Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
743/22.3T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SUBSEGURO
SINISTRO
INDEMNIZAÇÃO
REGRA DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20250306743/22.3T8AVR.P1
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O subseguro verifica-se, por regra, quando o tomador do seguro quer garantir a cobertura do risco de determinados bens, transferindo para a seguradora esse risco, prevenindo a hipótese de poderem vir a sofrer danos na vigência do contrato, declarando um valor inferior ao valor real dos objectos abrangidos por essa cobertura, para, desta forma, reduzir o valor do prémio devido.
Na situação de subseguro há aplicação da regra proporcional através do recurso à seguinte fórmula: (valor de dano x quantia segura) valor segurável.
II - A razão da regra proporcional, justifica-a com insuficiência do prémio de subseguro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1743/22.3T8AVR.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo Central Cível de Aveiro – ...

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

AA intentou acção declarativa de condenação, em processo comum, contra A... Companhia de Seguros, S.A, alegando, em resumo, que:

O Autor é dono de um prédio urbano sito na Quinta ..., em ....

No dia 21 de Maio de 2021 ocorreu um incêndio nesse prédio.

O incêndio foi comunicado à Ré, que assumiu a obrigação de indemnizar o Autor pelos danos sofridos.

O prédio terá de ser sujeito a diversas obras de intervenção, no valor total de 60.860,00 €.

O Autor sofreu também danos de natureza não patrimonial, que liquida em 5.000,00 €

Conclui pedindo a condenação da Ré no pagamento do montante de 60.860,00 €, acrescidos de IVA, no montante de 13.997,80 € a título de danos patrimoniais e 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros legais até efectivo e integral pagamento.

Citada a Ré, a mesma apresentou contestação, alegando, em síntese, que:

A Ré assumiu estar o sinistro de incêndio coberto pelo contrato de seguros celebrado entre as partes.

- Não estão garantidos danos não patrimoniais.

- Foi constatada uma situação de infra-seguro quer relativamente ao imóvel, quer relativamente ao seu conteúdo.

Os valores apresentados são exagerados

Conclui pedindo que a acção seja julgada apenas parcialmente procedente, reduzindo-se os valores indemnizatórios aos seus justos e adequados montantes de ressarcimento dos danos efectivamente verificados, com cabimento nos limites do contrato de seguro e em respeito pela regra da proporcionalidade

Dispensou-se a realização de audiência prévia, procedendo-se à elaboração de despacho saneador e fixação do objecto do litígio e temas de prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Por todo o exposto,

Julgo parcialmente procedente por provada a presente acção, condenando-se a Ré A... Companhia de Seguros SA a pagar ao Autor a quantia de € 59. 458,20 €, (cinquenta e nove mil, quatrocentos e cinquenta e oito euros e vinte cêntimos), quantia acrescida dos juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Custas na proporção do decaimento.

Registe e notifique”.

Não se resignando a Ré com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“A. Do documento de fls 93 a 190 dos autos – relatório técnico de averiguação e avaliação de danos – resulta expressamente o valor que a testemunha BB considerou ser o valor do imóvel seguro (e onde ocorreu o sinistro de incêndio), e a forma e o método que utilizou para o seu cálculo e fixação, em cumprimento do determinado pelo contrato de seguro na sua cláusula 18ª, nº 3;

B. Tal documento indica que o imóvel objeto seguro apresentava à data do sinistro um valor de cerca de €. 436.422,80, correspondente ao custo estimado da sua reconstrução, tal como determinado pelo contrato de seguro, e explicitado no próprio documento;

C. Do depoimento da testemunha BB (autor do documento de fls 93 a 190) resulta a explicação das diligências, cálculos e valores que alcançou e exarou naquele documento técnico, que confirmou - depoimento registado nos autos: sessão de audiência final de julgamento de 15.02.2024, depoimento registado com a duração de 11m39s, com início às 10h24 e fim às 10h36, para o qual se remete;

D Do depoimento prestado por CC, na qualidade de legal representante habilitada da ré A..., declarou – registo de depoimento sessão de audiência final de julgamento de 15.02.2024, depoimento registado com a duração de 06m15s, com início às 09h58 e fim às 10h04, para o qual se remete – que de acordo com as informações disponibilizadas à ré seguradora, as diligências de averiguação de sinistro e avaliação de danos haviam concluído por um valor em risco (valor do imóvel tendo presente o critério de avaliação definido pela cláusula 18ª, nº 3 do contrato de seguro) de €. 436.422,80, superior ao valor do capital seguro para o mesmo imóvel;

