação provisória do pedido nos seguintes montantes, para os seguintes danos:
Perda da capacidade de ganho - €165.000,00 euros;
Danos não patrimoniais – 140.000,00 euros;
Perdas salariais – 11.299,96 euros;
Despesas com deslocações – 11.640,00 euros;
Despesas com tratamentos – 748,83 euros, num total de € 328.688,79 euros.
Para tanto e em suma alegou que, com queixas de cólica renal esquerda, procurou os serviços do Hospital da primeira Ré, tendo, nesses serviços sido diagnosticado a presença vulgo de “pedra no rim”. Nessa sequência foi encaminhada para uma consulta com o segundo réu, médico especialista em urologia, o qual lhe disse que teria que proceder á remoção daquele cálculo renal, por via cirúrgica, o que a autora aceitou.
No decurso da cirurgia, que teve lugar em 14.10.2015, em que aquele réu atuou como cirurgião, ao realizar o procedimento provocou uma rutura no sistema excretor, na sequência do que a autora desenvolveu uma marcada distensão abdominal, tendo a cirurgia terminado sem que o cálculo tivesse sido extraído.
Foi de seguida realizada na autora uma laparatomia para exploração cirúrgica e drenagem do líquido intra-abdominal, vindo a ser de seguida transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital ..., onde deu entrada apresentando grande instabilidade hemodinâmica.
Veio então a ser sujeita a várias intervenções cirúrgicas, tendo permanecido naquele hospital até 7.1.2016. Foi depois encaminhada para uma unidade da rede de cuidados continuados, no Hospital 1... em Fafe, tendo que regressar e voltar a ser internada no Hospital ..., nos anos que se seguiram por diversas vezes, submetendo-se a cirurgias várias.
Apenas em 6.7.2017, lhe veio a ser removido o cálculo renal, em cirurgia realizada no Hospital ....
Em consequência da atuação dos Réus, a autora esteve “às portas da morte”, sofreu períodos longos e agonizantes de internamentos hospitalares, temeu pela sua vida, teve de usar um saco de colostomia, teve de fazer hemodiálise, fisioterapia e ficou a depender de terceiros, sofreu e continua a sofrer dores, ainda não tendo terminado a sua reabilitação física, danos de que pretende ser indemnizada.
Que jamais o 2º Réu a advertiu da possibilidade de, no decurso ou por causa da cirurgia se virem a verificar complicações e que aquele réu não atuou na escolha e execução do procedimento cirúrgico com a diligência, o cuidado e a perícia na arte técnica que lhe seriam exigíveis, tendo-lhe provocado uma lesão consubstanciada na rutura do canal excretor, não atuando de acordo com o que lhe seria esperado e exigível de acordo com os seus conhecimentos médico-científicos especializados, as leges artis e as circunstâncias do caso concreto. Incumpriu dessa forma o contrato celebrado, estando verificada a ilicitude da sua conduta.
Quanto á responsabilidade da primeira ré, invoca o incumprimento do contrato em que aquela se vinculara a prestar serviço médico mediante retribuição, a realizar pelos seus auxiliares e equipa médica do segundo réu,
Contestaram os Réus pugnando pela improcedência da ação, defendendo-se impugnando a factualidade alegada pela autora, dizendo em suma que a cirurgia proposta à autora lhe foi devidamente explicada, encontrando-se a mesma devidamente informada sobre o procedimento a que se ia submeter. Que a cirurgia realizada decorreu segundo as leges artis, sendo a técnica bem executada. Aliás, não é possível sequer tecnicamente ao aparelho de uteroscopia provocar trauma e eventual rutura do aparelho excretor, que lhe é imputado.
Que na parte final da cirurgia verificou-se a existência de uma distensão abdominal significativa, tendo a cirurgia que ser interrompida e colocado um cateter no rim esquerdo. Realizada uma TAC abdominal que revelou existência de volumosa presença de líquido, foi de imediato submetida a uma laparotomia, tendo sido drenados 5 litros de líquido.
A autora desenvolveu depois uma sepsis urinária e de coagulação intra vascular disseminada, o que originou uma disfunção multiorgânica, tendo de ser transferida para uma unidade hospital de cuidados intensivos.
Igualmente contestaram as Intervenientes Acessórias A... – Companhia de Seguros, SA que confirmou a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil/profissional com a 1ª Ré, alegando ignorar as causas e consequências do sinistro vertido na p.i e B... – Companhia de Seguros, S.A.. , confirmando a existência de um seguro de responsabilidade civil profissional, contrato de seguro coletivo ao abrigo do protocolo celebrado com a Ordem dos Médicos, co o 2º réu, tendo alegado em suma que não se verificam os necessários pressupostos para a existência da responsabilidade civil do 2º réu.
A Autora deduziu incidente de Liquidação do Pedido.
As partes deduziram Oposição ao Incidente, pronunciando-se sobre a improcedência dos pedidos formulados.
Foi realizado o julgamento e no final, foi proferida sentença, com a seguinte parte decisória:
“Julga-se a ação não provada e improcedente, absolvendo-se os réus, Fundação ... e BB, dos pedidos formulados pela autora, AA.
Custas da ação a cargo da(s) autora, sem prejuízo de apoio judiciário, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Valor da causa: o dado pelas partes.
Registe (eletrónico) e notifique.”
Inconformada, a Autora AA interpôs o presente recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª: O presente recurso visa a impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada nos autos, versando, assim, sobre matéria de facto e de direito.
2ª: Com interesse para o âmbito do presente recurso, não se conforma a Recorrente com as respostas dadas aos factos constantes dos pontos n.º 13, 14, 49, 50, 51, 52, 53 al. a) e b), 54, 55, 56, 57, 58 e 59 dos Factos Provados, n.º 62 e 64 dos Factos Não Provados e, por consequência, com o sentido decisório da sentença.
3ª: A prova produzida impunha que o Tribunal tivesse respondido em sentido diverso, mal se compreendendo, em que concreta prova assentou a sua motivação, porquanto não a concretiza com o rigor exigível, bem como, se encontra na matéria de facto selecionada pelo Tribunal profusa inclusão de conceitos e juízos conclusivos.
4ª: Relativamente ao ponto 13, o Tribunal a quo quando se refere ao líquido que extravasou para a zona do abdómen da Autora, utiliza a expressão “abundante”, sendo que, da prova produzida resultou demostrado que, em concreto, tal líquido ascendeu à quantidade de cinco litros, o que deverá ficar expressamente consignado no sobredito ponto.
5ª: Quer dos registos clínicos juntos aos autos pelo Hospital ... em 06.11.2019; quer do depoimento prestado em audiência pela testemunha CC (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 9/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221209092223_15294967_2871442, de minutos 51:41 a 52:00),quer, ainda, da própria confissão vertida na contestação dos Réus, no seu artigo 54º,resulta tal factualidade demostrada.
6ª: Deverá, assim, ser alterado o ponto em apreciação, passando a ter a seguinte redação: 13 - Tal rutura permitiu o extravasamento de cinco litros do soro fisiológico, usado sob pressão, para o interior do abdómen, ficando este com abundante líquido e bolhas gasosas.
7ª: Relativamente ao ponto 14, da prova produzida não se pode extrair que tenha sido já depois de ter sido colocado um cateter JJ que a equipa médica constatou uma marcada distensão abdominal e perineal, nem tão pouco que tenha sido, intencionalmente, que não foi fragmentado todo o cálculo, face à sua dimensão.
8ª: Os próprios Réus na sua Contestação, no artigo 50º, afirmam que por se ter verificado a existência de uma distensão abdominal significativa, a cirurgia teve que ser interrompida e colocado um cateter duplo J no rim esquerdo.
9ª: O parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos refere no ponto 2 dos elementos apurados que: “o procedimento aparentemente não foi completado devido a complicação com distensão abdominal que motivou laparatomia exploradora de urgência e complicações múltiplas (…).”
10ª: A testemunha DD explicou que a não fragmentação integral do cálculo se ficou a dever a ter-se esgotado o tempo durante o qual seria de ”bom senso” continuar a submeter o ureter a traumatismo e a hiperpressão intra renal (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212093037_15294967_2871442, de minutos 43:08 a 44:07, e 1:09:25 a 1:12:30).
11ª: Em face do exposto, deverá a redação deste ponto, passar a ser a seguinte:
14 - Na parte final da cirurgia – na qual não foi fragmentado todo o cálculo –, a mesma teve que ser interrompida por a equipa médica ter constatado uma marcada distensão abdominal e perineal, pelo que a autora realizou de imediato uma TC, na qual se constatou a existência de volumosa quantidade de líquido intra-abdominal e intra-peritoneal.
12ª: Quanto ao ponto 49, não se vislumbra em que meio de prova o Tribunal sustentou a conclusão aí exarada, e muito menos à luz da prova produzida se pode aceitar que, em face do concreto estado clínico da Autora, este procedimento fosse o apropriado ao tratamento da sua patologia.
13ª: Se em geral até se pode admitir que este procedimento possa ser adequado à remoção de cálculos renais, já tal não se mostra demostrado que fosse aplicável à situação da Autora, até porque a técnica cirúrgica que veio à posteriori a ser escolhida para remoção do cálculo, não foi a ureterorrenoscopia e fragmentação por laser, mas antes, a nefrolitotomia percutânea (NLPC). - Cfr. ponto 24 al. c) dos Factos Provados.
14ª: A Autora explicou nas suas declarações, que o médico que realizou a referida NLPC lhe afirmou que atento o tamanho do cálculo em causa, nunca o mesmo deveria de ter sido removido através da ureterorrenoscopia, mas sim, pela nefrolitotomia percutânea. - (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212110954_15294967_2871442, de 39:35 a 41:10).
15ª: A testemunha DD, que coadjuvou o Réu médico na ureterorrenoscopia é o próprio que, no seu depoimento, explicita que, tendo presente o sucedido, a opção pela NLPC teria sido a melhor (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212093037_15294967_2871442, de minutos 1:05:04 a 1:06:12, e 1:13.40 a 1:15:00).
16ª: A mesma testemunha aponta como causa do rompimento do canal excretor, a hiperpressão provocada no rim da Autora no decurso do procedimento, visto que o mesmo se encontrava fragilizado, o que, à semelhança do grande volume do cálculo (35 mm), seria facilmente constatável através de uma TAC, o que a Autora até realizou como meio de diagnóstico prévio à intervenção. (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212093037_15294967_2871442, de minutos 46:30 a 1:01:00, e 1:12:45 a 1:13:35).
17ª: Logo, jamais poderia o Tribunal ter concluído que o procedimento adotado era, in casu, o apropriado ao tratamento da patologia em causa, impondo-se que este ponto transite para os Factos não Provados.
18ª: Relativamente ao ponto 50, em concreto no que se refere ao comparativo de riscos associados aí efetuado, mais uma vez, não se vislumbra em que prova produzida o Tribunal alicerçou a sua convicção para o dar como provado.
19ª: Mesmo admitindo que, em tese e no geral, o tratamento sugerido pelo Réu tenha menos riscos associados, o que é certo, é que tal ilação não pode ser retirada em relação à concreta situação da Autora, como o resultado do mesmo veio a desmentir.
20ª: O Parecer do Colégio de Urologia da Ordem dos Médicos, junto aos autos, é claro ao afirmar que: “Atualmente, com a evolução dos meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, melhor controle anestésico e hemodinâmico, tem reduzido as complicações, tornando os procedimentos potencialmente mais fáceis e com maior êxito, mas o potencial de complicações continua a ser muito elevado, devendo os doentes ser informados dos riscos que correm.”
21ª: Assim, não poderia o Tribunal ter dado como provado mais do que a seguinte redação, que deverá passar a constituir este ponto de facto: 50 - O tratamento sugerido pelo réu é menos invasivo do que os tratamentos alternativos disponíveis, designadamente, a nefrolitotomia percutânea (NLPC).
22ª: Quanto ao ponto 51 dos Factos Provados, especificamente no que se refere à circunstância de os exames pré-operatórios não revelarem nenhuma contraindicação, mais uma vez não se alcança, em que concretos meios probatórios o Tribunal fundou a sua convicção.
23ª: Não só nenhuma prova foi produzida neste sentido, como aquilo que ficou demonstrado, o infirma. Desde logo, se era evidenciável da TAC que a Autora tinha um rim fragilizado e que o cálculo era volumoso (35 mm), aliado à circunstância de que o procedimento que logrou a remoção do cálculo, sem complicações, não foi aquele que o Réu selecionou, não poderia o Tribunal ter concluído que os exames pré-operatórios não revelaram qualquer contraindicação à adoção do procedimento descrito no ponto 6 dos factos provados.
24ª: Logo, apenas poderia o Tribunal ter dado como provado - e nessa medida deve ser alterado este ponto, que: 51 - Os exames pré-operatórios prescritos e realizados pela autora são clinicamente adequados à adoção do procedimento descrito no ponto 6 – factos provados.
25ª: Quanto ao ponto 52 dos Factos Provados, apenas resultou provado que por ocasião da consulta a que alude o ponto 5 dos factos provados, o Réu referiu que o procedimento era simples e com um único dia de internamento (facto 7 dado como provado), sendo que, nenhuma outra prova quanto à natureza e extensão da explicação dos procedimentos, foi feita.
26ª: Muito menos se fez prova que o Réu se tivesse assegurado de que a Autora não tinha dúvidas sobre a explicação que lhe deu. O Tribunal alude na sua motivação ao depoimento da testemunha EE, sendo que esta apenas refere ter visto o Réu chegar e, já no bloco, perguntar “se tem alguma dúvida” (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212093037_15294967_2871442, de 20:35 a 21:00).
27ª: Ora, nem tal equivale a estar-se efetivamente a assegurar de que não existem dúvidas, e muito menos, como é evidente, se pode ter dúvidas em relação a algo que nem sequer foi explicado.
28ª: Ademais, a Autora a este respeito foi perentória em afirmar que, não só a explicação que lhe foi dada se limitou ao sobredito, como no aludido dia da operação o Réu não a questionou acerca de quaisquer dúvidas (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212110954_15294967_2871442, de 04:20 a 04:32).
29ª: A resposta a este ponto terá, assim, de ser alterada, passando a ter a seguinte redação: 52 - Antes da intervenção referida no ponto 10 - factos provados -, o réu explicou à autora o seu estado clínico descrito no ponto 4 - factos provados -, bem como que o procedimento que seria adotado na cirurgia seria simples, com sujeição a anestesia geral.
30ª: No que respeita ao ponto 53, dos Factos Provados, mais concretamente do enunciado sob a alínea a), o Tribunal relativamente à cirurgia programada, utiliza um conceito vago e indeterminado que se reconduz à expressão “efeitos normais”, não se alcançando ao que é que o Tribunal pretende aludir com tal expressão, nem foi produzida qualquer prova acerca de, em relação aos mesmos, a Autora ter sido informada.
31ª: De facto, o que objetiva e unicamente ficou demostrado é que a Autora foi informada de que a cirurgia implicava a necessidade de um curto período de recobro e internamento, nada mais! (ponto 7 dos factos dados como provados)
32ª: Da referida alínea deve, então, passar a constar que: 53 - Antes da intervenção referida no ponto 10 - factos provados: a) a autora foi informada de que a cirurgia programada, implicava a necessidade de um curto período de recobro e de internamento;
33ª: Por sua vez, no que concerne à alínea b), ficou demostrado que à Autora não foi explicado qualquer risco que pudesse ocorrer no decurso da intervenção, o que a mesma claramente afirmou, ao passo que os Réus nenhuma prova produziram de que tal explicação lhe tivesse sido feita.
34ª: Aliás, nem sequer o formulário, legalmente obrigatório, subscrito pela Autora relativo à prestação do seu consentimento e do qual, geralmente, consta a menção de ter sido explicada quanto aos riscos da cirurgia, os Réus se dignaram juntar aos autos. - (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212110954_15294967_2871442, de 05:44 a 06:45, e 38:30 a 39:35).
35ª: Assim, o que o Tribunal deveria ter dado como provado é que à Autora não foram explicados quaisquer riscos que pudessem advir da intervenção em causa.
36ª: Termos em que, também deverá ser alterada a redação da alínea b) do n.º 53 dos Factos Provados, passando da mesma a constar: b) à autora não foram explicados quaisquer riscos de complicações que poderiam advir da intervenção, nomeadamente, que podia ocorrer a rutura do canal excretor, ao nível pielo-calicial, suscetível de causar:(…).
37ª: Relativamente ao ponto 54 dos Factos Provados, mais concretamente quanto à afirmação de que a ocorrência da rutura do canal excretor é absolutamente anómala, mais uma vez, não se alcança em que prova o Tribunal alicerçou a sua convicção, sendo certo que a que foi produzida, vem, até, demostrar o contrário.
38ª: O Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia, da Ordem dos Médicos, junto aos autos, a este propósito, refere que: “A resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura dos sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente.” (sublinhado nosso)
39ª: Assim, não poderia o Tribunal ter dado como provado mais do que o seguinte, que deverá passar a ser a redação deste ponto: 54 - A rutura do canal excretor não é um efeito implausível da intervenção a que a autora foi submetida.
40ª: Quanto ao ponto 55 dos Factos Provados, afirma o Tribunal que os efeitos da rutura do canal excretor, descritos na alínea b) do ponto 53 dos factos provados, são de ocorrência conjunta sem significado estatístico, nunca tendo sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a Autora.
41ª: Ora, nenhuma prova foi produzida de que tais efeitos de verificação conjunta, não tenham significado estatístico ou que nunca tenham sido alguma vez observados, sendo que o Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, afirma, textualmente, que: “A resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura dos sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente.” (sublinhado nosso)
42ª: Por conseguinte, terá de ser reformulado este concreto ponto da matéria de facto, passando do mesmo a constar, tão só que: 55 - Os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados –, nunca tinham sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora.
43ª: Relativamente ao ponto 56 dos Factos Provados, nem se compreende qual o interesse ou alcance da sua inclusão para a boa decisão da causa, nem qualquer prova se produziu relativamente à afirmação de que a coagulação intravascular disseminada (CID) não esteja especialmente associada à síndrome de compartimento abdominal (SCA).
44ª: Assim, mesmo que se admita a manutenção deste ponto, terá o mesmo que ser expurgado daquela afirmação, ficando, tão só, a constar o seguinte: 56 - A coagulação intravascular disseminada (CID) é um distúrbio hemorrágico que pode ser causado por diversos transtornos graves, designadamente, sépsis, trauma ou choque.
45ª: No que respeita ao ponto 57 dos Factos Provados, que se acha formulado em termos conclusivos, quanto às conclusões nele ínsitas, nenhuma prova foi produzida, sendo que, como é evidente, a não prova de um facto não permite concluir o seu contrário.
46ª: Aliás, é o próprio Tribunal a quo que reconhece que quanto à causa da rutura o canal excretor, a mesma não é clara, aventando, para o efeito, meras hipóteses, como sejam a pressão do soro fisiológico injetado, ou o movimento do cálculo no interior do bacinete durante a sua fragmentação, fruto da fragilidade estrutural do rim.
47ª: Sem embargo do sobredito, jamais se poderá ter a execução do procedimento como correta quando, estando-se perante um rim fragilizado, cuja debilidade já era cognoscível desde a primeira TAC, ainda assim, se levou a hiperpressão provocada pelo procedimento, ao limite do tempo recomendável para o efeito.
48ª: Muito menos é aceitável que se tivesse deixado que, fruto da rutura causada, extravasassem para o abdómen da Autora 5 (cinco) litros de soro fisiológico, sem que antes de que aquela abissal acumulação fosse ostensiva, a mesma tivesse sido notada e o procedimento imediatamente interrompido.
49ª: O que, efetivamente e, tão só, ficou demostrado foi o encadeado de factos que o Tribunal deu como provados sob os pontos 12, 13, 15 e 18.
50ª: Quanto à concreta forma como o procedimento cirúrgico foi executado, seja no que diz respeito às regras da sua normal execução, bem como ainda, para evitar o infeliz resultado que do mesmo adveio, nenhuma prova, que, diga-se, aos Réus competia fazer, foi feita, seja pelos médicos que acompanharam o procedimento, concretamente, a Dra. EE e o Dr. DD - (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212093037_15294967_2871442, de 02:35 a 34:40, e 35:45 a 1:17:20), seja através do Parecer do Colégio de Urologia da Ordem dos Médicos.
51ª: E quanto ao dito Parecer, há que ter presente o limitado alcance e valor probatório que, quanto a esta matéria, o mesmo, à luz do concreto caso sub judice, pode e deve merecer. Desde logo, é o próprio Colégio que à partida, sob o item “Informações gerais”, faz notar que nem sequer teve acesso ao processo clínico e documental da Autora, referindo-se, amiúde, estar a laborar com base em deduções.
52ª: Igualmente, quem subscreveu o Parecer não esteve presente no ato cirúrgico em causa, pelo que não pôde observar a execução do procedimento sob apreciação, logo, quando conclui que a atuação dos urologistas foi adequada não identificando qualquer lesão iatrogénica, cumprindo com as leges artis, não o faz, como é manifesto, alicerçado em mais do que meras suposições e premissas abstratas.
53ª: Tanto assim é que, no que concerne à questão basilar de ter havido uma rutura do canal excretor e da qual decorreram todas as nefastas consequências que o Tribunal deu como provado, o Colégio nem sequer a considerou como tendo ocorrido, afirmando que: “(…) da consulta deste processo, não é possível concluir que tenha havido rutura do sistema excretor por tal não ter sido visualizado em qualquer relatório de exame apresentado.”
54ª: Ora, é inequívoco que da prova produzida resultou ter havido tal rutura e que a mesma despoletou as complicações que se acham melhor descritas nos pontos 12, 13, 15 e 18 dos Factos Provados, donde fica bem patente a limitação, quanto a este aspeto, deste meio probatório e que, por conseguinte, jamais poderia sustentar as conclusões a que o Tribunal chegou relativamente a este ponto da matéria de facto.
55ª: Pelo conjunto do exposto, ainda que se admita que a redação deste ponto poderá subsistir e que o mesmo não deverá ser pura e simplesmente eliminado, sempre terá, em todo o caso, que transitar para os Factos dados como Não Provados.
56ª: No que concerne ao ponto 58 dos Factos Provados, se bem que não se logre alcançar com base em que concreto meio probatório o Tribunal se permitiu dar como provada a matéria constante do mesmo, o certo é que nenhuma prova foi produzida, no sentido de que a rutura não tenha resultado de um contacto direto de nenhum instrumento cirúrgico com o bacinete e muito menos com outro ponto qualquer do sistema renal.
57ª: A este propósito, o Tribunal não só deu como provado que foi a execução da ureterorrenoscopia que provocou tal rutura - ponto 12 dos factos assentes - como, na sua motivação é o próprio que admite que a mesma pode ter resultado da pressão de soro fisiológico injetado que, necessariamente, teve que ser efetuado através de um instrumento cirúrgico com contacto direto sobre algum ponto do sistema renal.
58ª: Logo, igualmente terá este ponto da matéria de facto que transitar dos Factos Provados para os Não Provados.
59ª: Relativamente ao Ponto 59 dos factos Provados, igualmente formulado com juízos conclusivos, não foi produzida prova que pudesse levar o Tribunal a retirar tal conclusão, sendo que, por brevidade e identidade de razões, se dá aqui por reproduzido, tudo quanto ficou supra expendido quanto à impugnação da resposta dada ao ponto 57.
