Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
524/14.2TYVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
ADMINISTRADOR DE DIREITO
DEVER DE CONTROLO
DEVER DE VIGILÂNCIA
Nº do Documento: RP20191126524/14.2TYVNG-B.P1
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
II - A equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 deste art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados pelos administradores de facto.
III - A sócia única da sociedade unilateral por quotas, ainda que apenas administradora de direito, deve ser afectada pela qualificação culposa da insolvência se tal sociedade nunca possuiu contabilidade organizada nem liquidou impostos, já que estava obrigada a deveres de cuidado, designadamente a um dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional e a todos os deveres legais específicos, designadamente provendo para que a sociedade mantivesse uma contabilidade organizada e pagasse as contribuições e impostos devidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 524/14.2TYVNG-B.P1
Comarca: [Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (J1); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

Por apenso aos Autos principais de insolvência, e na sequência do teor do Parecer do Administrador da Insolvência, para os fins do art.º 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1], determinou-se a autuação do presente apenso de qualificação da insolvência contra a Insolvente “B…, UNIPESSOAL, LDA.”
Consta de tal Parecer, em resumo, que a empresa não tem contabilidade organizada, não tem registo das vendas e não fornece à Autoridade Tributária informações que permitam liquidar os seus impostos.
Declarado aberto o incidente pleno de qualificação da insolvência, e tendo-se determinado a notificação do Administrador da Insolvência para os fins do art.º 188.º, n.º 3, do CIRE, este veio apresentar o respectivo Parecer, no sentido de que os responsáveis da empresa terão praticado os actos de gestão de forma ingénua e sem qualquer aproveitamento pessoal.
Emitindo a opinião de que não terá havido locupletamento dos responsáveis, conclui que a insolvência deverá ser considerada não culposa.
Por sua vez, o Ministério Público emitiu Parecer alegando, em síntese, que a Insolvente incumpriu, em termos substanciais, o dever de manter contabilidade organizada, com o que impediu que fosse cognoscível a sua situação patrimonial e financeira em geral, bem como a determinação das posições devedoras e credoras, e o consequente apuramento dos resultados alcançados, em particular o esclarecimento das causas concretas da respectiva insolvência.
Mais alega que a empresa insolvente não liquidou o montante das contribuições e quotizações apuradas sobre o valor das remunerações devidas ao seu funcionário C…, por referência ao período compreendido entre Novembro de 2008 e Janeiro de 2010.
Alega igualmente que se presume de forma inilidível que a gerente da empresa conhecia a situação de insolvência, pelo menos desde meados de 2009, não tendo requerido a respectiva declaração de insolvência nos 30 dias seguintes.
Conclui no sentido da qualificação da insolvência como culposa, de acordo com o disposto nos art.º 186º, n.º 1 e 2, alínea h), e n.º 3, alínea a), do CIRE, sendo afectada pela referida qualificação a administradora (de facto e de direito) D….
A sócia-gerente da Insolvente D… veio apresentar oposição, alegando que a gerência de facto da Insolvente nunca foi exercida por si, tendo apenas permitido a utilização do seu nome.
Afirma que jamais teve consciência do estado de insolvência da sociedade, não tendo incumprido o dever de se apresentar à insolvência.
Diz que a gerência de facto foi, desde sempre, efectuada pelos seus pais.
Alega ainda que os factos imputados excedem os 03 anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Pede que a insolvência seja julgada como fortuita ou, caso assim não se entenda, que ela própria não seja afectada com a qualificação da mesma.
A credora “E…, Lda.” veio propugnar que, em face destes factos, a insolvência seja havida como culposa.
Solicitou-se a obtenção de informações junto da Autoridade Tributária e realizou-se audiência de julgamento, com inquirição das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, pela Requerida e pela Credora “E…, Lda.”, bem como com prestação de depoimento de parte desta.
Proferiu-se sentença, a qual concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita.
