Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1274/17.3T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: INSTRUÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
AVALIAÇÃO DA PROVA EM INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP202402071274/17.3T9MTS.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O sentido da expressão indícios suficientes na fase de instrução é o mesmo que se verifica para a decisão de acusar, devendo considerar-se que os mesmos existem quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
II - A probabilidade razoável mencionada não equivale à certeza para além da dúvida razoável balizada pelo princípio in dubio pro reo exigida na apreciação da prova em julgamento.
III - Tão-pouco atinge o grau de exigência imposto pela verificação de fortes indícios de crime para efeitos de aplicação medidas de coacção mais gravosas.
IV - A prova tem de ser toda avaliada de acordo com os mesmos critérios. Na fase de instrução, onde a produção de prova é, por norma, parcial, não pode o JIC avaliar parte da prova de acordo com a imediação e a oralidade, porque a produziu nessa fase, e a restante apenas com base na credibilidade objectiva da mesma, face às regras da experiência comum, e em resultado do que ficou consignado nos autos de inquirição respectivos. Deverá avaliar tudo de acordo com este último critério de pura objectividade.
V - A admitir-se o recurso ao princípio in dubio pro reo na fase de instrução, o mesmo deve ser usado com a consciência de que o grau de dúvida que permite decidir pela pronúncia do arguido é necessariamente diferente daquele que ocorre em fase de julgamento, devendo aceitar-se que seja mais acentuado do que aquele que determina a prova do facto em julgamento, sob pena de estarmos a transferir para a fase de instrução as exigências subjacentes à condenação, mas deixando de fora todo o contexto de prova que permite exigir tal rigor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1274/17.3T9MTS.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 1



Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Inquérito n.º 1274/17.3T9MTS, por despacho de 16-07-2021, foi deduzida acusação contra AA e “A..., Lda.”, que usa o nome comercial “Farmácia B...”, aí sendo imputada, ao primeiro, por si e em representação da segunda arguida,1 (um) crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), por referência à al. b), do art. 202.º, todos do CPenal, e à segunda 1 (um) crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), por referência à al. b) do art. 202.º e ao art. 11.º, n.º 2, al. a), e n.ºs. 4, 7 e 9, todos do CPenal.

Pelo Ministério Público foi ainda requerida, ao abrigo do disposto no art. 110.º, n.º 2 e 4, do CPenal, a condenação dos arguidos no pagamento ao Estado das vantagens patrimoniais adquiridas através da prática dos crimes que lhe são imputados, no valor de €47 642,89€ (quarenta e sete mil seiscentos e quarenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), equivalente ao valor indevidamente recebido e que lhes foi pago, como reembolso da comparticipação de medicamentos pelo SNS – ARS Norte IP.


*

Irresignados com esta decisão, vieram os arguidos requerer a abertura da instrução, que foi deferida, tendo a final sido proferida decisão de não pronúncia.

*

Inconformada com esta decisão, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido interpôs recurso, solicitando que seja revogado o despacho de não pronúncia dos arguidos e seja o mesmo substituído por outro que os pronuncie nos exactos termos em que foram acusados.

Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«1º

Nos presentes autos, a fls. 330 a 341, foi deduzida acusação contra os arguidos AA e a sociedade A..., Lda, pela prática de um crime de burla qualificada, p e p pelo art. 217° e 218°, n° 2, a), por referência à alinea b) do art. 202° e 1 Io, n° 2, a), 4, 7 e 9 do Cód. Penal.

Os arguidos não se conformaram com esta acusação e requereram a abertura de instrução, invocando nulidades de inquérito e a falta de indícios para a pronúncia, conforme resulta de fls. 371 a 376.

O MMº Juiz a quo proferiu despacho de não pronúncia, concluindo " pela insuficiente narração dos factos da acusação para o preenchimento dos elementos constitutivos do crime de burla qualificada, na forma consumada, imputado aos arguidos" e ainda pela insuficiência de indícios para a pronúncia.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, a acusação é redundante quanto à narração dos factos, senão veja-se: é referido na acusação:

que o arguido AA, por si em representação da sociedade arguida sabia as regras de comparticipação do Estado na venda de medicamentos bem como o modo como o reembolso era processado ( após a conferência e validação das receitas enviadas); e sabendo que em inúmeras situações - e por razões várias [desde logo, não pretender o utente adquirir de uma só vez todos as embalagens do receituário] -, do total de embalagens de medicamentos prescritas na receita com comparticipação pelo SNS, apenas são aviadas aos utentes parte dessas embalagens, o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, formulou o desígnio de, quando ocorressem tais situações, ficcionar a venda dos medicamentos que não foram efetivamente aviados [e que, de facto, se mantiveram na farmácia], de modo a poder possibilitar a sua faturação e comparticipação pelo SNS/ARS; assim, no período compreendido entre 1 de março de 2013 e 31 de agosto de 2018, a Farmácia B...", relativamente a 1327 (mil trezentos e vinte e sete) medicamentos [adiante discriminados] faturou ao Estado/SNS-ARS Norte IP comparticipações de [216.538 embalagens de] medicamentos no montante global de 2.013.654,826 (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) mas apenas registou vendas [de 211.074 embalagens] suscetíveis de serem comparticipadas pelo Estado/SNS-ARS Norte IP no montante global de 1.966.011,93€ (um milhão novecentos e sessenta e seis mil e onze euros e noventa e três cêntimos); o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, através do receituário que submeteu aos serviços do SNS-ARS Norte IP, logrou convencer o SNS-ARS Norte IP que, no período em apreço, vendeu 216.538 embalagens de medicamentos com comparticipação no valor total de 2.013.654,826 (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) - quando na realidade apenas vendeu 211.074 embalagens de medicamentos comparticipados pelo Estado; que só por força desse convencimento, o Estado (Administração Regional de Saúde do Norte IP) reembolsou a "Farmácia B... ", denominação comercial da sociedade arguida, pagando-lhe o valor total de 2.013.654,826 (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos).; o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, logrou, assim, obter do Estado/SNS-ARS Norte, IP o reembolso indevido de 47.642,896 (quarenta e sete mil seiscentos e quarenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), causando ao "Sistema Nacional de Saúde - ARS IP ", um prejuízo nesse valor; Melhor concretizando, no período compreendido entre 1 de março de 2013 e 31 de agosto de 2018, a "Farmácia B..." efetuou a venda dos medicamentos (e dosagem) com os valores pagos/comparticipados pelo SNS - ARS Norte, IP constantes dos quadros seguintes (os quais estão juntos a fls. 308 a 320); em suma, o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, actuou com a intenção, conseguida, de induzir em erro o SNS - ARS Norte IP - fazendo-lhe crer que todas as embalagens de medicamentos das receitas haviam sido vendidos e que a farmácia havia suportado o valor das comparticipações do Estado - e de, por essa forma, levar o SNS - ARS Norte IP a entregar-lhes, a título de comparticipações de vendas inexistentes de medicamentos, as quantias monetárias antes referidas, a que sabiam não ter direito; o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, agiu de forma livre, consciente e deliberada, no quadro da mesma resolução criminosa, com perfeito conhecimento de que a quantia monetária com que (os arguidos) se locupletaram resultava, direta e necessariamente, do beneficio ilegítimo obtido através do receituário médico enviado ao CCF da ACSS que não refletia as vendas efetivamente realizadas, e do correspondente prejuízo do Estado Português (SNS ~ ARS Norte IP). Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Cometeram, pelo exposto: O arguido AA, por si e em representação da arguida "A..."", um (1) crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º 1 e 218º, nº 2, alínea a), por referência à alínea b) do artigo 202º, todos do Código Penal; A arguida "A... Lda", um (1) crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º 1 e 218º, nº 2, alínea a), por referência à alínea b) do artigo 202º e ao artigo 11º nº 2, alínea a), e ns. 4, 7 e 9, todos do Código Penal.

Da leitura da acusação é manifesto que a mesma contém a narração suficiente dos factos para o preenchimento dos elementos constitutivos do crime de burla qualificada imputada aos arguidos. 6º

Deste modo, o douto despacho recorrido violou o disposto no art. 283º, nº 3, b) do CPP ao considerer a acusação nula.

Importa verificar foram recolhidos nos autos indícios suficientes para a pronúncia.

Entende o MP que os factos e crime imputado aos arguidos se mostram suficientemente indiciados com base dos elementos de prova indicados na acusação ( prova documental e testemunhal) analisados e valorados de acordo com as regras de experiência comum e da lógica. 9º

A recolha dos dados informáticos que foi efectuada nos autos pelo Sector de Telecomunicações e Informática e análise dos mesmos por parte do Inspector da PJ é suficiente para indiciar o valor das comparticipações pago pelo SNS referente a medicamentos que não foram vendidos aos utentes.

10º

Esta recolha de prova e análise não é uma perícia- pois não exige especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos- e não exige uma a realização de uma perícia finaceira-contabilistica às transacções suspeitas, até porque estas são fictícias.

11º

Por outro lado, a referida análise teve em conta apenas as vendas efectuadas no dia 01 de Março de 2013 e 31 de Agosto de 2018, tipo N ( normal) e Z ( suspensa regularizada),facturadas às entidades pelas quais o SNS é responsável pelo pagamento das comparticipações e que tinham uma receita médica associada.

12º

Assim, dado que só as vendas tipo N e Z podem originar comparticipação, independentemente de terem sido remetidas ou não ao SNS para pagamento da comparticipação respectivas, as quantidades totais destes medicamentos foram considerados na análise, por excesso, em beneficio dos arguidos, conforme resulta da explicação de fls. 179.

13º

Salvo o devido respeito, não se pode explicar a diferença entre as vendas e as comparticipações no período de 5 anos ( de 2013 a 2015), pela falta de conhecimento e dominio do sistema informático usado na Farmácia B... e a qualquer outro tipo de negligência.

14º

Para apreciar a existência do dolo, importa analisar e valor os indícios recolhidos de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e da normalidade das coisas.