E. Notificado o autor para pronunciar-se, querendo, especificamente sobre a matéria alegada pela ré seguradora sob 19. a 23 da sua contestação, (matéria reportada à fixação do valor do imóvel em, €. 436.422,80 e a situação de infraseguro) – despacho de 19.09.2022, ref.ª 123261505 – este limita-se a considerações genéricas, sem deduzir qualquer oposição ao valor atribuído ao imóvel pela ré seguradora, nem quanto à alegada situação de infraseguro, o que tem por consequência que o autor aceitou tal factualidade, e confessou tal factualidade, que assim inapelavelmente constitui matéria de facto provada, porque assente por não impugnação;

F. A douta Sentença recorrida violou, de entre outras, as normas dos artigos 3º, nº, 607º, nºs 4 e 5, CPC;

G. Perante o manifesto erro de julgamento da matéria de facto constante do ponto s) dos factos não provados, deve tal matéria ser ali eliminada, julgando-se a mesma provada, e adicionado um novo ponto (13) aos factos provados, com a redação de acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, este apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80

H. Perante a correspondência discrepante de capital de seguro €. 199.316,91 para o imóvel de valor €. 436.422,80, o que corresponde a 45,67%, trata-se de uma situação de infraseguro, em que a seguradora responde apenas na proporção, assumindo o o tomador do seguro ou o segurado a parte restante dos prejuízos como se fosse segurador, tal como determinado pelas cláusulas 20º e 18º das Condições Gerais do contrato de seguro, e artigo 134º do RJCS, o que significa que a ré seguradora é responsável perante o autor apenas pelo valor de €. 27.154,56 (45,67% x 59.458,20 valor de dano facto provado 3), cabendo o restante dos danos ao próprio autor enquanto tomador do seguro e simultaneamente segurado, sob pena de violação destas disposições contratuais e legais referidas;

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser proferida Decisão que revogue a douta Sentença proferida,

a) alterando o julgamento da matéria de facto, por eliminação do ponto s) dos factos não provados, julgando tal facto provado e adicionando um novo ponto aos factos provados com a redação de acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, este apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80

b) em consequência, e por qualificação de tal matéria de facto julgada definitivamente provada, julgar a ação apenas parcialmente procedente, decidindo que que a ré seguradora é responsável perante o autor apenas pelo valor de €. 27.154,56 (45,67% x 59.458,20 valor de dano facto provado 3), atenta a situação de infraseguro, e determinação de limitação proporcional de responsabilidade

só assim se fazendo a devida JUSTIÇA!”.

O apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;

- valor indemnizatório a satisfazer pela Ré.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:

1 - A O Autor é proprietário do prédio urbano sito na Rua ..., Quinta ..., ..., inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...49 e que constitui a sua casa de habitação.

2 - No dia 28 de Maio de 2021, cerca das 00h. 20, ocorreu um incêndio no referido prédio, tendo o edifício sofrido danos.

3 - Para reparação do imóvel é necessário realizar obras, no valor de 48.340,00 €, a que acresce o IVA à taxa de 23%, no montante de 11.118,20 €, num total de 59.458,20€, obras que assim se descriminam:

a) - Fachada lateral direita e fachada traseira - Lavagem das duas fachadas com montagem e desmontagem de andaimes - 4.500,00 € (+ IVA);

b) - Pintura de primário e duas demãos de membrana no exterior, 9.780,00 € mais IVA;

c) Limpar toda a cave, águas e lixo, incluindo lavar todas as paredes e tetos e pisos da cave com água pasteurizada - 3.500,00€ (+IVA);

d) Reparação das lajetas - 450,00€ mais IVA;

e) Retirar cimento partido com o calor da explosão que recobre o tubo de gás, aplicação de argamassas e remates nas argamassas - 300,00 € (+IVA);

f) Solicitação de fiscalização e inspeção de gás por se encontrar cortado com o incêndio - 315,00 € mais IVA;

g) Desmontar braços mecânicos partidos das portas de entrada da casa aplicar novos braços e bases e programar 2 comandos - 1.200,00€ (+IVA);

h) Instalação de toda a parte elétrica (materiais e trabalho) – 10,000 € mais IVA;

i) Aplicação de sistema de intercomunicador - 250,00€ (+IVA);

j) Substituição da pedra de soleira - 250,00€ (+IVA);

k) A substituição da janela de alumínio - 850,00€ (+IVA);

l) Trabalhos de reconstrução do escritório - retirar porta e aro queimados, aplicação de porta nova e aro envernizados, partir reboco, retirar pladur e pintar, aplicação de pladur com calhas, aplicação de reboco grosso e reboco fino, aplicação de argamassas, lixar, pintar de primário e duas demãos de tinta de água - 5.000,00€ (+IVA);

m) - Trabalhos de reparação, no quarto 1 - retirar porta e aro, aplicação de porta nova e aro envernizados, consertar paredes pintar de primário e tinta de água - 2.325,00€ (+IVA);