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público veio interpor recurso, pedindo que a sentença seja revogada e substituída por outra que, considerando os factos provados e integrando-os nas previsões típicas das alíneas h) do art.º 186.º, n.º 2 e 3, alínea a), do CIRE, declare a insolvência como culposa e afectada a gerente D…, com todas as demais consequências previstas no art.º 189.º do CIRE, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
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A sócia-gerente da Insolvente, D…, veio apresentar contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Foi proferido despacho a admitir o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa relativamente à pessoa da Recorrida D….
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos considerados provados na sentença recorrida:

1) “B…, Unipessoal, Lda.”, NIPC ………, com sede na Rua …, …, …, Gondomar, foi constituída em 03.03.2008, tendo como objecto social talho e salsicharia, com o capital social de € 5.000,00 e gerência exercida por D….
2) Em 21.05.2014, a credora “F…, Unipessoal, Lda.” veio requerer a insolvência da sociedade “B…, Unipessoal, Lda.”.
3) Citada, a sociedade requerida veio deduzir oposição a fls. 24 e ss.
4) Por sentença proferida em 06.03.2015, foi decretada a insolvência da sociedade, tendo sido dispensada a realização da assembleia de credores e nomeado administrador de insolvência, cf. fls. 44 do processo principal.
5) A fls. 131 e ss. do processo principal, o A.I. juntou o relatório de art.º 155.º do CIRE, no qual concluiu pelo encerramento do estabelecimento e pela liquidação do activo.
6) Foi ordenado o prosseguimento dos autos para liquidação.
7) Foi apreendida uma verba referente a equipamento no valor de € 6.394,50, tendo sido requerido pelo A.I. o encerramento do processo nos termos do art.º 232.º do CIRE, ainda não decidida, cf. fls. 3 v.º do apenso C.
8) O passivo da insolvente, tendo em atenção os créditos reclamados e reconhecidos, ascende a € 152.905,63, referente a fornecimentos e contribuições, que remontam a 2008/2011.
9) A sociedade insolvente era uma empresa familiar cuja gerência de direito foi atribuída a D…, professora, estando à frente do negócio a sua mãe G… e o marido desta, sendo a G… quem geria de facto o negócio, dava ordens, contactava com os fornecedores e procedia às vendas, às compras e aos respectivos pagamentos.
10) Em 2008/2009 a requerida D… esteve colocada como professora em Lisboa e no Alentejo, e posteriormente trabalhou em centros de estudo e fez um curso especial para crianças com dificuldades, só permanecendo na insolvente ao sábado para ajudar os pais nas limpezas.
11) Permaneceu ainda na insolvente em 2012/2013 por um período de apenas cerca de 5 meses para ajudar o pai quando a sua mãe esteve detida durante esse período.
12) A sociedade quando foi constituída em 2008 a contabilidade foi entregue a um contabilista indicado pelo gerente do banco durante apenas dois anos, tendo deixado de pagar por ser muito caro, tendo arranjado outra mais barata, que acabou por lhe perder o rasto.
13) A partir de, pelo menos, 2011 a sociedade nunca mais possuiu contabilidade organizada e não tem registo de vendas.
14) Não forneceu à AT informações que permitam liquidar os seus impostos e apenas procedeu à entrega das declarações modelo 22 e IES do ano de 2008; relativamente às declarações de IVA, apenas entregou as declarações dos períodos de 2008/03 até 2009/06, cf. doc. de fls. 47 a 69.
15) A sociedade insolvente não liquidou as contribuições e quotizações devidas entre os períodos de 2008 a 2010.
16) A insolvente já vinha apresentando dívidas aos seus principais fornecedores desde 2011, as quais se prolongaram pelos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015, cf. apenso D.
17) A requerida D… só permanecia no estabelecimento aos sábados, para ajudar os pais na limpeza.
18) A requerida D…, na qualidade de gerente de direito da sociedade assinou documentos e passou procurações a pedido da mãe.