15º

Não se concorda com a hipótese de se exigir que na pronúncia uma probalidade particularmente forte de futura condenação, pois o valor indiciário da prova em instrução é diferente do valor de certeza exigido em julgamento.

16º

O art. 301º, nº 1 do CPP demonstra isso mesmo: que para a formação da convicção sobre a culpabilidade no momento da pronuncia não se exige o mesmo grau de certeza e de isenção de dúvida que é necessária para o jugamento.

17º

Desta apreciação, conclui-se que estão reunidos os indícios suficientes para pronunciar os arguidos.

18º

Deste modo, despacho de não pronúncia violou o disposto nos arts 26º e 217º e 218 do Cód. Penal e o disposto no art. 308º, nº 1 do CPP.»


*

Os arguidos responderam ao recurso, pugnando pelo seu não provimento e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):

«I

O douto despacho de pronúncia recorrido não viola quaisquer preceitos legais nem não merece qualquer censura, pelo que deve manter-se inalterado.

II

Propõe a acusação - mas sem razão, salvo o devido respeito - que os aqui arguidos teriam praticado crime de burla qualificada na forma consumada ao se apropriarem, indevidamente e em prejuízo do Estado, de várias quantias que totalizariam € 47.642,89, emergentes de comparticipações pagas em erro pelo SNS (e em prejuízo do Estado) porque lhe teriam ardilosamente ficcionado e faturado vendas em excesso de medicamentos comparticipados.

III

Para tanto, deveria a acusação ter descrito cada um dos concretos atos de apropriação imputados, o seu valor, quem o tivesse praticado, em que data, onde, de que forma e quais os documentos ou outros elementos de prova que o sustentassem/provassem, assim como os factos dos quais se extraísse o dolo do agente, o ardil utilizado, o prejuízo do lesado e o nexo causal entre apropriação e prejuízo.

IV

Ao invés, a acusação destes autos narrou vaga e genericamente que, pelo que consta da base de dados do sistema informático daquela Farmácia B..., nesta ter-se-iam faturado durante um período de 66 meses diversas comparticipações sobre vários medicamentos no valor global de € 2.013.684,82, mas apenas promovido vendas de medicamentos sujeitos a comparticipação no valor global de € 1.966.011,93, assim concluindo que a diferença - no valor global de € 47.642,89 - teria sido indevidamente paga pelo SNS e recebida pelos arguidos.

V

No entanto, como muito bem realça o douto despacho recorrido:

a) “o acusação não descreve o modo ou a forma do ardil ou astúcia na actuação que pretende imputar aos arguidos, omitindo as circunstâncias de tempo, lugar e modo das acções em causa, não especificando que erros ou enganos foram causados relativamente a que factos, nem a quem”;

b) “a acusação refere genericamente que o arguido ficcionou vendas inexistentes, sem identificação concreta dos documentos, facturas ou registos informáticos utilizados, criados ou falsificados com aquele propósito”;

c) “A acusação alega que o arguido simulou vendas de medicamentos ao longo de 66 meses, sem qualquer especificação do procedimento utilizado, da pessoa ou entidade enganada, dos utentes afectados, datas, medicamentos, facturas e valores envolvidos”;

d) “A acusação não indica o momento, local e modo da prática, nem o autor, dos actos que possam ter causado ao Estado, ao Serviço Nacional de Saúde, à Administração Central do Sistema de Saúde, LP. ou à Administração Regional de Saúde do Norte, LP, o alegado prejuízo patrimonial, sendo também omissa em relação à consumação do crime, ou seja, ao momento, local e modo da entrega ou pagamento à sociedade arguida das comparticipações supostamente ilegítimas”;

e) “A acusação não indica em que data ou datas a Administração Regional de Saúde do Norte, LP. pagou, transferiu ou depositou o montante ou montantes em causa, com o inerente prejuízo patrimonial”; e

f) Não indicou de forma fundamentada e concreta o nexo causal que pudesse existir entre o erro e o prejuízo invocados.

VI

Em resumo, narra “uma alegada burla cometida num horizonte temporal de 66 meses, entre 1 de Março de 2013 e 31 de Agosto de 2018, no pressuposto da apresentação de uma facturação ficcionada e excessiva, sem a concretização das acções praticadas pelo arguido ou por outras pessoas na liderança da sociedade arguida, sem especificação das vendas simuladas com referência ao n.º e data das facturas e dos utentes beneficiários do SNS e sem identificação das receitas, faltando igualmente a concretização das datas de recebimento das quantias alegadamente pagas pelo Estado.”

VII

Pelos sobreditos motivos, e ao contrário do que pretende o recorrente, muito bem andou o Tribunal a quo ao concluir que os factos vaga e genericamente narrados na acusação são manifestamente insuficiente para o preenchimento dos elementos constitutivos do tipo crime de imputado aos arguidos. Sem prescindir...

VIII

A acusação não enferma apenas de insuficiente narração de factos, mas também de insuficiência de indícios que minimamente a sustentem.

IX

A este propósito, constata-se que o recurso apresentado não tem por objeto matéria de facto - que assim se tornou incontroversa - pois não se insurge contra os factos julgados como indiciados ou como não indiciados; tem por objeto matéria de direito, pois diverge sobre o juízo de insuficiência desses factos indiciados (para prosseguimento dos autos para julgamento, à luz do disposto no artigo 308° do CPP). Mas sem que ao recorrente assista razão, salvo o devido respeito e pelos motivos que se passam a expor.

X

Primeiro, e desde logo, porque dos factos que foram julgados como indiciados (agora incontroversos) não resultam indícios de qualquer conduta ilícita - muito menos com relevância criminal - ou sobre a qual deva incidir juízo de censura.

XI

Segundo, porque ao contrário do que pretende o recorrente, os dados informáticos disponíveis nos autos e a análise que aos mesmos foi feita pela PJ - únicos elementos em que a acusação se suporta - não indiciam com mínima suficiência a prática de qualquer crime e são incompletos, incorretos e descontextualizados.

XII

Antes de mais, esses dados e sua análise emergiram de um processo de pesquisa ao software da Farmácia B..., que teve por objeto o período decorrido entre 01/03/2013 a 31/08/2018 e que resultou na compilação de 4 listagens:

a) Histórico da faturação a entidades do SNS (as “receitas faturadas” pela farmácia para pedido de comparticipação a estas entidades);

b) Histórico da movimentação de Stock;

c) Histórico de vendas (de medicamentos sujeitos a comparticipação por aquelas entidades); e

d) Histórico de Encomendas (a fornecedores).

XIII

No entanto, como bem regista o Tribunal a quo, ”os dados relativos a vendas suspensas, vendas suspensas regularizadas, devoluções e regularizações de crédito da farmácia não foram registados no processo”; tanto assim é que as listagens obtidas "... omitem por completo qualquer referência a notas de crédito, o que permite questionar a integridade e fiabilidade da informação exibida por aqueles quadros".

XIV

Ou seja, tais elementos não refletem a totalidade da relação existente com o SNS, pois consideraram apenas o valor dos pedidos de comparticipação (as “receitas faturadas”) sem abater o valor das notas de crédito (emitidas pela Farmácia para anular as “receitas faturadas” que o SNS declinou comparticipar).

XV

Daqui decorre - logo à partida - que o valor global que o SNS pudesse alguma vez pagar à Farmácia a título de comparticipações é inevitavelmente inferior ao indicado nesses elementos (que consideraram somente as “receitas faturadas” e excluíram as notas de crédito); pelo que, logicamente, a divergência entre esse (menor) valor suscetível de vir a ser pago e o valor global das vendas registadas no software é também inevitavelmente inferior à indicada nos referidos elementos.

XVI

Ora, conforme se expôs no requerimento de abertura de instrução, se considerarmos essas notas de crédito omitidos nos sobreditos elementos (emitidas ao SNS), a divergência acima referida fica de imediato reduzida a € 7.957,43.

XVII

Mais se reduz para € 3.572,69, correspondente a 677 unidades, se com maior rigor alargarmos o âmbito da análise às comparticipações de medicamentos solicitadas a entidades privadas (ou seja, se incluirmos "receitas faturadas” e vendas de medicamentos comparticipados a entidades tais como seguradoras, entidades de saúde privada, organismos profissionais, etc). E isto sem sequer contabilizar o valor das notas de crédito emitidas a essas entidades privadas, que inevitavelmente diminuirá, anulará ou inverterá essa ligeira diferença.

XVIII

Ou seja, reitera-se, os elementos em que a acusação se baseia não são apenas insuficientes (por deles não se conseguir retirar quem, como, em que data ou onde se poderá alguma vez ter apropriado de uma determinada quantia e em quer valor, nem se o fez de forma dolosa, indevida, ardilosa ou provocando prejuízo a terceiro); são também incompletos, incorretos e descontextualizados.

XIX

Terceiro, porque a tese da recorrente desconsidera o efeito de possíveis lapsos humanos ou informáticos incorridos no processo de faturação, de aviamento de receituário ou de processamento da contabilidade, que são comuns e naturais.

XX

Como se expôs no requerimento de abertura de instrução, a base de dados do software da Farmácia evidencia que durante os 66 meses em análise (cerca de 1980 dias, portanto) geraram-se pedidos de comparticipação de medicamentos ("receitas faturadas") a todas as entidades públicas e privadas no valor global de € 5.794.771,17, correspondente a 764.548 unidades faturadas.

XXI

Ou seja, uma média de 386 unidades de medicamentos - ou € 2.926,00 - faturadas para comparticipação em cada dia.

XXII

Como acima se referiu, a divergência global entre o valor global dos pedidos de comparticipação (“receitas faturadas”) e o valor global das vendas de medicamentos comparticipados registadas naquele período, quedar-se-ia, no máximo, em € 3.572,69; o que representa apenas 0,0616% daquele valor global de “receitas faturadas”.

XXIII

Esta percentagem de divergência, atento o volume e frequência de operações em análise, traduz-se, salvo melhor entendimento, em margem de erro razoável e aceitável.