n) Trabalhos de reparação no Quarto 2 - retirar porta de madeira e aro queimados com subsequente aplicação de porta nova e aro envernizados, consertar paredes, pintar de primário e tinta de água” - 2.325,00 € mais IVA;

o) Trabalhos de reparação na sala da cave - consertar teto da sala em fissuras emassar com argamassas, substituir azulejos partidos emassar, pintar de primário e tinta de água - 2.195,00 € mais IVA,

p) Trabalhos de reparação do arrumo - retirar porta e aro da porta, aplicação da porta e aro envernizados, consertar paredes e argamassas, lixar argamassas, pintar de primário e tinta de água - 650,00€ (+IVA);

q) Trabalhos de reparação da oficina - limpar porta e aro envernizar a porta e aro pintar parede - 350,00€ (+IVA);

r) Trabalhos de reparação da cozinha - limpar teto emassar com argamassas, lixar pintar de primário e tinta de água, substituir azulejos partidos, emassar juntas, consertar móveis de cozinha, banca, substituir mosaicos da cozinha partidos, emassar juntas - 1.500,00€ (+IVA);

s) Trabalhos de reparação do corredor - limpar paredes, emassar fissuras e fendas com argamassas, lixar argamassas, pintar de primário e tinta de água - 1.350,00€ (+IVA);

t) Trabalhos de reparação da casa de banho - retirar porta de madeiro e aro, aplicação de porta e aro envernizados, limpar fissuras e fendas, com argamassas, lixar teto e paredes, pintar com primário e tinta de água - 1.000,00€ (+IVA);

u) Trabalhos de reparação da despensa - limpar paredes, emassar fendas e fissuras, lixar, pintar de primário e tinta de água - 250,00€ (+IVA);

4 - O autor viu afectada a sua actividade profissional dado necessitar das divisões afetadas para ao exercício da sua atividade, com arquivo de documentos e depósito de pastas.

5 - Ficou assustado com a situação, sentindo-se triste, abatido e irritado, o que afectou a sua vida familiar.

6 - Deixou de fazer almoços de família e de receber amigos e vizinhos.

7 - À data do incêndio descrito em 2 encontrava-se em vigor um contrato de seguro do ramo Multirriscos Habitação celebrado entre autor e ré, titulado pela apólice ...94.

8 - Tal contrato de seguro, tendo por objeto de local de risco o imóvel propriedade do autor, sito na Rua ..., Quinta ..., ..., ..., tinha por objectos seguros o próprio imóvel e o conteúdo.

9 - Relativamente ao objeto seguro imóvel foram contratadas e encontravam-se em vigor as coberturas expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato de seguro, nas quais se inclui o risco de incêndio, com o limite de capital seguro de € 199.316,91.

10 - E quanto ao objeto seguro conteúdo vigoravam também as coberturas expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato de seguro, nas quais se inclui o risco de incêndio, com o limite de capital seguro de € 21.849,10.

11 – Estabelece a cláusula 20º das Condições Gerais:

“1 – Salvo convenção em contrário, se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos da Cláusula 18º, o Segurador só responde pelo dano na respectiva proporção, respondendo o Tomador de Seguro ou o Segurado pela restante parte dos prejuízos, como se fosse Segurador.

2 – Aquando da prorrogação do contrato, o Segurador informa o Tomador do Seguro, no que respeita ao Seguro Obrigatório de Incêndio do previsto no número anterior e na alínea c) do n.º 3 da Cláusula 18º, bem como do valor seguro do imóvel, a considerar para efeito de indemnização em caso de perda total e dos critérios da sua actualização, sob pena de não aplicação da redução proporcional prevista no número anterior, na medida do incumprimento”.

12 – Estabelece a cláusula 18.º, n.º 3 das Condições Gerais que respeita ao Seguro de Edifício ou Fracção Autónoma:

“a) O valor do capital seguro para edifícios dever corresponder ao custo de mercado da respectiva reconstrução, tendo em conta o tipo de construção ou outros factores que possam influenciar esse custo ou ao valor matricial no caso de edifícios para expropriação ou demolição;

b) À excepção do valor dos terrenos, todos os elementos constituintes ou incorporados pelo proprietário ou pelo titular do interesse seguro, incluindo o valor proporcional das partes comuns, devem ser tomados em consideração para a determinação do capital seguro referido na alínea anterior;

c) Salvo convenção em contrário, sendo para habitação, o imóvel seguro, o seu valor ou a proporção segura do mesmo, é automaticamente actualizado de acordo com os índices publicados para o efeito pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, nos termos da Condição Especial “Atualização Indexada de Capitais”.

