Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
162/23.9KRPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE PODER
CRIME DE PREVARICAÇÃO
CRIME DE DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA E PREVARICAÇÃO
NATUREZA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP20240228162/23.9KRPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo referido art.º 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objetivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, máxime judiciais.
II – A incriminação em causa não inclui a fase não jurisdicional do processo de contraordenação. No crime de denegação de justiça e prevaricação, o sujeito ativo [funcionário] terá de atuar no exercício dos deveres do cargo no âmbito de inquérito criminal ou de processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, na fase jurisdicional, conclusão que deriva dos elementos histórico, literal, sistemático e teleológico.
III - Por isso, cometem um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP, e não um crime de denegação de justiça ou de prevaricação, os arguidos, ambos militares da GNR, que, violando os seus deveres funcionais, omitem deliberadamente a prática de um ato a que estavam obrigados, no exercício das suas funções (em concreto, o levantamento do auto de contraordenação), com a intenção de beneficiar terceiros (em concreto, visando evitar que determinadas pessoas fossem condenadas no pagamento de uma coima).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 162/23.9KRPRT-A.P1

Recurso Penal

Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2

(Horácio Correia Pinto; Maria dos Prazeres Silva)


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o nº 162/23.9KRPRT-A, corre termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, foram pronunciados os arguidos AA e BB, para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, pelos factos constantes da acusação pública deduzida nos autos, suscetíveis de configurar a prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º, com referência ao disposto no art.º 386.º n.º 1 al. a) do Código Penal, no art.º 170.º n.º 1 e 3 do Código da Estrada, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 10.º, 11.º n.º 1, 13.º al. b), d), f) e j) 14.º al. a), b) e i) do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03, nos artigos 2.º, 5.º e 6.º do Código Deontológico do Serviço Policial divulgado por decisão contida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002 de 07/02 e nos artigos 7.º, 8.º, n.º 1 e 2 al. b), c), d), e), f) e j), 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, aprovado pela Lei n.º 145/99 de 01/09 com as alterações dadas pela Lei n.º 66/2014, de 28/08, em concurso efetivo com um crime de falsificação de documento agravado, p. e p. pelo art.º 256.º n.º 1 al. d), n.º 3 e 4 do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 369.º n.º 1 e 374.º n.º 1 do Código Civil, mostrando-se, ainda, os arguidos incursos na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no art.º 66.º n.º 1, alíneas a) a c) do Código Penal.

Inconformado com a referida decisão instrutória, dela interpôs recurso o Ministério Público, restrito a matéria de direito, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

«1. Ao ter pronunciado os arguidos enquanto militares da GNR em exercício de funções, que por cunha e amiguismo não levantaram um auto de notícia contraordenacional, pela prática, não do crime de que foram nessa parte acusados, mas de um crime de abuso de poder (art. 382.º do Código Penal).

2. Ao não os ter então pronunciado pela prática do crime de denegação de justiça e prevaricação (art.º 369.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal), por concluir pela atipicidade dessa conduta, na fase administrativa do processo contraordenacional, o Tribunal a quo errou, salvo o devido respeito, na aplicação do Direito.

3. O crime de denegação de justiça e prevaricação, inserido no Capítulo II – Dos Crimes contra a realização da justiça – do Título V – Dos crimes contra o Estado -, tutela a realização da justiça, encarada num sentido amplo e no qual cabe a fase administrativa do processo contraordenacional e, reflexamente, tutela ainda os interesses dos cidadãos afetados.

4. É um crime formal, exigindo para a imputação objetiva uma tríplice vinculação funcional: orgânica (crime específico ou próprio); material (no mínimo, com a prática de ato contrário aos deveres do cargo); adjetiva (em inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar).

5. A opção pelo substantivo “funcionário” opera uma remissão para a definição de funcionário (art. 386.º do Código Penal) sem prejuízo da evidente redução que o caso concreto impuser em função da competência para o ato a praticar ou do próprio tipo.

Interpretação contrária leva, desnecessariamente, à redução típica que fez vencimento.

6. O leque de processos descritos no tipo é amplo, propositadamente, com e sem fase jurisdicional obrigatória ou eventual. Bastaria ao legislador, se a intenção fosse a que fez vencimento, ter indicado clara e expressamente que o objetivo era a restrição aos processos contenciosos ou jurisdicionais, como já foi historicamente o caso e como o faz noutras incriminações.