XXIV

Quarto, porque dos dados e da análise da acusação (que incidem apenas sobre a base de dados do software da Farmácia, recorde-se) não resultam indícios suficientes de terem os arguidos efetivamente recebido qualquer quantia do SNS, muito menos que não lhes fosse devida.

XXV

E assim reconheceu o Senhor Inspetor que promoveu a análise da acusação, pois como afirmou a fls 117 seria necessário “... cruzamento comparativo da informação recolhida e assim apurar e seleccionar as transacções que correspondem a vendas reais, das vendas simuladas, permitindo que em sede de perícia financeira-contabilistica apenas sejam trabalhadas as transacções suspeitas e não já a totalidade destas" (sublinhado nosso).

XXVI

Daí que, já após apreensão dos dados, fosse comunicado ao MP, a fls 175, estar “...prevista a confrontação da informação recolhida com a informação remetida pelo Centro de Conferência de Facturas da Administração Central de Sistemas de Saúde, I.P. e a realização do respectivo Auto de Análise”.

XXVII

Tal informação do Centro de Conferência nunca ficou disponível nos autos e tal perícia que os incluísse nunca foi efetuada; e não existe qualquer apuramento fundamentado e detalhado das circunstâncias de tempo, lugar e modo da atuação dos intervenientes - também desconhecidos - de qualquer uma dessas transações alegadamente suspeitas.

XXVIII

E nem se diga, como inexplicavelmente defende o recorrente, que tal perícia não será necessária porque as transações suspeitas são fictícias. Dizê-lo é presumir liminarmente a ilicitude em qualquer divergência entre contas e o dolo e responsabilidade criminal de quem as tenha determinado. É agir ao arrepio das “regras da experiência comum, da lógica e da normalidade das coisas” que o recorrente tão bem apregoa, pois não é possível determinar se uma transação é fictícia ou não sem tentar perceber-se se efetivamente ocorreu, em que dia, hora ou local e quem - ou como - nela participou.

XXIX

Não foi junto ou sequer indicado pela acusação (ou até simplesmente aludido por qualquer testemunha) um só recibo, extrato bancário, fatura, nota de lançamento, cheque, comprovativo de transferência ou outro documento que permitisse - sequer minimamente - indiciar o recebimento de qualquer quantia.

XXX

Não existe um único indício de terem os arguidos praticado ato com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiros ou de causar prejuízo a outrem.

XXXI

Tão flagrante insuficiência de indícios não pode sustentar uma acusação ou uma pronúncia; menos ainda quando dos que existem, como bem refere o douto despacho recorrido, resulta ser "mais provável a absolvição dos arguidos do que a hipótese alternativa da sua condenação caso fossem submetidos a julgamento"


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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acolheu a posição do recorrente, desenvolvendo a respectiva argumentação, pugnando pelo provimento do recurso e pelo prosseguimento do processo para julgamento.

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Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

- Suficiência da narração dos factos constantes da acusação; e

- Suficiência da prova indiciária para a decisão de acusar e pronunciar os arguidos.


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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo o teor da decisão instrutória, que é o seguinte (transcrição):

«Decisão instrutória proferida no processo de instrução n.º 1274/17.3T9MTS.

Os arguidos AA e “A..., Lda.” vieram requerer a abertura da instrução por não se conformarem com a acusação registada a fls. 329 a 341 dos autos que lhes imputa a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), por referência à alínea b) do artigo 202.º, e ao artigo 11.º, n.º 2, al. a) e n.ºs 4, 7 e 9, todos do Código Penal.

Alegaram o que consta do requerimento registado a fls. 371 a 376 no sentido da sua inocência e invocaram ainda nulidades, nomeadamente relativas à insuficiência do inquérito bem como a violação das suas garantias de defesa.

Procedeu-se à audição do arguido, como pessoa individual e como representante legal da sociedade arguida. Foram inquiridas duas testemunhas, ambas farmacêuticas de profissão, uma delas funcionária da “Farmácia B...”.

Teve lugar o debate instrutório.

Das nulidades e outras questões suscitadas pelos arguidos:

Da alegada nulidade por insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, designadamente: a) o interrogatório da sociedade arguida que não foi notificada para prestar declarações; b) os arguidos terem sido acusados com base em alegações de factos e de elementos de prova que não lhes foram previamente comunicados apesar de terem sido solicitados pelo arguido AA; c) a sociedade arguida ter sido acusada sem a garantia da assistência de defensor, d), ter sido omitida, em interrogatório, a informação relativa aos direitos dos arguidos nos termos do artigo 61.º do Código de Processo Penal, bem como a informação dos factos que lhes são concretamente imputados, incluindo as respectivas circunstâncias de tempo, lugar ou modo e, também, os elementos do processo que alegadamente os sustentam (cf. pontos 1 a 20 do requerimento de abertura de instrução):

O Acórdão n.º 1/2006, do Supremo Tribunal de Justiça, de 02 de Janeiro (publicado no Diário da República, Série I, de 02-01-2006), fixou jurisprudência no sentido de que “a falta de interrogatório, como arguido, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a sua notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.”

Nos termos da referida alínea d), do referido preceito legal, “constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas em outras disposições legais (…) a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.

Não encontramos motivo para divergir desta jurisprudência fixada.

O Ministério Público veio a deduzir acusação contra a sociedade arguida “A..., Lda.” sem que tivesse assegurado a esta o seu direito de audiência e de defesa, direitos que o artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República prevê para todos os processos sancionatórios, nomeadamente processos de contra-ordenação.

Uma pessoa colectiva, como pessoa jurídica, deve ser representada por quem legal ou estatutariamente a deva representar nos termos do artigo 57.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2022, de 01-08. Isto significa que o direito de audição é exercido pela pessoa física que seja legal representante da pessoa colectiva, devendo este ser informado dessa circunstância.

Neste contexto normativo, de acordo com a referida fixação de jurisprudência, a sociedade arguida, representada pelo seu legal representante, devia ter sido interrogada no inquérito com informação adequada sobre os factos concretos que lhe eram imputados e constitutivos da sua responsabilidade penal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 272.º, 144.º e 141.º, n.º 2, als. a) e d), do Código de Processo Penal, com referência aos pressupostos da responsabilidade penal da pessoa colectiva previstos no artigo 11.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, nomeadamente com referência à actuação praticada em nome e no interesse da pessoa colectiva.

Isso não sucedeu.

O auto de interrogatório de arguido, como se pode ler no título do respectivo documento, registado em 17-11-2020, a fls. 257 dos autos, contém apenas a identificação de um arguido, AA, tendo sido perguntado ao arguido «se queria responder sobre os factos que lhe são imputados».

A referência à arguida “A..., Lda.”, na comunicação dos factos imputados ao arguido, decorre apenas da circunstância de aquela sociedade ser proprietária da “Farmácia B...”, sendo o arguido director técnico da referida farmácia e sócio-gerente da “A..., Lda.”, como é forçoso concluir pela leitura dos factos comunicados ao arguido AA quando do seu interrogatório no inquérito, transcritos a fls. 258 dos autos:

«Vem indiciado de, no período entre 01/03/2013 e 31/08/2016, ter facturado ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] o valor de comparticipações relativas a medicamentos que efectivamente não foram aviados na “Farmácia B...”, da qual é director técnico e sócio gerente da empresa “A..., Lda.” com o NIPC ...78, proprietária da referida farmácia. Ao remeter tal facturação ao SNS, da qual veio a obter pagamento, apropriou-se de quantias que não lhe eram devidas, por ter introduzido dados que sabia serem falsos no programa Sifarma 2000, designadamente nos lotes a facturar, criando uma falsa imagem de venda de tais medicamentos a supostos utentes do SNS e que apresentou a pagamento para receber o valor da comparticipação dos mesmos.

Encontra-se, assim, indiciado pela prática dos crimes de burla qualificada e falsidade informática que lhe permitiram a apropriação indevida, em prejuízo do erário público, de um valor (…) 47.642,89€ (…)».

Aquele auto de interrogatório de arguido não pode ser válido relativamente à arguida sociedade por não conter as informações obrigatórias por lei nos termos das disposições conjugadas dos artigos 141.º, n.º 4, 144.º, n.º 2 e n.º 3, do Código de Processo Penal.

Esta nossa conclusão é, ainda, reforçada pelo teor do despacho registado em 28-06-2021, a fls. 321, que não contém qualquer referência ao interrogatório da referida sociedade.

Questão diferente é decidir se deve ser declarada a nulidade do inquérito relativo à sociedade com a consequente nulidade parcial da acusação, ou se a mesma pode considerar-se sanada, durante a fase da instrução, mediante a realização do acto legalmente obrigatório.

Com algumas dúvidas, somos levados a concluir no sentido da possibilidade de sanar a apontada nulidade na fase da instrução, mediante a realização do acto omitido, atendendo à autonomia e independência do Ministério Público e aos princípios da conservação e aproveitamento dos actos praticados, da cooperação, da confiança, e da plenitude da jurisdição.

A necessidade da audição das pessoas indiciadas no inquérito decorre do princípio da presunção de inocência e do direito a um processo equitativo e imparcial, direito que decorre do primado da dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição da República (artigos 1.º e 2.º da Constituição).