60ª: Por conseguinte, deverá merecer igual sorte, mais concretamente, que a admitir-se que a redação deste ponto poderá subsistir e que o mesmo não deverá ser eliminado, terá que transitar para os Factos dados como Não Provados.
61ª: No que concerne aos factos dados como Não Provados, mais concretamente sob o ponto 62, a matéria sobre que versa é precisamente a mesma que se encontra enunciada no ponto 59 dos Factos dados como Provados, com a única diferença de que neste ponto 62, se acha formulado pela negativa e naqueloutro, pela positiva.
62ª: Logo, tendo o referido ponto 59 sido impugnado e da respetiva fundamentação, se tendo concluído e impetrado que o mesmo deve passar a integrar o elenco dos Factos Não Provados, mantém plena pertinência o que a propósito do mesmo já anteriormente se expendeu e que, por conseguinte, por brevidade, aqui se dá por integralmente reproduzido.
63ª: Ou seja, transitando o referido ponto 59 para os Factos Não Provados, deverá o ponto 62 dos mesmos ser eliminado.
64ª: Quanto ao ponto 64 dos factos Não Provados alude o Tribunal a uma suposta “probabilidade estatística” da ocorrência da rutura do canal excretor, concluindo com base na mesma, que se à Autora tivessem sido descritivamente explicados os respetivos riscos, não tem como provado que jamais tivesse aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica em causa.
65ª: Ora, em lado algum se apurou nos autos, qual a efetiva e concreta probabilidade estatística da ocorrência da rutura do canal excretor e suas consequências.
66ª: Mas mais, da prova que efetivamente foi produzida, concretamente através do Parecer emitido pelo Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, decorre que: “Mesmo em centros muitos experimentados, a rutura do sistema excretor de modo espontâneo ou no decurso de intervenção, como acima referido, pode ocorrer.”
67ª: E mais adiante esclarece o mesmo Colégio que a litíase renal de grandes dimensões tem múltiplas complicações, sendo que a sua resolução é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fistula arteriovenosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente.
68ª: E, mesmo atualmente, com a evolução dos meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, o potencial de complicações continua a ser muito elevado, devendo os doentes ser informados dos riscos que correm.
69ª: Portanto, tal probabilidade estatística será tudo menos despicienda, pelo que se à Autora tivesse sido devidamente explicado o risco de eventual rutura do canal excretor, referida na alínea b) do ponto 53 – Factos Provados – e a probabilidade estatística da sua ocorrência, é certo e seguro que, como, aliás, qualquer pessoa provida do mínimo sentido de razão, jamais teria aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo Réu.
70ª: Por conseguinte, deverá, expurgada da alusão à sobredita probabilidade estatística, a matéria em causa transitar para os Factos Provados, com a seguinte redação: - Se à autora tivesse sido descritivamente explicado o risco de eventual rutura do canal excretor, referido na al. b) do ponto 53 – factos provados –, e consequências, jamais teria aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu.
71ª: Por outro lado, o Tribunal não considerou matéria de facto, em relação à qual foi produzida prova e que, de sobremaneira também interessaria ter considerado para a boa decisão da causa.
72ª: Em concreto, referindo-se o Tribunal às complicações que se vieram a verificar na decorrência do procedimento selecionado e executado pelo Réu, já, em momento algum, refere que potenciais riscos seriam de considerar ab initio como podendo advir da sua execução, nem da frequência ou potencial de tais complicações.
73ª: Esta matéria é, desde logo, importante para se concluir acerca de diversas questões em discussão no presente pleito, como sejam, do dever de informação e esclarecimento do Réu à Autora, ou ainda, da equação acerca de outros eventuais tratamentos alternativos disponíveis.
74ª: Quanto a esta questão foi produzida prova, concretamente, através do Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, no sentido de que mesmo em centros muitos experimentados e recorrendo a meios de cirurgia minimamente invasiva, a rutura do sistema excretor no decurso da intervenção pode ocorrer, e que a resolução de grandes massas litiásicas é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente, devendo o mesmo ser informado do risco que corre.
75ª: Assim sendo, impõe-se que seja aditado à matéria de facto provada, um ponto com a seguinte redação: O procedimento descrito no ponto 6 - factos provados – na resolução de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte dos doentes, devendo os mesmos ser informados dos riscos que correm.
76ª: Ademais, igualmente importa, para a boa decisão da causa, apurar acerca da verificação in casu de um consentimento informado, por parte da Autora.
77ª: Conforme já ante alegado e demonstrado, a Autora não foi informada acerca de quaisquer riscos decorrentes do procedimento cirúrgico a que foi sujeita, bem como, o próprio Tribunal a quo dá como provado, que não lhe foi explicado, que no decurso da intervenção poderia ocorrer a rutura do canal excretor, suscetível de causar as múltiplas complicações elencadas na alínea b) do n.º 53 dos Factos Provados, o que só por si, já imporia que o Tribunal, necessariamente, tivesse que concluir que a mesma não poderia ter prestado um consentimento informado.
78ª: A este propósito, interessa ter presente as declarações prestadas pela Autora em sede de audiência de julgamento, a qual, para além de explicar que, relativamente aos riscos da intervenção nada lhe foi informado, caso o Réu lhe tivesse falado acerca dos riscos não faria a operação ou pedia mais opiniões médicas.
79ª: E no que concerne ao procedimento em si, mais afirmou que a única explicação que lhe foi dada, foi no sentido de que a intervenção consistiria num procedimento simples, com um único dia de internamento, facto dado como provado sob o ponto 7 - (Cfr. ata da audiência de julgamento do dia 12/12/2022, gravado em h@bilus media studio, ficheiro 20221212110954_15294967_2871442, de 38:30 a 39:35).
80ª: Por outro lado, também não será desprovido de interesse, apurar se a mesma, ainda que apenas formalmente, declarou tal consentimento.
81ª: Ora, nenhum dos Réus juntou aos autos, como lhe competia, uma cópia do formulário do consentimento informado, esclarecido e livre, para atos/intervenções de saúde nos termos da norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde, o qual, in casu, era obrigatório.
82ª: Assim, é imperioso concluir que, igualmente, se terá de dar como provado e, por consequência, aditado à matéria de facto que: A Autora não prestou consentimento informado, esclarecido e livre para o ato cirúrgico realizado pelo Réu, nem subscreveu o formulário previsto na norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde.
83ª: Uma vez assente a matéria de facto nos sobreditos termos, importa, agora, subsumir-lhe o direito aplicável.
84ª: O contrato a que alude o ponto 8 dos factos dados como provados, tinha por objeto a prestação de um ato médico por parte do Réu ao serviço da Ré, destinado à eliminação de um cálculo renal, estando-se, por conseguinte, perante um contrato de prestação de serviços.
85ª: A presente ação versa sobre responsabilidade civil advinda do referido ato médico, sendo que nos presentes autos se discute a responsabilidade fundada, tanto no erro, como na violação do consentimento informado, visando a primeira a tutela da saúde e da vida do paciente e a segunda, o seu direito à autodeterminação na escolha dos cuidados de saúde.
86ª: Começando pela primeira das ante aludidas dimensões da responsabilidade civil, da prova produzida resultou demostrado que a realização da ureterorrenoscopia executada pelo Réu, provocou uma rutura do canal excretor que permitiu o extravasamento de cinco litros de soro fisiológico para o interior do abdómen da Autora, o que provocou o aumento da pressão intra-abdominal gerando uma síndrome de compartimento abdominal, a qual veio a causar um quadro de coagulação intravascular disseminada, de onde decorreram as múltiplas e graves sequelas de que a Autora ficou a padecer. - Cfr. pontos 12, 13, 15 e 18 da matéria de facto provada.
87ª: A realização do sobredito procedimento cirúrgico implica a utilização de métodos dos quais pode resultar a rutura do canal excretor. - Cfr. ponto 53 al. b) da matéria provada, e o primeiro dos pontos que sob o n.º 3 C (Matéria de Facto indevidamente não considerada pelo Tribunal), se pugnou pela sua, igualmente, inclusão.
88ª: Significa isto que o Réu, ao executar tal cirurgia deveria ter adotado os procedimentos próprios da mesma, com a específica preocupação de tentar evitar que ocorresse aquela rutura, tanto mais que tratando-se de médico especialista - cfr. ponto 2 dos factos provados - sobre o mesmo recai o especial dever do emprego da técnica adequada.
89ª: No caso em apreço, desconhecendo-se a concreta causa da rutura do canal excretor, mas tendo resultado demonstrado que a mesma foi provocada pela execução da cirurgia em causa, realizada pelo Réu, deverá aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual, presumindo-se a culpa deste.
90ª: Não tendo ficado provado que o facto que determinou a rutura do canal excretor estivesse fora do alcance do Réu, jamais se poderá determinar liminarmente como causa de exculpação, a existência de um risco em abstrato aliado a fórmulas estatísticas.
91ª: Caberia assim aos Réus, em particular ao Réu médico, ilidir essa presunção, demonstrando os atos que concretamente praticou para evitar a rutura ocorrida durante a Ureterorrenoscopia, seja pela boa seleção deste método em detrimento de outros alternativos, tendo, neste caso, presente as particularidades do quadro clínico da Autora (v.g. rim fragilizado e grande volume do cálculo, etc.), seja, ainda, durante a própria execução do procedimento (v.g. adequação da hiperpressão causada no rim pela injeção de soro fisiológico, não deteção atempada da acumulação dos cinco litros de soro fisiológico no abdómen da Autora, etc.).
92ª: Provada a ilicitude pelo desrespeito do dever de proteção da integridade física da Autora, ocorrida durante a execução do contrato, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual e, nos termos do artº. 799º, n.º 1, do CC, presume-se a culpa do médico operador, incumbindo-lhe provar que tal ocorrência não lhe é imputável por falta de cuidado ou de imperícia.
93ª: Ora, não tendo os Réus ilidido a presunção de culpa que sobre si impendia, necessário será concluir que os mesmos incumpriram as suas obrigações contratuais, pelo que respondem pelos danos que, em consequência, advieram à Autora e que se acham demonstrados nos autos.
94ª: Passando, agora, à análise da violação do consentimento informado, tanto o direito nacional, como instrumentos internacionais, impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.
95ª: A ocorrência da rutura do canal excretor basta para configurar a ilicitude, uma vez que uma lesão da integridade física da Autora, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação (ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado desta quanto aos riscos próprios ureterorrenoscopia a que foi submetida (cfr. art. 340º, n.º 1, do CC).
96ª: Sem embargo das regras do ónus da prova supra analisadas, certo é que, mesmo que não se tivesse dado como provada a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar a mesma dos riscos inerentes à intervenção médica e se esta os aceitou.
97ª: Funcionando o consentimento como causa de exclusão da ilicitude da sua atuação, é sobre o médico que impende o ónus de prova do consentimento (livre e esclarecido) prestado pelo paciente.
98ª: A obrigação de informação também constitui elemento essencial da leges artis (em sentido amplo), compreendendo-se a sua importância, pois que o consentimento do paciente (livre e esclarecido) é um dos requisitos da licitude da atividade médica, não devendo a informação e o consentimento ser prestados de forma genérica.
99ª: O dever de informação e o consentimento informado têm consagração legal, nomeadamente, na Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (publicada no DR 1ª Série de 03/01/2001), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artº. 3º), na CRPort. (artºs. 25º e 26º), no artº. 70º do Cód. Civil (direito geral de personalidade), no Código Deontológico da Ordem dos Médicos (artºs. 44º e 45º), e na Lei de Bases da Saúde (Lei nº. 48/99 de 24/8, alterada pela Lei nº. 27/2002 de 8/11).
100ª: O ónus da prova deve impender sobre quem se pretende fazer valer de um «facto impeditivo do direito invocado» (art. 342º, n.º 2, do C. Civil), ou seja, o médico, competindo à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão, não devendo admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético.
101ª: Assim, a questão de saber contra quem retirar consequências, ao nível do ónus da prova, caso não tivesse ficado provado o que faria a Autora se tivesse sido confrontada com os riscos possíveis da cirurgia (com a possibilidade, não a certeza de eles ocorrerem): artigos 414.º do CPC e 346.º do CC, 2ª parte, terá de ser, necessariamente, respondida no sentido de que o mesmo recai sobre os Réus.
102ª: Em suma, quer se siga a conceção da ilicitude do resultado quer a conceção da ilicitude da conduta, os Réus encontram-se solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Autora, também, com fundamento na falta de consentimento devidamente informado para a realização da ureterorrenoscopia.
103ª: Deverá, assim, ser considerado que o douto Tribunal a quo errou na apreciação da prova, pelo que quanto aos factos identificados supra, o Tribunal ad quem deve determinar a alteração da matéria de facto, nos termos referidos, com as consequências do disposto no artigo 662º do CPC.
104ª: Os danos sofridos pela Autora, na parte já liquidada, acham-se devidamente demostrados e comprovados nos autos, conforme decorre da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, pelo que na decorrência do supra alegado, deverão os Réus ser condenados a indemnizar a Autora nos termos peticionados, que este Venerando Tribunal deverá fixar, e nessa medida revogada a sentença ora posta em crise.
105ª: A douta decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 70º, 340º, 344º, 346º, 463º, 483º, 487º, 496º, 762º, 799º, 800º do Código Civil, artigo 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, artigo 3º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia , artigos 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa e artigos 44º e 45º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Termos em que, com o vosso douto suprimento, deve ser ordenada a modificação e ampliação da matéria de facto, revogando-se a sentença e substituindo-se por outra que condene os Réus a indemnizar a Autora pelos danos por si sofridos, nos termos peticionados, com o que se fará a sã e costumada justiça.”
Os Réus/Recorridos Fundação ... E BB vieram responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
“1.Não assiste qualquer razão à Recorrente, não havendo qualquer reparo a fazer à decisão proferida quanto à matéria de facto, designadamente a que a Recorrente impugna nas suas alegações de recurso, que se deve manter inalterada.
2.O ponto 13 da matéria de facto provada deve manter inalterada atento o relatório n.º ....
3.O ponto 14 dos factos provados deve manter-se inalterado, atenta a prova produzida, mormente a prova gravada de DD aos minutos (00:37:04 -00:41:08), (00:42:43 – 00:44:58), (01:07:45 – 01:12:31); e a prova gravada de EE aos minutos (00:11:15 -00:16:45), (00:33:01 – 00:34:48).
4.O ponto 49 deve manter-se no elenco dos factos provados, isto porque todos os testemunhos e até mesmo o parecer o colégio da especialidade são no sentido de que o procedimento cirúrgico adotado foi o adequado, inexistindo contraindicações para a execução do mesmo, de acordo com as leges artis; acresce o teor dos factos provados números 6 e 7; bem como o facto de que as declarações de parte da Recorrente não poderem ser valoradas favoravelmente, pois não foram corroboradas por qualquer outra prova que a sustentasse, por um lado e, por outro, atendendo a que a Autora é interessada direta no desfecho desta demanda e que, segundo a testemunha Dr. CC, esta demonstrou ter uma “revolta cega” e um “sentimento de injustiça” pelo que lhe aconteceu [prova gravada de CC aos minutos (01:25:34 – 01:26:12)].
5.A prova de tal facto resulta, também, do teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal e do depoimento do Sr. Dr. DD [prova gravada aos minutos (00:31:04 – 00:39:19) e (01:13:35 – 01:15:31)].
6.O teor do ponto 50 da matéria dada como provada deve manter-se inalterado, pois toda a prova produzida foi unânime em considerar que a “ureterorrenoscopia com fragmentação por Laser de cálculo renal” é a técnica comummente usada em todos os centros de urologia, sendo a recomendada pelas guidelines internacionais desta especialidade, pois é menos invasiva e apresenta menores riscos associados do que os tratamento alternativos disponíveis, nomeadamente a cirurgia clássica (NLPC) – Cfr. Parecer do colégio da especialidade e prova testemunhal [prova gravada de EE aos minutos (00:10:04 a 00:10:43)] e [prova grada de DD aos minutos (00:31:04 – 00:39:19), aos minutos (00:31:04 –00:39:19) e (01:13:35 – 01:15:31)].
7.Também o teor do artigo 51 deve manter-se imutável, face ao teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal e ao parecer do colégio da especialidade.
8.De igual forma, deve o ponto 52 dos factos provados manter-se sem quaisquer alterações, atenta a prova testemunhal produzida [prova gravada de FF aos minutos (02:03:50 - 02:04:22)], [prova gravada de EE aos minutos (00:04:25 - 00:05:11); (00:05:35 - 00:07:39), (00:19:30 - 00:21:06)].
9.O teor do ponto 53 dos factos provados também não deve sofrer quaisquer alterações, pois o seu teor resulta da prova produzida, mormente a prova testemunhal [prova gravada de FF aos minutos (02:03:50 - 02:04:22); prova gravada de EE aos minutos (00:04:25 - 00:05:11), (00:05:35 -00:07:39) e (00:19:30 - 00:21:06)].
10. Já o argumento invocado pela Recorrente no sentido de que a Autora afirmou que não lhe foi referido nenhum concreto risco não é suficiente para dar como provado que “à autora não foram explicados quaisquer riscos de complicações que poderiam advir da intervenção”, isto porque as declarações de parte da Autora não foram corroboradas por qualquer outra prova que sustentasse tal afirmação, tendo até sido infirmadas pela prova descrita no ponto antecedente.
11. O ponto 54 dos factos provados deve manter-se imutável, pois o seu teor resulta da prova produzida, designadamente do parecer do colégio da especialidade.
12. O ponto 55 dos factos provados deve igualmente manter-se inalterado, pois resulta da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas Dra. GG [prova gravada aos minutos (00:20:25 – 00:22:03), (00:38:30 - 00:39:09), (00:42:07 – 00:42:53)] e Dr. CC [prova gravada aos minutos (00:48:41 - 01:00:25)], que assistiram a Autora aquando da sua chegada às urgências do Hospital ....
13. A redação do ponto 56 dos factos provados deve manter-se inalterada, pois a prova produzida, mormente a prova testemunhal [prova gravada de GG aos minutos (00:20:25 – 00:22:03) (00:38:30 – 00:39:09), (00:42:07 – 00:42:53) e de CC aos minutos (00:48:41 - 01:00:25)], demonstra que o SCA não tem como consequência imediata o quadro de CID.
14. Já o pedido da Recorrente para que os pontos 57, 58 e 59 dos factos provados integrem o elenco dos factos não provados deve improceder, visto que tal factualidade foi integralmente dada como provada quer através de prova pericial (parecer do colégio da especialidade de urologia), quer através da prova testemunhal, a saber [prova gravada de EE aos minutos (00:11:15 - 00:17:37), (00:33:01 - 00:34:46)], [prova gravada de DD aos minutos (00:37:04 - 00:40:52), (00:52:43 – 00:53:48), (01:15:02 - 01:16:55), (00:49:38 - 01:01:35)].
15. Pelo que se impõe concluir que “o réu empregou na cirurgia por si presidida os meios que, de acordo com o evoluir da ciência médica, tinha (ou devia ter) ao seu alcance, utilizando as técnicas apropriadas, em conformidade com as leges artis.”
16. A rutura dada como provada no ponto 12 dos factos provados não é imputável ao Recorrido, Dr. BB, pois não resultou da violação das boas práticas técnicas, nem da errada execução do procedimento cirúrgico, nem de nenhum instrumento cirúrgico utilizado com o bacinete ou outro ponto do sistema renal.
17. A factualidade descrita no ponto 62 não resultou provada, pelo que deve manter-se no elenco dos factos dados como não provados.
18. Já quanto ao pedido da Recorrente para que o ponto 64 dos factos não provados passe a integrar o elenco dos factos provados deve ser improcedente, uma vez que a Autora não logrou provar tal facto.
19. Já quanto à matéria de facto que a Recorrente considera que foi indevidamente não considerada pelo Tribunal, entende-se que tal pedido carece de fundamento.
20. Por um lado, a matéria sobre as complicações possíveis do procedimento cirúrgico e seu esclarecimento, na parte relevante para a solução do litígio, consta já enunciada na douta sentença recorrida; sendo que, a matéria cujo aditamento a Recorrente requer contém matéria conclusiva, pelo que não pode ser objeto de juízo de facto em termos de dar a mesma como provada ou não provada.
21. Pelo que, nada há a aditar à matéria de facto assente, devendo, assim, improceder o pedido da Recorrente.
22. EM SUMA e no que concerne à impugnação da matéria de facto, deve a mesma improceder totalmente, pois o Tribunal, ao abrigo do princípio da imediação da prova, fez uma correta apreciação crítica da mesma, tendo decidido segundo a sua livre convicção.
23. Não tendo sido cometidos quaisquer erros de julgamento!
24. Já quanto à aplicação do direito aos factos, a decisão do Tribunal não merece qualquer reparado ou censura, estando exemplarmente fundamentada.
25. Não tendo resultado provado o pressuposto da ilicitude da conduta do Réu Dr. BB; pelo que inexistindo ilicitude da conduta, não existe culpa.
26. Não resultaram provados factos dos quais pudesse levar a concluir que a atuação dos Réus foi ilícita; pelo que, considerando a matéria provada e aplicando o direito, não restava outra alternativa ao Tribunal a quo que não fosse a improcedência do pedido por inteiro.
Termos em que deve ser julgado improcedente o recurso interposto pela
Recorrente, impondo-se confirmar na íntegra a sentença recorrida; assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!
Também a Interveniente B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., veio juntar contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:
1. A sentença colocada em crise pela Autora, como melhor e adiante se poderá confirmar, não padece de qualquer erro de julgamento e ou de aplicação do Direito subjacente à matéria em apreço.
2. A Autora pugna pela alteração da redação do ponto 13 da factualidade provada. O Tribunal a quo aderiu ao conteúdo do exame pericial constante dos autos, não carecendo de alteração a redação do ponto 13 da sentença recorrida, na medida em que este não padece de qualquer imprecisão, atento o conteúdo do mencionado relatório.
3. No que respeita ao ponto 14, temos que a testemunha EE foi a anestesiologista responsável pelo procedimento anestésico da Autora, tendo estado presente durante todo o procedimento cirúrgico, sendo idónea a atestar que, efetivamente, foi no final do procedimento que a equipa médica teve perceção do edema nos membros inferiores da Autora (depoimento da testemunha de 00:11:15 até 00:12:00).
4. Também a testemunha DD atestou que o procedimento cirúrgico havia chegado ao seu término, uma vez que já se encontrava colocado o cateter JJ, que, como referenciou a testemunha, é um cateter colocado no final do procedimento para evitar complicações pós-operatórias (depoimento da testemunha de 00:38:02 até 00:39:19; de 00: 40:14 até 00:40:20; de 01:01:07 até 01:01:34).
5. Do depoimento da testemunha DD também se resulta provado que houve uma opção, por parte da equipa cirúrgica, de remover apenas parcialmente o cálculo renal, sendo sua intenção, em zelo das boas práticas médicas que indicam o tempo máximo de duração deste tipo de procedimentos, atentas as características que este apresentava e só quando deparados com o cálculo foi possível ter perceção (depoimento da testemunha de 00:43:08 até 00:43:44; de 01:08:31 até 01:12:31).
6. Por sua vez, para prova do facto assente sob o ponto 49, temos que no que respeita à alegada opinião do Dr. HH, repare-se que esta não pode ter qualquer efeito e alcance probatório, tanto menos aquele que pretende a Autora conferir-lhe.