7. Devendo presumir-se que o legislador soube exprimir-se adequadamente (art. 9.º do Código Civil), na redação não se optou por uma técnica que não criaria dúvidas ao apenas indicar “processo jurisdicional”, sendo notória a evocação “por contra-ordenação ou disciplinar”, não como um subtipo do processo jurisdicional, mas como uma variante da noção de processo recebida.

8. A lei convoca não só a ideia da prática ordenada de atos e de formalidades (o processo), mas também a sua condução por uma autoridade e a possibilidade de controlo e/ou recurso jurisdicional, antecipando o perigo para a realização da justiça que uma fase ainda não jurisdicional, mas em que imperam poderes de um lado e um desequilíbrio para o visado, poderá consolidar.

9. O processo contraordenacional é conduzido por uma autoridade administrativa, e o auto pode ser levantado, como no caso seria, por uma autoridade policial. O recurso não está sujeito a formalidades especiais e nem sequer exige a constituição de advogado (art. 59.º do RGCO), pelo que a conduta de quem conduzir o processo na fase administrativa, não pode ser desligada dos motivos desta incriminação em especial com a ideia de justiça em sentido amplo.

10. Tanto o direito contraordenacional quanto o direito disciplinar integram uma categoria mais ampla do direito sancionatório de natureza pública, aplicando-se os princípios aplicáveis em matéria penal, ainda que não automaticamente, por se não deixar de reconhecer os possíveis efeitos perniciosos, com ressonância constitucional, do processo contraordenacional.

11. Baseando-se o crime no art. 416.º do Código Penal de 1982, verifica-se que neste crime também não havia qualquer restrição do âmbito subjetivo imperando a ideia base que é impedir que em qualquer um dos graus de intervenção possível possa um funcionário, quer seja o último decisor quer não seja, se negar “a administrar a justiça ou a aplicar o direito”.

12. No caso, a infração prevista pela al. f) do n.º 1 do art. 49.º do Código da Estrada é um importante instrumento de regulação social. No caso dos autos, quem sabe até se o estacionamento não teve influência no próprio acidente que motivou a chamada da GNR ao local em primeiro lugar, e a infração já tinha sido verificada como anunciada estava a intenção de levantar o auto, só não se prosseguindo por fatores arbitrários.

13. Para o Recorrente, devia ter vingado a interpretação do art. 369.º, n.º 1 e 2 do Código Penal exposta no recurso, e não aquela que obteve vencimento, a qual é contra legem, impondo-se concluir o processo de contraordenação na fase administrativa como integrando o tipo penal.»


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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.

O arguido AA apresentou resposta ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão instrutória nos seus precisos moldes, com os fundamentos constantes do articulado juntos autos e cujo teor aqui damos por reproduzido.


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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, reiterando os fundamentos já aduzidos pelo Ministério Público/recorrente na motivação do recurso.

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, nº 2, do Código do Processo Penal, não foi apresentada resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

O presente recurso versa apenas matéria de direito e limita-se à questão de determinar se os factos constantes dos despachos de acusação e de pronúncia consubstanciam a prática pelos arguidos de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, como defende o Ministério Público, na acusação pública e no recurso, ou antes um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do mesmo diploma legal, como foi sustentado no despacho de pronúncia.


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Delimitado o thema decidendum, importa reproduzir o teor do despacho de pronúncia, objeto do presente recurso, proferido pela Sra. Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, na sequência do debate instrutório finalizado em 12/10/2023:

«DESPACHO DE PRONÚNCIA

Declaro encerrada a instrução.


***

I – Relatório

Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra:

AA, casado, militar da GNR, nascido a ../../1992, natural da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, filho de CC e de DD, com domicílio profissional no Posto Territorial ...;

e

BB, solteiro, militar da GNR, nascido a ../../1995, natural da freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, filho de EE e de FF, com domicílio profissional no Posto Territorial ... e residente na Rua ..., ...;