Assim, tendo o arguido prestado declarações na instrução, em seu nome e como representante legal da sociedade arguida, conforme registado nos autos em 19-05-2022, a fls. 425, devemos considerar sanada a apontada nulidade da falta de interrogatório da arguida no inquérito, na esteira do entendimento seguido por tribunais superiores, como disso é exemplo o Acórdão de 11-07-2007, do Tribunal da Relação do Porto, que se transcreve na parte mais relevante para esta questão:

“Esta fase processual (a instrução), que visa comprovar a acusação em ordem à decisão sobre a submissão da causa a julgamento, nos termos da acusação (v. art.º 286.º, n.º 1, do C. de Processo Penal), não pode, no entanto, fazer com que se abstraia da fiscalização, que se deve levar a cabo, da legalidade dos actos praticados no decurso do inquérito, sendo, por isso, que os actos e diligências de prova praticados no inquérito devem ser repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais, para lá de que, em caso de insuficiência de inquérito (…), deve o juiz decidir no sentido que for tido por adequado - v. os art.ºs 291.º, n.º 2, e 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed. revista e actualizada, 2000, pág. 149/150, e o Ac. do S.T.J., de 2006, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf, tirado para um caso em que se havia declarado aquela nulidade de insuficiência de inquérito («… situando-nos, embora, numa fase preliminar do processo e grosso modo ainda em sede preliminar, a lei põe à disposição do juiz de instrução os poderes necessários para levar a cabo todos os actos processuais que, segundo a sua livre resolução, possibilitem a decisão para que tende o processo: pronúncia ou não pronúncia. E dentro desses actos, necessariamente os que possibilitem ultrapassar qualquer nulidade suprível»).

Vale isto para dizer que, em casos tais (não interrogatório do arguido no inquérito, sendo o mesmo possível, nos termos do art.º 272.º, n.º 1, do C. de Processo Penal), na instrução, se deve (é necessário, querendo atentar nos dizeres do art.º 292.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) proceder ao interrogatório do arguido.

Deste modo se previne, em termos de invalidade, os efeitos da declaração de nulidade, pela manutenção dos actos praticados, que não havia, então, necessidade de renovar.” (cf. texto integral disponível em https://www.dgsi.pt com referência ao processo 0742534 e n.º de documento RP200707110742534).

Esta interpretação mostra-se, no caso dos presentes autos, conforme com as garantias e direitos de defesa dos arguidos e com a pretensão da sua não pronúncia que formularam nos pontos 21 a 60 do requerimento de abertura de instrução, cf. fls. 373 a 375 dos autos.

Em consequência do acima exposto, julgo sanada a nulidade resultante da falta de interrogatório da sociedade arguida no inquérito.

Por maioria de razão, as outras alegadas violações de lei, na hipótese de terem algum fundamento, devem considerar-se sanadas pela intervenção e audição dos arguidos na fase de instrução e pela garantia de que eventuais insuficiências e inconsistências do inquérito ou da acusação nunca serão consideradas em prejuízo dos arguidos atendendo aos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

Segundo Ana Raquel Assunção, no seu comentário trabalho intitulado “Presunção de inocência”, o direito a um fair trial a que o n.º 1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos faz referência, é uma garantia de exequibilidade de um processo justo, equitativo e imparcial. (…) “Numa visão mais pragmática (…), resulta da presunção de inocência que sobre o arguido não recai qualquer ónus da prova, que o ónus da prova é sempre da acusação, na pessoa do procurador. Sempre sem pré-juízos de culpa ou de responsabilidade criminal. E que se mantém no decorrer de todo o processo.” (“Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais”, Paulo Pinto de Albuquerque (Org.), Vol. II, p. 1076-1077, Universidade Católica Editora, Lisboa 2019).

“Este ónus da prova determina, por um lado, que a investigação, o processo, deverá informar sempre quais são os factos que se imputam ao arguido de modo a que este possa, de forma cabal e completa, preparar a sua defesa, e ainda que exista um mínimo de materialidade indiciada.

(…) O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que a presunção da inocência impõe que a prova dos factos imputados seja da acusação e, consequentemente, o arguido seja informado sobre os mesmos de forma completa, de modo a poder conhecê-los e contraditá-los. Assim deverá haver um juízo de prognose favorável de que os factos indiciados consigam, minimamente, determinar uma (…) condenação. Consequentemente, se é à acusação que incumbe a prova dos factos, não pode nunca tal ónus probatório ser invertido prejudicando o arguido.” (Ana Raquel Assunção, Obra citada, p. 1078).

Partindo destas considerações, com as quais concordamos, cabe-nos agora verificar se os factos imputados aos arguidos são os necessários para a sua condenação penal e se se mostram suficientemente indiciados.

Nos termos do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

No essencial, os factos imputados ao arguido, relativos aos pressupostos da sua responsabilidade penal, encontram-se narrados nos artigos 5.º a 12.º e 14.º a 15º da acusação que aqui se dão por reproduzidos por razões de brevidade, esclarecendo-se que os quadros constantes do art.º 11.º da acusação correspondem à listagem de medicamentos apresentada como quadro III do documento registado a fls. 177 a 198.

A narrativa da acusação é, em síntese, a seguinte:

O arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, formulou o desígnio de ficcionar a venda de medicamentos que não foram efectivamente aviados na Farmácia B..., de modo a poder facturá-los e receber a comparticipação do Serviço Nacional de Saúde (cf. art.º 6.º da acusação)

No período compreendido entre 1 de Março de 2013 e 31 de Agosto de 2018, ou seja, durante 66 meses, a “Farmácia B...” facturou ao Estado – Serviço Nacional de Saúde, comparticipações de 216.538 embalagens de 1327 medicamentos, comparticipações no montante global de € 2.013.684,82, quando apenas tinha registado vendas de 211.074 embalagens susceptíveis de uma comparticipação do Estado no montante global de € 1.966.011,93 (art.º 7.º da acusação).

Através do receituário que submeteu aos serviços do SNS – Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., logrou convencer esta entidade daquela situação ficcionada com o consequente pagamento de um reembolso indevido de € 47.642,89 e o correspondente prejuízo para o Estado – Serviço Nacional de Saúde (idem, artigos 8.º a 10.º).

Ainda segundo a acusação, AA agiu com a intenção alcançada de induzir em erro o Serviço Nacional de Saúde – Administração Regional de Saúde do Norte I.P., fazendo-lhe crer que todas as embalagens de medicamentos das receitas haviam sido vendidas e que a farmácia havia suportado o valor das comparticipações ao Estado, de forma a obter do mesmo o respectivo pagamento relativo a vendas inexistentes (art.º 12.º da acusação).

O arguido, por si e em representação da sociedade arguida, agiu de forma livre, consciente e deliberada, no quadro da mesma resolução criminosa, com perfeito conhecimento de que a quantia monetária com que se locupletaram resultava, directa e necessariamente do benefício obtido através do receituário médico enviado ao CCF – Centro de Conferência de Facturas - da ACSS - Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. que não reflectia as vendas efectivamente realizadas, e do correspondente prejuízo do Estado Português (art.º 14.º da acusação).

Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (art.º 15.º da acusação).

O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 27-05-2009, sublinhou a inadmissibilidade da imputação genérica de factos, nomeadamente no âmbito dos procedimentos por crime de tráfico de estupefacientes:

«Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente -neste sentido podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3ª; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3ª e n.º 578/08-3ª (neste afirmando-se que a dúvida sobre a quantidade de droga vendida a vários consumidores, e apresentada de forma indeterminada e em jeito de imputação genérica, tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo).»

O Tribunal da Relação de Évora afirmou o mesmo entendimento, apresentado pela forma seguinte: “A acusação (e a pronúncia) deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos actos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infracção e quais os factos que o arguido realizou, sem imprecisões ou referências vagas” – Ac. de 07-04-2015 (proc. nº 159/12.4IDSTB.E1).

Concordamos com esta jurisprudência e com a sua aplicação ao caso dos presentes autos, essencialmente pelo motivo de a acusação abranger uma alegada burla cometida num horizonte temporal de 66 meses, entre 1 de Março de 2013 e 31 de Agosto de 2018, no pressuposto da apresentação de uma facturação ficcionada e excessiva, sem a concretização das acções praticadas pelo arguido ou por outras pessoas na liderança da sociedade arguida, sem especificação das vendas simuladas com referência ao n.º e data das facturas e dos utentes beneficiários do SNS e sem identificação das receitas, faltando igualmente a concretização das datas de recebimento das quantias alegadamente pagas pelo Estado.

Como foi alegado pelos arguidos no ponto 23 do requerimento de abertura de instrução, a fls. 373, o crime de burla tem como indispensáveis os seguintes elementos constitutivos:

Primeiro: a indução de uma pessoa ou entidade em erro ou engano sobre factos;

Segundo: o uso de astúcia ou meio ardiloso, por parte do agente, para provocar aquele erro ou engano;

Terceiro: a intenção do agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;

Quarto: que esse erro ou engano tenha determinado aquela pessoa à prática de actos que lhe causam, ou a terceira pessoa, prejuízo patrimonial.

No entanto, a acusação não descreve o modo ou a forma do ardil ou astúcia na actuação que pretende imputar aos arguidos, omitindo as circunstâncias de tempo, lugar e modo das acções em causa, não especificando que erros ou enganos foram causados relativamente a que factos, nem a quem.

A acusação refere genericamente que o arguido ficcionou vendas inexistentes, sem identificação concreta dos documentos, facturas ou registos informáticos utilizados, criados ou falsificados com aquele propósito.

A acusação alega que o arguido simulou vendas de medicamentos ao longo de 66 meses, sem qualquer especificação do procedimento utilizado, da pessoa ou entidade enganada, dos utentes afectados, datas, medicamentos, facturas e valores envolvidos.

A acusação não indica o momento, local e modo da prática, nem o autor, dos actos que possam ter causado ao Estado, ao Serviço Nacional de Saúde, à Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. ou à Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., o alegado prejuízo patrimonial, sendo também omissa em relação à consumação do crime, ou seja, ao momento, local e modo da entrega ou pagamento à sociedade arguida das comparticipações supostamente ilegítimas.

Como se refere no sumário do Acórdão de 18-01-2017, do Tribunal da Relação de Lisboa, “o momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado abre mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí possa controlar o seu destino, perdendo a disponibilidade dela ou desse valor no seu património (…), constituindo a burla um crime de dano que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.”

A acusação não indica em que data ou datas a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. pagou, transferiu ou depositou o montante ou montantes em causa, com o inerente prejuízo patrimonial.