19) A mãe da requerida, G…, exercia a gerência de facto e era quem dava ordens, contactava com fornecedores, fazia encomendas e procedia aos pagamentos.
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IV – VERIFICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA

Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
Esta dicotomia tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de factores alheios à vontade do Insolvente, tais como contingências económico-financeiras inesperadas ou situações de desemprego, divórcio ou doença.
Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objecto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
A regra é, pois, a de que a actuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.
Trata-se tipicamente de uma norma de protecção, as quais – tal como explica Manuel Carneiro da Frada[3] - “levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, (…) permitem como que “pré-protegê-lo” (ou “antecipar” a sua protecção), vedando ou prescrevendo condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário).
Nos presentes autos, a decisão recorrida refere ser inequívoco que a empresa nunca teve contabilidade organizada, pelo menos a partir de 2009, nunca houve preocupação com a contabilidade nem no cumprimento das obrigações fiscais, nada tendo sido pago à Autoridade Tributária.
Entendeu que, muito embora se verifique a violação do dever previsto na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, não se pode imputar à requerida D… a violação de tal dever por, não obstante ser a gerente de direito, não o era de facto.
Prossegue afirmando que não há dúvidas que o dever de apresentação à insolvência, previsto no art.º 186.º, n.º 3, alínea a), do CIRE, foi violado.
Fundamenta, no entanto, que não se pode concluir que a violação se deva à conduta da requerida, uma vez que quem exercia as funções de gerência de facto era a sua mãe G…, a qual geria efectivamente a empresa.
Conclui que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.
O Ministério Público contrapõe – no presente recurso – decorrer dos factos provados a violação do dever previsto na al. h) do art.º 186.º do CIRE, assim como o incumprimento do dever de apresentação da sociedade à insolvência, previsto no art.º 186.º, n.º 3, al. a) do CIRE.
Sustenta que decorre da factualidade provada, concretamente, dos factos referidos sob os n.º 10, 11 e 18, que a afectada D…, na qualidade de gerente de direito, praticou actos de gestão, assinando documentos e procurações, deslocando-se ao estabelecimento da insolvente aos sábados e que esteve ainda na insolvente em 2012/2013 por um período de apenas cerca de 5 meses enquanto a sua mãe (gerente de facto) esteve detida.
Alega que – por inerência - esta se inteirou da forma como a insolvente funcionava, que não tinha contabilidade, nem sequer registo de vendas, assim como, já então, um volume elevado de dividas.
Mais sustenta que, mesmo que estivesse alheia ao que acontecia na empresa, só por culpa grave, que lhe é imputável, permitiu que a situação da sociedade chegasse ao ponto a que chegou, ou seja, sem contabilidade, sem registo de vendas (facto n.º 13), sem cumprir quaisquer obrigações fiscais e contributivas (factos n.º 14 e 15) e até sem contabilista (facto n.º 12). E também só com culpa grave nunca apresentou a sociedade à insolvência, nem mesmo no período de 5 meses em que permaneceu no estabelecimento (cf. factos n.º 2, 14, 15 e 16).
Defende que, mesmo que se considerasse que a afectada era uma mera gerente de direito que nunca tinha estado ligada, na prática e no quotidiano, à empresa, tal situação não impediria a sua responsabilização: ao assumir a qualidade de gerente, a afectada assumiu um conjunto de deveres/obrigações e não pode, agora, ser desresponsabilizada só porque outrem ( no caso, a mãe que trabalhava no estabelecimento) geria, no quotidiano, o negócio.
Cumpre decidir.
Resulta da estatuição do art.º 64.º do Código das Sociedades Comerciais[4] que os gerentes ou administradores da sociedade devem observar deveres de cuidado e deveres de lealdade, como emanação da relação fiduciária de gestão de bens e interesses autónomos que se estabelece no acto de constituição de tal sociedade comercial.