7. Por um lado, a opinião do Dr. HH resulta de uma prova indireta, na medida em que foi trazida aos autos por meio das declarações de parte da Autora, sem que estas tenham qualquer expressão nos demais meios de prova. Por outro lado, este médico não prestou qualquer depoimento em sede de audiência de julgamento, pelo que, toda e qualquer opinião por este emitida, será isso mesmo, uma opinião sem qualquer valor probatório neste processo.
8. Do Parecer emitido pelo Conselho de Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos e que consta dos autos não há margem para dúvidas de que de facto, o Réu procedeu dentro do quadro normativo imposto pelas boas práticas médicas. O mesmo não será dizer, como pretende salientar a Autora, que o procedimento adotado, ainda que sendo adequado, não acarretasse riscos e possíveis e elevadas complicações, o que veio a ser corroborado pelo depoimento da testemunha DD em audiência (de 01:05:04 até 01:06:13; de 01:13:35 até 01:15:01).
9. O que a testemunha disse, em boa verdade, é que, sabendo que a remoção do cálculo através de ureterorrenoscopia e fragmentação por laser levaria a Autora a desencadear o quadro clínico que posteriormente se veio a verificar, teria optado pela nefrolitotomia percutânea. Assim, a opção da equipa médica que acompanhou a Autora, mormente, do Dr. BB, foi aquela que ditam as guidelines da medicina, sendo o procedimento adotado aquele que, pelo menos, à data, era tido como a boa prática médica, por ser pacífico que, apesar de não isento de possíveis complicações, é um procedimento que envolve riscos menores para os pacientes.
10. A respeito do ponto 50, desde logo, resulta da prova pericial produzida nos autos, os meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, aliados a outros fatores, têm permitido reduzir as complicações associadas à sua intervenção, conferindo um maior êxito aos procedimentos, tendo sido corroborado pelo depoimento da testemunha DD (de 00:37:04 até 00:37:36) e da testemunha EE (de 00:10:10 até 00.10:27)
11. Efetivamente, a técnica mais frequentemente utilizada será a que, por comparação às demais disponíveis, a que menores riscos, e possíveis complicações acarreta para os pacientes, tendo a prova produzida nos autos sido uníssona no sentido de, inclusive, ser a ureterorrenoscopia com fragmentação por laser, a recomendada pelas guidelines nacionais e internacionais da medicina.
12. O ponto 51 deverá ser mantido na íntegra, atendendo a que o facto de ter sido realizado no Hospital ... uma NLPC, diverso do procedimento realizado pelo Réu, e que logrou completar a remoção do cálculo da Autora sem complicações, não quer dizer que o mesmo procedimento não pudesse causar determinadas complicações se tivesse, porventura, sido o adotado pelo Dr. BB aquando da sua intervenção.
13. A testemunha explica ainda que, de facto, a composição dos cálculos apenas é cognoscível após a sua remoção, pelo que, à partida, antes de efetuado o procedimento, não se tem perceção do fenómeno que se enfrentará. Não se pode deixar também de remeter para as conclusões vertidas no Parecer do Colégio de Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, na medida em que é claro e perentório de ter sido dado cumprimento à leges artis no procedimento em apreço, identificando a atuação dos urologistas envolvidos como «adequada» e sem que se tenha verificado qualquer lesão iatrogénica.
14. Deve o ponto 52 manter-se imutável na medida em que não são admitidos doentes no bloco sem que antes tenham assinado o consentimento informado (depoimentos das testemunhas DD (de 01:01:51 até 01:02:42) e EE (de 00:06:20 até 00:07:12; de 00:20:12 até 00:20:38 e FF de 02:03:50 até 02:04:24). Por sua vez, a testemunha EE afirma, inclusive, que viu quando o Réu questionou a Autora sobre possíveis dúvidas que esta pudesse ter. O Réu assegurou-se de que o procedimento cirúrgico não se iniciou sem a garantia de que a Autora estava informada a respeito do que se seguia.
15. A Autora afirma não se recordar de nada desde o momento em que se encontrava na sala de espera, antes de entrar na sala de operações, pelo que, não pode esta afirmar que não foi questionada ou que não lhe foram prestados esclarecimentos, devendo a alegação improceder.
16. No que concerne ao que a Autora pretende que passe a constar da alínea a) do ponto 53, por uma questão de economia, remete-se tudo o quanto exposto a respeito do ponto 52 dos factos provados, nomeadamente, as transcrições dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.
17. Quanto à formulação que a Autora pretende conferir à alínea b), sempre há que dizer que, conforme (e que bem!) consta da sentença recorrida, apesar de ser um risco associado, a frequência estatística da rotura do canal excretor ao nível pielo-calicial, por não representar, in casu, o que se considera um risco significativo no âmbito do procedimento cirúrgico adotado, não impunha que o Réu tivesse a obrigação de o comunicar à Autora, naufragando a alegação da Autora.
18. A respeito do ponto 54, de facto e conforme alega a Autora, consta do Parecer emitido pelo Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos que a rutura do canal excretor é uma complicação possível da resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, o que não equivale a dizer que é um efeito normal no âmbito daquela intervenção.
19. A ureterorrenoscopia e fragmentação por laser, um método não invasivo. O recurso a métodos não invasivos tem vindo a conferir um maior êxito na realização destes procedimentos cirúrgicos, pelo que, também consta do mencionado Parecer que «(…) com a evolução dos meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, melhor controle anestésico e hemodinâmico, tem reduzido as complicações, tornando os procedimentos potencialmente mais fáceis e com maior êxito (…)».
20. Ainda que a rutura do sistema excretor seja uma possível complicação associada ao procedimento de resolução de grandes massas litiásicas, a verdade é que a sua ocorrência reduzida quando utilizados métodos não invasivos, conferindo um maior êxito ao procedimento, resultando provado o ponto 54.
21. Sobre o ponto 55, a Autora considera que não ficou provado que os efeitos descritos no ponto 53, al. b) são de ocorrência conjunta e sem significado estatístico, não discordando, por sua vez, que tais efeitos nunca tenham sido observados pelo conjunto de médicos que assistiram a Autora.
22. De facto, do depoimento dos médicos resulta provado que na extensão da sua carreira, nunca assistiram a um cenário tão catastrófico como o quadro clínico apresentado pela Autora (depoimento da testemunha GG de 00:20:25 até 00:22:00; de 00:38:44 até 00:39:05; depoimento da testemunha CC de 00:48:40 até 00:48:53; de 00:49:59 até 00:50:21; de 00:52:28 até 01:00:22).
23. Ambas as testemunhas referem a evidente anormalidade do processo que a Autora desenvolveu, mas, com relevância, sobretudo, para a análise que ora de impõe do ponto 55 da factualidade provada, referem que as complicações que a Autora foi desenvolvendo resultaram de um processo de reação do seu próprio organismo, de um processo mecânico que nada faria prever, tendo necessariamente que improceder a defesa da Autora.
24. No que respeita aos pontos 57, 58 e 58 da factualidade provada, a Autora defende que devem estes ser dados como não provados.
25. Ora, a alegação não pode proceder, na medida em que o ponto 57 resulta amplamente provado pelo Parecer solicitado ao Conselho da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos que se pronunciou no sentido de não ter havido, por parte do Réu não houve qualquer erro na execução das técnicas inerentes à ureterorrenoscopia com fragmentação a laser, tendo sido cumpridas as leges artis.
26. A Autora não solicitou, em momento algum, esclarecimentos à prova pericial, pelo que, se entende que com esta se conforma. Pelo que, per se, a prova pericial constante dos autos permite, de facto, a prova do facto 57, não se encontrando este ponto ferido de matéria conclusiva.
27. No entanto, o facto 57 resulta também provado pelo depoimento da testemunha DD (depoimento de 00:37:03 até 00:40:50 e 00:49:36 até 01:01:33), não carecendo de qualquer reapreciação pelo Tribunal ad quem.
28. A Autora pugna também que deve ser tido como não provado o facto 58 constante da sentença recorrida.
29. Sucede que a alegação da Autora carece de sustentáculo probatório. O facto 58 resulta provado pelo depoimento da testemunha DD (depoimento prestado pela testemunha desde 00:49:38 até 01:01:00) que explicou, precisamente, que no decurso do procedimento, não poderia ter havido contacto dos instrumentos utilizados com o bacinete ou outro ponto do sistema renal, na medida em que esse facto não permitira a conclusão do procedimento, tendo o mesmo que ser de imediato interrompido, o que, como anteriormente se deixou esclarecido, não sucedeu, já que o procedimento foi levado até à fase final (colocação do cateter duplo JJ).
30. Tendo de improceder a alegação da Autora.
31. A Autora pretende que o facto 59, por ordem de razão da sua alegação, seja igualmente dado como não provado. Ora, atendendo à redação deste ponto, remete-se, para tudo quanto se expôs a respeito dos pontos 57 e 58, sendo que estes tendo resultado inequivocamente provados, deverá o ponto 59 manter-se igualmente conforme consta da sentença recorrida.
32. A Autora alega que, contrariamente ao que consta da sentença recorrida, o facto 62,
dado como não provado, deve elencar a factualidade provada.
33. Ora, na medida em que o ponto 62 é a fórmula negativa conferida à redação do ponto 59, para este se remete tudo o quanto anteriormente exposto.
34. A Autora pretende que seja dado como provado o facto 64 que integra o elenco fático não provado, com a seguinte redação: «64. Se à autora tivesse sido descritivamente explicado o risco de eventual rutura do canal excretor, referido na al. b) do ponto 53 – factos provados –, e consequências, jamais teria aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu».
35. Quanto à matéria em apreço, reproduz-se tudo o quanto já se referiu a respeito do risco significativo e à não obrigatoriedade de informação do Réu à Autora, ao qual se aludiu no ponto 53, al. b) da factualidade dada como provada e à qual a Autora pretende que o Tribunal ad quem confira uma outra redação – o que, de facto, não poderá proceder, por não provado.
36. Ademais, era à Autora que cabia fazer prova cabal do facto e tal não se verificou, pelo que, sempre terá de improceder a sua alegação.
7. Entende a Autora que foi produzida prova, nomeadamente, constante da prova pericial, relativa a potenciais riscos que poderiam advir da execução do procedimento realizado e que seriam de considerar, pelo que, pugna pelo aditamento do seguinte ponto à matéria de facto provada:
«O procedimento descrito no ponto 6 – factos provados – na resolução de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte dos doentes, devendo os mesmos ser informados dos riscos que correm».
38. Analisada toda a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo fez uma certeira seleção dos factos atinentes à questão e que efetivamente têm relevância neste âmbito.
39. Consta dos pontos 53 a 55 as possíveis complicações que podem advir do procedimento a que a Autora se submeteu, pelo que, não carece de ser aditado o ponto pretendido pela Autora, devendo a sua alegação improceder.
40. Acresce que a Autora pretende, ainda, aditar o seguinte ponto à factualidade assente:
«A Autora não prestou consentimento informado, esclarecido e livre para o ato cirúrgico realizado pelo Réu, nem subscreveu o formulário previsto na norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde».
41. Recordando-se o que anteriormente se disse, resulta provado, pelo depoimento das testemunhas EE (depoimento da testemunha de 00:06:40 até 00:06:50; de 00:20:38) e DD (depoimento da testemunha de 01:01:51 até 01:02:42) asseguram que é protocolo instituído que nenhum paciente entra no bloco operatório sem que haja assinado o consentimento informado.
42. Aliás, atento o depoimento das testemunhas indicadas, ainda que não conste da prova dos autos o formulário previsto na norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde assinado pela Autora, não é possível dar-se como provado que a Autora não o terá assinado.
43. Com efeito, a sentença recorrida espelha precisamente este ponto quanto refere que «da inexistência (nos autos) deste documento não de pode retirar que a autora não estivesse informada nem que não tenha dado o seu consentimento».
44. De facto, porque se acompanha o entendimento do Tribunal a quo, sempre se diga que não esteve em discussão o consentimento prestado pela Autora, na medida em que esta nunca alegou que a intervenção cirúrgica se realizou à revelia da sua vontade, pelo que a inexistência nos autos de tal formulário não tem nenhuma relevância, na medida em que o documento se destina precisamente a registar o que no caso já era incontroverso (o consentimento), em nada se relacionando com o prévio esclarecimento.
45. Quanto ao esclarecimento livre, ter-se-á que atender ao que se referiu a respeito do ponto 53, porquanto se concluiu que, de facto, não impendia sobre o Réu o dever de esclarecer a Autora a respeito de todas as possíveis, ainda que implausíveis e anómalas, consequências da realização do procedimento cirúrgico.
46. Por tudo quanto se expôs, no que se refere à matéria de facto, andou bem o Tribunal a quo na apreciação da prova produzida, sendo exímia a interpretação e valoração feita, não carecendo de ser a mesma alterada e/ou aditada.
DO DIREITO
47. Para que se pudesse satisfazer a pretensão da Autora no que respeita aos pressupostos da responsabilidade civil, para que pudessem ser os Réus condenados no pagamento dos danos alegados nos autos, sempre caberia à Autora fazer prova dos mesmos, nomeadamente: do facto, da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo de causalidade.
48. Primeiramente, teria de decorrer da factualidade assente que houve ilicitude na conduta do Réu.
49. Do quadro factual provado, não resulta que o Réu tenha agido em detrimento das boas práticas médicas, seja no que respeita à escolha do procedimento cirúrgico adotado, pela omissão do esclarecimento da Autora sobre os riscos da realização da cirurgia e na prática de um ato que causou a rutura no canal excretor.
50. A prova pericial é clara e objetiva: o procedimento adotado foi adequado ao que se impunha no caso concreto e foram respeitadas as boas práticas médicas na sua execução (leges artis).
51. O que, sempre se diga, em tudo foi convergente com a prova testemunhal constante dos autos, na medida em que decorre da mesma que nenhum erro foi cometido pelo Réu na escolha do procedimento (por se mostrar adequado às características dos exames pré-operatórios da Autora), quer na execução do mesmo.
52. No que respeita ao consentimento, adotamos a teoria do risco significativo adiantada na sentença em crise, pelo que, há que dizer que apesar de ser um risco associado, a frequência estatística da rotura do canal excretor ao nível pielo-calicial, por não representar, in casu, o que se considera um risco significativo no âmbito do procedimento cirúrgico adotado, não impunha que o Réu tivesse a obrigação de o comunicar à Autora.
53. Acresce ainda que, conforme se viu, a Autora também não logrou provar o facto constante de ponto 64 da matéria não provada.
54. Não tendo resultado provada a ilicitude em nenhum dos momentos descritos, falha a prova da culpa e todos os restantes pressupostos cumulativos e necessários para que haja a obrigação de indemnizar por parte dos Réus.
55. Ademais, conforme também decorre da sentença recorrida, cabe mencionar que «resulta dos fundamentos de facto que não há irregularidades na atuação do réu, e que a causa das sequelas observadas, por exemplo, no exame pericial está nos processos inflamatórios e de cicatrização ulteriormente desenvolvidos, sem relação direta com a atuação do cirurgião».
56. Pelo que, por todo o exposto, não poderá o recurso interposto pela Autora proceder, por não provado, devendo ser mantida, na íntegra, a sentença recorrida, por nela se ver espelhada a boa decisão da causa.
Termos em que, e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente se dignarem suprir, dentro do Vosso Mais Alto Saber e Critério, deverá o recurso interposto pelos Autora ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se na íntegra da sentença recorrida.”
O recurso foi admitido como APELAÇÃO, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
A questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a da modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.

III-DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).
A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[1], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais.[2]
Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.
Tendo isto presente, analisemos agora a situação em apreço.
A Autora, não se conformando com as respostas dadas aos factos constantes dos pontos n.º 13, 14, 49, 50, 51, 52, 53 al. a) e b), 54, 55, 56, 57, 58 e 59 dos Factos Provados, n.º 62 e 64 dos Factos Não Provados, veio impugnar a matéria de facto, tendo, para tanto observado os ónus impostos pelo art. 640º do CPC, pelo que passaremos á reapreciação dos mesmos, para o que procedemos á audição da prova gravada, á análise dos relatórios periciais e demais documentação junta aos autos.
Antes de procedermos á apreciação de cada um dos concretos pontos da matéria de facto impugnados, cumpre proceder às seguintes considerações prévias, que se impõe desde logo fazer, uma vez que na sentença não se mostra expresso o raciocínio do julgador na análise crítica dos depoimentos médicos prestados, limitando-se a afirmar que todas as testemunhas depuseram “de modo claro e coerente”.
Na audiência de julgamento foram ouvidos cinco médicos como testemunhas, que demonstraram ter conhecimentos direto dos factos ocorridos em discussão, uma vez que, todos eles, nessa qualidade, prestaram assistência à autora: Os Srs. Drs. EE, médica anestesista e DD, médico da especialidade de urologia que intervieram na primeira cirurgia a que a autora se submeteu, de remoção do cálculo renal, integrando a equipa cirúrgica do 2º Réu e o Dr. II, todos eles pertencentes á equipa cirúrgica ao serviço da Ré.
Com menor interesse, para o apuramento dos factos, foi prestado depoimento pelo Dr. II, médico de cirurgia geral, porque interveio apenas no final da segunda cirurgia efetuada á autora nas instalações hospitalares da Ré de laparotomia para drenagem de líquido intra-abdominal.
Foram ainda ouvidos, os médicos intensivistas que assistiram a autora no Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital ..., sito em Matosinhos, (a seguir designado Hospital ..., por facilidade de exposição), os Srs. Dr.s GG e o Dr. CC, que exercia e exerce funções de Diretor de Medicina Intensiva naquele Hospital, e que acompanharam a autora naquele hospital, onde a autora veio a ser submetida a múltiplas cirurgias nos anos que se seguiram.
Estes depoimentos revelaram-se essenciais para, em confronto com a documentação médica remetida quer pela 1ª Ré, quer pelo Hospital ..., quer pelo Hospital 1..., em Fafe, onde a autora também esteve internada, nomeadamente os exames médicos, os relatórios periciais médicos, conjugados ainda com o Parecer dos Médicos da Especialidade da Ordem dos Médicos que foi solicitado pelo Tribunal, no decurso deste processo, se apreender o que ocorreu no decurso da cirurgia ora em discussão.
Isto posto, no que respeita á causa que deu origem ao estado de “choque intenso” e de “falência múltipla de órgãos”, que colocaram a autora em risco de vida, estado em que a autora deu entrada na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital ..., encontra-se provado e não foi objeto de impugnação que foi a execução da ureterorrenoscopia, com fragmentação por laser de cálculo renal que provocou uma rutura no canal excretor, ao nível pielo-calicial (facto 12 dos factos provados).
De realçar o depoimento prestado pelo Sr. Dr. CC que, acompanhou a autora “desde a primeira hora” nos serviços de Cuidados Intensivos do Hospital ..., que logo no início do seu depoimento referiu que mesmo para a sua extensa carreira, tratou-se de um “caso invulgar”, por isso, ainda dele se recordar. Teve ainda o cuidado de consultar previamente o processo para reavivar a memória. O seu depoimento prestado duma forma exemplar e completamente desinteressada, teve ainda o mérito de ter sido efetuado com recurso a linguagem clara e apreensível para os não técnicos em medicina.
Explicou em que consiste o procedimento de remoção do cálculo renal a que a autora havia sido submetida. Afirmou a rutura do canal excretor ocorreu seguramente no decurso dessa cirurgia. Que isso é indiscutível. Tratava-se de um procedimento de risco para que tal pudesse acontecer. E explicou, que a rutura ocorrida no decurso da execução da cirurgia de remoção do cálculo renal, fez com que o líquido (soro fisiológico) que é injetado sobre pressão durante o procedimento, para fragmentar o cálculo, gerou uma saída volumosa de líquido (cerca de 5 litros) para espaços para onde não deveria ir. O líquido e ar foram para um compartimento semi-extensivel (abdómen) o que comprimiu as vísceras da autora e alterou a dinâmica do sangue. Provocou o fenómeno conhecido como síndrome do compartimento intra-abdominal.
Foi este processo que apelidou de “mecânico”, que ativou depois uma cadeia de fenómenos, uma disfunção multiorgânica. Desencadeou um processo que apelidou de “processo molecular” difícil de detalhar, mas que gerou consequências muitos graves, já que a autora ficou em falência múltipla de órgão, tendo ficado convencido que ela não iria sobreviver.
Teve de ser aberto o abdómen da autora para expandir as vísceras e fazer parar a hemorragia, tendo a autora ficado com o abdómem aberto (uma incisão desde o torax até à púbis) durante vários dias para permitir as sucessivas intervenções médicas que se tornaram necessárias. A pressão sobre as vísceras provocou entre outros danos necrose parcial do intestino da autora, que teve de ser removido e outros danos, cujas consequências a autora ainda hoje padece.
O depoimento da Drª GG, que procedeu à segundo cirurgia à autora naquela Unidade de Cuidados Intensivos, ainda nas primeiras 24 horas após ter a doente ter dado entrada e que acompanhou a autora foi concordante com esta exposição.
Relativamente às explicações dadas pelos dois médicos que participaram na equipa do 2º Réu que procedeu à cirurgia de remoção do cálculo renal, foi afirmado pela Drª EE, que fez sempre recordar ao longo do deu depoimento que participou na cirurgia enquanto anestesista não sendo especialista em urologia, que o diagnostico mais provável, capaz de explicar o sucedido na altura, foi o da ocorrência de urosepsis, que foi evoluindo, conduzindo a autora a tal estado crítico.
Esta causa – ocorrência de uma infeção generalizada no decurso daquela cirurgia – mostra-se afastada pelo facto de tal infeção não se mostrar confirmada por meio de exame a que a autora tenha sido submetida no hospital da 1ª Ré, como a própria testemunha reconheceu e ainda pela razão dos médicos intensivistas, Drª GG e Dr. CC terem, nos seus depoimentos negado que a autora tivesse dado entrada no Hospital ... com um quadro se sepsis, afirmando que só mais tarde tal veio a ocorrer. O Dr. CC foi muito claro. “Não se tratava de uma sepsis. Os exames e colheitas efetuados não indicavam infeção. A causa do estado da paciente não era uma infeção. Esclareceu que apenas foi ministrado antibiótico à paciente, apenas “por defeito”.
Já o Dr. DD, médico urologista, apresentou duas causas para a ocorrência da rutura, que constam aliás no elenco de causas possíveis para o ocorrido, assinaladas no Parecer da Ordem dos Médicos junto aos autos. Assim, uma causa seria decorrente da própria patologia sofrida pela autora – a volumosa massa litiásica pode fragilizar o sistema, e “auto-romper-se”, referindo a testemunha que é que muito vulgar observar nas TACs destes doentes lesões cicatriciais que provocam extravasamento de líquido e a segunda causa seria a rutura decorrente do manuseamento dos aparelhos durante a cirurgia.
Como dissemos, no Parecer da Especialidade de Urologia da Ordem dos médicos são apresentadas estas causas como possíveis para a rutura do canal excretor, podendo aí ler-se o seguinte: “Mas pode ter havido rutura do sistema excretor em consequência da patologia litiásica – a volumosa massa litiásica pode fragilizar o sistema excretor, nomeadamente na sequencia de cólica renal recente – ou do próprio procedimento técnico, sendo uma complicação possível deste tipo de intervenções.”