Como referem M. Miguez Garcia e Castela Rio, “a deslocação patrimonial é o elemento do tipo que (…) está em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro de quem os pratica; do outro, com a consequência exterior – patrimonial – da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro. Esse nexo causal deve ser substancialmente averiguado” (“Código Penal - Parte geral e especial com notas e comentários", 2014, Almedina, p. 921).

Nem a acusação pública, nem o pedido de indemnização civil formulado pela Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., apresentaram de forma fundamentada e concreta esse nexo causal.

Nestas circunstâncias, concluímos pela insuficiente narração dos factos da acusação para o preenchimento dos elementos constitutivos do crime de burla qualificada, na forma consumada, imputado aos arguidos.

Independentemente desta conclusão, consideramos dever proceder à necessária apreciação dos indícios nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 286.º e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para esclarecimento de outros fundamentos que contribuem para um despacho de não pronúncia.

FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIADOS:

Compulsada toda a prova produzida no inquérito e na instrução, consideramos suficientemente indiciados, com interesse para a decisão instrutória, os seguintes factos:
1. A arguida “A..., Lda.” é uma sociedade por quotas com o NIPC ...78 que tem por objecto a exploração de farmácias, usando a designação comercial “Farmácia B...”, com o código convencionado ...00.
2. O arguido AA é Director Técnico da “Farmácia B...” pelo menos desde 2012.
3. AA, por si e em representação da sociedade “A..., Lda.”, em função da sua formação e experiência profissional, nomeadamente como director técnico da farmácia, tinha conhecimento das regras e procedimentos relativos à emissão de receitas médicas, nomeadamente da receita electrónica, assim como das regras e procedimentos para a venda e aviamento de medicamentos, incluindo os relacionados com os pagamentos da comparticipação do Estado na aquisição dos fármacos.
4. Tinha igualmente conhecimento das disposições relativas à comparticipação do Estado na aquisição de medicamentos sujeitos a receita médica preceituadas pelo Decreto-Lei n.º 118/92, de 25 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 129/2005, de 11 de Agosto, com a alteração introduzida pelo art.º 150.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), transcritas no art.º 3.º da acusação.
5. Conhecia também as regras aplicáveis às receitas médicas, nomeadamente as estabelecidas pela Portaria n.º 137-A/2012, de 11 de Maio, e pela Portaria n.º 224/2015, de 27 de Julho, alterada pela Portaria n.º 417/2015, de 4 de Dezembro, pela Portaria n.º 138/2016, de 13 de Maio, esta última alterada e republicada pela Portaria n.º 284-A/2016, de 4 de Novembro.
6. Dá-se aqui por reproduzido o art.º 5.º da acusação.
7. Dá-se aqui por reproduzido o art.º 13.º da acusação.

FACTOS NÃO INDICIADOS:

Com interesse para a decisão instrutória, consideramos insuficientemente indiciados os seguintes factos:

- Que o arguido AA, agindo de forma livre, consciente e deliberada, tivesse, por si e em representação da sociedade “A..., Lda.”, formulado o desígnio de ficcionar a venda de medicamentos que não tinham sido efectivamente aviados e que de facto se mantinham na farmácia de modo a possibilitar a sua facturação e comparticipação pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) / Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. (art.ºs 6.º e 14.º da acusação).

- Que AA tenha concretizado esse desígnio sabendo das situações em que apenas eram aviadas aos utentes parte das embalagens prescritas na receita com comparticipação pelo SNS, nomeadamente por não pretenderem adquirir de uma só vez todas as embalagens do receituário (art.º 6.º da acusação).

- Que em concretização do referido propósito, no período compreendido entre 1 de Março de 2013 e 31 de Agosto de 2018, o arguido, em representação da “Farmácia B...”, tivesse facturado ao Serviço Nacional de Saúde – Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.” comparticipações de 216.538 embalagens de medicamentos, no montante global de 2.013.654,82 € (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) relativamente a 1327 (mil trezentos e vinte e sete) fármacos discriminados nos quadros constantes do art.º 11.º da acusação e registados a fls. 182 a 197 dos autos (art.º 7.º e 11.º da acusação).

- Que em concretização do mesmo intuito, o arguido, em representação da “Farmácia B...”, tivesse registado vendas de 211.074 embalagens susceptíveis de serem comparticipadas pelo Estado / Serviço Nacional de Saúde – Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., no montante global de 1.966.011,93€ (um milhão novecentos e sessenta e seis mil e onze euros e noventa e três cêntimos) cf. o art.º 7.º e 11.º da acusação.

- Que AA, por si e em representação da sociedade arguida, tivesse submetido receituário ao Serviço Nacional de Saúde – serviços da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., no propósito alcançado de lograr convencê-los que, no período em apreço, vendera 216.538 embalagens de medicamentos com comparticipação no valor total de 2.013.654,82€ (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos), cf. art.º 8.º e 11.º da acusação.

- Que por via desse convencimento, o Serviço Nacional de Saúde - Administração Regional de Saúde do Norte I.P. tivesse reembolsado a “Farmácia B...”, pagando-lhe o valor total de 2.013.654,82 € (dois milhões treze mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos).

- Que AA, por si e em representação da sociedade arguida, tenha logrado induzir em erro o Serviço Nacional de Saúde – ARS Norte I.P. fazendo crer que todas as embalagens de medicamentos das receitas haviam sido vendidas e que a Farmácia havia suportado o valor das comparticipações do Estado.

- Que o mesmo arguido, por si e em representação da sociedade arguida, tenha levado o Estado, SNS - ARS Norte, I.P. a proceder ao reembolso indevido de comparticipações de vendas inexistentes de medicamentos no montante global de 47.642,89€ (quarenta e sete mil seiscentos e quarenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), causando-lhe um prejuízo nesse valor.

- Que os arguidos soubessem que cometiam factos proibidos e punidos por lei penal.

- Que no referido período a Farmácia B... tivesse vendido 211.074 embalagens de medicamentos comparticipados pelo Estado.

Na decisão relativa aos factos não indiciados, atendemos à argumentação apresentada pelos arguidos no requerimento de abertura de instrução, nos pontos 22.º, 30.º a 36.º, 37.º a 40.º, 41.º a 48.º e 49.º a 59.º, e às declarações registadas na instrução a fls. 425 e 426, no confronto com a prova produzida no inquérito e sobretudo com a prova que devia ter sido obtida, de acordo com o ónus da prova e com o princípio da presunção de inocência, e que não foi apresentada de forma clara e indubitável.

A primeira informação dos Inspectores da Polícia Judiciária, de 11-10-2018, refere-se ao Serviço Nacional de Saúde e ao regime dos medicamentos sujeitos a receita médica (fls. 87-88), aos procedimentos relativos à emissão de receituário médico e à dispensa dos medicamentos prescritos (fls. 89-97 e 100-101), ao sistema de conferência de facturas (fls. 97-100), ao circuito da comercialização do medicamento, e alude aos dois tipos principais de fraude no aviamento de medicamentos (fls. 105-106), com indicação dos dez principais utentes da Farmácia B... (fls. 115).

Esta primeira informação sugere a realização de buscas à Farmácia B... para verificar se as “embalagens facturadas ao SNS encontram correspondência nas movimentações de stock e facturação da farmácia”.

O Senhor Inspector afirmou: “Neste processo torna-se essencial a contagem física das embalagens constantes do stock da Farmácia. (…) A informação a recolher visa os dez medicamentos identificados no relatório (…) tendo em vista a comparação de movimentação de stock com a quantidade de embalagens cobradas ao SNS como tendo sido vendidas na farmácia, almejando assim apurar a existência ou não de vendas fictícias, bem como do total dos valores pagos indevidamente pelo erário público.”

Afirmou ainda, a fl. 117, a necessidade da seguinte metodologia/ferramenta de trabalho:

«Pesquisa global informática à base de dados do software em uso na farmácia suspeita (programas de gestão e facturação SIFARMA2000/Glintt ou SPHARM/Soft Reis ou WINPHAR ou 4DIGITALCARE) com recurso a quatro queries (são consultas informáticas, ou seja, "perguntas que se fazem ao sistema e o sistema retorna a informação pretendida"), sendo as questões pretendidas as seguintes:

• Histórico da facturação a entidades - listagem de todas as receitas facturadas pela farmácia às diversas Entidades, para comparticipação;

• Histórico da movimentação de Stock - listagem da movimentação do stock de todos os medicamentos da farmácia;

• Histórico de vendas - listagem do histórico de vendas de todos os medicamentos da farmácia);

• Histórico de Encomendas - listagem de todos os medicamentos encomendados e recebidos pela farmácia);

NB: Gerando a pesquisa, de todas estas listagens os respectivos ficheiros em formato Excel (extensão xls.), que permite depois ser trabalhado, para cruzamento comparativo da informação recolhida e assim apurar e seleccionar as transacções que correspondem a vendas reais, das vendas simuladas, permitindo que em sede de perícia financeira-contabilística apenas sejam trabalhadas as transacções suspeitas e não já a totalidade destas (reais e simuladas), o que irá rentabilizar os recursos, pela redução das tarefas a realizar.»

Essa metodologia iniciou-se com a apreensão, registada em 12-11-2018, a fls. 157 a 160 dos autos, afirmando-se no respectivo auto, a fls. 159, que todos os documentos e ficheiros foram apreendidos por terem interesse para os presentes autos.

Só em 23-10-2019 é comunicado ao Ministério Público, a fls. 175 do processo, ter sido efectuada a extracção da informação das bases de dados apreendidas na Farmácia B... com a aplicação das queries Versão 5C (Sifarma 2000), estando prevista a confrontação da informação recolhida com a informação remetida pelo Centro de Conferência de Facturas da Administração Central de Sistemas de Saúde, I.P. e a realização do respectivo Auto de Análise.

No entanto, apesar da referida necessidade da perícia financeira-contabilística às transacções suspeitas, essa perícia nunca foi feita, não permitindo a concretização das suspeitas, nem um apuramento fundamentado e suficientemente detalhado do ocorrido, com referência a circunstâncias de tempo, lugar e modo da actuação dos intervenientes.