Restringindo a nossa análise aos deveres de cuidado, temos que estes, recorrendo às palavras de Menezes Cordeiro[5], “devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão. (…) A lei especifica: (a) disponibilidade; (b) competência técnica; (c) conhecimento da actividade da sociedade; outros tantos deveres, não taxativos, que dão um colorido geral a toda a actuação, essencialmente fiduciária, dos administradores.”
No mesmo sentido, refere Coutinho de Abreu[6] que o dever de cuidado compreende “(a) o dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional, (b) o dever de actuação procedimentalmente correcta (para a tomada de decisões) e (c) o dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis.” E “O dever em primeiro lugar indicado (dever de controlo) significa que é obrigação dos administradores prestarem atenção à evolução económico-financeira da sociedade e ao desempenho de quem gere (administradores e outros sujeitos, designadamente trabalhadores de direcção).”
Para além destes deveres de carácter geral, incluem-se igualmente nos deveres de cuidado aqueles que resultam da lei (apelidados habitualmente como “deveres legais específicos”), entre eles os de cumprir as obrigações de que a sociedade é devedora em relação à Administração Tributária e Fiscal e Segurança Social (cf. Lei Geral do Trabalho e art.º 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias) e o dever de requerer a declaração de insolvência (cf. art.º 18.º e 19º do CIRE).
No caso em apreciação, a “B…, Unipessoal, Lda.”, foi constituída em 03/03/2008, tendo como objecto social talho e salsicharia, com o capital social de € 5.000,00 e gerência exercida por D….
As sociedades unipessoais por quotas, introduzidas no CSC pelo D.L. n. 36/2000, nos art.º 270.º-A a 270.º-G, são “constituídas por um único sócio, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social.”, o que pode ocorrer de raiz ou supervenientemente, por virtude da concentração num único sócio da totalidade das quotas.
Às sociedades unipessoais por quotas “aplicam-se as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios” (cf. art.º 270.º-G, do CSC)
Tratando-se, ainda assim, de uma sociedade por quotas, os poderes, os deveres e os direitos atribuídos a este sócio único serão paralelamente os mesmos que pertencem aos sócios de todas as sociedades desta espécie, designadamente os poderes de administração e representação da sociedade nos termos previstos nos art.º 259.º do CSC.
Obviamente que também aqui, tal como realça Ricardo Costa[7], “(…) o círculo autónomo de competências dos gerentes abrange todos os actos que, se violarem a lei, os estatutos ou o dever de diligência a que estão vinculados, afectam o cumprimento das suas funções de administração e podem ser fonte de responsabilidade.”
Perante estas considerações, podemos – desde já – concluir pela absoluta irrelevância jurídica da tese apresentada pela Recorrida nas suas contra-alegações, no sentido de que só “deu o seu nome para a constituição da empresa” e de que “ignorava por completo a realidade e andameto da B…, por confiar, plenamente, nos seus progenitores.”
Tendo a Recorrida assumido a qualidade de sócia única da sociedade em causa estava obrigada a estes deveres de cuidado, designadamente a um dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional e a todos os deveres legais específicos, designadamente provendo para que a sociedade mantivesse uma contabilidade organizada, pagasse as contribuições e impostos devidos e apresentando a empresa à insolvência se se verificassem os pressupostos legais para o efeito.
A circunstância apurada de que a sociedade insolvente era uma empresa familiar cuja gerência de direito foi atribuída a D…, professora, estando à frente do negócio a sua mãe G… e o marido desta, sendo a G… quem geria de facto o negócio, dava ordens, contactava com os fornecedores e procedia às vendas, às compras e aos respectivos pagamentos, não tem a virtualidade de isentar a Recorrida do cumprimento destes deveres de cuidado.
Como se sabe, ocorre com alguma frequência existirem indivíduos que desempenham as funções intrínsecas à qualidade de administradores ou gerentes sem para tal estarem habilitados.