O Dr. DD excluiu a segunda hipótese dizendo que se o equipamento usado durante o procedimento médico tivesse causado qualquer lesão no sistema urinário da autora, ocorreria uma hemorragia e deixariam de ter imagem no monitor, pelo que a cirurgia teria de ser imediatamente interrompida. Como “foi possível levar a cirurgia até ao fim e colocar o stencil”, fica afastada dessa forma a possibilidade de tal ter acontecido, pelo que na sua opinião apenas poderia ter ocorrido a primeira hipóteses.
Analisando estas duas causas apontadas, parece-nos que a primeira (fibrose cicatricial que terá provocado a rutura), não se mostra comprovada pelo TAC feito pela autora, quando o mesmo médico afirmou que é uma situação “que se vê nos TACs facilmente”, sendo certo que a mesma ocorreu durante um procedimento “agressivo”, já que implica a injeção de grande quantidade de água e uso de laser, pelo que não é possível afirmar que a rutura ocorreu “apenas” em consequência do estado fragilizado do sistema excretor da autora em consequência da existência do cálculo renal.
Quanto á segundo hipótese, a versão do médico assistente é contrariada pela versão apresentada pelo Réu Dr. BB, o cirurgião responsável pela cirurgia, quando afirma na contestação o seguinte: “Na parte final da cirurgia, verificou-se a existência de uma distensão abdominal significativa, pelo que a cirurgia teve de ser interrompida e colocado um cateter duplo J no rim esquerdo.” (cfr. facto 50).
Portanto, segundo o réu houve interrupção da cirurgia, porque havia já sido detetado líquido no abdómen da paciente, o que afasta a versão trazida a juízo pelo médico assistente.
Do exposto resulta que não foi feita prova da concreta causa que originou a rutura do canal excretor da autora, apenas havendo a certeza que tal rutura ocorreu durante a execução da ureterorrenoscopia pelo 2º Réu, nas instalações da primeira ré.
Isto posto, vejamos agora, os factos impugnados, individualmente.
Impugnação do facto 13:
Facto 13 - Tal rutura permitiu o extravasamento do soro fisiológico, usado sob pressão, para o interior do abdómen, ficando este com abundante líquido e bolhas gasosas.”
Pretende a Recorrente que seja concretizada a “abundância” do líquido – 5 litros – quantidade que foi mencionada no depoimento da testemunha CC; quantidade que o próprio Tribunal cita na motivação da sentença e que ainda consta da confissão vertida na contestação dos RR., no seu artigo 54º.
Tem razão a autora. Apesar no relatório médico realizado a 14.10.2015 ser feita apenas referência a “abundante quantidade de líquido e bolhas gasosas” e mais á frente mencionar “abundante quantidade de líquido intraperitoneal”, a testemunha identificada mencionou no seu depoimento a quantidade de 5 litros, sendo que o Réu confessa na contestação ter “drenado 5 litros de líquido”.
Procede pois a impugnação passando o facto 13 a ter a redação sugerida:
Facto 13 - Tal rutura permitiu o extravasamento de cerca de 5 litros de soro fisiológico, usado sob pressão, para o interior do abdómen, ficando este com abundante líquido e bolhas gasosas.”
Impugnação do facto 14:
14 – Na parte final da cirurgia – na qual, intencionalmente, não foi fragmentado todo o cálculo, face à sua dimensão, e já depois de ter sido colocado um cateter ureteral JJ –, a equipa médica constatou uma marcada distensão abdominal e perineal, pelo que a autora realizou de imediato uma TC, na qual se constatou a existência de volumosa quantidade de líquido intra-abdominal e intra-peritoneal.
Alega a Recorrente que não se pode extrair que tenha sido já depois de ter sido colocado um cateter JJ que a equipa médica constatou uma marcada distensão abdominal e perineal, nem tão pouco que tenha sido, intencionalmente não foi fragmentado todo o cálculo, face à sua dimensão.
Isto porque, os próprios Réus na sua Contestação, no artigo 50º, afirmam que, foi por se ter verificado a existência de uma distensão abdominal significativa, que a cirurgia teve que ser interrompida e colocado um cateter duplo J no rim esquerdo.
Por sua vez, o parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos refere no ponto 2 dos elementos apurados que: “o procedimento aparentemente não foi completado devido a complicação com distensão abdominal que motivou laparatomia exploradora de urgência e complicações múltiplas (…).”
E que a testemunha DD explicou que a não fragmentação integral do cálculo se ficou a dever a ter-se esgotado o tempo durante o qual seria de “bom senso” continuar a submeter o ureter a traumatismo e a hiperpressão intra renal.
Já os Recorridos alegam que de acordo com o depoimento desta testemunha o cateter só o colocado no final da cirurgia e a Drª EE que a distensão abdominal só foi detetada no final da cirurgia quando estavam a desmontar os campos, quando detetaram edema nos membros inferiores e edema vulvar. Que o abdómen estava tapado e por isso não era percetível.
Decidindo.
Acreditamos que a Drª EE, que estava a monitorizar os efeitos da anestesia, e não interveio na execução da cirurgia, só se tenha apercebido da distensão abdominal nos moldes que relatou, quando foram descobertas as pernas da paciente, já na desmontagem do equipamento.
Ora, os réus reconhecem na contestação, “Na parte final da cirurgia verificou-se uma distensão abdominal significativa, pelo que a cirurgia teve de ser interrompida” – cf. Art. 50º da contestação.
Aliás esta é a versão mais conforme às regras da normalidade. Com efeito, parece-nos bizarro que a equipa médica (com exceção da anestesista, ocupada a verificar outros parâmetros), não se apercebesse da quantidade de água equivalente a um “garrafão de cinco litros”, sob o abdómem da paciente…
Acresce que, tal como referido pelo marido da autora, a testemunha FF, que se nos afigura ter deposto de forma desinteressada, e no relato deste episódio de forma espontânea, que no dia da cirurgia em que acompanhou a mulher ao hospital e ali ficou a aguardar o seu término, o Dr. BB foi ter consigo, pedindo-lhe que assinasse um termo de responsabilidade para poderem efetuar uma segunda cirurgia na autora, explicando-lhe que as coisas tinham corrido menos bem e tinha entrado líquido no abdómen e tinham de o retirar, sendo necessário fazer uma perfuração, o que ás vezes acontecia e não era preocupante.
Daí que não seja credível a versão da testemunha DD, que disse que a cirurgia progrediu até ao fim e que foi interrompida voluntariamente pela equipa médica por estar a esgotar-se o tempo previsto e que decidiram fragmentar o cálculo em dois tempos, o que, como afirmou é habitual nos cálculos de grandes dimensões.
Acresce o teor do parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos refere no ponto 2 supra transcrito.
Pelo exposto, o Facto 14, passará assim a ter a seguinte redação:
“14 - Na parte final da cirurgia – na qual não foi fragmentado todo o cálculo –, a mesma teve que ser interrompida por a equipa médica ter constatado uma marcada distensão abdominal e perineal, pelo que a autora realizou de imediato uma TC, na qual se constatou a existência de volumosa quantidade de líquido intra-abdominal e intra-peritoneal.”
Impugnação do facto 49:
49 – O procedimento descrito no ponto 6 – factos provados – é apropriado ao tratamento da patologia referida, de acordo com as regras técnicas médicas atualizadas de boas práticas internacionalmente aceites e seguidas (leges artis).
Alega a Autora, que não se vislumbra em que meio de prova o Tribunal sustentou a conclusão aí exarada, e muito menos à luz da prova produzida se pode aceitar que, em face do concreto estado clínico da Autora, este procedimento fosse o apropriado ao tratamento da sua patologia.
Se em geral até se pode admitir que este procedimento possa ser adequado à remoção de cálculos renais, já tal não se mostra demostrado que fosse aplicável à situação da Autora, até porque a técnica cirúrgica que veio à posteriori a ser escolhida para remoção do cálculo, não foi a ureterorrenoscopia e fragmentação por laser, mas antes, a nefrolitotomia percutânea (NLPC). - Cfr. ponto 24 al. c) dos Factos Provados.
A Autora explicou nas suas declarações, que o médico que realizou a referida NLPC lhe afirmou que atento o tamanho do cálculo em causa, nunca o mesmo deveria de ter sido removido através da ureterorrenoscopia, mas sim, pela nefrolitotomia percutânea.
A testemunha DD, que coadjuvou o Réu médico na ureterorrenoscopia é o próprio que, no seu depoimento, explicita que, tendo presente o sucedido, a opção pela NLPC teria sido a melhor.
Logo, jamais poderia o Tribunal ter concluído que o procedimento adotado era, in casu, o apropriado ao tratamento da patologia em causa, impondo-se que este ponto transite para os Factos não Provados.
Apreciando.
Resulta da prova produzida, nomeadamente do testemunho dos médicos ouvidos em audiência de julgamento, decorrendo ainda do Parecer do Colégio de Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, que o procedimento escolhido pelo Dr. BB – ueterorrenoscopia e fragmentação por laser de cálculo renal - é um dos métodos utilizados para remoção de cálculos renais, sendo apropriado e adequado ao tratamento de tal patologia.
Uma vez que é um dos meios apropriados e não o único, como resulta desde logo do facto provado 22 alíneas c) e i).
É que se provou que a autora em 5 de julho 2017 foi submetida a nova cirurgia para tratamento da mesma patologia – remoção do mesmo cálculo renal – desta feita através do método denominado nefrolitomia percutânea, o qual decorreu sem complicações, tendo então sido totalmente removido o cálculo renal.
Haverá assim que concretizar no facto 49, que o método utilizado é apenas um dos métodos adequados á remoção de cálculos renais.
Desta forma altera-se a redação do facto 49, que passará a ser a seguinte:
49 – O procedimento descrito no ponto 6 – factos provados – é um dos procedimentos apropriados à remoção de cálculos renais, de acordo com as regras técnicas médicas atualizadas de boas práticas internacionalmente aceites e seguidas (leges artis).
Impugnação do facto 50:
50 – O tratamento sugerido pelo réu é menos invasivo e tem menos riscos associados do que os tratamentos alternativos disponíveis, designadamente, a nefrolitotomia percutânea (NLPC).
Discorda a autora da prova deste facto, alegando dever ser retirada a expressão “e com menos riscos associados”.
Ora, no Parecer da Ordem dos Médicos – Colégio da Especialidade de Urologia, junto aos autos, pode ler-se o seguinte:
“Atualmente, com a evolução dos meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, melhor controle anestésico e hemodinâmico, tem reduzido as complicações, tornando os procedimentos mais fiáveis e com maior êxito, mas o potencial de complicações continua a ser muito elevado…”
Atestam pois os médicos uma maior fiabilidade e uma taxa de sucesso grande, deste tipo de intervenções, o que vai aliás ao encontro do testemunho do médico da especialidade Dr. DD, quando afirmou tratar-se de uma cirurgia rotineira, que se faz com frequência.
Não se mostra, porém feita porém uma comparação quanto ao riscos concretos desta cirurgia com outros tratamentos alternativos, para se concluir que “tem menos riscos associados”, sendo que o Colégio dos médicos urologistas afirma que “o potencial de complicações continua a ser muito elevado” na cirurgia a que a autora foi submetida.
Assim sendo, afirmando-se no parecer citado que o método utilizado implica um potencial de complicações muito elevado e não tendo sido efetuado uma comparação aos riscos associados aos demais métodos de tratamento da patologia em causa, concordamos com a autora que deva ser retirada tal expressão, que não reflexo na prova efetuada.
Passará o facto a ter a seguinte redação:
50 – O tratamento sugerido pelo réu é menos invasivo do que os tratamentos alternativos disponíveis, designadamente, a nefrolitotomia percutânea (NLPC).
Impugnação do facto 51:
51 – Os exames pré-operatórios prescritos e realizados pela autora são clinicamente adequados e não revelaram nenhuma contraindicação à adoção do procedimento descrito no ponto 6 – factos provados.
Diz a Autora que relativamente á prova deste facto não se alcança, em que concretos meios probatórios o Tribunal fundou a sua convicção.
Não só nenhuma prova foi produzida neste sentido, como aquilo que ficou demonstrado, o infirma. Desde logo, se era evidenciável da TAC que a Autora tinha um rim fragilizado e que o cálculo era volumoso (35 mm), aliado à circunstância de que o procedimento que logrou a remoção do cálculo, sem complicações, não foi aquele que o Réu selecionou, não poderia o Tribunal ter concluído que os exames pré-operatórios não revelaram qualquer contraindicação à adoção do procedimento descrito no ponto 6 dos factos provados.
Logo, apenas poderia o Tribunal ter dado como provado - e nessa medida deve ser alterado este ponto, que: 51 - Os exames pré-operatórios prescritos e realizados pela autora são clinicamente adequados à adoção do procedimento descrito no ponto 6 – factos provados.
Já os Réus afirmam que o teor do artigo 51 deve manter-se imutável, face ao teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal e ao parecer do colégio da especialidade.
A Ré seguradora alega, por sua vez que, atendendo a que o facto de ter sido realizado no Hospital ... uma NLPC, diverso do procedimento realizado pelo Réu, e que logrou completar a remoção do cálculo da Autora sem complicações, não quer dizer que o mesmo procedimento não pudesse causar determinadas complicações se tivesse, porventura, sido o adotado pelo Dr. BB aquando da sua intervenção.
A testemunha explica ainda que, de facto, a composição dos cálculos apenas é cognoscível após a sua remoção, pelo que, à partida, antes de efetuado o procedimento, não se tem perceção do fenómeno que se enfrentará. Não se pode deixar também de remeter para as conclusões vertidas no Parecer do Colégio de Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, na medida em que é claro e perentório de ter sido dado cumprimento à leges artis no procedimento em apreço, identificando a atuação dos urologistas envolvidos como «adequada» e sem que se tenha verificado qualquer lesão iatrogénica.
Decidindo.
Em face do depoimento prestado pelo único médico da especialidade ouvido em julgamento, Dr. DD, pode, na verdade, questionar-se o tratamento efetuado era ou não adequado á patologia apresentada pela autora.
Como resulta do exame pré-operatório efetuado, foi diagnosticado à autora a presença de litíase cálcica coraliforme (vulgo pedra no rim) com cerca de 35 mm de maior diâmetro.
Todos os médicos ouvidos em julgamento, se referiram àquele cálculo renal, como sendo de “grandes dimensões”.
Esta testemunha, médico da especialidade, referiu ainda que os cálculos “coraliformes”, como o apresentado pela autora, são cálculos grandes que evoluem ao longo de bastante tempo e por isso, fragilizam ainda mais o sistema urinário.
A Drª EE referiu que tais cálculo “coraliformes” surgem de processos crónicos. Não se desenvolvem em pouco tempo, há uma cronicidade no seu desenvolvimento.
Ora a testemunha DD quando diretamente perguntado, no decurso da audiência de julgamento, já no final do seu depoimento, se não se deveria ter optado por outra cirurgia respondeu: “à posteriori não tenho dúvidas de ter optado por outra opção”.
Ora, a verdade é que os médicos não foram surpreendidos na cirurgia com um “cálculo coraliforme” de 35 mm de maior diâmetro.
Tal informação constava no exame prévio realizado pela autora.
Poderiam não saber ao certo a dureza do cálculo, que depende da sua composição, como explicou o Dr. DD, mas essa era também uma informação que dispunham - só iriam descobrir se era um cálculo mais ou menos duro, mais ou menos difícil de destruir, durante o procedimento.
Como resulta do Parecer da Ordem dos Médicos – Colégio da Especialidade de Urologia, “a resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura dos sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc, que podem inclusive conduzir á morte do doente”.
Dessa forma entendemos que, em face da prova produzida, a redação do o facto em causa deva ser restringida, passando a ter a seguinte redação:
51 – Os exames pré-operatórios prescritos e realizados pela autora são clinicamente adequados e revelaram o que consta do facto supra 4.
Impugnação do facto 52:
52 – Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados –, o réu explicou à autora o seu estado clínico descrito no ponto 4 – factos provados –, bem como os procedimentos que seriam adotados na cirurgia proposta, designadamente a sujeição a anestesia geral, assegurando-se de que esta não tinha dúvidas sobre a explicação dada.
Afirma a autora que, apenas resultou provado que por ocasião da consulta a que alude o ponto 5 dos factos provados, o Réu referiu que o procedimento era simples e com um único dia de internamento (facto 7 dado como provado), sendo que, nenhuma outra prova quanto à natureza e extensão da explicação dos procedimentos, foi feita.
Muito menos se fez prova que o Réu se tivesse assegurado de que a Autora não tinha dúvidas sobre a explicação que lhe deu. O Tribunal alude na sua motivação ao depoimento da testemunha EE, sendo que esta apenas refere ter visto o Réu chegar e, já no bloco, perguntar “se tem alguma dúvida”. Ora, nem tal equivale a estar-se efetivamente a assegurar de que não existem dúvidas, e muito menos, como é evidente, se pode ter dúvidas em relação a algo que nem sequer foi explicado.
Ademais, a Autora a este respeito foi perentória em afirmar que, não só a explicação que lhe foi dada se limitou ao sobredito, como no aludido dia da operação o Réu não a questionou acerca de quaisquer dúvidas.
Vejamos.
A Autora relatou nas declarações de parte que prestou, que o Dr. BB a informou que “era uma pedra grande de 35 mm” e que lhe disse que lhe ia dar um bocado de trabalho a tirar, mas que a tirava.
A autora confessa na p.i (art. 4º da p.i), que tendo sido encaminhada para a consulta do Dr. BB, este lhe disse que “teria de proceder á remoção do cálculo renal e lho efetuaria por via retrograda endoscópica (uretrerronenoscopia e fragmentação por laser de calculo renal”.
Dentro da regras da normalidade é natural que tenha “traduzido” aquela intricada linguagem médica, explicando em que consistia o procedimento.
A Drª EE, no seu depoimento, referiu que se lembra do Dr. BB, à entrada para o bloco lhe ter perguntado se tinha dúvidas, ao que aquela respondeu não.
Assim, indefere-se a impugnação.
Facto impugnado 53 alínea a):
53 – Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados:
a) a autora foi informada dos efeitos normais da cirurgia programada, implicando estes, designadamente, a necessidade de um curto período de recobro e de internamento.
Alega a autora que o Tribunal relativamente à cirurgia programada, utiliza um conceito vago e indeterminado que se reconduz à expressão “efeitos normais”, não se alcançando ao que é que o Tribunal pretende aludir com tal expressão, nem foi produzida qualquer prova acerca de, em relação aos mesmos, a Autora ter sido informada.
Que de facto, o que objetiva e unicamente ficou demostrado é que a Autora foi informada de que a cirurgia implicava a necessidade de um curto período de recobro e internamento, nada mais! (ponto 7 dos factos dados como provados).
Apreciando.
Entendemos que este facto deve ser eliminado, porquanto nada mais resulta provado do que ficou a constar dos factos 7 -“Foi pelo réu explicado à autora que a intervenção consistiria num procedimento simples, com um único dia de internamento previsível” e 52-“Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados –, o réu explicou à autora o seu estado clínico descrito no ponto 4 – factos provados –, bem como os procedimentos que seriam adotados na cirurgia proposta, designadamente a sujeição a anestesia geral, assegurando-se de que esta não tinha dúvidas sobre a explicação dada.”
Facto impugnado 53 alínea b):
b) à autora não foi explicado que, no decurso da intervenção, podia ocorrer a rutura do canal excretor, ao nível pielo-calicial, suscetível de causar:
i) o aumento agudo da pressão intra-abdominal (síndrome de compartimento abdominal), causando um choque hemorrágico, com o sangramento abundante por todas as cavidades, designadamente, oronasal, bexiga e dreno abdominal ou cateter aplicados (coagulação intravascular disseminada), a demandar a realização de laparotomias para contrariar a síndrome de compartimento abdominal;
ii) disfunção respiratória, renal e metabólica, a demandar suporte respiratório e suporte aminérgico;
iii) instabilidade hemodinâmica, a demandar politransfusão;
iv) síndrome isquemia/reperfusão, sobretudo na zona abdominal/pélvica e nos membros inferiores;
v) isquemia intestinal, com necessidade de colectomia subtotal e ileostomia com abandono de topo rectosigmoide;
vi) hepatite isquémica com insuficiência hepática aguda transitória;
vii) lesão isquémica dos calcanhares com áreas necrosadas;
viii) síndrome de resposta inflamatória sistémica (SIRS) exuberante e colecistite;
ix) colecistite gangrenosa com necessidade de colecistectomia; citólise hepática importante; insuficiência hepática; isquemia das vias biliares intra-hepáticas; colestase isolada;
x) necrose tubular aguda / lesão renal aguda oligúrica; necessidade de terapia de substituição renal; poliúria;
xi) lesão subaguda moderada a grave bilateral dos nervos femoral, tibial e peronial comum, e com atingimento sensitivo-motor preferencial dos seus ramos, mas mais distais nos membros inferiores;
xii) fraqueza muscular global; ambos os pés pendentes; ausência de sensibilidade a partir da região maleolar até aos dedos no pé direito, bem como na face dorsal do pé esquerdo e nos dedos;
xiii) hemorragia subconjuntival e colonização por Stenotrophomonas maltophilia.
Diz a autora, quanto a esta alínea que, ficou demostrado que à Autora não foi explicado qualquer risco que pudesse ocorrer no decurso da intervenção, o que a mesma claramente afirmou, ao passo que os Réus nenhuma prova produziram de que tal explicação lhe tivesse sido feita.
Aliás, diz a autora, nem sequer o formulário, legalmente obrigatório, que deveria ser subscrito pela Autora relativo à prestação do seu consentimento e do qual, geralmente, consta a menção de ter sido explicada quanto aos riscos da cirurgia, os Réus se dignaram juntar aos autos. Assim, o que o Tribunal deveria ter dado como provado é que à Autora não foram explicados quaisquer riscos que pudessem advir da intervenção em causa. Termos em que, também deverá ser alterada a redação da alínea b) do n.º 53 dos Factos Provados, passando da mesma a constar: b) à autora não foram explicados quaisquer riscos de complicações que poderiam advir da intervenção, nomeadamente, que podia ocorrer a rutura do canal excretor, ao nível pielo-calicial, suscetível de causar:(…).
Já os réus, pugnando pela manutenção do decidido, dizem que o argumento invocado pela Recorrente no sentido de que a Autora afirmou que não lhe foi referido nenhum concreto risco não é suficiente para dar como provado que “à autora não foram explicados quaisquer riscos de complicações que poderiam advir da intervenção”, isto porque as declarações de parte da Autora não foram corroboradas por qualquer outra prova que sustentasse tal afirmação, tendo até sido infirmadas pela prova descrita no ponto antecedente.
Vejamos.
Pretende a Autora que fique provado que, não foram explicados quaisquer riscos de complicações que poderiam advir da intervenção, nomeadamente, os discriminados no facto 53 al b).
Trata-se da prova de um facto negativo, cujas dificuldades de demonstração são por todos reconhecidas.
Nas alíneas i) a xiii) estão elencadas as consequências sofridas pela autora em consequência da rutura do canal excretor, que constam aliás do facto provado 18.
Ao Réu incumbia a prova dos esclarecimentos prestados.
É a solução que resulta do argumento do princípio da igualdade de armas; da igualdade na aplicação do direito; do argumento que a prova de um facto negativo configura uma prova diabólica e que o consentimento informado constitui uma causa de justificação da ilicitude (art. 342º nº 2 do C.Civil).