III.2. E julgado não provado que:

a) - A montagem e desmontagem de andaimes referida em 3 a) custe 4.385,00 € acrescidos de IVA;

b) A lavagem das duas fachadas, referida em 3 a) importe a quantia de “3.135,00 €, acrescidos de IVA;

c) A realização dos trabalhos referidos em 3 c) importe na quantia de 4.315,00 € mais IVA e a quantia de 630,00 €, mais IVA;

d) A reparação das lajetas custe 675,00 € mais IVA;

e) Os trabalhos referidos em 3 e) custem 485,00 € mais IVA;

f) Os trabalhos referidos em 3 g) custem 195,00 € mais IVA (desmontagem) e 1625,00 € mais IVA (restantes tarefas);

g) A remoção de todos os cabos elétricos, tomadas e interruptores importe a quantia de 945,00 € acrescidos de IVA;

h) A “instalação de toda a parte elétrica da cave e parte da casa de cima, tubos novos, passar fios em todos os tubos, lâmpadas, tomadas, interruptores, quadro elétrico e todos os derivados da eletricidade”, importe a quantia de 12.435,00 € acrescidos de IVA;

i) O trabalho referido em 3 i) importe na quantia de 435,00 € mais IVA;

j) O trabalho referido em 3 j) orce em 185,00 € mais IVA (retirar pedra) e 235,00 € (colocação de nova pedra);

k) O trabalho referido em 3 k) tenha um custo de 120,00 € (retirar a janela) mais 975€ mais IVA (aplicar janela);

l) Os trabalhos referidos em 3 l) orcem em 5.63500 € acrescidos de IVA;

m) Os trabalhos referidos em 3 p) tenham um custo de 945,00 mais IVA;

n) Os trabalhos de reparação da oficina importem a quantia de 465,00 €, acrescidos de IVA;

o) Os trabalhos de reparação da cozinha importem na quantia de 2.275,00 € acrescidos de IVA;

p) Os trabalhos referidos em 3 s), importem na quantia de 1.945,00 € acrescidos de IVA;

q) Os trabalhos referidos em 3 t) importem em 1.455,00 € acrescidos de IVA;

r) Os trabalhos referidos em 3 u) importem na quantia de “425,00 € acrescidos de IVA.

s) De acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, este apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80.