Tratam-se genericamente de pessoas que, sem título bastante, exercem na prática, de forma não subordinada e duradoura, funções próprias da administração/gerência.
No entanto, apesar de comum, é uma situação ilegal nas sociedades por quotas, já que o art.º 252.º, n.º 5 e 6, do CSC prescreve que os gerentes não se podem fazer representar no exercício do seu cargo, excepto para a prática de determinados actos ou categorias de actos.
Apenas os administradores legalmente instituídos podem agir em nome e por conta da sociedade, produzindo efeitos jurídicos que se projectem na esfera jurídica desta.
Não obstante este carácter genericamente ilegal, o ordenamento jurídico português institui várias consequências jurídicas à correspondente situação de facto, numa perspectiva funcional, designadamente no art.º 186.º do CIRE[8].
No entanto, a equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 deste art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados pelos administradores de facto.
Feito esta analise de ordem geral, passemos para a análise das concretas condutas imputadas pelo Recorrente à Recorrida alegadamente conducentes à qualificação da insolvência como culposa: a violação do dever previsto na al. h), do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE e o incumprimento do dever de apresentação da sociedade à insolvência, previsto no art.º 186.º, n.º 3, al. a) do CIRE.
O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE elenca um conjunto de situações em que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular”, designadamente quando “os seus administradores, de direito ou de facto tenham: (…) h) Incumprido, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
A interpretação necessária deste n.º 2 do preceito é a de que a verificação de alguma das situações previstas faz presumir, de forma inilidível, quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Aliás, este é o entendimento que vem sendo defendido, de forma pacífica e reiterada, na doutrina e na jurisprudência.
Refere, a este propósito, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[9] que este n.º 2 contém presunções absolutas de insolvência culposa do devedor.
No mesmo sentido, diz Luís M. Martins[10] que “A mera prática destes actos constitui presunção inilidível da qualificação da insolvência como culposa. (…) não admitindo prova em contrário quando se verifiquem alguma ou algumas das circunstâncias nele enumeradas. (…) O n.º 2 do artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a actuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.”
Por seu turno, decidiu-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014, tendo como Relatora Catarina Gonçalves[11] que “Nas situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.”
Por seu turno, o n.º 3 do mesmo art.º 186.º do CIRE elenca um conjunto de situações em que se considera presumida a “existência de culpa grave”, sendo uma dessas situações precisamente quando “os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência.”
Lendo esta estatuição paralelamente à acima citada do n.º 2 do mesmo normativo, facilmente se conclui que aqui a lei “somente” estabelece uma presunção ilidível da existência de culpa grave, admitindo que o interessado inverta a factualidade de base da mesma.
A divergência na doutrina e jurisprudência prende-se com a presunção versus necessidade de prova do nexo de causalidade entre a actuação do administrador e a situação de insolvência.
A nosso ver, a presunção ilidível aí consagrada não engloba idêntica presunção de nexo de causalidade entre a actuação e a criação da situação de insolvência ou agravamento desta.
Ou seja, presume-se a existência de culpa grave, mas não o pressuposto objectivo de criação ou agravamento da situação de insolvência.[12]
Passando para a análise dos factos provados, deve, desde logo, atentar-se em que – tal como já ficou referido acima – está provado que a sociedade insolvente era uma empresa familiar cuja gerência de direito foi atribuída a D…, professora, estando à frente do negócio a sua mãe G… e o marido desta, sendo a G… quem geria de facto o negócio, dava ordens, contactava com os fornecedores e procedia às vendas, às compras e aos respectivos pagamentos.
Ficou assente que a partir de, pelo menos, 2011 a sociedade nunca mais possuiu contabilidade organizada e não tem registo de vendas.
Não forneceu à AT informações que permitissem liquidar os seus impostos e apenas procedeu à entrega das declarações modelo 22 e IES do ano de 2008; relativamente às declarações de IVA, apenas entregou as declarações dos períodos de 2008/03 até 2009/06, cf. doc. de fls. 47 a 69.