Ora da prova produzida, apenas resulta a matéria provada nos factos 7 -“Foi pelo réu explicado à autora que a intervenção consistiria num procedimento simples, com um único dia de internamento previsível” e 52-“Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados –, o réu explicou à autora o seu estado clínico descrito no ponto 4 – factos provados –, bem como os procedimentos que seriam adotados na cirurgia proposta, designadamente a sujeição a anestesia geral, assegurando-se de que esta não tinha dúvidas sobre a explicação dada.”
Na lograram provar terem advertido a autora de quaisquer riscos associados á cirurgia e a própria existência de riscoso ficou até de alguma forma “camuflada” com a informação que lhe prestaram de que a cirurgia consistia num procedimento simples e que a mesma implicava um único dia de internamento.
Desta forma para além da redação do facto 53º al. b) (com a qual os réus e intervenientes não demonstraram discordância neste recurso), da mesma forma ficou demonstrado que também a autora não foi informada dos demais riscos da concreta cirurgia efetuada (resolução cirúrgica de grande massa litiásica), que se encontram descriminados no Parecer da Ordem dos Médicos- Colégio da Especialidade de Urologia, que informa que a resolução cirúrgica em causa “é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc, que podem inclusive conduzir á morte do doente”
Desta forma deve adicionar-se uma alínea ao facto 53, que poder a alínea a) com a seguinte redação:
a) a autora não foi informada das complicações que poderiam surgir da cirurgia programada, como sepsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa e outras.
Impugnação do facto 54º:
54 – Embora a rutura do canal excretor não seja um efeito implausível da intervenção a que a autora foi submetida, a sua ocorrência é absolutamente anómala.
Defende a Autora que o Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia, da Ordem dos Médicos, junto aos autos, a este propósito, refere que: “A resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura dos sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente.”
Assim, diz a autora, não poderia o Tribunal ter dado como provado mais do que o seguinte, que deverá passar a ser a redação deste ponto: 54 - A rutura do canal excretor não é um efeito implausível da intervenção a que a autora foi submetida.
Afigura-se-nos que efetivamente nenhuma prova foi feita da “anormalidade” da ocorrência da rutura do canal excretor no decurso da cirurgia, sendo que do aludido Parecer médico tal risco é mencionado e repetido por diversas vezes, como sendo um risco “normal” do procedimento.
Afirmam os médicos da especialidade no aludido parecer que:
-“Pode ter havido rutura do sistema excretor em consequência …do próprio procedimento técnico, sendo uma complicação possível deste tipo de intervenções.”
-“Mesmo em centros muitos experimentados, a rutura do sistema excretor de modo espontâneo ou no decurso de intervenção, como acima já referido, pode ocorrer”.
-“Como já acima referido, a rutura do sistema excretor, pode ocorrer espontaneamente na sequência da volumosa massa litiásica, bem como na sequência de procedimento cirúrgico, dada a fragilidade renal”.
Acrescem as palavas assertivas do Dr. CC, no sentido que se tratou de um procedimento de risco para o que aconteceu. E afirmou: Quanto a isto há a certeza”. É factual.”
Porque isto não se mostra refletido no facto 54, impõe-se a sua alteração, passando a ter a seguinte redação:
54 – A rutura do canal excretor pode ocorrer no decurso da intervenção a que a autora foi submetida.
Facto impugnado 55:
55 – Os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados – são de ocorrência conjunta sem significado estatístico, nunca tendo sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, designadamente, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora.
Alega a autora que nenhuma prova foi produzida de que tais efeitos de verificação conjunta, não tenham significado estatístico ou que nunca tenham sido alguma vez observados, sendo que o Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, afirma, textualmente, que: “A resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sepsis, hemorragia, rutura dos sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente.”
Pede que seja reformulado este concreto ponto da matéria de facto, passando do mesmo a constar, tão só que: 55 - Os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados –, nunca tinham sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora.
Na defesa, os recorridos dizem que o ponto 55 dos factos provados deve manter-se inalterado, pois resulta da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas Dra. GG e Dr. CC que assistiram a Autora aquando da sua chegada às urgências do Hospital ....
Vejamos.
A autora deu entrada deu entrada no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital ..., transferida do Hospital da ré, por iniciar quadro clínico compatível com CID – sangramento exuberante por todas as cavidades (oronasal, bexiga e pelo dreno abdominal) –, com evolução para choque, com disfunção respiratória, renal e metabólica, com necessidade de suporte aminérgico. (facto provado 17).
A médica intensivista Drª GG referiu no seu depoimento, referindo-se ao quadro de choque extenso, nunca ter visto um caso como este e que habitualmente um doente que apresenta um quadro como o da autora não é tão “catastrófico”. Explicou que em qualquer agressão, um doente pode reagir desta forma. Só não é habitual as consequências serem tal graves.
Também o DR. CC referiu no início do seu depoimento que lembrava do caso por ter sido para si um “caso invulgar”, pese embora a extensão da sua carreira médica.
Tratar-se á do “processo molecular” a que este médico fez referência no seu depoimento, que conduziu á falência dos órgão da autora.
Ao contrário do processo mecânico – rutura levou á entrada de água e ar sob pressão no abdómen da autora, em sítios onde não deveria estar, comprimindo as vísceras – síndrome do compartimento intra-abdominal, no “processo molecular” que inclui a reação concreta dos órgãos de cada paciente àquela situação, revelou-se na autora com consequências muito graves.
Tal com a recorrente alega não foi produzida prova de que tais efeitos sejam de verificação conjunta, não tenham significado estatístico ou que nunca tenham sido alguma vez observados.
Assim sendo, entendemos que pela razões adiantadas na apreciação do facto anterior, a primeira parte deste facto não poder subsistir, acolhendo-se a redação sugerida pela autora.
55- Os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados –, nunca tinham sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora.
Facto impugnado 56:
56 – A coagulação intravascular disseminada (CID) é um distúrbio hemorrágico que pode ser causado por diversos transtornos graves, designadamente, sépsis, trauma ou choque, não estando especialmente associada à síndrome de compartimento abdominal (SCA).
Alega a autora não compreender qual o interesse ou alcance da sua inclusão para a boa decisão da causa, nem qualquer prova se produziu relativamente à afirmação de que a coagulação intravascular disseminada (CID) não esteja especialmente associada à síndrome de compartimento abdominal (SCA). Assim, mesmo que se admita a manutenção deste ponto, terá o mesmo que ser expurgado daquela afirmação, ficando, tão só, a constar o seguinte: 56 - A coagulação intravascular disseminada (CID) é um distúrbio hemorrágico que pode ser causado por diversos transtornos graves, designadamente, sépsis, trauma ou choque.
Já os Réus alegam que A redação do ponto 56 dos factos provados deve manter-se inalterada, pois a prova produzida, mormente a prova testemunhal de GG e de CC aos minutos demonstra que o SCA não tem como consequência imediata o quadro de CID.
Dos depoimentos prestados por estes médicos resulta que o CID, que a autora sofreu é uma consequência possível do trauma sofrido pela autora da cirurgia, mas que existem outras causas para a ocorrência da Coagulação Intravenosa Disseminada.
Assim, mantem-se a redação do aludido facto.
Impugnação dos factos 57, 58 e 59:
57 – A rutura referida no ponto 12 – factos assentes – não resultou de uma errada execução, face às regras técnicas atualizadas da ciência médica (leges artis), do procedimento cirúrgico adequado adotado.
58 – A rutura referida no ponto 12 – factos assentes – não resultou de um contacto direto de nenhum instrumento cirúrgico utilizado com o bacinete ou outro ponto do sistema renal.
59 – Os procedimentos adotados pelo réu na execução da cirurgia foram conformes às regras técnicas atualizadas da ciência médica (leges artis).
Defende a autora que o ponto 57, 58 e 59 dos Factos Provados, acha-se formulado em termos conclusivos e quanto às conclusões nele ínsitas, nenhuma prova foi produzida.
Vejamos.
Encontra-se provado o seguinte facto, que não foi impugnado por nenhuma das partes: 12-A execução da ureterorrenoscopia, com fragmentação por laser de cálculo renal, provocou uma rutura no canal excretor, ao nível pielo-calicial.
Este é um facto incontroverso que resultou do julgamento da matéria de facto.
Quanto ao facto 58, o tribunal terá “acolhido” a versão dos factos que foi trazida a juízo pela testemunha Dr. DD, segundo o qual não poderia ter ocorrido uma rutura do canal excretor em consequência de contacto direto de nenhum instrumento cirúrgico utilizado com o bacinete ou outro ponto do sistema renal, porquanto a ocorrer tal situação, a cirurgia teria de ser imediatamente interrompida, pois haveria derrame de sangue que inviabilizaria a visão pelos monitores, o que seguramente não ocorreu, porque a cirurgia foi até ao fim. Apenas foi terminada antes da retirada da totalidade do cálculo renal, porque, como explicou já se havia esgotado o tempo previsto para a cirurgia e seria um risco para a paciente prolongá-la, até se conseguir a remoção total do cálculo.
Negou que o equipamento usado durante o procedimento médico pudesse ter causado qualquer lesão no sistema urinário da autora, nomeadamente o aparelho provocar uma rutura do rim, porque se tal acontecesse, como explicou, ocorreria uma hemorragia e deixavam de ter imagem no monitor e a cirurgia teria de ser imediatamente interrompida. Afirmou que o aparelho não pode ter lesado o rim. Ora, como afirmou “foi possível levar a cirurgia até ao fim e colocar o stencil”.
O argumento que esta testemunha que integrou a equipa cirúrgica do réu utilizou para afastar a possibilidade da rutura no decurso do procedimento no manuseamento dos aparelhos, no sentido a que se tal tivesse ocorrido, isso seria percecionado de imediato pela equipa médica, implicando a interrupção da cirurgia, não se mostra suficiente para a prova deste facto, desde logo porque esta versão do médico assistente é contrariada pela versão apresentada pelo próprio Dr. BB, o cirurgião responsável pela cirurgia, quando afirma na contestação o seguinte: “Na parte final da cirurgia, verificou-se a existência de uma distensão abdominal significativa, pelo que a cirurgia teve de ser interrompida e colocado um cateter duplo J no rim esquerdo.” (cfr. facto 50).
Portanto, segundo o réu houve interrupção da cirurgia e a cirurgia não foi levada até ao fim (com extração da totalidade do cálculo), porque foi detetado líquido no abdómen da paciente, ou seja, porque ocorrera já uma rutura, o que afasta a versão trazida a juízo pelo médico assistente.
Desta forma, ante a contradição nesta parte entre o depoimento do médico assistente e do Dr. BB, na contestação, que admitiu que a cirurgia foi interrompida após se ter verificado líquido, ou seja após a rutura, não pode subsistir tal facto que assim será eliminado por falta de prova. Desta forma decide-se pela eliminação deste facto
Facto 58: eliminado
Quanto ao facto 57 e bem assim ao facto 59, trata-se de matéria conclusiva.
Como se sabe, os factos conclusivos, irrelevantes ou de direito não devem ser considerados provados ou não provados, devendo, ao invés, ser desconsiderados na fundamentação de facto.
Aliás, Helena Cabrita[3] refere mesmo que “A matéria conclusiva, irrelevante e de direito não deverá merecer uma pronúncia por parte do tribunal em termos de ser considerada provada ou não provada, mas, ao invés, ser incluída em lista que o tribunal elaborará (após a indicação dos factos não provados e antes de passar à fase da análise crítica da prova) e na qual indicará (através dos artigos onde tal matéria se encontra alegada nos articulados das partes) que a concreta matéria da qual não tomou conhecimento por entender que a mesma era conclusiva, irrelevante ou de direito.”
A matéria de facto incluída nos pontos 57 e 59 dos Factos Provados é manifestamente matéria conclusiva, e por inerência, não deve constar da factualidade provada, sendo tal conclusão remetida para a respetiva fundamentação de facto (no caso para a apreciação do presente fundamento de recurso).
Assim sendo, e por este motivo de ordem puramente processual, decide-se eliminar esta factualidade dos Factos Provados.
Factos 57 e 59: eliminados
Finalmente pretende a autora ver alterada a resposta aos seguintes pontos da matéria de facto que foram julgados não provados:
Impugnação do facto 62:
Facto 62: Os procedimentos adotados pelo réu na execução da cirurgia não foram conformes às regras técnicas atualizadas da ciência médica (leges artis).
Mais uma vez estamos perante um facto conclusivo, que pelas mesmas razões supra apreciados, não deve constar do elenco dos factos, devendo por conseguinte ser eliminado.
Facto 62: eliminado.
Impugnação do facto 64:
64 – Se à autora tivesse sido descritivamente explicado o risco de eventual rutura do canal excretor, referido na al. b) do ponto 53 – factos provados –, e a probabilidade estatística da sua ocorrência e consequências, jamais teria aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu.
É certo que foi feita esta pergunta diretamente à autora, que respondeu nesse sentido. Porém, não se pode considerar provado tal facto, apenas em face das declarações prestadas pela autora, em sede de declarações de parte, por não se mostrarem corroboradas por outro meio de prova, sendo que depois das consequências sofridas pela autora, que quase perdeu a vida, não seria expectável outra resposta.
Assim, mantem-se este facto como não provado.
Por último pretende a autora ver ADITADA a seguinte matéria de facto, alegando que a mesma interessa considerar para a boa decisão da causa.
O procedimento descrito no ponto 6 - factos provados – na resolução de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte dos doentes, devendo os mesmos ser informados dos riscos que correm.
Diz a autora que foi produzida prova, concretamente, através do Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, no sentido de que mesmo em centros muitos experimentados e recorrendo a meios de cirurgia minimamente invasiva, a rutura do sistema excretor no decurso da intervenção pode ocorrer, e que a resolução de grandes massas litiásicas é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem inclusive conduzir à morte do doente, devendo o mesmo ser informado do risco que corre.
Tratam-se dos riscos decorrentes do procedimento selecionado e executado pelo Réu, que se poderiam verificar ab initio, pelo que é manifesto o seu interesse para as questões em discussão no presente pleito, como sejam, do dever de informação e esclarecimento do Réu à Autora, ou ainda, da equação acerca de outros eventuais tratamentos alternativos disponíveis.
Apreciando.
Um dos fundamentos alegados pela Autora na p.i é o de não ter sido advertida dos riscos inerentes á realização da cirurgia.
Apesar de se tratar de documento junto aos autos, pensamos que deve ser destacado, tendo em consideração a boa decisão da causa, a posição consignada no aludido Parecer dos médicos da especialidade de urologia, quanto aos riscos das intervenções cirúrgicas para remoção de grandes massas litiásicas, tal como a intervenção a que foi submetida a autora.
Assim decide aditar-se um novo facto com a seguinte redação, transcrevendo-se a parte do aludido parecer:
59-A: De acordo com o Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos “a resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte do doente”.
Por último, alega a autora que, importa, para a boa decisão da causa, apurar acerca da verificação in casu de um consentimento informado, por parte da Autora.
Que conforme já ante alegado e demonstrado, a Autora não foi informada acerca de quaisquer riscos decorrentes do procedimento cirúrgico a que foi sujeita, bem como, o próprio Tribunal a quo dá como provado, que não lhe foi explicado, que no decurso da intervenção poderia ocorrer a rutura do canal excretor, suscetível de causar as múltiplas complicações elencadas na alínea b) do n.º 53 dos Factos Provados, o que só por si, já imporia que o Tribunal, necessariamente, tivesse que concluir que a mesma não poderia ter prestado um consentimento informado.
Não será desprovido de interesse, apurar se a mesma, ainda que apenas formalmente, declarou tal consentimento.
Ora, nenhum dos Réus juntou aos autos, como lhe competia, uma cópia do formulário do consentimento informado, esclarecido e livre, para atos/intervenções de saúde nos termos da norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde, o qual, in casu, era obrigatório.
Assim, é imperioso concluir que, igualmente, se terá de dar como provado e, por consequência, aditado à matéria de facto que:
- A Autora não prestou consentimento informado, esclarecido e livre para o ato cirúrgico realizado pelo Réu, nem subscreveu o formulário previsto na norma n.º 15/2013 da Direção-Geral da Saúde.
Quanto a esta matéria entendemos que a factualidade provada espelha já matéria provada nesta matéria, mostrando-se desnecessário o aditamento pedido pela autora.
Finda a apreciação da impugnação da matéria de facto feita pela recorrente, entendemos que resultou da instrução da causa um facto instrumental que a nosso ver tem relevância para a questão a decidir.
Os Drs. GG e CC referiram no seu depoimento, que o ora réu, Dr. BB acompanhou no bloco do Hospital ... o evoluir da situação da autora, esteve até presente na cirurgia efetuada pela Drª GG, tendo prestado colaboração com àqueles médicos, tendo demonstrado preocupação com o estado de saúde da autora , sendo que ambos emitiram a opinião no sentido de que foi uma “mais valia” a presença e a colaboração daquele.
Assim, decide-se oficiosamente aditar o seguinte facto ao elenco dos factos provados.
O 2º Réu acompanhou o estado clínico da autora, após esta ser transferidas para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital ..., demonstrando preocupação com o seu estado de saúde, tendo ainda se disponibilizado a colaborar com os médicos intensivistas que assistiram a autora, tendo inclusivamente participado numa das cirurgias a que autora foi aí submetida.

IV-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Com interesse para a decisão, encontram-se provados os seguintes FACTOS:
1. Relacionamento inicial entre as partes
1 – A ré é uma pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública, que tem como fim, entre outros, a prestação de cuidados de saúde, que desenvolve no seu estabelecimento hospitalar designado Hospital-2....
2 – O réu é médico especialista em Urologia e encontra-se inscrito no Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, desde maio de 2014.
3 – À data dos factos, o réu, por conta e ao serviço da ré e contra remuneração, exercia funções no referido hospitalar, como médico especialista de urologia.
4 – No dia 20 de setembro de 2015, domingo, a autora, por queixas de dor constante no flanco esquerdo, compareceu nos serviços de urgência do hospital da ré, tendo realizado uma TC, tendo os serviços da ré, com base nesta, diagnosticado a presença de litíase cálcica coraliforme (vulgo pedra no rim) com cerca de 35 mm de maior diâmetro, como causa das dores experimentadas pela autora.
5 – Na sequência deste diagnóstico, foi a autora encaminhada pelos serviços da ré para uma consulta de urologia, a ter lugar no mesmo hospital, no dia seguinte.
6 – A autora compareceu à consulta referida, sendo o réu o médico consultado, especialista em urologia, que lhe disse que teria que proceder à remoção do cálculo renal e que o próprio poderia efetuar a intervenção no mesmo Hospital por via retrógrada endoscópica (Ureterorrenoscopia e fragmentação por Laser de cálculo renal).
7 – Foi pelo réu explicado à autora que a intervenção consistiria num procedimento simples, com um único dia de internamento previsível.
8 – Tendo a autora manifestado interesse na realização da cirurgia proposta, a ré apresentou-lhe um orçamento do valor a suportar pela mesma, que a autora aceitou, tendo, conforme lhe foi solicitado, caucionado o valor que lhe foi indicado, sendo que parte do montante devido, seria, igualmente, pago pela ADSE, ao abrigo de uma convenção celebrada entre a ré e o referido subsistema de saúde, do qual a autora é beneficiária.
2. Intervenção cirúrgica realizada
9 – No dia 14 de outubro de 2015, conforme ficara previamente agendado, e depois de ter efetuado os exames pré-operatórios que lhe foram indicados, a autora deu entrada no Hospital da ré para ser operada.
10 – Em 14 de outubro de 2015, a autora foi submetida no Hospital da ré a uma ureterorrenoscopia com fragmentação por laser de cálculo renal ao nível do bacinete esquerdo e colocação de cateter duplo J esquerdo, realizada pelo réu, assessorado por uma equipa cirúrgica ao serviço da ré.
11 – Este procedimento envolve a injeção sob pressão de soro fisiológico no canal urinário, durante a sua execução.
12 – A execução da ureterorrenoscopia, com fragmentação por laser de cálculo renal, provocou uma rutura no canal excretor, ao nível pielo-calicial.
13 - Tal rutura permitiu o extravasamento de cerca de 5 litros de soro fisiológico, usado sob pressão, para o interior do abdómen, ficando este com abundante líquido e bolhas gasosas. (facto ora alterado)
14 - Na parte final da cirurgia – na qual não foi fragmentado todo o cálculo –, a mesma teve que ser interrompida por a equipa médica ter constatado uma marcada distensão abdominal e perineal, pelo que a autora realizou de imediato uma TC, na qual se constatou a existência de volumosa quantidade de líquido intra-abdominal e intra-peritoneal. (facto ora alterado)
15 – O líquido que invadiu o abdómen provocou o aumento da pressão intra-abdominal, gerando uma síndrome de compartimento abdominal (SCA), a qual veio a causar um quadro de coagulação intravascular disseminada (CID).
3. Desenvolvimentos ulteriores
16 – Para fazer face à situação referida no ponto 14 – factos provados –, a autora foi de imediato submetida a uma laparotomia exploradora para drenagem de líquido intra-abdominal, não se evidenciando de lesões de órgãos intra-abdominais, designadamente no bacinete no interior do qual ocorreu a intervenção, sendo-lhe colocado um dreno intra-abdominal e procedido ao encerramento por planos, sem que o estado da autora tenha melhorado.
17 – Em 14 de outubro de 2015, pelas 17 horas e 9 minutos, a autora deu entrada no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital ..., transferida do Hospital da ré, por iniciar quadro clínico compatível com CID – sangramento exuberante por todas as cavidades (oronasal, bexiga e pelo dreno abdominal) –, com evolução para choque, com disfunção respiratória, renal e metabólica, com necessidade de suporte aminérgico.
18 – Durante a sua permanência no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital ..., a autora sofreu e foram abordados os seguintes problemas causados pelo quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou pelos procedimentos médicos indicados para o enfrentar:
a) síndrome do compartimento abdominal;
b) síndrome isquemia/reperfusão;
c) instabilidade hemodinâmica nas primeiras 12 horas, a necessitar de doses elevadas de aminas (noradrenalina, adrenalina e fenilefrina em simultâneo), com melhoria após politransfusão;
d) ausência de melhoria hemodinâmica, sendo sujeita a laparotomias;
e) hematoma pélvico bilateral não expansivo em relação com cateterismos femorais, hemorragia em toalha das goteiras, laceração extensa do mesentério sem hemorragia importante e lesão de vasos, sendo colocado parking pélvico e das goteiras, e penso aspirativo abdominal;
f) isquemia intestinal com necessidade de colectomia subtotal e ileostomia com abandono de topo rectosigmoide;
g) (constatada em nova laparotomia de reavaliação) isquemia parcial do cólon direito e sigmóide, com necessidade de colectomia parcial com secção do íleon terminal e do sigmóide distal, com abandono dos topos;
h) hepatite isquémica com insuficiência hepática aguda transitória;
i) colecistite gangrenosa com necessidade de colecistectomia; citólise hepática importante inicial; a condicionar insuficiência hepática aguda ligeira transitória; assumida isquemia das vias biliares intra-hepáticas com limitação na excreção de bilirrubina conjugada;
j) necrose tubular aguda / lesão renal aguda oligúrica; necessidade de terapia de substituição renal; poliúria com necessidade inicial de reposição de volume e iónica;
k) lesão isquémica dos calcanhares com algumas áreas necrosadas, sem lesão de continuidade;
l) colestase isolada;
m) síndrome de resposta inflamatória sistémica (SIRS) exuberante e colecistite;
n) síndrome pós-internamento em cuidados intensivos (SPICI);
o) mononeurite multiplex (lesão subaguda moderada a grave bilateral dos nervos femoral, tibial e peronial comum, e com atingimento sensitivo-motor preferencial dos seus ramos, mas mais distais nos membros inferiores);
p) fraqueza muscular global com reabilitação funcional durante o internamento; ambos os pés pendentes; ausência de sensibilidade a partir da região maleolar até aos dedos no pé direito, bem como na face dorsal do pé esquerdo e nos dedos;
q) depressão reativa;
r) hemorragia subconjuntival;
s) colonização por Stenotrophomonas maltophilia (aspirado traqueal).