O art.º 151.º do Código de Processo Penal preceitua que “a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.

O documento registado a fls. 177 a 200 refere “pesquisas/consultas informáticas” efectuadas pelo Sector de Telecomunicações e Informática da Polícia Judiciária, às bases de dados do programa Sifarma 2000 utilizado na farmácia (apreendidas na busca), mas dos autos não consta qualquer relatório elaborado por esta unidade orgânica da Polícia Judiciária com as conclusões relativas aos factos apurados.

O referido documento, elaborado pelo Senhor Inspector BB, apresenta conclusões baseadas em listagens do Histórico de Vendas sem qualquer referência a datas, receitas e utentes.

Além disso, os dados relativos a vendas suspensas, vendas suspensas regularizadas, devoluções e regularizações de crédito da farmácia não foram registados no processo, ficando por esclarecer a dimensão dessas vendas e os montantes envolvidos, como se nos afigurou quando da abertura dos ficheiros constantes do CD junto a fl. 199.

Sobre a prática comum das vendas suspensas e dos problemas e dificuldades que provocam, nomeadamente erros de facturação e de contabilidade, pode ler-se a sentença do Julgado de Paz do Seixal, de 09-03-2016, com texto integral em www.dgsi.pt, proferida no proc.º 426/2015-JP.

Os erros são conaturais a toda a actividade humana. Até os programas informáticos mais avançados não excluem a possibilidade de erros, nomeadamente erros na concepção do programa ou sistema informático, erros de programação, erros de processamento ou de introdução de dados.

Por isso, das discrepâncias das quantidades de fármacos supostamente registadas não pode aferir-se com exactidão, sem mais, a quantidade de embalagens vendidas, nem o dolo ou intenção criminosa dos arguidos.

No relatório do Inspector BB, registado em 02-12-2020, concluiu-se não existirem indícios suficientes de burla ao SNS no que toca aos 635 registos no E-Factura efectuados na Farmácia B..., participados a fls. 67 a 79. O mesmo relatório afirma que em todos os anos analisados, de 2015 a 2017, os valores das notas de crédito anulam, quase por completo, o valor das facturas emitidas.

Pela análise efectuada, bem como pelo depoimento prestado pela farmacêutica da Farmácia B..., transcrito a fls. 262 a 264, o referido Inspector concluiu que o intuito daqueles registos de E-Factura, na Farmácia B..., não foi o de burlar o Estado, admitindo a possibilidade de resultarem de erro acidental.

Erros similares podem ter originado as diferenças de valor eventualmente existentes ao longo de um período de 66 meses.

As listagens reproduzidas na acusação omitem por completo qualquer referência a notas de crédito, o que permite questionar a integridade e fiabilidade da informação exibida por aqueles quadros.

Além disso, os elementos recolhidos na busca efectuada à Farmácia B... e descritos a fls. 156 a 160, nomeadamente os resultados da contagem física dos principais medicamentos existentes naquele estabelecimento, bem como os documentos do Apenso I (nomeadamente o de fls.151 a 153), não se mostram correlacionados de forma a permitir formular um juízo indiciário, apesar de ter sido esse o propósito daquela busca.

Sublinhamos que os elementos recolhidos e as conclusões apresentadas pela acusação não se mostram suportadas por perícia contabilístico-financeira, nem por perícia informática feita por técnico habilitado com conhecimento das funções e características do programa Sifarma 2000.

Em conclusão, a prova documental apresentada na acusação não permite considerar suficientemente indiciados os factos constitutivos do crime de burla imputado aos arguidos.

As testemunhas arroladas na acusação também não possuem qualquer conhecimento directo da alegada conduta dos arguidos.

A prova produzida na instrução, resultante das declarações do arguido e de duas testemunhas, que se nos afiguraram sinceras e merecedoras de credibilidade, permitem considerar mais provável a absolvição dos arguidos do que a hipótese alternativa da sua condenação caso fossem submetidos a julgamento.

Em conclusão, os indícios recolhidos são insuficientes para justificar o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento.

Pelo exposto e decidindo, nos termos dos artigos 307.º, n.º 1, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não pronuncio os arguidos AA e A..., Lda., determinando o arquivamento dos autos.

Não há lugar a tributação.

Notifique.»


*

Apreciando.

Suficiência da narração dos factos constantes da acusação

Critica o recorrente a decisão do Senhor Juiz de Instrução ao considerar que a acusação não contém a narração dos factos necessários ao preenchimento dos elementos do tipo de burla qualificada imputada aos arguidos, considerando que ali se encontram descritos os necessários ao cumprimento do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal relativamente ao referido tipo de crime.

Segundo o despacho de não pronúncia, a acusação não concretiza as acções praticadas pelo arguido ou por outras pessoas na liderança da sociedade arguida, não especifica as vendas simuladas e sem identificação das receitas, sendo omissa quanto à data de recebimento das quantias alegadamente pagas pelo Estado.

Como tal, considerou que a narração dos factos descritos não permitia concluir pela verificação de erro ou engano sobre factos, através de astúcia ou meio ardiloso, a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo e que o erro ou engano tenham determinado outro à prática de actos que lhe causaram, ou a terceiros, prejuízo patrimonial.

Discordamos dessa avaliação e acompanhamos o recorrente quando considera que os factos descritos na acusação são suficientes para o enquadramento jurídico pretendido.

Nos arts. 1.º a 6.º são descritos os procedimentos, de que o 2.º arguido, por si em representação da sociedade 1.ª arguida (como se descreve ao longo da acusação e aqui, doravante, nos dispensamos de repetir), tinha conhecimento, para se obter comparticipação do Estado na aquisição de medicamentos e ainda que o 2.º arguido decidiu aproveitar as situações em que as receitas tinham prescrição de vários medicamentos e só alguns eram aviados para ficcionar a venda dos que não foram aviados, apresentando a receita por inteiro para comparticipação, de modo a poder possibilitar a sua facturação e a comparticipação pelo SNS/ARS, quer quanto aos medicamentos vendidos quer quanto aos não aviados.

Nos arts. 7.º a 12.º descreve-se que o arguido concretizou tal desígnio entre 01-03-2013 e 31-08-2018 relativamente a 1327 medicamentos, discriminados na tabela do art. 11.º, tendo sido facturadas ao Estado/SNS-ARS Norte IPI comparticipações de 216 538 embalagens de medicamentos no montante total de € 2 013 654,82, mas apenas foram registadas vendas de 211 074 embalagens susceptíveis de serem comparticipadas, no valor global de € 1 966 011,93, obtendo um ganho indevido, que foi pago, de € 47 642,89, causando um prejuízo de igual valor.

Na tabela do art. 11.º são descritos os medicamentos, embalagens e valores envolvidos.

Salvo o devido respeito, estão descritos os elementos essenciais para configuração do crime imputado, sem prejuízo de ser ainda possível uma especificação mais minuciosa, dado constarem dos autos elementos probatórios que podem ser cruzados para o efeito, como se pode observar dos CD’s de fls. 19, 152, 168, 172 e 199 dos autos.

Na verdade, na acusação está delimitado um período temporal concreto (66 meses, entre 01-03-2013 e 31-08-2018), o número de embalagens envolvidas, o tipo de medicamento e dosagens em causa, o respectivo valor e o diferencial relativamente a cada um deles entre a realidade das vendas e a facturação apresentada ao SNS-ARS Norte IP e paga, tudo conforme tabela inserida na acusação e apresentada na análise de fls. 177 a 198.

O acto de apresentar receituário para facturação da comparticipação pelo SNS-ARS Norte, IP relativamente a receitas verdadeiras, mas apenas parcialmente aviadas integra, inequivocamente, uma conduta astuciosa, pela simplicidade do método – nem sempre a mise-en-scène tem de ser espectacular e por vezes o aproveitamento de situações parcialmente reais é muito mais frutífero – e pela credibilidade intrínseca às receitas verdadeiras, que facilmente criam no destinatário um engano sobre a realidade.

Na acusação vem ainda descrito que o 2.º arguido pretendeu criar este engano para obter o reembolso indevido que efectivamente recebeu, provocando prejuízo de igual monta ao Estado, agindo de forma livre, consciente e deliberada, no quadro de uma mesma resolução criminosa, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Visto o texto do art. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do CPPenal, segundo o qual a acusação contém, sob pena de nulidade, «b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e «d) A indicação das disposições legais aplicáveis»[2], ainda que a acusação dos autos pudesse ser aprimorada (o que sempre pode ser realizado em fase de julgamento), nenhum facto está em falta para a perfectibilização do crime imputado na que foi deduzida nestes autos.

Mostra-se, pois, procedente esta parcela do recurso.


*

Suficiência da prova indiciária para a decisão de acusar e pronunciar os arguidos.

O recorrente insurge-se ainda contra a posição do Senhor Juiz de Instrução quando o mesmo considerou que os elementos probatórios que constam dos autos não eram suficientes para a decisão de acusar e pronunciar.

Vejamos.

A instrução é uma fase facultativa do processo penal que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286.º do CPPenal.

Determina o n.º 1 do art. 308.º do CPPenal que «[s]e, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.»

O sentido da expressão indícios suficientes na fase de instrução é o mesmo que resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 283.º do CPPenal para a decisão de acusar, aqui se determinando que «[s]e durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele», devendo considerar-se que existem «suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.»

A probabilidade razoável de que se fala neste preceito não equivale à certeza para além da dúvida razoável balizada pelo princípio in dubio pro reo exigida na apreciação da prova em julgamento[3].

Tão-pouco atinge o grau de exigência imposto pela verificação de fortes indícios de crime para efeitos de aplicação medidas de coacção mais gravosas (cf. arts. 200.º a 201.º do CPPenal).