Também que a sociedade insolvente não liquidou as contribuições e quotizações devidas entre os períodos de 2008 a 2010.
Apreciando, verifica-se, desde logo, que não ficou provado que as obrigações de prover pela organização da contabilidade, de liquidar os impostos e contribuições e quotizações tivessem chegado a ser assumidas pela administradora de facto ou pelo menos que tais obrigações devessem, por acordo com a sócia de direito, ser exercida por esta.
Independentemente disso, e como ficou já dito acima, a Recorrida, enquanto sócia única da sociedade, estava obrigada a todos os deveres de cuidado, designadamente a um dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional e a todos os deveres legais específicos, designadamente provendo para que a sociedade mantivesse uma contabilidade organizada e pagasse as contribuições e impostos devidos.
É, pois, manifesto estar verificada a situação consagrada na alínea h), do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE, ao aludir ao incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Cumulativamente, uma vez que a verificação de alguma das situações previstas neste n.º 2 faz presumir, de forma inilidível, quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre o mesmo e a criação ou agravamento da situação de insolvência, é linear a conclusão da insolvência culposa com afectação da Recorrida nesse resultado, na qualidade de legal representante da sociedade.
Aliás, esta alínea, a par da alínea i), vem sendo interpretada pela doutrina e jurisprudência como uma “causa puramente objectiva” de insolvência dolosa.
Explica, a este propósito, Rui Estrela de Oliveira[13] que “Ou seja, estamos aqui perante sanções quase directas: deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência culposa. Destarte, e para fazer funcionar as presunções, apenas deve ser alegada e provada a literal factualidade com virtualidade para preencher a hipótese normativa das alíneas, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos de insolvência culposa constantes da noção geral do n.º 1.”[14].
Além disso, face à caracterização da norma deste artigo 186.º do CIRE como uma norma de protecção, pode mesmo equacionar-se que a aplicação desta alínea se baseie, em concreto, em mera negligência[15].
Diversamente, entendemos que a factualidade dada como provada nos autos não é suficientemente demonstrativa da verificação cumulativa quanto à Recorrida da situação consagrada na alínea a), do n.º 3, do mesmo art.º 186.º do CIRE, atinente ao dever de requerer a declaração de insolvência (o que, em face do preenchimento da alínea h), do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE sempre seria irrelevante).
Com efeito, para além da factualidade já acima analisada, apenas se provou que a Recorrida, enquanto administradora/gerente de direito da sociedade, assinou documentos e procurações, que se deslocava ao estabelecimento da insolvente aos sábados e que esteve ainda na insolvente em 2012/2013 por um período de cerca de 5 meses enquanto a sua mãe (gerente de facto) esteve detida.
Mais está provado que a insolvente já vinha apresentando dívidas aos seus principais fornecedores desde 2011, as quais se prolongaram pelos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015, cf. apenso D.
Bem como que o passivo da insolvente, tendo em atenção os créditos reclamados e reconhecidos, ascende a € 152.905,63, referente a fornecimentos e contribuições, que remontam a 2008/2011.
Estamos cientes que esta, enquanto sócia única da sociedade, estava obrigada a todos os deveres de cuidado, designadamente a um dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional e a todos os deveres legais específicos, designadamente o de apresentação à insolvência, nos termos previstos nos art.º 18.º e 19º do CIRE.
No entanto, a factualidade considerada provada na decisão recorrida é insuficiente para apreciar o momento a partir do qual a sociedade se mostrou incapaz de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (cf. artigo 3.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, do CIRE), obrigando à imediata apresentação à insolvência.
Por inerência, e equacionando-se como possível que essa incapacidade generalizada possa ter ocorrido em momento próximo do da apresentação à insolvência, entendemos não poder estabelecer um nexo de causalidade entre a omissão de apresentação à insolvência por parte da Recorrida e pelo menos o agravamento da situação de insolvência da empresa.