t) Os danos, verificados tecnicamente, não ultrapassavam o valor estimado de €.13.775,59 para o imóvel.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[2], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
O recorrente discorda da decisão proferida em primeira instância ao considerar não provada a matéria constante da alínea s) dos factos dados como não provados, defendendo dever a mesma ser transposta para o elenco dos factos provados.
Indica, além disso, os meios probatórios que, na sua perspectiva, suportam decisão de sentido diverso à proferida pelo tribunal de primeira instância.
Cumpridos, assim, os requisitos formais exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para o conhecimento do recurso da decisão relativa à matéria de facto, importa proceder à sua reapreciação na parte em que a mesma é questionada pela recorrente.
Aquele segmento decisório mostra-se assim fundamentado:
“Quanto ao ponto s) dos factos não provados:
O valor venal do edifício de 436.422,80 é o valor indicado como sendo o capital de risco no relatório de peritagem patrimonial feito no âmbito das investigações levadas a cabo pela seguradora, relatório que se encontra junto aos autos a fls. 93 a 190.
No entanto, esse relatório não explica como chegou a esse valor.
A este respeito depôs também a testemunha CC, funcionária da ré, que esclareceu que esse valor foi dado pela equipa de peritagem, correspondendo a valores standard em função da área, do tipo de construção e localização.
A testemunha BB também não explicou quais os critérios que foram usados para fixar esse valor, mencionando, vagamente, que esses valores eram dados por legislação.
Não existindo nenhuma avaliação que explique e demonstre, concretamente, que o valor do edifício é o indicado no relatório feito pela Seguradora, não se pode considerar esse valor.
Acresce que o valor matricial do prédio é de 195.986,35 €, sendo a última avaliação de 2019.
Ora, se em tempos, as avaliações matriciais eram muito desfasadas dos valores reais, já o mesmo não acontece na actualidade”.
Resulta comprovado nos autos, matéria que não objecto de qualquer impugnação (pontos 7.º a 10.º dos factos provados):
- À data do incêndio descrito em 2 encontrava-se em vigor um contrato de seguro do ramo Multirriscos Habitação celebrado entre autor e ré, titulado pela apólice ...94.
- Tal contrato de seguro, tendo por objeto de local de risco o imóvel propriedade do autor, sito na Rua ..., Quinta ..., ..., ..., tinha por objectos seguros o próprio imóvel e o conteúdo.
- Relativamente ao objeto seguro imóvel foram contratadas e encontravam-se em vigor as coberturas expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato de seguro, nas quais se inclui o risco de incêndio, com o limite de capital seguro de € 199.316,91.
- E quanto ao objeto seguro conteúdo vigoravam também as coberturas expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato de seguro, nas quais se inclui o risco de incêndio, com o limite de capital seguro de € 21.849,10.
Alegou, porém, a Ré que, de acordo com os elementos que lhe foram disponibilizados, constatou a mesma a existência de uma situação de infra-seguro relativamente ao imóvel objecto do contrato de seguro porquanto “de acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, esta apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80, sendo que o limite de capital seguro para o imóvel era de €. 199.316,91” – artigo 20.º da contestação.
Há, pois, que equacionar, em termos probatórios, se o imóvel abrangido pelo contrato de seguro tinha o valor que a Ré lhe atribui no seu articulado de defesa.
O valor de € 436.422,80 é indicado, sem qualquer justificação ou explicação, ou sequer com a menção dos critérios seguidos para a determinação de tal valor, como o correspondente ao capital de risco referente ao imóvel, no Relatório de Peritagem Patrimonial e na designada “Acta de Regularização de Prejuízos”, ambos elaborados por B..., S.A., entidade incumbida pela Ré, e com quem colabora habitualmente, para efectuar a peritagem dos danos causados pelo incêndio e elaboração de proposta de reparação dos mesmos[3]. Proposta que, no caso, não obteve do Autor aceitação, e, por isso, determinou o recurso à via judicial para resolução do diferendo quanto ao valor indemnizatório para ressarcimento de danos provocados por aquele evento infortunístico.
Em audiência de julgamento a testemunha BB limitou-se a explicar os critérios ponderados nos aludidos documentos técnicos, designadamente os previstos na cláusula 18.ª das Condições Gerais do contrato de seguro, sem que se possa, todavia, extrair que o resultado das operações realizadas com recurso a tais critérios corresponda ao valor real do imóvel à data da eclosão do evento/risco coberto pelo contrato.
Por sua vez, a testemunha CC, em declarações prestadas em audiência enquanto legal representante habilitada da Ré, nada acrescentou em relação aos critérios relatados pela testemunha BB ponderados para a determinação do questionado valor.
Os referidos meios de prova não revelam, pois, aptidão bastante para a demonstração da factualidade vertida no questionado segmento decisório.
Sustenta a recorrente que “ao não impugnar a factualidade alegada pela ré sob aqueles artigos 19 a 24 da contestação, o autor aceitou tal factualidade, e confessou tal factualidade, que assim inapelavelmente constitui matéria de facto provada, porque assente por não impugnação”.
No artigo 19.º da contestação alega a mesma que “De acordo com os elementos disponibilizados à ré, foi constatada uma situação de infra-seguro relativamente ao imóvel, cujo limite de capital seguro não ultrapassava cerca de 57% do valor em risco”, acrescentando no artigo seguinte que “Efectivamente, de acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, esta apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80, sendo que o limite de capital seguro para o imóvel era de €. 199.316,91”.
É certo que no articulado de resposta à matéria em causa o Autor não impugnou a mesma de forma categórica, designadamente contrariando o valor sugerido pela Ré como sendo o correspondente ao valor venal do imóvel abrangido pelo contrato de seguro.
Mas permitirá tal posição do Autor ser interpretada em termos confessórios, como pretende a Ré?
Seguramente que não.
A resposta do Autor foi a de rebate possível a uma afirmação também vaga e imprecisa da Ré, que se limita a afirmar que “De acordo com os elementos disponibilizados à ré, foi constatada uma situação de infra-seguro relativamente ao imóvel”, sem esclarecer a que elementos se referia, acrescentando apenas que “de acordo com os dados atualizados (àquela data) do imóvel, esta apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80”, sendo que, uma vez mais, omite a indicação dos dados a que se refere[4], não esclarece se e em que termos foi o Autor informado dos critérios de actualização que conduziram ao valor indicado, nem tão pouco apresenta como certo o valor indicado (“apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80”).
Em contrapartida, o Autor logo no artigo 1.º da petição inicial precisa que “ocorreu um incêndio na habitação, do aqui Autor, cfr, Caderneta Predial Urbana, e Certidão Permanente, que se juntam”, dos quais resulta ser de € 195.986,35 o “valor patrimonial actul do imóvel”, não tendo tais documentos sido impugnados pela Ré.
Não se pode considerar, por conseguinte, que o valor venal do imóvel é de €. 436.422,80 por confissão judicial do Autor, que não se verifica, sendo certo que outra prova confirmadora do facto em análise não foi produzida.
Como tal, improcede, nesta parte, o recurso da apelante, mantendo-se sem alterações o decidido quanto à matéria de facto.