Para esta graduação não é irrelevante a consideração de que «[a]s provas obtidas nas fases do inquérito e da instrução não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual quanto à prossecução da causa para a fase de julgamento.»[4]

É por isso que o grau de probabilidade razoável «de condenação mencionado nos arts. 283º nº 2 e 308º nº 2 do CPP, tem de ser interpretado como «uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja (…) uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».

Vejamos se em concreto a solução tomada pelo Tribunal a quo cumpriu tal exigência.

Para tanto, importa, desde logo, verificar os fundamentos probatórios da acusação para percebermos se, por si só, dão garantia da probabilidade razoável de aplicação de uma pena ou uma medida de segurança ao arguido caso sejam submetidos a julgamento e, depois, se, verificado este pressuposto, a prova produzida em fase de instrução fragilizou aquela exigência de tal forma que diminuiu o grau de certeza inicialmente indiciado para níveis abaixo da probabilidade razoável.

O despacho de acusação indica os seguintes meios de prova:

«--Por Documentos:

- Suporte digital (CD) junto a fls. 19, contendo informação referente à “Farmácia B...”;

- Suporte digital (CD) junto a fls. 152, contendo informação sobre os produtos/medicamentos faturados pela “Farmácia B...” ao SNS e informação sobre todas as receitas devolvidas, no período compreendido entre janeiro de 2012 e agosto de 2018;

- Suporte digital (CD) junto a fls. 167, contendo informação dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde;

- Suporte digital (CD) junto a fls. 172, contendo dados contabilísticos da base de dados da farmácia B...;

- Relatório da UEI (Unidade de Exploração e Informação) de fls. 20 a 33 e relatório/análise de fls. 107 a 115;

- Documentos de identificação de utente de fls. 37 a 64;

- Certidão permanente da sociedade “A..., Ldª” de fls. 322 a 328;

- Auto de busca e apreensão de fls. 156 a 160;

- Auto de análise [referente ao confronto entre os medicamentos efetivamente vendidos e o que foi faturado ao SNS no período compreendido entre 1 de março de 2013 e 31 de agosto de 2018] de fls. 177 a 199 e respetivo suporte digital (CD) junto a fls. 199;

- Registo de venda e fatura de fls. 265;

- Documentos constantes de fls. 2 a 156 do Apenso I [documentação apreendida na busca efetuada às instalações da “Farmácia B...”] e suportes digitais [3 DVD´s] juntos ao Apenso I; e,

- Certificado de registo criminal de fls. 301 e 303.

- Por testemunhas:

1. Inspetor da Polícia Judiciária – Diretoria do Norte, BB;

2. CC, id. a fls. 262.»

Sobre a questão que ora se analisa, invoca o recorrente o seguinte:

«Foram solicitadas ao Centro de Controlo e Monotorização do Centro de Conferência de Facturas serviços Partilhados do Ministério da Saúde ( CCM-SNS) listagens referentes ao total de embalagens, por medicamento, faturadas pela Farmácia B... ao SNS para comparticipação, nos anos de 2012 a Agosto de 2018.

E da busca efectuada a essa Farmácia pelo Setor de Telecomunicações e Informática da PJ foram recolhidos dados do Sifarma2000 (inserados pelos funcionários da referida farmácia) referentes à faturação a entidades, movimentação de stock, histórico de vendas e encomendas, referentes ao periodo de Março de 2013 a Novembro de 2018, verificando-se vendas inferiores de medicamentos relativamente ao número que foi facturado e pago pelo SNS.

Do resultado desta análise confirmou o score de risco que tinha sido atribuído à Farmácia B..., pois que, apesar de esta farmácia ter um valor de PVP e SNS abaixo da media nacional, a taxa de comparticipação média era ligeiramente superior à media nacional, conforme consta a fls. 108 a 110.

Assim, os factos estão suficientemente indiciados com base dos elementos de prova indicados na acusação: a prova documental e testemunhal, analisados e valorados de acordo com as regras de experiência comum e da lógica.

Vejamos as explicações constantes do RAI para esta diferença, a saber:

- que cada facturação de MSRM apresentada pela Farmácia não equivale ao seu pagamento;

- que as divergências entre o valor das vendas de MSRC e o valor de facturação de comparticipações de MSRM não se deveu a dolo,

- -que não foi considerado na pericia as anulações de facturação, resultando, assim, que a diferença não é de 47.642, 89 mas sim de € 30.785,

- que não se considerou o efeito da acção do Estado/CCF, que pode ter dado azo a emitir uma nova factura referente à comparticipação do mesmo medicamento;

- não considerou a margem e probabilidade de erro de processamento face à implementação de um novo Sistema informático.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, dado o lapso de tempo em apreço, as regras de experiência comum, o facto de as divergências verificadas não apontarem para um prejuízo económicos para os arguidos mas sim para o Estado, entendemos que as dúvidas supra mencionadas não afastam a grande possibilidade de, em sede de julgamento, os arguidos serem condenados pelo crime em apreço.

Repare-se que para o apuramento das diferenças de valores quanto às vendas efectuadas e aos pagamentos de medicamentos comparticipados, foram deduzidos todos os valores respeitantes às receitas devolvidas pelo SNS e portanto refaturadas (nas receitas refacturadas o sistema não produz número de venda) conforme explicado no relatório de fls. 118, auto de gravação de fls. 152 e auto de análise de fls. 177

As diferenças dectadas foram apenas referentes a facturas que foram conferidas e pagas, referentes a comparticipações de medicamentos de beneficiários que não tinham outro subsistema de saúde que não o SNS, tendo sido apenas consideradas as vendas normais ou suspensas regularizadas ( só estas vendas conseguem originar a fatura a enntidades ( conforme consta a fls 180).

Assim, dado que só as vendas tipo N e Z podem originar comparticipação, independetemente terem sido remetidas ou não ao SNS para pagamento da comparticipação respectivas, as quantidades totais destes medicamentos foram considerados na análise, por excesso, em beneficio dos arguidos, conforme resulta da explicação de fls. 179

Salvo o devido respeito, não se pode explicar a diferença entre as vendas e as comparticipações no periodo de 5 anos ( de 2013 a 2015), pela falta de conhecimento e dominio do sistema informático usado na Farmácia B... e a qualquer outro tipo de negligência.

Para apreciar a existência do dolo, importa analisar e valor os indícios reconhecidos de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e da normalidade das coisas.

Assim, importa não esquecer de que o arguido AA é o responsável e director técnico da Farmácia B..., propriedade da sociedade A..., Lda, de que é sócio e gerente, desde 2008, conforme resulta da certidão de fls. 322 e seguintes.

O dolo da actuação deste demonstra-se pela repetição e padrão da conduta, por si executada ou ordenada, no interesse e representação da sociedade acima mencionada, sempre geradora de um lucro ilegítimo para esta arguida.

E, salvo o devido respeito, os argumentos para concluir pela falta de indícios no douto despacho recorrido não merecem provimento.

A analise efectuada nos autos não é uma perícia regulamentada de acordo com o CPP, a mesma não exigia uma a subsquente realização de não perícia económico- financeira e a conclusão Inspector da PJ relativamente ao uso do NIB da contribuinte DD não se aplica para os restantes factos apurados, conforme o mesmo referiu a fls. 278 dos autos: " Apesar do montante apurado de burla ao SNS nos presentes autos ( ) tal não retira a culpa dos agentes nos crimes de burla, falsificação de documentos e falsidade informática uma vez que bem sabiam que não podiam faturar medicamentos ao SNS que efectivamente não venderam tal como consta do auto de análise de fls. 177 a 199 do I Volume, mesmo que para tal tenham aviado medicamentos de marca ou dosagem diferente ( o que não se pode confirmer sequer que efectivamente tenha acontecido).

A análise e comparação dos dados informáticos retirados do sistema Sifarma 2000 com os pedidos de comparticipação ao SNS de MSRC, não é uma pericia regulamentada de acordo com o disposto no art. 151 do CPP, pois não se exige conhecimentos técnicos, científicos ou artísticas para esse efeito.

Repare-se que este análise de dados informáticos é idêntica à analise de documentos contabilísticos que é efectuada no âmbito das inspecções tributárias ou da Segurança Social.

Este tipo de recolha de prova que é efectuada para investigar crimes de abuso de confiança fiscal ou à Segurança Social, de burla tributária ou à Seguança social ou fraude fiscal não é considerada como perícia nem exige pericia contabilística financeira dos investigados.

No caso em apreço, não se percebe qual a necessidade de efectuar uma perícia financeira-contabilistica às transações suspeitas, pois o objecto dos autos é precisamente o ter sido pedido o reeembolso de comparticipações de MSRC que não foram vendidos pela Farmácia B... mas que, apesar disso foram pagos pelo SNS.

Acresce que o apuramento dos valores da burla ao SNS, ao contrário do que foi considerado pelo MMº Juiz a quo, considerou, conforme supra referido, as vendas suspensas regularizadas pois só estas possibilitam a factura a entidades.

Deste modo, o despacho recorrido violou o dosposto no art. 308°, n° 1 do CPP e art. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a) do Cód. Penal.»

Concordamos totalmente com esta análise, coerente com a documentação que consta dos autos e com a respectiva análise, conforme enunciado pelo recorrente e que aqui nos escusamos de repetir.

O despacho recorrido não faz uma análise pormenorizada dos elementos probatórios existentes nos autos, acolhendo simplesmente a visão desresponsabilizante dos arguidos numa perspectiva hipotética de erros de análise, que de modo algum infirma a validade da imputação realizada na acusação com base nos consistentes elementos de prova apontados e sua conjugação face às regras da experiência comum, apoiando-se até em factos que não foram objecto de acusação nestes autos e cuja lógica é completamente diferente da dinâmica dos factos constantes da acusação.

E o argumento de que não existe perícia contabilístico-financeira ou perícia informática por técnico habilitado com conhecimento das funções e características do programa Sifarma 2000 não pode sustentar a decisão tomada. Se o Senhor Juiz de Instrução entendia que eram necessárias essas ferramentas probatórias para absorver na sua totalidade a correlação dos números apurados deveria ter determinado a sua realização ao invés de determinar a não pronúncia dos arguidos (art. 291.º, n.º 1, do CPPenal).