Imputando-lhes a prática, em co-autoria material e em concurso efetivo, de um crime de denegação de justiça, na forma consumada, p. e p. pelos art.º 369.º n.º 1 e n.º 2, com referência aos art.º 14.º al. i) do Estatuto dos Militares da GNR aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03 e ainda o art.º 170.º n.º 1 e n.º 3 do Código da Estrada, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, na forma consumada, p. e p. pelos art.º 382.º n.º 1, com referência aos art.º 386.º n.º 1 al. a) (al. d) na redação dada pela Lei n.º 94/2021 de 21 de Dezembro) do Código Penal, bem como os art.º 2.º, 3.º, 4.º, 10.º, 11.º n.º 1 e 13.º al. b), d), f), 14.º al. a), b) e i) do Estatuto dos Militares da GNR aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03 e ainda os art.º 1.º, 2.º, 5.º e 6.º do Código Deontológico do Serviço Policial, divulgado por decisão contida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002 de 7 de Fevereiro de 2002 e os art.º 7.º, 8.º al. b), c), d), e) e f), 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana aprovado pela Lei n.º 145/99 de 1 de Setembro, com as alterações dadas pela Lei n.º 66/2014 de 28/08 e os art.º 242.º, n.º 1 e 248.º do Código de Processo Penal; de um crime de falsificação de documento agravado, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 256.º n.º 1, al. d), n.º 3 e 5 do Código Penal, por referência ao art.º 386.º do Código Civil e na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no art.º 66.º n.º 1 al. a) a c) do Código Penal.


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Por discordar do teor da acusação, o arguido AA requereu a abertura de instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal, negando a prática dos factos que lhe são imputados, alegando, que quando recebeu a chamada telefónica do Cabo GG ficou constrangido e nunca acedeu ao pedido, apenas o “despachou”; que foi o arguido BB quem liderou e efetuou todo o auto de participação de acidente de viação e o croqui e que nunca lhe transmitiu o teor do telefonema; que apenas por lapso do arguido BB ficou a constar na participação do sinistro “berma” e não “passeio”, já que da mesma ficaram a constar outros factos suscetíveis de integrar a prática de contra-ordenações; que nunca atuou com intenção de beneficiar alguém e que a acusação não concretiza o beneficio efetivamente obtido nem para si, nem para o terceiro; não praticou os crimes de que vem acusado e a acusação é inconcebível, desproporcional e violadora dos princípios do Estado de Direito, de proibição do excesso, da igualdade e da legalidade (art.º 2.º, 13.º, 18.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa); que é uma pessoa social, profissional e familiarmente integrada, estimada e considerada no meio em que vive e nunca se vira envolvido numa situação deste género.

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Em sede de instrução, o arguido requerente juntou documentos e procedeu-se ao interrogatório do mesmo, conforme por si requerido.

*

Realizou-se o debate instrutório com observância do formalismo legal, no decurso do qual se procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto no art.º 303.º n.º 5 do Código de Processo Penal.

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II – Saneamento

O tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.

Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.


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III – Fundamentação

Dispõe o art.º 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

O art.º 308.º n.º 1 do mesmo diploma legal, por seu turno, estabelece que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Dispõe o art.º 283.º n.º 2 aplicável “ex vi” do art.º 308.º n.º 2 do Código de Processo Penal que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Deve assim o juiz de instrução criminal compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

De salientar ainda o disposto no art.º 307.º n.º 4 do Código de Processo Penal, segundo o qual, “a circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos”.

Importa, pois, apreciar se existem nos presentes autos, indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de que vêm acusados.

Como se referiu supra, os arguidos encontram-se acusados da prática, em co-autoria material e em concurso efetivo, de um crime de denegação de justiça, na forma consumada, p. e p. pelos art.º 369.º n.º 1 e n.º 2, com referência aos art.º 14.º al. i) do Estatuto dos Militares da GNR aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03 e ainda o art.º 170.º n.º 1 e n.º 3 do Código da Estrada, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, na forma consumada, p. e p. pelos art.º 382.º n.º 1, com referência aos art.º 386.º n.º 1 al. a) (al. d) na redação dada pela Lei n.º 94/2021 de 21 de Dezembro) do Código Penal, bem como os art.º 2.º, 3.º, 4.º, 10.º, 11.º n.º 1 e 13.º al. b), d), f), 14.º al. a), b) e i) do Estatuto dos Militares da GNR aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03 e ainda os art.º 1.º, 2.º, 5.º e 6.º do Código Deontológico do Serviço Policial, divulgado por decisão contida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002 de 7 de Fevereiro de 2002 e os art.º 7.º, 8.º al. b), c), d), e) e f), 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana aprovado pela Lei n.º 145/99 de 1 de Setembro, com as alterações dadas pela Lei n.º 66/2014 de 28/08 e os art.º 242.º, n.º 1 e 248.º do Código de Processo Penal; de um crime de falsificação de documento agravado, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 256.º n.º 1, al. d), n.º 3 e 5 do Código Penal, por referência ao art.º 386.º do Código Civil e na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no art.º 66.º n.º 1 al. a) a c) do Código Penal.