2. Do mérito da decisão recorrida.

Contrato de seguro é o acordo pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco[5].

Constitui, pois, um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
Trata-se de um contrato consensual, porque a sua celebração pressupõe apenas o simples acordo das partes, mas formal, porquanto a sua validade depende da sua redução a escrito (formalidade ad substantiam), traduzida na apólice, não podendo a declaração negocial valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência[6].
Joaquín Garrigues[7] propõe para o contrato em causa a definição seguinte: "seguro é um contrato substantivo e oneroso pelo qual uma pessoa - o segurador - assume o risco de que ocorra um acontecimento incerto pelo menos quanto ao tempo, obrigando-se a cobrir a necessidade pecuniária sentida pela outra parte - o segurado - em consequência deste risco, determinado no contrato. É um contrato, oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada”.

É um contrato que assenta nos princípios da máxima boa fé, (uberrimae fides) e da tutela da confiança, “surgindo a declaração do risco como umas das várias manifestações dessa mesma natureza fiduciária. É em homenagem à especial relação de confiança entre as partes e ao princípio da boa-fé que se impõe um dever de declaração ao Tomador do Seguro/Segurado, e é natural que assim seja, uma vez que, relembremos, a figura nasceu para proteger o Segurador que tem de confiar nas declarações do Tomador do Seguro/Segurado (o que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar”[8].

O risco constitui o elemento essencial do contrato de seguro: “a obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. (…) O contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (máxime uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”[9].

Por seu lado, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”[10]. O que significa que o capital seguro representa o plafond máximo da indemnização, limitado ao dano decorrente do sinistro, salvo estipulação legal em contrário. No seguro de coisas, conforme decorre do artigo 130.º n.º 1 do RJCS, o “dano a atender é o do interesse seguro ao tempo de sinistro”.

Na sua formação, o contrato de seguro começa com a proposta contratual do tomador de seguro, que deverá “declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”[11]

Do pregresso artigo 439.º do Código Comercial já emanava o princípio indemnizatório que encontra toda a justificação em sede de seguro de danos, visando impedir uma situação de enriquecimento do segurado à custa da seguradora designadamente quando a ocorrência do sinistro determinasse um resultado mais vantajoso[12].

Menezes Cordeiro[13], aponta para este princípio uma tripla justificação: no plano histórico, na medida em que visa esconjurar o risco da usura; numa perspectiva significativa e ideológica, propondo-se afastar a outorga de seguros com objectivos de lucro; e no plano social, a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo.

Essa justificação é ainda desmultiplicada por Francisco Rodrigues da Rocha[14], quando se refere às dificuldades das seguradoras em fazer prova da existência de comportamentos dolosos do segurado ou da má fé deste na contratação.

Cabe ao tomador do seguro, de acordo com o disposto no artigo 49.º, n.º 2 do RJCS, “indicar ao segurador, quer no início, quer durante a vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro”, salvo existindo disposição legal em contrário que, no caso em apreço, inexiste.

Na verdade, o valor dos bens a segurar é, salvo acordo em contrário, declarado unilateralmente pelo tomador do seguro, não resultando por isso em uma qualquer cláusula contratual firmada com o segurador e para ele vinculativa. Nem podia resultar, visto que tal declaração nem sequer se traduz numa declaração de vontade, mas sim numa declaração de ciência. Como explica José Vasques[15], “A declaração do risco é uma declaração unilateral do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio. A declaração do risco não é uma declaração de vontade, mas sim uma declaração de ciência, cujo cumprimento permitirá ao segurador aceitar ou recusar essa declaração”.

E embora o tomador do seguro deva declarar com exatidão todas as circunstâncias que interessem ao julgamento a fazer pelo segurador em termos de aceitação ou não aceitação do risco, como decorre do n.º 1 do artigo 24.º do supra citado Regime Jurídico), não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador.

Pereira Morgado[16] fornece o seguinte contributo interpretativo para o citado artigo 49.º, n.º 2 do RJCS: “A melhor interpretação deve ser a seguinte:

- no âmbito dos seguros obrigatórios o capital ou valor mínimo a segurar decorrerá, em princípio, da lei que institua cada um deles ou de normativo que o regulamente;

- no âmbito dos seguros facultativos plenamente regidos pela autonomia privada a solução regra é a de que cumpre ao tomador do seguro indicar, de forma explícita e clara, o valor ou capital a segurar;

- no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”.

Tratando-se de seguros facultativos nenhuma norma, legal ou contratual, impõe à seguradora o dever prévio de proceder à avaliação da coisa abrangida pelo seguro, mas, em contrapartida, sobre o tomador do seguro recai o dever de indicar o valor da coisa e de fornecer, com exactidão, todas as informações necessárias à seguradora para que esta possa proceder ao cálculo do risco e do prémio a cobrar.