Conclui-se, em face do exposto, dever qualificar-se a insolvência da “B…, Unipessoal, Lda.” como culposa, declarando afectada por esta qualificação a sua sócia única D…, por aplicação “somente” da estatuição do art.º 186.º, n.º 2, h), do CIRE.
Tendo sequencialmente que se fixar os respectivos efeitos, entendemos dever, neste momento, ponderar que, a nosso ver, a afectação desta qualificação deveria cumulativamente abarcar igualmente a sua mãe, enquanto gerente de facto da sociedade desde o momento da sua constituição, ponderando-se a medida de contribuição de cada uma delas para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
O objecto da nossa apreciação no presente recurso está circunscrito à actuação da Recorrida. Independentemente disso, afigura-se-nos que esta circunstância assume relevância na definição, em concreto, dos efeitos desta declaração.
Assim, em face dos factos apurados nos autos, em especial ponderando que se trata de uma sociedade de pequenas dimensões e felizmente com passivo de valor não muito elevado, e das considerações acima feitas quanto à cumulação de responsabilidade potencial entre a Recorrida e a gerente de facto, entende-se adequado decretar a inibição desta para administrar patrimónios de terceiros e inibi-la para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por um período de 2 anos.
Também determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por esta e condena-se a mesma na restituição dos bens ou direitos que já tenha recebido em pagamento desses créditos.
Finalmente, face à por nós considerada culpa repartida na insolvência culposa, julga-se adequado condenar a Recorrida a indemnizar os credores da insolvente na proporção do valor de 50 % dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.
A conclusão final é, portanto, a da procedência do recurso, com a abrangência exposta.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e qualifica-se a insolvência como culposa afectando pela mesma a sócia única da insolvente D…, com os seguintes efeitos:
A. Decreta-se a inibição desta para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 02 (dois) anos;
B. Declara-se esta inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 02 (dois) anos; C. Determina-se a perda de quaisquer créditos que esta detenha sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condena-se a mesma na restituição dos bens ou direitos que já tenha recebido em pagamento desses créditos e
D. Condena-se a mesma a indemnizar os credores da insolvente na proporção de 50 % dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.
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Custas a cargo da Recorrida - art.º 527.º do CP Civil e art.º 303.º e 304.º do CIRE a contrario.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto, 26 de Novembro de 2019
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] Doravante apenas designado por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] A Responsabilidade dos administradores na insolvência, 2005, disponível em www.oa.pt.
[4] Doravante apenas designado por CSC, por questões de operacionalidade e celeridade.
[5] In Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, Almedina, pág. 244.
[6] In Responsabilidade civil dos administradores de sociedades, 2.ª Edição, 2010, Almedina, pág. 19 e 20.
[7] In A Sociedade por Quotas Unipessoal do Direito Português, 2002, Almedina, pág. 603.
[8] Devendo igualmente entender-se que a noção de administrador de facto está contida na definição constante do art.º 6.º do CIRE.
[9] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, pág. 509.
[10] In Processo de Insolvência, 2016, 4ª Edição, Almedina, pág. 449 e 450.
[11] Proferido no Processo n.º 785/11.9TBLRA-A.C1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[12] Veja-se, neste sentido, designadamente, o Acórdão da Relação de Guimarães de 31/01/19, tendo como Relator Joaquim Boavida, proferido no Processo n.º 3478/16.7T8VNF-D.G1e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[13] In “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência” in Julgar, n.º 11, Maio/Agosto de 2010, pág. 242.
[14] Veja-se, no mesmo sentido, Catarina Serra in “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções” in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, pág. 66, e na jurisprudência, a título exemplificativo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2016, tendo como Relatora Maria João Areias, proferido no Processo n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1, e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[15] Veja-se, neste sentido, Manuel Carneiro da Frada, ob. cit.