19 – Durante a permanência da autora no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital ..., a autora foi sujeita às seguintes intervenções cirúrgicas:
15/10/2015 – laparatomia Exploradora – Cirurgia geral
15/10/2015 – Reabertura do local de laparotomia recente – Cirurgia Geral
17/10/2015 – colectomia total intra-abdominal aberta – Cirurgia Geral
17.10.2015 – reabertura do local de laparatomia recente – Cirurgia Geral
18.10.2015 – reabertura de laparatomia recente – Cirurgia Geral
22.10.2015 – ileostomia – Cirurgia Geral
22.10.2015 – colecistectomia – Cirurgia Geral
22.10.2015 – reabertura do local de laparotomia recente – Cirurgia Geral
20 – Em 12 de novembro de 2015, a autora foi transferida e internada no Serviço de Cirurgia do Hospital ..., tendo aqui sofrido dois episódios de infeção urinária.
21 – Em 7 de janeiro 2016, a autora teve alta do Hospital ..., sendo transferida para a Unidade de Convalescença do Hospital 1..., em Fafe.
22 – Durante o período de internamento na Unidade de Convalescença do Hospital 1..., a autora:
a) prosseguiu os tratamentos de fisioterapia que havia iniciado no Hospital ...;
b) sofreu dois episódios de lipotimia, na segunda vez com instabilidade hemodinâmica e alterações importantes na gasimetria, sendo enviada ao serviço de urgência para despiste de tromboembolismo pulmonar;
c) entre 18 de janeiro de 2016 e 20 de janeiro de 2016, foi internada no serviço de Urologia do Hospital ... para substituição de cateter ureteral JJ esquerdo, com cateterismo ureteral JJ esquerdo 7 Fr Optima sobre fio guia e controlo fluoroscópico;
d) iniciou marcha com duas canadianas com steppage.
23 – Em 6 de fevereiro 2016, a autora teve alta do Hospital 1....
24 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora, após alta do Hospital 1...:
a) em 22 de abril de 2016, foi internada no serviço de urologia do Hospital ... por febre em picos;
i) em 23 de abril de 2016, foi submetida a intervenção de urgência, tendo sido substituído cateter ureteral esquerdo de longa duração;
ii) em 27 de abril de 2016, teve alta hospitalar;
b) em 20 de março de 2017, foi internada no serviço de cirurgia do Hospital ...:
i) em 20 de março de 2017, foi submetida a cirurgia para reconstrução do trânsito intestinal – anastomose íleo-cólica e trocar catéter ureteral:
ii) durante o internamento, teve como intercorrências: episódio único de dejeção com sangue; ileus funcional e alteração da função renal no pós-operatório; infeção urinária;
iii) em 31 de março de 2017, teve alta hospitalar;
c) em 5 de julho 2017, foi internada no serviço de urologia do Hospital ... para nefrolitotomia percutânea, que decorreu sem complicações. Ficou com novo cateter ureteral duplo J.
i) em 8 de julho 2017, removeu nefrostomia percutânea;
ii) em 10 de julho de 2017, teve alta hospitalar;
d) em 10 de outubro de 2017, foi submetida a remoção transureteral de cateter ureteral esquerdo em regime de ambulatório no Hospital ...;
e) em 8 de janeiro de 2020, foi internada no Hospital ...:
i) em 8 de janeiro de 2020, foi submetida a mamoplastia redutora bilateral segundo a técnica do pedículo inferior;
ii) em 10 de janeiro de 2020, teve alta hospitalar;
f) em 25 de setembro de 2020, foi internada no Hospital ...:
i) em 25 de setembro de 2020, foi submetida a intervenção cirúrgica por ortopedia, por metatarsalgia e dedos em garra do pé direito – osteotomia de Chevron de encurtamento e artrodese da interfalângica proximal e tenotomias do 2.º, 3.º e 4.º dedos:
ii) em 30 de setembro de 2020, teve alta hospitalar;
g) em 15 de dezembro de 2021, foi internada no Hospital ...:
i) em 15 de dezembro de 2021, foi submetida a intervenção cirúrgica por ortopedia, por metatarsalgia e dedos em garra do pé esquerdo – osteotomia de Chevron de encurtamento e artrodese da interfalângica proximal e tenotomias do 2.º, 3.º e 4.º dedos;
ii) em 15 de dezembro de 2021, teve alta hospitalar;
h) compareceu a cerca de 100 consultas de especialidade, designadamente, de medicina intensiva (18.02.2016), medicina interna (02.03.2016, 07.07.2016, 22.09.2019 e 05.01.2017), medicina física e de reabilitação / fisiatria (11.02.2016, 01.03.2016, 08.03.2016, 17.03.2016, 06.04.2016, 03.05.2016, 05.05.2016, 24.05.2016, 08.06.2016, 08.07.2016, 10.08.2016, 07.09.2016, 12.10.2016, 23.11.2016, 04.01.2017, 22.02.2017, 06.05.2017, 16.08.2017, 10.10.2017, 23.11.2017, 17.01.2018, 08.03.2018, 26.04.2018, 04.07.2018, 05.09.2018, 05.11.2018, 22.01.2019, 19.03.2019, 14.05.2019, 03.07.2019, 13.08.2019, 16.10.2019, 10.12.2019, 05.02.2020, 26.05.2020, 02.06.2021, 16.02.2021, 19.03.2021, 23.04.2021 e 02.06.2021), cirurgia (colo-retal) (18.03.2016, 06.07.2016, 07.12.2016, 31.05.2017, 15.11.2017, 22.08.2018 e 17.07.2019), consulta da dor (11.04.2016, 19.10.2016, 23.01.2017, 10.09.2018, 17.12.2018 e 01.07.2019), neurologia (05.01.2017), ortopedia (18.10.2017, 14.02.2019, 29.03.2019, 19.08.2020, 24.09.2020, 26.10.2020 e 15.12.2020), cirurgia plástica (20.02.2018, 29.01.2019, 21.05.2019, 03.01.2020, 23.01.2020, 18.02.2021, 16.09.2021) e urologia (27.05.2016, 02.12.2016, 15.12.2016, 24.02.2017, 06.10.2017, 20.04.2018 e 21.02.2022);
i) realizou não menos de três dezenas de exames complementares de diagnóstico, designadamente, ressonância magnética nuclear, tomografia computorizada, eletromiografia, ecografia e radiografia;
j) efetuou tratamento de fisioterapia nos serviços clínicos do Hospital da ré, com uma frequência de três dias por semana, até abril de 2018, e daí até julho de 2022, duas vezes por semana, com intervalos nos meses e agosto e nos períodos de confinamento (COVID).
4. Dano biológico
25 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora, até 22 de setembro de 2021, a autora:
a) Durante 142 dias, viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 721 dias, viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
c) Durante 1959 dias, esteve totalmente incapacitada para exercer qualquer atividade profissional.
26 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora:
a) Sofreu dor quantificável num grau 6, numa escala até 7 (quantum doloris);
b) Ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 37, numa escala até 100;
c) Sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 5, numa escala até 7;
d) Ficou definitivamente afetada na sua atividade desportiva, de lazer e de convívio social, num grau 2, numa escala até 7.
27 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes adequados, a autora não está totalmente incapaz para o exercício da sua atividade profissional habitual, desde que:
a) deixe de desempenhar algumas das atividades que desenvolvia no seu âmbito, como o acompanhamento de crianças em colónias balneares, e fique confinada a serviço administrativo, sentada à secretária;
b) suporte esforços suplementares importantes, nomeadamente a nível de deslocações de e para o trabalho e no local de trabalho, assim como o transporte de carga;
c) a sua entidade patronal adapte o seu posto de trabalho, com recurso a ferramentas digitais, e os períodos da sua prestação e de descanso;
28 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora necessita permanentemente de usar uma bengala, como auxiliar de marcha
29 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos apropriados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora, em 22 de setembro de 2021, apresenta:
a) marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas (bengala à direita);
b) três cicatrizes lineares, nacaradas no pescoço (uma face lateral direita, oblíqua, com 3 cm de comprimento; uma na face anterior do terço inferior, oblíqua, com 2 cm de comprimento; uma na face lateral esquerda, horizontal, com 1.5 cm de comprimento), sendo praticamente impercetíveis à distância de contacto íntimo;
c) seis cicatrizes hiperpigmentadas e hipertrofiadas no tórax: duas periareolares (uma em cada mama); duas verticais a iniciarem-se no bordo inferior de cada aréola em direção inferior, com 7 cm de comprimento; duas horizontais, inframamárias, à direita com 25 cm de comprimento e à esquerda com 26 cm de comprimento. Refere desconforto ligeiro à palpação das cicatrizes, sendo estas visíveis à distância de contacto social, sem áreas de aderência ou repuxamento de tecidos;
d) cicatriz linear no abdómen, mediana, hipertrofiada, com vestígios de pontos de sutura, de orientação vertical, com 30 por 2 cm de maiores dimensões, que se inicia ao nível do epigastro, com direção inferior, continuando o seu trajeto pelo bordo lateral esquerdo do umbigo, terminando ao nível do hipogastro; hiperpigmentada na sua metade superior e nacarada na metade inferior.
e) no hipocôndrio e flanco direitos, várias áreas cicatriciais nacaradas, ocupando área total de 9 por 3 cm, inferiormente, apresenta uma outra área cicatricial nacarada com 5 x 3 cm de maiores dimensões.
f) no flanco direito do abdómen, apresenta cicatriz linear, oblíqua, hipertrofiada e hiperpigmentada, com 7 x 2 cm de maiores dimensões.
g) no hipocôndrio e flanco esquerdos, apresenta área cicatricial nacarada com 14 por 2 cm de maiores dimensões, de maior eixo vertical;
h) abdómen globoso, algo timpanizado à percussão;
i) cicatriz nacarada 5 por 1 cm de maiores dimensões na face anterior cotovelo direito, próximo do seu bordo radial;
j) posteriormente ao maléolo medial direito, área cicatricial ovalada, nacarada, com 3 por 1.5 cm de maiores dimensões, indolor à palpação;
k) no calcanhar direito, área cicatricial heterogénea, com áreas nacaradas e áreas hiperpigmentadas, com 5 por 3 cm de maiores dimensões;
l) na face medial do médiopé direito, cicatriz linear com 4.5 cm comprimento, nacarada e
m) ligeiramente hiperpigmentada no centro;
n) movimentação de flexão plantar do pé direito até aos 10º, com força muscular contrarresistência grau 4 e sem movimento de dorsiflexão a partir da posição neutra;
o) articulação interfalângica do 1.º dedo com flexo de 40º; restantes dedos em posição neutra, sem arco de mobilidade;
p) no calcanhar esquerdo, área cicatricial rosada, com 5 por 3 cm de maiores dimensões, indolor à palpação;
q) movimentação de flexão plantar do pé esquerdo até aos 10º, com força muscular contrarresistência grau 4 e sem movimento de dorsiflexão a partir da posição neutra;
r) dedos do pé esquerdo em garra;
s) força muscular coxa e perna grau 5 bilateralmente;
t) força de flexão plantar contrarresistência grau 4 bilateralmente;
u) diminuição da sensibilidade tátil na face anterolateral de ambas as pernas, nos terços médio e inferior;
v) reflexos aquilianos pouco vivos;
w) reflexo cutaneoplantar abolido bilateralmente;
x) incapacidade de colocação em calcanhares e em pontas de pé.
30 – O quadro clínico descrito no ponto 29 – factos provados – não se encontra médico-legalmente consolidado, por carecer a autora de realizar mais duas intervenções cirúrgicas: uma de cirurgia plástica (abdominoplastia); uma (bilateral) de ortopedia (descrita no documento de fls. 611, que aqui se dá por transcrito).
31 – A realização das cirurgias referidas no ponto 30 – factos provados – não é suscetível de reduzir os graus de afetação descritos no ponto 26 – factos provados.
32 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora:
a) correu risco de vida;
b) esteve entubada e com sonda nasogástrica, ventilada e a fazer hemodiálise durante vários dias;
c) teve que utilizar, durante cerca de um ano, ortóteses nas pernas, causando-lhe dor e desconforto;
d) até meados de dezembro de 2015, esteve incapaz de andar, altura em que passou a deambular com auxílio de andarilho;
e) até março de 2017, data da intervenção referida na subalínea i) da al. b) do ponto 24 –factos provados –, manteve a utilização de uma bolsa para coleção das suas fezes;
f) sentiu-me muito desconfortável com o saco de colostomia, que tinha que regularmente ser mudado, e para o que, inicialmente, necessitava da ajuda de terceiros;
g) experimenta especiais dificuldades em subir ou descer escadas, bem como em realizar trefas domésticas mais pesadas ou que envolvam o transporte de objetos com as duas mãos;
h) não consegue apoiar, por completo, a planta dos pés e sente dor e desconforto com a marcha, que realiza com o auxílio de uma bengala;
i) tornou-se uma pessoa ansiosa, irritável e revoltada, o que não era anteriormente;
j) deixou de fazer caminhadas, trabalhar no quintal e dançar, atividades que, com regularidade, anteriormente fazia e das quais retirava bem-estar físico e psíquico;
k) deixou de poder conduzir viaturas não especialmente adaptadas à sua atual condição física;
l) deixou de conviver normal e regularmente com os seus colegas de trabalho;
m) temeu pela sua vida e pelo futuro das suas filhas menores, com 5 e 13 anos de idade;
n) ficou privada de se relacionar sexualmente com o seu marido, durante vários meses, sentindo-se constrangida a despir-se à sua frente, quer quando usava saco de colostomia, quer ulteriormente, em razão das sequelas físicas, com prejuízo da harmonia conjugal e da sua gratificação pessoal.
o) por usar um saco de colostomia, enquanto o usou, bem como, atentas as suas demais limitações físicas e cicatrizes, sentiu-se e sente-se diminuída, com perda de autoestima e vergonha da sua situação, reduzindo a sua convivência social e a sua exposição em locais públicos;
p) por sentir vergonha das sequelas físicas de que ficou a padecer, cobre o corpo com vestuário, mesmo no verão e na praia;
q) deixou de poder usar saltos alto, o que anteriormente fazia, devendo agora usar caçado com palmilhas adaptadas;
r) sofreu fortes dores físicas, continuando a sofrer de dores e de desconforto regular;
s) sente-se triste, desgostosa, afetada na sua feminilidade, amargurada, revoltada, deprimida e com perda do gosto pela vida.
33 – Até 14 de outubro de 2015, a autora era uma pessoa alegre, dinâmica e extrovertida, prezava e tinha hábitos de convívio social e familiar regulares.
34 – A autora nasceu em 2 de agosto de 1972, sendo normalmente saudável até 14 de outubro de 2015, salvo quanto ao seu peso, de 70 kg, sendo o peso ideal, considerando a sua altura, de 53 kg.
5. Danos patrimoniais
35 – Em 14 de outubro de 2015, a autora trabalhava como assistente operacional (administrativa) no Município ..., auferindo como retribuição mensal base, o valor de € 532,08, catorze vezes por ano, acrescido de um subsídio de refeição no valor diário de € 4,27 por cada dia de trabalho prestado.
36 – Desde 14 de outubro de 2015, a autora nunca mais retomou a sua atividade laboral, passando a estar de baixa médica.
37 – Em 23 de janeiro de 2019, pela C..., foi considerado que a autora, de acordo com a TNI, é portadora de uma deficiência que representa, a título definitivo, uma incapacidade permanente global de 73%, conforme documento junto a fls. 568, que aqui se dá por transcrito.
38 – Em 28 de março de 2019, por decisão proferida pela Caixa Geral de Aposentações, a autora foi considerada a sua situação (existente em 9 de outubro de 2018), passando à condição de aposentação por invalidez.
39 – Até tal data, a autora recebeu do Município ... a quantia global de € 3 811,19, a título de remuneração paga em situação de doença.
40 – A autora recebeu da Caixa Geral de Aposentações, a título de pensão por invalidez:
a) no ano 2019, a quantia de € 2 450,16;
b) no ano 2020, a quantia de € 4 360,03;
c) no ano 2021, a quantia de € 4 534,18;
d) no ano 2022 (até outubro), a quantia de € 3 839,51.
41 – A autora suportou com tratamentos, consultas e meios de diagnóstico o montante de € 748,83.
42 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora, até 22 de setembro de 2021, a autora, efetuou não menos de 40 deslocações ao Hospital ..., para consultas, percorrendo cerca de 30 km para cada lado.
43 – Em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes adequados, a autora, até 22 de setembro de 2021, a autora, efetuou não menos de 40 deslocações ao Hospital da ré, para consultas, percorrendo cerca de 15 km para cada lado.
44 – Nas referidas deslocações para consultas, bem como nas deslocações referidas da al. j) do ponto 24 – factos provados –, a autora foi transportada em viatura própria, percorrendo cerca de 26 400 km.
6. Adequação dos procedimentos e execução da cirurgia
45 – O diagnóstico descrito no ponto 4 – factos provados – corresponde à patologia efetivamente experimentada pela autora.
46 – Perante o diagnóstico descrito no ponto 4 – factos provados –, as regras técnicas médicas atualizadas prescrevem a rápida remoção do cálculo, face à sua dimensão e às dores então experimentadas pela autora.
47 – A remoção cirúrgica do cálculo renal era necessária à preservação da saúde e da vida da autora.
48 – Não sendo tratado o cálculo renal detetado, a probabilidade prevalecente seria a da perda total da função renal (no rim afetado), podendo a autora acabar por vir a necessidade de hemodiálise para poder sobreviver.
49 – O procedimento descrito no ponto 6 – factos provados – é um dos procedimentos apropriados à remoção de cálculos renais, de acordo com as regras técnicas médicas atualizadas de boas práticas internacionalmente aceites e seguidas (leges artis).(facto ora alterado
50 – O tratamento sugerido pelo réu é menos invasivo do que os tratamentos alternativos disponíveis, designadamente, a nefrolitotomia percutânea (NLPC).(facto ora alterado).
51 – Os exames pré-operatórios prescritos e realizados pela autora são clinicamente adequados e revelaram o que consta do facto supra 4.(facto ora alterado).
52 – Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados –, o réu explicou à autora o seu estado clínico descrito no ponto 4 – factos provados –, bem como os procedimentos que seriam adotados na cirurgia proposta, designadamente a sujeição a anestesia geral, assegurando-se de que esta não tinha dúvidas sobre a explicação dada.
53 – Antes da intervenção referida no ponto 10 – factos provados:
b) a autora não foi informada das complicações que poderiam surgir da cirurgia programada, como sepsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fistula arterio venosa e outras.(facto ora alterado)
b) à autora não foi explicado que, no decurso da intervenção, podia ocorrer a rutura do canal excretor, ao nível pielo-calicial, suscetível de causar:
i) o aumento agudo da pressão intra-abdominal (síndrome de compartimento abdominal), causando um choque hemorrágico, com o sangramento abundante por todas as cavidades, designadamente, oronasal, bexiga e dreno abdominal ou cateter aplicados (coagulação intravascular disseminada), a demandar a realização de laparotomias para contrariar a síndrome de compartimento abdominal;
ii) disfunção respiratória, renal e metabólica, a demandar suporte respiratório e suporte aminérgico;
iii) instabilidade hemodinâmica, a demandar politransfusão;
iv) síndrome isquemia/reperfusão, sobretudo na zona abdominal/pélvica e nos membros inferiores;
v) isquemia intestinal, com necessidade de colectomia subtotal e ileostomia com abandono de topo rectosigmoide;
vi) hepatite isquémica com insuficiência hepática aguda transitória;
vii) lesão isquémica dos calcanhares com áreas necrosadas;
viii) síndrome de resposta inflamatória sistémica (SIRS) exuberante e colecistite;
ix) colecistite gangrenosa com necessidade de colecistectomia; citólise hepática importante; insuficiência hepática; isquemia das vias biliares intra-hepáticas; colestase isolada;
x) necrose tubular aguda / lesão renal aguda oligúrica; necessidade de terapia de substituição renal; poliúria;
xi) lesão subaguda moderada a grave bilateral dos nervos femoral, tibial e peronial comum, e com atingimento sensitivo-motor preferencial dos seus ramos, mas mais distais nos membros inferiores;
xii) fraqueza muscular global; ambos os pés pendentes; ausência de sensibilidade a partir da região maleolar até aos dedos no pé direito, bem como na face dorsal do pé esquerdo e nos dedos;
xiii) hemorragia subconjuntival e colonização por Stenotrophomonas maltophilia.
54 – A rutura do canal excretor pode ocorrer no decurso da intervenção a que a autora foi submetida.(facto ora alterado)
55-Os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados –, nunca tinham sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora. (facto ora alterado)
56 – A coagulação intravascular disseminada (CID) é um distúrbio hemorrágico que pode ser causado por diversos transtornos graves, designadamente, sépsis, trauma ou choque, não estando especialmente associada à síndrome de compartimento abdominal (SCA).
57 – eliminado.
58 –eliminado.
59 –eliminado
59-A: De acordo com o Parecer do Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos “a resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte do doente.” (facto ora aditado)
59-B- O 2º Réu acompanhou o estado clínico da autora, após esta ser transferidas para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital ..., demonstrando preocupação com o seu estado de saúde, tendo ainda se disponibilizado a colaborar com os médicos intensivistas que assistiram a autora, tendo inclusivamente participado numa das cirurgias a que autora foi aí submetida.(facto ora aditado).
7. Relação contratual entre os réus e as intervenientes
60 – A... – Companhia de Seguros, S.A., enquanto seguradora, e a ré, enquanto tomadora, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros decorrentes da atividade da segunda, designadamente, no exercício das funções dos médicos e demais profissionais ao seu serviço, nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º ..., junto aos autos a fls. 141 v. (autos principais) e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados.
61 – B... – Companhia de Seguros, S.A., enquanto seguradora, e o réu, enquanto tomadora, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros decorrentes da atividade do segundo (responsabilidade civil profissional), nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º ..., junto aos autos a fls. 150 (anexo documental) e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados.
E foram julgados NÃO PROVADOS, os seguintes factos:
Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados. Resultaram, assim, não provados os seguintes factos:
62 – eliminado.
63 – O aparelho de ureteroscopia, por ação mecânica da sua extremidade, provocou uma lesão iatrogénica.
64 – Se à autora tivesse sido descritivamente explicado o risco de eventual rutura do canal excretor, referido na al. b) do ponto 53 – factos provados –, e a probabilidade estatística da sua ocorrência e consequências, jamais teria aceitado submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo réu.
V - O DIREITO APLICÁVEL
Em face da alteração da matéria de facto efetuada na procedência da impugnação feita pela recorrente importa aplicar o direito.