Como dá conta Arnaldo Pereira[17], “um subsídio relevante para a determinação do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro será o valor do mesmo ao tempo da celebração ou actualização do contrato, valor aliás determinante do montante do prémio e de juízo de eventual situação de sobresseguro ou sub-seguro”.

Porém, a indicação deste valor, e a sua aceitação pela seguradora, não equivale a um acordo expresso quanto à fixação do valor da coisa. Referia José Vasques[18] a propósito do artigo 436.º do Código Comercial, mas adaptável ao RJCS, o valor seguro pode ser “apurado segundo dois sistemas: o sistema do valor declarado e o sistema do valor acordado.

Quando o valor seguro seja apurado com base da sua mera declaração pelo proponente, sem que a seguradora exerça sobre essa declaração qualquer verificação estamos perante o chamado sistema do valor declarado. (…)

Quando aquele valor seja fixado por arbitradores nomeados pelas partes (…) o sistema designa-se por valor acordado. Este sistema apresenta vantagens para o tomador do seguro, uma vez que o segurador não o pode contestar, sendo este o valor a ser tomado em consideração para efeitos da determinação do montante indemnizatório e não o que se apure por ocasião do sinistro. (…)

A determinação do valor do objecto seguro, far-se-á, na generalidade dos casos, aquando da superveniência do sinistro, já que a declaração do risco – em que se inclui a descrição e avaliação do objecto do seguro – é uma declaração unilateral do segurado que o segurador aceita sem verificação e só para o efeito de calcular o prémio e estabelecer o valor máximo da indemnização.

No caso em apreço, autor e ré celebraram entre si um contrato de seguro com os contornos descritos nos pontos 7.º a 12.º, definitivamente fixados, o qual, à data do incêndio causador dos danos cuja reparação é reclamada pelo primeiro, se achava em vigor.

O contrato de seguro em causa constitui um seguro de danos que tem por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens materiais, créditos e outros direitos patrimoniais, de acordo com as coberturas contratadas, até ao valor do capital, excluindo eventuais franquias contratadas. Como decorre do artigo 43.º, n.º 2 do RJCS, “No seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros.”

Sob a epígrafe Subseguro, determina o artigo 134.º do RJCS que “Salvo convenção em contrário, se o capital seguro for inferior ao valor do objecto seguro, o segurador só responde pelo dano na respectiva proporção”.

Tal normativo encontrava anteriormente correspondência no artigo 433.º do Código Comercial, prevendo o mesmo que se o seguro contra riscos fosse inferior ao valor do objecto, o segurado responderá, salva convenção em contrário, por uma parte proporcional das perdas e danos.

O subseguro verifica-se, por regra, quando o tomador do seguro quer garantir a cobertura do risco de determinados bens, transferindo para a seguradora esse risco, prevenindo a hipótese de poderem vir a sofrer danos na vigência do contrato, declarando um valor inferior ao valor real dos objectos abrangidos por essa cobertura, para, desta forma, minimizar o valor do prémio devido.

Segundo Moitinho de Almeida[19], a situação de subseguro concretiza-se quando, no momento do sinistro, o valor do interesse exceda a quantia segura e é susceptível de resultar quer da própria vontade do segurado, atribuindo ao valor seguro um valor inferior ao real para pagar prémios mais baixos, quer por erro de avaliação, de alteração dos preços (mão de obra, materiais, etc.), no decurso do contrato ou de quaisquer outras circunstâncias. Quando no momento do sinistro, o valor segurável excede a quantia segura, tem lugar a aplicação da regra proporcional.

Segundo aquele autor, a regra proporcional é aplicada através da seguinte fórmula: (valor de dano x quantia segura) valor segurável.

A razão da regra proporcional, justifica-a com insuficiência do prémio: “Na empresa de seguros os acidentes são pagos mediante os prémios recebidos, os quais são essencialmente função da probabilidade e intensidade do risco. No respectivo cálculo tem-se em consideração não só a frequência dos sinistros, mas também a importância média destes.[20].

Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2006[21], lavrado no âmbito de aplicação do artigo 433.º do Código Comercial, “A regra proporcional acolhida pelo referido art. 433º, aplicável quando, no momento do sinistro, o valor seguro for inferior ao valor do objecto do seguro ou segurável (sub-seguro ou infra-seguro), respondendo o segurador na proporção existente entre os dois valores, relaciona-se com o princípio do equilíbrio das prestações, tendendo a fazer equivaler o risco coberto ao prémio efectivamente pago”.