Funda-se tal acusação na circunstância em síntese, de os arguidos serem militares da GNR e não obstante conhecerem o conteúdo das suas competências e deveres advindos do exercício das suas funções, no dia 13 de Novembro de 2020, encontrando-se de serviço de patrulha e sendo o arguido AA o comandante da patrulha, dirigiram-se à Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, por ali ter ocorrido um acidente de viação.

Mais refere que chegados ao local constataram que ali se encontrava um veículo sinistrado, ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-IA, propriedade de HH e que se encontrava estacionado em cima do passeio.

Refere também que por essa razão, os arguidos transmitiram ao proprietário e a II, mulher deste e condutora do veículo, que também se encontrava no local, que teria de ser levantado auto pela aludida infração.

Menciona ainda que, entretanto, chegou ao local JJ, amigo do casal que telefonou ao Cabo GG, que também exercia funções no mesmo Posto territorial dos arguidos, em ..., dando-lhe conta da intenção declarada dos ora arguidos levantarem auto de contra-ordenação contra II ou HH pelo estacionamento indevido do veículo ..-..-IA e, ato contínuo, GG contactou o arguido AA, dizendo-lhe que não procedesse à autuação, ao que acabou por anuir e transmiti-lo ao arguido BB que também aderiu ao pedido, tendo ambos decidido não levantar o auto de contra-ordenação contra as supra identificadas pessoas.

Mais refere que permanecendo, todavia, a necessidade de lavrar a participação de acidente de viação em que havia sido interveniente o veículo ..-..-IA com a respetiva descrição e elaboração de croqui, pelo que, a fim de ocultar o criem pelo não levantamento do auto de contra-ordenação a que sabiam estar obrigados por estacionamento no passeio, em violação da al. f) do n.º 1 do art.º 49.º do Código da Estrada, os arguidos decidiram que o arguido BB elaboraria a participação e que, na legenda do croqui anexo à participação de acidente de viação, iria substituir a designação de “passeio” por “berma”, o que fez em execução de tal propósito conjuntamente firmado.

Refere também que os arguidos sabiam que eram militares da GNR e quais os deveres funcionais que tinham por essa razão e cientes que os violavam, em particular os deveres de lealdade, zelo, correção, autoridade e tutela e as exigências de legalidade e imparcialidade, com o propósito concretizado de anuir ao pedido do Cabo GG e beneficiar II e HH, não levantaram contra estes auto de contra-ordenação pela violação do disposto na al. f) do n.º 1 do art.º 49.º do Código da Estrada.

Mais refere o douto libelo acusatório que atuaram os arguidos da forma supra descrita com abuso da função pública, violando de forma expressiva os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocando em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo.

Conheciam ainda a obrigação que sobre si impendia de levantar auto de contra-ordenação pela infração de estacionamento em cima do passeio e que os autos por si levantados faziam fé até prova em contrário e sabiam que o veículo ..-..-IA, no dia 13 de Novembro de 2020 estava estacionado em cima do passeio e não em cima da berma e não levantaram o auto de contra-ordenação por infração ao disposto na al. f) do n.º 1 do art.º 49.º do Código da Estrada, com intenção de evitar que II e/ou HH fossem condenados no pagamento de uma coima, o que sabiam constituir a prática de crime.

Com intenção concretizada de ocultar a prática de tal crime, decidiram fazer constar na legenda D) e E) do croqui da participação de acidente de viação ... a designação de “berma”, que sabiam ser falsa, ao invés de “passeio”.

Ao elaborar aquele croqui anexo à Participação de Acidente de Viação, sabiam que a mesma criava a aparência reforçada por ter sido emitida por autoridade pública, que os factos nela exarados correspondiam à verdade e, por conseguinte, sabiam que a substituição da designação de “passeio” pela de “berma” atentava contra a fé pública acrescida de que gozam os documentos emitidos por entidades públicas.

Eram os arguidos plenamente conhecedores de que aquele documento era apto a criar junto dos seus Superiores, das Seguradoras e de quem quer que os lesse, a errada convicção de que o veículo ..-..-IA estava estacionado em cima da berma e não em cima do passeio, o que queriam e sabiam não corresponder à verdade.