Neste despacho, o Senhor Juiz de Instrução desvaloriza todo o manancial documental que consta dos autos, e bem assim a prova testemunhal indicada na acusação, que considera não possuir qualquer conhecimento directo da alegada conduta dos arguidos, valorizando a prova produzida na instrução, concretamente as declarações prestadas pelo arguido e as declarações de duas testemunhas, justificando «que se nos afiguram sinceras e merecedoras de credibilidade», considerando que tornaram mais provável, caso fossem submetidos a julgamento, a absolvição dos arguidos do que a sua condenação.

Neste trecho da sua decisão o Tribunal a quo introduz na análise que realiza aos elementos probatórios existentes uma avaliação, claramente, dependente da imediação e da oralidade, de que não beneficiaram os elementos de prova testemunhal indicados na acusação (embora uma testemunha seja comum) e que, por isso mesmo, não pode ser admitida nesses termos.

O critério para avaliar no prato da balança a suficiência de indícios tem de ser o mesmo relativamente a todos os elementos probatórios. Por isso, não pode o Senhor Juiz de Instrução dizer que o arguido foi sincero e credível, mas apenas, por exemplo, que o conteúdo das suas declarações se revela coerente face às regras da experiência ou é corroborado por prova documental.

Repare-se que a testemunha da acusação BB, Inspector da PJ que teve a seu cargo a investigação, não prestou declarações nos autos, mostrando-se, por isso, impossível realizar qualquer comparação entre as declarações do arguido em instrução e o eventual conteúdo de depoimento que esta testemunha pudesse realizar.

Para efeito de prolação da decisão instrutória, não é possível atribuir a um meio de prova toda a carga valorativa resultante da imediação e da oralidade e não o fazer, por impossibilidade prática, relativamente a outros meios de prova.

A prova tem de ser toda avaliada de acordo com os mesmos critérios. Assim, nesta fase, onde a produção de prova é, por norma, parcial, não pode o JIC avaliar parte da prova de acordo com a imediação e a oralidade, porque a produziu nessa fase, e a restante apenas com base na avaliação objectiva da mesma, em resultado do que ficou consignado nos autos de inquirição respectivos, ou, como ocorreu no caso concreto, nem isso fazer dada a ausência de depoimento da testemunha BB.

Nesta sequência dir-se-á ainda que o uso que em concreto o Tribunal a quo efectuou do princípio in dubio pro reo (por invocação da presunção de inocência) se mostra desfasado do momento processual onde é aplicado.

Como proficuamente se explica no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2016[5], «[e]sta regra, segundo a qual na dúvida se deve decidir a favor do arguido, não é um critério de valoração da culpabilidade mas sim de valoração da prova incriminatória. O princípio in dubio pro reo define um critério regulador para a formação da convicção do tribunal de considerar provado um facto desfavorável ao arguido, ao passo que a presunção de inocência significa que só há crime com factos provados suficientes e definitivos. Suficiência do indício e prova do facto não são a mesma coisa. Um indício é um princípio de demonstração de veracidade, um começo de prova, um sinal de que o facto pode vir a provar-se como verdadeiro se submetido ao julgamento contraditório. Mas os indícios só por si são irrelevantes para levar alguém a julgamento. É necessário que o princípio de prova que deles resulte seja de tal forma importante que preencha o critério da possibilidade razoável de condenação. Contudo, estamos ainda no patamar de probabilidade de um resultado futuro, que será a prova do facto, através da demonstração certa, plena, segura, total, fora de dúvida relevante da sua veracidade.»

Ora, a probabilidade razoável de condenação permite ainda, quanto a nós, uma margem de dúvida que um juízo condenatório não admite, pois admite-a de forma muito restrita espelhada na expressão para além da dúvida razoável.

Daí que, a admitir-se o recurso ao princípio in dubio pro reo nesta fase de instrução, o mesmo deva ser usado com a consciência de que o grau de dúvida que permite decidir pela pronúncia do arguido é necessariamente diferente daquele que ocorre em fase de julgamento, devendo aceitar-se que seja mais acentuado do que aquele que determina a prova do facto em julgamento, sob pena de estarmos a transferir para a fase de instrução as exigências subagentes à condenação, mas deixando de fora todo o contexto de prova que permite exigir tal rigor.

Com efeito, como bem se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que se debruça sobre as várias teorias desenvolvidas a propósito do conceito de indícios suficientes para efeitos de prolação de despacho de pronúncia, rejeitando, com o que concordamos, posições minimalistas ou, no extremo oposto, a necessidade de verificação de possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação, «[n]o artigo 301º nº 1 é clara a diferença qualitativa entre o valor indiciário da prova em instrução e o valor da certeza exigido em julgamento. A lei ao estatuir que o juiz deve recusar diligências de prova que visem a demonstração da certeza do facto para além da possibilidade indiciária própria da fase instrutória, significa que para a formação da convicção sobre a culpabilidade no momento da pronúncia não se exige o mesmo grau de certeza e de isenção de dúvida que é necessária para o julgamento. O que mina as bases para afirmar que a submissão a julgamento não é compatível com uma indiciação dos factos com menor grau de probabilidade de veracidade do que a necessária para a condenação.

(…)

A avaliação da prova pelo Ministério Público ou pelo juiz de instrução é normalmente feita de forma indirecta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração, sem contraditório. As declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas estão reproduzidos em textos escritos, as mais das vezes de forma sumária e em discurso indirecto. Não há um sistema de registo áudio ou vídeo que afaste por completo uma certa margem de interpretação do depoimento oral por parte de quem define os termos da sua transcrição para texto escrito. Outras vezes os depoimentos não são mais do que uma lacónica confirmação dos autos de notícia ou de depoimentos anteriores. As testemunhas quase nunca são postas em confronto umas com as outras. São raríssimas em inquérito as acareações ou reinquirições para sanar divergências ou esclarecer imprecisões. As testemunhas depõem em momentos diferentes numa esquadra de polícia ou numa sala do tribunal, sem qualquer tipo de solenidade, nem sempre perante os mesmos inquiridores e às vezes por agentes policiais ou oficiais de justiça que não têm preparação técnica nem experiência. Não podemos ignorar esta realidade e fazer de conta que ela não existe. É assim que se passam as coisas na esmagadora maioria dos inquéritos e é a essa realidade que temos de aplicar a lei e não a uma outra que podia ou devia existir.

Em julgamento a recolha e exame da prova processa-se de maneira diferente. O acto é público e solene. O juramento e a advertência das consequências do falso testemunho são formalidades que se expressam em palavras com mais significado. Os depoentes estão perante o juiz, o procurador e os advogados, olhos nos olhos. As declarações são orais e concentradas no mesmo acto, decorrem perante os mesmos interlocutores, que podem de forma imediata resolver dúvidas, sanar contradições, interagir de forma dinâmica com os depoentes. O juiz tem os depoentes todos presentes e pode chamá-los a esclarecer algum aspecto ou acareá-los para solucionar contradições. Pode chamar outras testemunhas ou produzir outras provas. Os depoimentos anteriores podem ser lidos. Podem exibir-se documentos. As mentiras podem ser desmascaradas na presença de quem as disse.

Tudo isso faz com que a probabilidade de descobrir a verdade do facto e decidir bem a causa seja muito maior no julgamento do que no momento de avaliação dos indícios em inquérito ou instrução. E isso é que dá sentido à regra do artigo 355º nº 1, que proíbe a valoração de provas não produzidas ou analisadas em audiência, e às limitações impostas pelos artigos 356º e 357º para a reprodução ou leitura de provas recolhidas nas fases anteriores.»

Questionámos inicialmente se os fundamentos probatórios da acusação, por si só, davam garantia da probabilidade razoável de aplicação de uma pena ou uma medida de segurança ao arguido caso fosse submetido a julgamento.

Em face do conjunto da prova documental indicada só podemos concluir que essa probabilidade se revela de forma muito acentuada, sendo certo que a documentação junta em fase de instrução, e que já constava dos autos, não permitem rebater os indícios enunciados e que conduziram à dedução de acusação, procurando antes sobrepor-se a critérios já tomados em consideração.

Veja-se, desde logo, que o quadro apresentado na acusação enuncia os medicamentos facturados ao SNS que foram efectivamente pagos, como se expõe nos autos de análise de fls. 177 a 198, não havendo, por isso, que ter em consideração facturação devolvida, por já se encontrar excluída à partida da equação enunciada na acusação. Nesta perspectiva, o RAI e a documentação apresentada perdem pertinência, sendo certo que esta também não infirmava, por ser meramente genérica, a factualidade constante da listagem inserida na acusação.

A documentação de suporte a que se fez referência é o bastante para sustentar a acusação e a probabilidade razoável de aos arguidos ser aplicada, por força deles, uma pena, sem prejuízo de, caso assim se entenda, ser essa prova consolidada em fase de julgamento.

Como tal, a decisão de não pronúncia não pode manter-se, devendo ser substituída por outra que determine o prosseguimento do processo para julgamento, pronunciando os arguidos pelos factos e qualificação jurídica constantes da acusação.

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho de não pronúncia dos arguidos AA e “A..., Lda.” e determinar a sua substituição por outro que pronuncie os arguidos nos exactos termos da acusação.

Sem tributação.


Notifique.





Porto, 07 de Fevereiro de 2024

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio
Raul Esteves
Paula Natércia Rocha
______________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Realce em itálico da relatora.
[3] Cf. acórdão do TRL de 22-09-2021, relatado por Cristina Almeida e Sousa no âmbito do Proc. n.º 844/20.7SDLSB.L1-3, acessível in www.dgsi.pt.
[4] Cf. aresto identificado na nota antecedente.
[5] Relatado por Manuel Gomes no âmbito do Proc. n.º 866/14.7PDVNG.P1, acessível in www.dgsi.pt.