E, retira-se do acórdão de 22.09.2011[22] do mesmo Supremo Tribunal de Justiça: “(…), no caso do sub-seguro, que corresponde a um seguro ajustado com valor inferir ao do bem segurado, há implicações prejudiciais para o tomador do seguro, devido à designada “regra proporcional”, que determina o pagamento de uma percentagem sobre o valor dos danos sofridos.
Tendo o tomador do seguro indicado um valor para o objeto seguro inferior ao real, com violação do seu dever de informação, a seguradora só terá de pagar uma percentagem do dano sofrido, considerando-se que o tomador é parcialmente segurador (na parte resultante da diferença entre o valor real e o valor garantido pelo seguro). Justificando-se a regra proporcional, desde logo, pela falta de correspectividade entre o prémio pago e o bem assegurado, na relação com o risco assumido pela seguradora.

José Vasques[23], também no âmbito da aplicação do pregresso artigo 433.º do Código Comercial, sustentava que “a determinação dos danos a indemnizar faz-se atendendo ao valor seguro (capital seguro ou valor declarado) e ao valor do objecto seguro (… ) determinado ao tempo do sinistro”, acrescentando que a regra proporcional se aplica “quando o valor seguro é inferior ao valor do objecto seguro (infra-seguro ou sub-seguro): a indemnização reduzir-se-á na proporção da diferença entre os dois valores.”.

Retornando aos autos: em sede de contestação, pediu a ré que seja a acção julgada apenas “parcialmente procedente, reduzindo-se os valores indemnizatórios aos seus justos e adequados montantes de ressarcimento dos danos efetivamente verificados, com cabimento nos limites do contrato de seguro, e em respeito pela regra da proporcionalidade, nos termos e com as consequências legais”, invocando, relativamente ao imóvel objecto do contrato de seguro celebrado entre ela e o Autor, a existência de “uma situação de infra-seguro”, sustentando, para o efeito, que este “apresentaria um valor venal de cerca de €. 436.422,80, sendo que o limite de capital seguro para o imóvel era de € 199.316,91”.

Competindo à Ré a prova da realidade fáctica por ela invocada, não logrou a mesma desempenhar com êxito essa tarefa probatória dado não resultar demonstrado que o imóvel tinha o valor de € 436.422,80, muito acima do valor do capital seguro.

E, além disso, como também nota a sentença recorrida, não provou a Ré, e nem sequer o alegou, haver cumprido em relação ao Autor o dever de informação imposto pelo artigo 135.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

Improcede, consequentemente, o recurso, mantendo-se o decidido.


*

Síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela apelante A... – Companhia de Seguros, S.A., confirmando a sentença recorrida.

Custas: pela apelante (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Notifique.

Porto, 6.03.2025.

Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.

Judite Pires

Carlos Cunha Carvalho

António Paulo de Vasconcelos


__________________________
[1]Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[3] Como a própria Ré esclarece nas suas alegações, “relatório de averiguação técnica e avaliação condicional de danos, elaborado por técnico mandatado para tais diligências, enquanto prestador de serviços para empresa especializada do ramo (B... SA) a quem a ré seguradora endereçou tal encargo”.
[4] Note-se que nem sequer alude ao teor do relatório de peritagem, só posteriormente junto aos autos, onde, pela primeira vez, é indicado o valor de €. 436.422,80 como sendo o valor do capital de risco.
[5] José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra, 1999, pág. 94.
[6] Cf. Acórdão Relação do Porto, 25.03.2004, processo nº 0430103, www.dgsi.pt.
[7] “Contrato de Seguro Terrestre”, Madrid, 1983.
[8] LOURO; Vanessa, “Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores”, pág.11, Revista Electrónica de Direito, n.º 23, Junho de 2016, https://cije.up.pt/client/files/0000000001/3_651.pdf
[9] Lei do Contrato de Seguro Anotada, ed. Almedina, 2011, págs. 40/41, nota IV.
[10] Artigo 49.º, n.º 1 do  Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
[11] Artigo 24.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
[12] Cfr. F. Sanches Calero, Ley de Contrato de Seguro, págs. 466 e seguintes.
[13] Direito dos Seguros, 2ª ed., págs. 802 e 803.
[14] Cfr. monografia Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, págs. 53 a 55.
[15] Contrato de Seguro, pág. 211.
[16] Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, pág. 259.
[17] Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, pág. 444, nota III.
[18] Contrato de Seguro, ed. Coimbra Editora, págs. 216 e 306.
[19] O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, pág. 171.
[20] Ibid, pág. 172.
[21] Processo 06A2874, www.dgsi.pt.
[22] Processo 710/06.9TCGMR.G1.S1, www.dgsi.pt.
[23] Ob. citada, pág. 146.