Conforme resultou provado, após a autora ter comparecido nos serviços de urgência do hospital da 1ª Ré, com queixas de cólica renal, e após ter sido encaminhada pelos serviços da ré para uma consulta de urologia, em que consultou o 2º Réu, médico especialista em urologia, que lhe disse que tinha de proceder á remoção do cálculo renal, e que poderia fazê-lo em intervenção cirúrgica a realizar no mesmo hospital, a autora manifestou interesse na realização da cirurgia proposta.
Como resulta supra do facto 8, a primeira ré apresentou-lhe então um orçamento do valor a suportar pela mesma, que a autora aceitou, tendo, conforme lhe foi solicitado, caucionado o valor que lhe foi indicado.
Foi assim celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, na modalidade de “contrato total”, com a 1ª ré, tal como se refere na sentença, no sentido em que o contrato celebrado engloba um contrato de prestação de serviços médicos, através de médico por si incumbido, com disponibilização das instalações e prestação de serviços de internamento (que envolvem prestação de serviço médico e paramédico).
A cirurgia foi efetuada pelo 2º réu assessorado por uma equipa cirúrgica ao serviço da ré, médico esse que propôs-se realizar a cirurgia e a autora aceitou.
Miguel Teixeira de Sousa[4] defende a este propósito que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art.º 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.
Com efeito, estando em causa direitos absolutos, como o direito á vida ou à integridade física, oponíveis por isso erga omnes a atuação incorreta e danosa da intervenção médica pode ser vista também como violadora daqueles direitos e nessa medida integradora da responsabilidade extracontratual, desde logo quando a responsabilidade não derive de contrato.
Qualquer, porém, que seja a responsabilidade civil que impende sobre o lesante ela traduz-se numa obrigação de indemnizar, ou seja de reparar os danos sofridos pelo lesado.
Mas a distinção entre responsabilidade contratual/extracontratual tem interesse, desde logo, porque, por via de regra, implica com as regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (cf. arts. 799º, nº 1 e 487º, nº 1 do Cód. Civil), favorecendo concretamente o lesado na sua pretensão indemnizatória.[5]
Com efeito, na responsabilidade civil obrigacional a culpa presume-se, o que não sucede na responsabilidade extracontratual ou aquiliana onde cabe ao lesado provar a culpa do lesante.
Neste tipo de casos, a regra deve ser a da responsabilidade contratual do médico, constituindo a responsabilidade extracontratual a exceção que ocorre, normalmente, apenas quando o médico atua num quadro de urgência, em que, por força das circunstâncias, inexiste acordo do doente para a sua intervenção. [6]
Com efeito, à relação médico/doente está hoje subjacente, no comum dos casos, um vínculo de natureza contratual e mesmo que concorram na negligência médica a responsabilidade contratual e extracontratual este concurso deve ser resolvido no sentido da prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada à defesa dos interesses do lesado.[7]
Aliás, em prejuízo do eventual concurso da responsabilidade extracontratual e contratual, a doutrina e a jurisprudência sempre consideraram este último regime como o aplicável por se mostrar “mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.”
Estando no domínio de uma obrigação em que o conteúdo da prestação debitória não é a simples apresentação de um resultado (obrigação de resultado), mas antes a prática de um conjunto de atos para que o resultado se possa produzir sem defeitos (obrigação de meios), cabe à Autora o ónus de alegar e provar o incumprimento ou cumprimento defeituoso dos atos necessários (meios) à produção de um bom resultado.
Em apreço nos autos perfila-se um contrato de prestação de serviços médicos entre a autora e a 1ª Ré, devendo igualmente ser enquadrado na responsabilidade civil contratual a relação da autora com o 2º Réu, já que a autora aceitou que fosse aquele o médico que lhe havia sido indicado pela 1ª Ré, o médico que iria executar a cirurgia, o qual foi assessorado por uma equipa cirúrgica ao serviço da primeira ré. Estamos ainda seguramente no domínio da responsabilidade contratual.
Ambas as partes contrataram a execução de um serviço, que consistia na remoção de um cálculo renal à autora.
Não se oferecem pois dúvidas de que a responsabilidade em causa se insere no domínio da responsabilidade contratual.
Isto posto, vejamos agora se se mostra verificado o requisito da ilicitude.
Da matéria de facto provada temos de concluir que objetivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora.
Com efeito, ficou demonstrado que a perfuração do canal excretor ocorreu durante e por causa da execução do contrato (na execução do ato médico que consistiu numa ureterorrenoscopia, com fragmentação da laser do cálculo renal).
Essa lesão, objetivamente configura a verificação do requisito da ilicitude, sendo que em sede de responsabilidade contratual implica que se mostra provado o incumprimento defeituoso do contrato.[8]
A execução defeituosa, ou ilicitude, objetivamente considerada, abrange, como é consabido, uma omissão do comportamento devido, consubstanciado na prática de atos diferentes daqueles a que se estava obrigado.[9]
No Acórdão do STJ de 1.10.2015 (Maria dos Prazeres Beleza) afirma-se o seguinte: “dificilmente se poderá sustentar que a proteção da integridade física do paciente não integra o âmbito de proteção de um contrato de prestação de serviços médicos.”
Daí que se tenha de concluir que “objetivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada”.
Mesmo que se reconheça a pertinência da critica que é apontada a este entendimento, no sentido de que, se levado ao limite, implicar sempre, em qualquer caso de dano médico o preenchimento inevitável do requisito da ilicitude na medida em que, por via de regra, sempre haverá uma ofensa à integridade física por força de um ato médico a qual é tida como não querida ou “não exigida pelo cumprimento do contrato”, o mesmo pode (e deve) ser “aligeirado”, lançando-se mão de um critério “mitigador”, que vem sendo usado por alguma jurisprudência[10], que implica que se proceda a uma avaliação concreta da ofensa à integridade física, do seu grau, natureza, amplitude ou extensão, e a sua aferição em função do tipo de intervenção médica efetuada, bem como do grau de “intrusão” que esta previsivelmente implicaria para aquela integridade, chegaremos á mesma conclusão.
Ora, no caso em apreço, verifica-se uma claríssima desproporcionalidade objetiva dos danos em relação à natureza da intervenção cirúrgica. De acordo com os factos provados, a partir de uma intervenção que não implicaria mais do que um dia de internamento, a situação degenerou numa situação em que a paciente esteve em risco de vida, teve de ser transportada para um serviço de Medicina Intensiva, vindo a ser submetida a mais 16 cirurgias em consequência da primeira, (estando ainda previstas mais duas) para tratamento das lesões dela decorrentes.
Ocorreu assim claramente uma desproporcionalidade objetiva dos danos em relação à natureza da intervenção cirúrgica.
Pelo exposto, mostra-se assente a ilicitude, uma vez que ocorreu desrespeito do dever de proteção da integridade física do paciente durante a execução do contrato de prestação de serviços médicos.
Passando ao requisito da culpa, cabia às Rés afastar a presunção de culpa que se presume, nos termos do art. 799º do C.Civil que dispõe que “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação, não procede de culpa sua.”
Vejamos então se se mostra feita tal prova.
No que respeita a culpa, há que atender que, no que concerne às obrigações/deveres do médico há que ter em atenção o art. 4º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos – Regulamento nº 707/2016, de 21.7 –onde se diz no seu nº 1 que «o médico deve exercer a sua profissão de acordo com as leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade».
Acrescenta o nº 8 que «o médico deve cuidar da permanente atualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica»
Também no art. 5º diz-se que «o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano.»
E no art. 10º, nº 1 refere-se também que «o médico deve abster-se de praticar atos que não estejam de acordo com as leges artis».
As leges artis consistem assim num “complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. E que são regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão para a exclusão destas da arte médica”.[11]
A culpa em sede de responsabilidade médica, traduz-se na omissão de diligência e competências exigíveis do médico.
Como é sublinhado no acórdão do STJ de 12.01.2022,[12] os comportamentos médicos geradores de responsabilidade médica são, em regra, imputáveis a título de mera culpa ou negligência e não a título de dolo, aparecendo assim a culpa como a omissão da diligência e competência exigíveis, segundo as circunstâncias do tráfico.
Haverá assim culpa quando o médico, na sua atuação, se desvia do modelo de comportamento – em termos de prudência, competência e atenção – que ele podia e devia ter adotado, desvio que, como como se sublinhado no citado acórdão, se pode manifestar por 3 formas: - negligência, entendida como omissão dos cuidados devidos; - imprudência, que se caracteriza pela adoção imponderada de condutas arriscadas e inadequadas; - imperícia, que se caracteriza pela ausência dos saberes teóricos, da capacidade técnica e da destreza prática adequada ao ofício que profissionalmente exerce.
O modelo/padrão a empregar para reconhecer o caráter desvalioso do comportamento adotado – seguindo o critério do art. 487.º nº 2 do C. Civil, segundo o qual a culpa é avaliada pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias do caso” – que é o do bom profissional da mesma categoria (no caso, um médico-cirurgião), a atuar perante uma facti species com os contornos daquele em que o concreto médico atuou (a maior ou menor urgência da intervenção, o grau de risco da intervenção, a quantidade e qualidade dos utensílios e maquinismos disponíveis, a possibilidade de cooperação de outros profissionais).
Em face do exposto, analisemos agora a situação em apreço.
Não se apurou em concreto, como já foi referido, a causa da rutura do sistema excretor da aurora, que originou as lesões por esta sofridas, apenas havendo a certeza que tal rutura ocorreu durante a execução do procedimento médico e antes deste terminar. O procedimento foi interrompido, em consequência
A autora, na petição inicial fundamenta a existência da responsabilidade dos réus na violação das leges artis e na violação do dever de informação.
Como refere André Gonçalo Dias Pereira[13], a responsabilidade em saúde divide-se entre a responsabilidade por má prática/negligencia, com base na violação das leges artis (stricto senso) e a responsabilidade por violação do consentimento informado, quer por falta de informação, quer por falta de consentimento, ou consentimento inválido.
Este entendimento da dupla sede de responsabilidade médica (baseada no erro médico ou na violação do dever de informação, ou seja do consentimento informado. vem sendo sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça[14]
Da análise da prova produzida, não obstante sobre a autora não recair o ónus da prova da culpa dos réus, estes não lograram afastar a presunção de culpa que sobre eles recaia, resultando da matéria de facto, a nosso ver, que ficou efetivamente sido demonstrada a ocorrência de culpa, na forma de negligência.
Da matéria de facto provada, pode retirar-se a conclusão de que terá ocorrido alguma imprudência, na adoção que terá sido “algo imponderada” do procedimento cirúrgico escolhido para o tratamento da concreta patologia diagnosticada à autora, o que se demonstrou ter sido um ato que fez aumentar o risco associado a este tipo de procedimentos.
Para fazermos esta firmação, baseamo-nos nos conhecimentos técnicos constantes do Parecer do Colégio da Especialidade de Urologistas da Ordem dos Médicos.
É certo que naquele parecer concluíram os médicos que “A atuação dos urologistas envolvidos foi adequada, não se identificando qualquer lesão iatrogénica, cumprindo com a leges artis e acompanhando sempre a doente, mesmo noutras instituições, como é seu dever ético e deontológico”.
Porém, esta conclusão baseia-se no pressuposto erróneo da não ocorrência da rutura do canal excretor, como resulta da resposta fornecida por aquele colégio à pergunta A, onde referem: “da consulta deste processo não é possível concluir que tenha havido rutura do sistema excretor por tal não ter sido visualizado em qualquer relatório de exame apresentado.”.
Ora, a ocorrência de tal rutura mostra-se devidamente demonstrada nos autos e constitui um facto incontrovertido, uma vez que tal facto não foi sequer impugnado por via de recurso.
Isto posto, de acordo com o depoimento de todos os médicos ouvidos, o cálculo renal da autora é considerado um cálculo de “grandes dimensões” (35mm). Tratava-se ainda de um cálculo “coraliforme”, ou seja é um cálculo que não é recente, tendo resultado dum processo crónico desenvolvido ao longo de muito tempo, como foi explicado pelo médico da especialidade ouvido em julgamento (Dr. DD), podendo, por isso “a volumosa massa litiásica fragilizar o sistema excretor, nomeadamente na sequência de cólica renal recente”, como se pode ler no aludido parecer da Ordem dos Médicos, resultando ainda do mesmo que, um rim com dilatação crónica pela presença de cálculo de obstrução está estruturalmente mais frágil e como tal suscetível a rutura do sistema excretor.
Ora, considerando que, como resulta daquele parecer “mesmo em centros muitos experimentados”, a rutura do sistema excretor pode ocorrer no decurso da intervenção a que a autora foi submetida, e tendo-se apurado que execução de ureterorrenoscopia com fragmentação por laser de cálculo renal implica a injeção sob pressão de abundantes quantidades de soro fisiológico no canal urinário durante a sua execução, coloca-se a questão de saber se, em face da patologia concreta da autora, diagnosticada e revelada no TC a que se submeteu no hospital da 1ª ré, a opção pelo procedimento de execução de ureterorrenoscopia com fragmentação por de laser de cálculo renal seria o procedimento mais adequado, ou se deveria ter sido escolhido o método que veio a ser utilizado mais tarde na autora, em cirurgia de remoção do (mesmo) cálculo renal a que a autora foi submetida no Hospital ..., em 6 julho de 2017, através do qual foi removido o cálculo, através de nefrolitotomia percutânea, que decorreu sem complicações.
Apesar de poder ser considerado mais invasivo este último método, poderia ter evitado, como ficou demonstrado pela realização da segunda cirurgia de remoção do cálculo a que a autora se submeteu as múltiplas cirurgias (“invasivas”) a que a autora teve de se submeter para reparar as consequências daquele primeiro procedimento médico.
Significativa é, a nosso ver, a este respeito a declaração do médico urologista que interveio na primeira cirurgia de remoção do cálculo renal, o Dr. DD, que, quando perguntado se não deviam ter optado por outra cirurgia, respondeu que “á posteriori não tinha dúvidas”.
É certo que os médicos não têm o dom da “adivinhação”. Têm porém a obrigação, de exercerem a profissão de forma diligente e tecnicamente adequada às regras da arte médica.
Tendo o 2º Réu conhecimento prévio que a autora havia sofrido de cólica renal recente (diagnosticada uns dias antes no serviço de urgência da 1ª Ré) e que era muito volumosa a massa litiásica a remover, tudo indicando um sistema excretor fragilizado, a cautela aconselharia a opção por um procedimento que apesar de poder ser considerado mais invasivo, evitaria a sujeição da autora ao risco das complicações surgidas na cirurgia, advertindo o colégio da especialidade que continua a ser “um risco muito elevado”.
O procedimento tem de ser escolhido em face do paciente concreto, daí entendermos que ficou demonstrada a falta de cuidado do 2º réu, na escolha do procedimento, que não revelou ser o adequado á concreta patologia sofrida pela autora.
Nas também na perspetiva do consentimento informado, que como vimos se desdobra a responsabilidade médica, se mostra violada a obrigação de informação esclarecida que devia ter sido prestada á autora.
Sobre o consentimento informado, a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina no art. 5º estabelece a seguinte regra geral:
“Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o sue consentimento livre e esclarecido.
Esta pessoa deve receber previamente informação adequada quanto ao objetivo e á natureza da intervenção, bem como as suas consequências e riscos.
A pessoa em questão pode, em qualquer momento revogar livremente o seu consentimento”.
Conforme Ac STJ de 16.6.2015 relator JJ, “em princípio e independentemente de se fazer especial apelo ao princípio da colaboração processual em matéria de prova, compete ao médico provar que prestou as informações devidas”.
Ora no caso em apreço, apenas se provou que foram prestadas à autora pelo réu, as seguintes informações:
-que a intervenção consistiria num procedimento simples, com um único dia de internamento previsível (facto supra 7)
-explicação sobre o seu estado clínico, bem como os procedimentos que seriam adotados na cirurgia proposta, designadamente a sujeição a anestesia geral (facto supra 52).
A autora não foi informada dos riscos concretos da cirurgia a que aceitou se submeter e não foi advertida do risco acrescido que implicava a remoção dum cálculo renal de grandes dimensões, nomeadamente aqueles que são reconhecidos pelo Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos, que no Parecer junto aos autos expressamente afirma o seguinte: “a resolução cirúrgica de grandes massas litiásicas, é passível de múltiplas e potencialmente graves complicações, conforme amplamente descrito na literatura, nomeadamente sépsis, hemorragia, rutura do sistema excretor, insuficiência renal, fístula arteriovenosa, etc., que podem, inclusive, conduzir à morte do doente.
Atualmente com a evolução dos meios tecnológicos de cirurgia minimamente invasiva, melhor controle anestésico e hemodinâmico, tem reduzido as complicações tornando os procedimentos potencialmente mais fáceis e com maior êxito, mas o potencial de complicações continua a ser muito elevado devendo os doentes ser informados dos riscos que correm.”(sublinhado nosso).
É certo que se provou que a remoção do cálculo renal era necessária à preservação da vida da autora (facto 47), assim como emergiram provadas as complicações decorrentes da não remoção (facto 48).
Porém não se tratava sequer dum procedimento de tal forma urgente (a autora viveu com o mesmo cálculo mais dois anos), que não permitisse discussão e ponderação sobre o método mais adequado á situação clínica da autora.
Nos termos do art. 135º nº 11 do Estatuto da Ordem dos Médicos (Lei 117/2015 de 31.8, “O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido”.
Não tendo o 2º réu informado devidamente a autora dos riscos associados ao procedimento médico que se propôs executar, o consentimento da autora não se mostra prestado de forma esclarecida.
A falta de informação quanto aos riscos associados, impossibilitou a autora de refletir e decidir.
No caso era dever do médico informar a autora da existência de meios alternativos, como aquele a que mais tarde a autora se veio a submeter e permitindo uma ponderação conjunta dos riscos associados a cada um deles, para permitir que a autora prestasse o seu consentimento de forma devidamente esclarecida, o que não aconteceu..
Não ocorrendo tal, o consentimento é ineficaz, significando que a autuação do médico será ilícita por violação do direito á autodeterminação e correm por sua conta os danos derivados da intervenção não autorizada. Ver neste sentido Acórdão do STJ de 2-6-2015.[15]
Desta forma, apesar da autora se encontrar dispensada da prova da culpa do réu, que se presume nos termos do art. 799º nº 1 do C.Civil, uma vez que as obrigações a que o médico está adstrito envolvam natureza contratual, dos factos apurados mostra-se demonstrado requisito da culpa.
Isto posto, cumpre analisar agora o requisito da causalidade adequada da lesão em relação aos danos sofridos pela autora.
Quanto aos danos sofridos em consequência da lesão á integridade física da autora encontram-se os mesmos elencados nos factos supra 25 a 44.
As Réus e a Interveniente B... colocaram a questão da causalidade adequada, alegando que os danos sofridos pela autora não são consequência da intervenção cirúrgica feita na ré, mas sim consequência direta das múltiplas intervenções médicas a que a autora se sujeitou, sendo que a gravidade dos danos sofridos pela autora, são consequência da evolução “catastrófica” e “anormal” do quadro de sepsis e de coagulação intravascular disseminada, sendo inerentes ao prolongado internamento da paciente nos cuidados intensivos.
Como é sabido, no âmbito da responsabilidade civil, em qualquer das suas modalidades, a lei portuguesa consagra a teoria da causalidade adequada (art. 563º do CC).
No caso em apreço, provou-se que os efeitos da rutura do canal excretor descritos na al. b) do ponto 53 – factos provados –, nunca tinham sido observados na sua ocorrência simultânea e com a gravidade que atingiu a autora, nem pela equipa clínica da ré que executou a intervenção, nem pelos médicos intensivistas do Hospital ... que assistiram a autora.

A Drª GG, médica intensivista relatou que não é habitual um doente reagir daquela forma, que apelidou de “catastrófica”.
Para a teoria da causalidade adequada, na vertente negativa, que é a seguida no nosso direito,[16] o facto que atuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem concorrido decisivamente circunstâncias anormais, excecionais, que intercederam no caso concreto.
Esta vertente negativa da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, pelo que admite não só a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano.
Tem sido entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o artigo 563.º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata. Admite-se, assim, em termos de imputação do facto à conduta, não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano.
É causa jurídica de um dano no paciente a conduta (culposa) do médico, que segundo um juízo a posteriori formulado se revela idónea para a produção de tal resultado (Álvaro Cunha Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, in Revista da Faculdade de Direito da UCP 191-198).
Encontra-se devidamente provado no factos 25, que as lesões descritas na matéria factual foram sofridas pela autora ocorrem em consequência do quadro clínico descrito no facto 15 (o líquido que invadiu o abdómen provocou aumento da pressão intra-abdominal, gerando uma síndrome de compartimento abdominal (SCA), a qual veio a causar um quadro de coagulação intravascular disseminada (CID)), ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes para a autora.”
Do exposto resulta que na fixação de indemnização deverão ser considerados também as lesões decorrentes dos adequados tratamentos das lesões decorrentes da primeira cirurgia.
Isto posto, antes de se proceder á fixação da indemnização, haverá apenas que concretizar quanto á responsabilidade do Hospital, uma vez que a Interveniente B... alega que não se provou que o 2ª Réu estivesse ligado á 1ª Ré através de contrato de trabalho ou de prestação de serviços, que, apesar da lesões sofridas pela autora terem ocorrido em consequência da atuação do 2º réu, a responsabilidade do Hospital Réu surge por força do preceituado no art. 800º, n.º 1 do CC, nos termos do qual, o devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor.
De acordo com este normativo, a conduta ilícita e culposa dos auxiliares no cumprimento da obrigação de prestação de serviços médicos, tornam o hospital em causa também responsável pelos aludidos danos.
Com efeito, como já escrevia o Prof. Vaz Serra[17], o devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento.
Daí que, em face do exposto, a 1ª Ré também deva ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização devida à autora.
Cumpre agora proceder á fixação da indemnização devida à autora, com vista á reparação dos danos por si sofridos, tendo em consideração que nos termos do art. 562º do C.C. o responsável pela reparação de um dano deve reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto, sendo o dano o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, e que se irá determinar pela diferença entre a situação real atual do lesado e a hipotética em que se encontraria se não tivesse havido lesão e segundo o principio da atualidade, que manda atender ao momento mais recente que o tribunal possa considerar e que, em regra é o momento do encerramento da discussão da causa
A indemnização deve ser fixada em dinheiro, porquanto não se mostra possível a reconstituição natural, face á natureza dos danos e tem por medida a diferença entre a situação patrimonial da autora na data de encerramento da matéria de facto no julgamento e a que teria se não existissem os danos (art.566º nº 1 e 2º do C.C.).
A autora peticionou os seguintes valores indemnizatórios:
Dano biológico: 165.000,00€
Danos não patrimoniais: 140.000,00 euros
Perda salarial: 11.299,96 euros
Despesas com deslocações: 11.640€
Despesas com consultas, tratamentos e meios de diagnóstico: 743,83€
De referir que se encontra provado que a autora carece de realizar mais duas intervenções cirúrgicas: uma de cirurgia plástica (abdominoplastia) e uma de ortopedia (bilateral), sendo que a liquidação feita nos autos foi meramente provisória.
Significa isto, que não foi possível liquidar a totalidade dos danos.
Porém, como resulta do disposto no art.609º nº 2 do CPC se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida.
Os danos a indemnizar são os de natureza patrimonial mas também os não patrimoniais, indemnizáveis igualmente no âmbito da responsabilidade contratual.[18]
Não se levanta, no caso, nenhuma dúvida de que estão provados danos não patrimoniais com gravidade suficiente para serem indemnizáveis (nº 2 do artigo 496º do Código Civil).
Comecemos pelos danos patrimoniais, que como é sabido são os danos que são o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado, neles se incluindo os danos emergentes e os lucros cessantes.
O primeiro compreende o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado á data da lesão; o segundo abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que não tinha ainda direito á data da lesão.
Quanto aos danos patrimoniais é devida indemnização à autora correspondente ao reembolso das despesas que teve de suportar com tratamentos, consultas e meios de diagnóstico, no valor de €748,83 (facto 41).
É ainda devida indemnização pela despesa efetuada com as não menos de 40 deslocações efetuadas ao Hospital ... (facto 42), as não menos de 40 deslocações que efetuou ao hospital da Ré (facto 43) e noutras deslocações para tratamentos de fisioterapia e outros (facto 44), no que percorreu pelo menos 30 mil km (2400 + 1200+ 26.400), que importam um gasto de 12.000,00 euros, utilizando-se como valor de referencia a quantia de 0,40€/Km (Portaria 1553-D/2008 de 31.12).[19]
Relativamente aos salários que a autora deixou de auferir, pensamos que em face da factualidade provada se mostra corretamente efetuado o cálculo pela autora.
Com efeito, ficou provado que a autora em 14 de outubro de 2015 trabalhava como assistente operacional (administrativa) no Município ..., auferindo como retribuição mensal base, o valor de € 532,08, catorze vezes por ano, acrescido de um subsídio de refeição no valor diário de € 4,27 por cada dia de trabalho prestado.
Desde 14 de outubro de 2015, a autora nunca mais retomou a sua atividade laboral, passando a estar de baixa médica, vindo a ser declarada aposentada por invalidez em 28 de março de 2019, por decisão proferida pela Caixa Geral de Aposentações.
Esteve totalmente incapacitada para o trabalho num período correspondente a 1959 dias.
Recebeu até ao ano 2022, as quantias mencionadas no facto 39 e 40 a título de remuneração paga em situação de doença e a título de pensão por invalidez.
Desta forma, parece-nos corretamente o cálculo da perda salarial até Outubro de 2022 efetuado pela autora, para o qual remetemos,[20] que teve em consideração aqueles valores (nomeadamente as quantias que lhe foram pagas), pelo que é devida a indemnização de € 11.299,96 euros.
No demais a autora peticiona a título do dano biológico a quantia de 165.000,00€, integrando neste valor o défice funcional perante de integridade físico-psíquica de que ficou a padecer, com repercussão na sua capacidade de ganho, ponderando a sua idade, período de vida expectável, o grau de afetação de que veio a padecer, o nível de rendimentos que vinha auferindo e as expetativas de progressão na profissão.
Vejamos.
Tradicionalmente, neste âmbito surgia como dano indemnizável apenas um dano patrimonial futuro correspondente à perda de capacidade de ganho do lesado.
Esta indemnização derivada da perda de capacidade de ganho visa indemnizar danos futuros que, para poderem ser ressarcidos, têm que assumir a aludida característica de serem previsíveis, o que aliás é condicionante da sua possibilidade de valoração (cfr. art. 564º, nº 2 do CC).
Esta perda da capacidade de ganho, conforme vem sendo defendido pela Jurisprudência, não depende da efetiva perda ou diminuição da remuneração por parte do lesado, tanto mais que a mesma pode ser valorada (e tem-no sido em termos Jurisprudenciais – por ex. quando o lesado é menor, ou está desempregado, situações em que se faz apelo ao valor do salário mínimo nacional) mesmo quando o lesado não exerça qualquer profissão remunerada, compreendendo antes este dano patrimonial uma ideia de frustração de utilidades futuras e de frustração de expectativas de aquisição de bens.
Daí que, mesmo que não haja retração salarial, a IPP (afetação definitiva da integridade física) dá lugar a indemnização pelos danos sofridos, pois o dano físico determinante da incapacidade exige do lesado um esforço suplementar, físico e psíquico, para obter o mesmo resultado de trabalho[21].
Ao nível do rebate profissional a autora ficou com uma incapacidade permanente global para o trabalho de 73% (facto 37).
No situação da autora, ficou provado que a autora não está totalmente incapaz para o exercício da sua atividade profissional habitual, desde que:
a) deixe de desempenhar algumas das atividades que desenvolvia no seu âmbito, como o acompanhamento de crianças em colónias balneares, e fique confinada a serviço administrativo, sentada à secretária;
b) suporte esforços suplementares importantes, nomeadamente a nível de deslocações de e para o trabalho e no local de trabalho, assim como o transporte de carga;
c) a sua entidade patronal adapte o seu posto de trabalho, com recurso a ferramentas digitais, e os períodos da sua prestação e de descanso.
Se não se provou uma total incapacidade para o trabalho, não há dúvida que a autora passou a padecer de importantes limitações físicas, incapacidade que importaria sempre uma diminuição da capacidade funcional, obrigando a lesada a ver-se obrigada a ter que “exigir” determinadas condições especiais para o exercício da sua profissão, implicando um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão, e inclusivamente provocando inferiorização no confronto do mercado do trabalho como outros indivíduos por tal não afetados.
Provou-se igualmente que ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais num grau de 37, numa escala até 100.
A autora ficou com a padecer das seguintes sequelas:
-A autora necessita permanentemente de usar uma bengala, como auxiliar de marcha;
- Sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 5, numa escala até 7;
- Ficou definitivamente afetada na sua atividade desportiva, de lazer e de convívio social, num grau 2, numa escala até 7.
-Ficou com inúmeras cicatrizes, descritas no facto 29;
-Ficou com a movimentação de flexão plantar do pé esquerdo até aos 10º e os dedos do pé esquerdo em garra;
- diminuição da sensibilidade tátil na face anterolateral de ambas as pernas, nos terços médio e inferior;
-incapacidade de colocação em calcanhares e em pontas de pé.
Vem-se entendendo que, ao lado do dano patrimonial futuro (perda da capacidade de ganho), o lesado, como resultado daquela mesma afetação definitiva da sua integridade física, pode também sofrer outros danos correspondentes aos esforços ou sacrifícios suplementares que o mesmo tenha que efetuar para exercer as várias tarefas e atividades gerais quotidianas (que já não contendem, pois, com o exercício das funções laborais previsíveis futuras).
Com efeito, a referida incapacidade funcional, afetando o corpo humano ou um seu órgão (no sentido médico-legal deste termo), representa uma alteração da sua integridade física que a impede, em geral, de exercer determinadas atividades corporais ou sujeita-a a exercitá-la de modo deficiente ou doloroso, independentemente dessas alterações terem reflexo na atividade laboral exercida ou que previsivelmente virá a ser exercida pelo lesado.
O dano corporal tem a sua justificação última na defesa da dignidade da pessoa humana e tem por objeto toda e qualquer ofensa à integridade física e/ou psíquica do lesado.
A densificação deste dano tem sido feita em Portugal essencialmente pela jurisprudência, incluindo progressivamente no seu âmbito novas ponderações de danos, tais como o dano estético, o dano psíquico, o dano sexual ou o dano da incapacidade laboral genérica[22].
Esta incapacidade funcional tem, em princípio, uma maior abrangência do que a perda da capacidade de ganho, podendo não coincidir com esta, tudo dependendo do tipo ou espécie de trabalho efetivamente exercido profissionalmente. [23]
Para que ocorra o dano patrimonial, na sua vertente de perda da capacidade de ganho, tem que se concluir que, em face da matéria de facto provada, é previsível que a aludida afetação definitiva da integridade física do lesado venha a produzir, no futuro, uma incapacidade profissional com repercussão negativa na capacidade de ganho.
Neste âmbito o julgamento terá que ser efetuado com recurso à equidade (art. 566º, nº 3 do CC), sendo certo que o legislador não indica, de uma forma direta, como deve a indemnização ser calculada.
Conforme no Acórdão do STJ, de 20-05-2010, [24] a indemnização pelo dano biológico sofrido pelo lesado “deverá compensá-lo quer da restrição ou limitação às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte atual de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade profissional atual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequelas das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e de rendimento auferido.”
Na determinação da indemnização com recurso á equidade o tribunal não está sujeito a regras e cálculos matemáticos, mas estes podem funcionar como um precioso elemento de trabalho, como aliás tem sido entendido, com certa uniformidade pela jurisprudência.
Nesta conformidade, “o montante indemnizatório devido a esse título não se obtém pela aplicação das tabelas financeiras resultantes de IPP para a profissão habitual, devendo antes ser fixada segundo juízos de equidade (art. 566º/3 do CC), em função dos seguintes fatores: i) idade do lesado; ii) o seu grau de incapacidade permanente; iii) e outros que relevem casuisticamente”[25]
Na situação em apreço, pondera-se que a autora tinha 43 anos na data do acidente, a esperança de vida na mulheres será até aos 83 anos e a idade de reforma aos 66 anos e que ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão na sua atividades diária, familiar e sociais num grau de 37, numa escala de 100. Pondera-se ainda a remuneração que era auferida pela autora.
Tendo por referência o seguinte cálculo, critério que servirá apenas de índice auxiliar para a aplicação de um juízo de equidade como ponto de partida (€ 538,00 x 14 meses = 7.532,00 x 33 anos de vida útil (contados do ano 2022) = 248.556 euros x 37% = 91.965,72 euros.
Entendemos assim, que à autora, que ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 37, numa escala até 100, que embora seja compatível com o exercício da profissão habitual que venha a exercer, implicará, contudo, esforços suplementares, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha de profissão, ficando com limitações que são de molde a influir negativamente e de sobremaneira na sua produtividade, sendo ainda tais limitações suscetíveis de reduzir o leque de possibilidades de profissões a exercer, e de se traduzir em maior onerosidade no desempenho das tarefas pessoais, e ficou definitivamente afetada na sua atividade desportiva, de lazer e de convívio social, num grau 2, numa escala até 7, como justa e adequada arbitrar uma indemnização a título de dano biológico fixada em € 90.000,00 euros.
Debrucemo-nos agora sobre os danos não patrimoniais.
Digamos que neste particular o “calvário” sofrido pela autora, desde que foi submetida á intervenção cirúrgica do dia 14 de Outubro de 2015, não é fácil de resumir e ainda não se encontra terminado.
Provou-se que em consequência do quadro clínico descrito no ponto 15 – factos provados – ou dos adequados tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora necessita permanentemente de usar uma bengala como auxiliar da archa e:
a) correu risco de vida;
b) esteve entubada e com sonda nasogástrica, ventilada e a fazer hemodiálise durante vários dias;
c) teve que utilizar, durante cerca de um ano, ortóteses nas pernas, causando-lhe dor e desconforto;
d) até meados de dezembro de 2015, esteve incapaz de andar, altura em que passou a deambular com auxílio de andarilho;
e) até março de 2017, data da cirurgia de reconstrução do transito intestinal, manteve a utilização de uma bolsa para coleção das suas fezes;
f) sentiu-me muito desconfortável com o saco de colostomia, que tinha que regularmente ser mudado, e para o que, inicialmente, necessitava da ajuda de terceiros;
g) experimenta especiais dificuldades em subir ou descer escadas, bem como em realizar trefas domésticas mais pesadas ou que envolvam o transporte de objetos com as duas mãos;
h) não consegue apoiar, por completo, a planta dos pés e sente dor e desconforto com a marcha, que realiza com o auxílio de uma bengala;
i) tornou-se uma pessoa ansiosa, irritável e revoltada, o que não era anteriormente;
j) deixou de fazer caminhadas, trabalhar no quintal e dançar, atividades que, com regularidade, anteriormente fazia e das quais retirava bem-estar físico e psíquico;
k) deixou de poder conduzir viaturas não especialmente adaptadas à sua atual condição física;
l) deixou de conviver normal e regularmente com os seus colegas de trabalho;
m) temeu pela sua vida e pelo futuro das suas filhas menores, com 5 e 13 anos de idade;
n) ficou privada de se relacionar sexualmente com o seu marido, durante vários meses, sentindo-se constrangida a despir-se à sua frente, quer quando usava saco de colostomia, quer ulteriormente, em razão das sequelas físicas, com prejuízo da harmonia conjugal e da sua gratificação pessoal.
o) por usar um saco de colostomia, enquanto o usou, bem como, atentas as suas demais limitações físicas e cicatrizes, sentiu-se e sente-se diminuída, com perda de autoestima e vergonha da sua situação, reduzindo a sua convivência social e a sua exposição em locais públicos;
p) por sentir vergonha das sequelas físicas de que ficou a padecer, cobre o corpo com vestuário, mesmo no verão e na praia;
q) deixou de poder usar saltos alto, o que anteriormente fazia, devendo agora usar caçado com palmilhas adaptadas;
r) sofreu fortes dores físicas, continuando a sofrer de dores e de desconforto regular;
s) sente-se triste, desgostosa, afetada na sua feminilidade, amargurada, revoltada, deprimida e com perda do gosto pela vida.
Até 14 de outubro de 2015, a autora era uma pessoa alegre, dinâmica e extrovertida, prezava e tinha hábitos de convívio social e familiar regulares.
Sofreu uma afetação da sua aparência (referidas nas imagem estética), num grau 5, numa escala de 7.
A este respeito as inúmeras cicatrizes visíveis no corpo da autora mencionadas nas líneas c), d), e), f), g), i), j), k), l) e p), do facto 29, são bem demonstrativas do sofrimento da autora, desde Outubro de 2015 até à data.
Sofreu dor quantificável num grau 6, numa escala até 7 (quantum doloris);
Nesta dor há que considerar que a autora sofreu risco de vida e que para o tratamento adequado das lesões em consequência do ocorrido na primeira cirurgia foi submetida a uma outra cirurgia ainda nas instalações da Ré no dia 14.10.2015 (laparotomia para drenagem de liquido abdominal) e a mais 15 cirurgias, que foram efetuadas no Hospital ... nas seguintes datas: 15.10.2015; 15.10.2015; 7.10.2015; 17.10.2015; 18.10.2015; 18.10.2015, 22.10.2015, 22.10.2015, 22.10.2015, 18.1.2916, 23.4.202016, 20.3.2017, 5.7.2017, 8.1.2020, 25.9.2020 e 15.2.2020, encontrando-se programadas ainda mais duas cirurgias.
A autora compareceu a 100 consultas de especialidade discriminadas na alínea h) do 24. E realizou 30 exames complementares e de diagnóstico.
Fez fisioterapia até Julho de 2022, sendo que até abril de 2018 era 3 vezes por semana e passou a ser duas vezes de semana.
Trata-se de sofrimento prolongado que se prolongou durante muito tempo (sete anos, sem que se possa dizer que esteja terminado) com repercussões definitivas na vida da autora.
Como circunstâncias concretas do caso a ponderar nos termos do art. 496 nº4 do C.Civil, pondera-se que após a rutura do canal excretor foram tomadas as decisões adequadas que a gravidade da situação impunha, nomeadamente a transferência da autora para uma unidade hospital com serviço de Cuidados Intensivos, o que permitiu que autora em falência total de órgãos tivesse logrado sobreviver e a atitude meritória do Dr. BB na colaboração que prestou aos médicos do Hospital ... e no acompanhamento da doente que fez, tendo demonstrado preocupação pelo seu estado de saúde.
Deste modo, ponderando o exposto, fixa-se a compensação pelo dano não patrimonial global (dores, dano estético) entende-se ser justa e adequada a indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de 100.000,00 euros.
Com esta quantia atende-se, cremos, ao que são os parâmetros atuais da jurisprudência nacional e que correspondem à realidade em que vivemos sem deixar de ter em conta a gravidade dos danos morais causados.
A título exemplificativo, no acórdão do STJ de 18.10.2018, proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1, que se reportava a uma autora que sofreu acidente aos 29 anos, auferia um rendimento semelhante ao da ora autora, cujas lesões determinaram um período de défice funcional total de 30 dias, um período de défice funcional temporário parcial de 91 dias, um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 121 dias, um quantum doloris fixável no grau 6/7, um dano estético permanente fixável no grau 5/7, uma repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 4/7 e um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 21,698 pontos, com existência de dano futuro de 5 pontos, à qual (autora) foi-lhe atribuída, a título de danos não patrimoniais, a indemnização de 160.000,00€ (90.000.00 pelo dano biológico na vertente não patrimonial e 70.000,00 pelos danos não patrimoniais).
No Ac. STJ de 14.1.2021, proc. 644/12.8TBCTX.L1.S1, foi atribuída uma indemnização no valor de € 100.00,00 a um lesado, de 32 anos de idade, que, em consequência de um sinistro, teve um sofrimento físico e psíquico avaliável num grau 5 de 7 e sequelas que lhe determinaram um dano estético avaliável num grau 2 de 7, apresentando um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 40 pontos.
A condenação global ora fixada (214.043,89 euros) será paga solidariamente por ambas as demandadas
Temos assim que, na parcial procedência do presente recurso, irá alterar-se a condenação das rés, fixando-se a mesma na quantia global de 214.043,89 euros.
Uma vez que apenas foram peticionados juros de mora, na petição inicial e apenas quanto ao valor ali então liquidado de 1.828,83, apenas serão devidos juros de mora contados á taxa supletiva legal, desde a citação, até integral pagamento, contados sobre tal valor.

VI-DECISÃO
Peço exposto em conclusão, acordam os Juízes que compõe este Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso e em revogar a sentença recorrida, julgando-se a ação parcialmente procedente e condenando-se os réus solidariamente pagaram à autora as seguintes quantias, sem prejuízo como da indemnização que vier a ser liquidada em decisão ulterior a título de danos futuros:
-a quantia global de € 24.043,79 euros (743,83 + 12.000,00 + 11.299,96) (vinte e quatro mil e quarenta e três euros e oitenta e nove cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais, e nos juros de mora contados à taxa supletiva legal contados apenas sobre a quantia de € 1.828,83 (integrada naquele valor), vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento;
-a quantia de global 190.000,00 euros (cento e noventa mil euros (90.000,000 + 100.000,00) a título de indemnização pelo dano corporal ou biológico e sofrimento causado.
Custas pela recorrente e recorridos na proporção do decaimento.

Porto, 26 de setembro de 2023.
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira [Declaração de Voto do Sr. Juiz Desembargador, 1º Adjunto:
“À luz da factualidade julgada provada, entendo que a responsabilização do co-réu, médico, ante a autora, paciente, apenas poderá fundar-se em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, e não, como fez vencimento no acórdão, em responsabilidade contratual, pela simples razão de que entre a paciente e o médico nenhum contrato foi celebrado.
A autora celebrou, sim, contrato com a co-ré Fundação (Hospital), resultando para esta o dever de indemnizar a autora, por incumprimento contratual, desde logo por não ter logrado ilidir a presunção de "culpa" estabelecida no art. 799.º, n.º 1, do CCivil.
A atuação do co-réu, médico, enquanto trabalhador assalariado da co-ré, Fundação, ainda que convoque a norma do art. 800.º, n.º 1, do Civil - "O devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor" -, em nada leva a questionar no caso a efetiva responsabilização do Hospital nos ditos termos.
Com efeito, como bem observa MENEZES CORDEIRO, Código Civil Anotado, II, Das Obrigações em Geral, 2021. p. 1029, [O 800.º/1 apenas dispõe que a intermeação de um representante legal ou de um auxiliar não justifica um não-cumprimento. A responsabilidade resultante do art. 800.º/1 é, nesse sentido, comum. O devedor não é atingido por esse preceito, mas pelo artigo 799.º/1. Cabe-lhe ilidir a presunção de "culpa" dele resultante, recorrendo a qualquer outro esquema que não o da presença de representantes legais e auxiliares".
Quanto aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, ante a atuação do co-réu, médico, entendo que a factualidade apurada é adequada e suficiente a concluir pela sua verificação, mas apenas na vertente do "consentimento informado", e pelas razões expendidas no acórdão, afigurando-se-me, por outro lado, em dissonância com o entendimento que fez vencimento, não ter resultado suficientemente demonstrada a falta de cuidado do 2.ª réu, médico, na escolha do procedimento cirúrgico que acabou por ser adotado.
Em resumo, a meu ver, existe dever de ambos os réus indemnizarem a autora pelos danos sofridos em consequência do ato médico em causa, embora com fundamento em responsabilidade contratual no que concerne à 1.ª ré, Fundação, e em responsabilidade extracontratual por facto ilícito no que respeita ao 2.º réu, médico."]
Alberto Taveira
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[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225.
[2] Abrantes Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[3] In A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Civil, 2015, Coimbra Editora, pág. 147.
[4] In “O Ónus da Prova nas Ações de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127.
[5] Veja-se o leia-se Acórdão do STJ de 22.9.2011, proc. 674/2001.P L.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido ver Henriques Gaspar, em “A Responsabilidade Civil do Médico”, CJ, ano III, 1978, pág. 341 e os Acórdãos desta Relação de 10.02.2015, relator: Rodrigues Pires, e de 26.01.2016, relator Igreja de Matos, disponíveis em dgsi.pt.
[7] Neste sentido o Acórdão do STJ de 22.09.2011, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido o acórdão do STJ de 1.10.2015 relatado por Mª dos Prazeres Beleza, em dgsi.pt.
[9] cf. Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pg. 69
[10] Ver Acórdãos desta Relação citados na nora de rodapé 3.
[11] Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54.
[12] Relator António Barateiro Marins e disponível in www.dgsi.pt.
[13] In “Responsabilidade civil em saúde e violação do consentimento informado na jurisprudência portuguesa recente, in revista Julgar nº 42 (Setembro-Dezembro 20220).
[14] Ver o acórdão de 14.12.2021 proferido no processo nº 711/10.2TVPRT.P1.S1 (relator Isaías Pádua), disponível in dgs.pt..
[15] Relatora Maria clara Sottomayor, disponível in www.dgsi.pt.
[16] Ver Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª edição, pag. 921 e ss)
[17] Vide Vaz Serra, in “Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes legais ou dos substitutos”, BMJ 72º, citado por A. Varela/, P. Lima, in “Código Civil Anotado”, IIº volume, pág. 57;
[18] Neste sentido, por todos, Acórdão do STJ de 24 de Setembro de 2009, proc. nº 09B0368, www.dgsi.pt
[19] Constitui jurisprudência assente que não viola a o princípio dos limites do pedido as parcelas individualmente peticionados, mas o valor global.
[20] Arts. 34 e ss do incidente de liquidação.
[21] V. ac. do STJ de 28.02.2008, in Dgsi.pt
[22] Na doutrina os grandes tratados de Direito Obrigacional continuam a dar pouco relevo ao dano corporal, havendo, contudo, algumas publicações específicas sobre esta questão, com particular relevo para as de Armando Braga (A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, Almedina, 2005), Álvaro Dias (Dano Corporal – Quadro Epistemológico e aspectos ressarcitórios, Almedina, 2001).
[23] Quanto à ressarcibilidade do dano biológico, ver por todos, apenas ao nível do Supremo, AC STJ de 19.05.2009 (relator Fonseca Ramos), AC STJ de 23.11.2010 (relator Hélder Roque), AC STJ de 21.03.2013 (relator Salazar Casanova), AC STJ de 2.12.2013 (relator Garcia Calejo) AC STJ de 19.02.2015 (relator Oliveira Vasconcelos) e, ainda, AC STJ de 4.06.2015 (relator Maria Beleza), todos in www.dgsi.pt
[24] No Proc. 103/2002.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[25] Ac. STJ de 14.12.2016 e de 21.01.2021, Peste no 6705/14.