Refere, finalmente, que os arguidos atuaram com grave abuso e grave violação dos deveres da sua função, pondo em causa a dignidade desta e a confiança da comunidade no seu justo exercício, agindo sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Compulsados os autos e ao contrário do que entende o arguido requerente no seu requerimento de abertura de instrução, os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e melhor identificados na acusação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos indiciam suficiente e indubitavelmente os factos que dela constam e que foram imputados a ambos os arguidos.

Com efeito, da informação da GNR junta a fls. 91 resultam indiciadas as funções dos arguidos e do guia de patrulha de fls. 10, em conjugação com os depoimentos das testemunhas HH a fls. 36 e 37 e JJ, a fls. 38 e 39 e das próprias declarações prestadas pelos arguidos em sede de inquérito perante Magistrado do Ministério Público, resulta que os arguidos, no dia 13 de Novembro de 2020 se deslocaram à Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, por ali ter ocorrido um acidente de viação e, bem assim que, quando aí chegaram, constataram que o veículo de matrícula ..-..-IA, propriedade de HH estava estacionado em cima do passeio.

Pese embora os arguidos AA e BB tenham declarado em sede de inquérito não se recordar se chegaram a verbalizar junto do proprietário a intenção da patrulha de autuar aquela viatura pelo estacionamento indevido – cfr. fls. 43 e 48 -, a verdade é que o próprio proprietário, a testemunha HH e a testemunha JJ afirmaram, de fls. 36 e 37 e de fls. 38 e 39 que, aqueles efetivamente o fizeram e que, inclusivamente, foi por esse motivo que esta última testemunha realizou o telefonema para o Cabo GG e que corresponde à sessão 55020 das intercepções telefónicas, cujo conteúdo consta do auto de transcrição de conversações ou comunicações e fls. 73 e de onde resulta que a mencionada testemunha BB telefona para o Cabo GG, no dia 13 de Novembro de 2020, pelas 17 horas e 46 minutos, dizendo-lhe que a mulher do patrão ia ser autuada por ter deixado o carro mal estacionado e se não haveria hipótese de fazer nada.

O interlocutor Cabo GG ainda questiona no mencionado telefonema se a autuação era por estar mal estacionado “agora” ou à altura do acidente, tendo a testemunha BB referido “onde está agora, ele não mexeu mais, está no sítio onde bateram” e disse igualmente “dizem que vão autuar 60 euros”.

Resulta ainda do mencionado telefonema que o Cabo afirma “eu vou ver o que é que eles vão fazer. Eles já autuaram?” ao que a testemunha BB responde “estão aqui, estão aqui, tão a começar agora, quer que eu lhe diga o nome dele?”.

Na sequência de tal telefonema, logo de seguida, o Cabo GG telefona para o aqui arguido AA, pelas 17 horas e 48 minutos, e questiona-o “vais autuar a senhora?”, ao que acaba por dizer “vou” e o Cabo “tava à vossa espera, vê lá o que podes fazer”, e o arguido AA ri-se e responde “tá bem” e o Cabo “tá bem” e o arguido diz “tá bom” e o Cabo “fui eu que lhe atendi o telefone, eh pá ela agora ligou-me, ele estava à vossa espera aí. Vê lá o que podes fazer, anda” e o arguido AA responde “tá bém, ok”. – cfr. auto de transcrição de conversações e comunicações de fls. 74 correspondente à sessão 55023.

No mesmo dia, pelas 18 horas e 43 minutos, um individuo que se identifica como sobrinho do Sr. HH telefonou para o Cabo GG e, a determinada altura este diz “agora os colegas vão participar, não vão?” e o interlocutor respondeu “eles devem ir participar, não sei… eles tiraram os dados todos” e quase no final da conversa “ok, Sr. GG, obrigado, tá bem? E olhe e obrigado e obrigado porque você deu-me uma ajuda senão iam-nos multar… prontos, obrigado, tá bem?” – cfr. auto de transcrição de conversações e comunicações de fls. 75 correspondente à sessão 55035.

Conforme resulta dos mencionados autos de transcrição e dos depoimentos das testemunhas supra identificadas, estão assim fortemente indiciados os factos segundo os quais os arguidos e ambos já que a estes se referem sempre no plural - contrariando assim a versão dos arguidos prestada em sede de inquérito e do arguido AA no seu requerimento de abertura de instrução que apontam para a atuação em solitário de um e de outro – iam efetivamente autuar o proprietário do veículo pelo estacionamento indevido em cima do passeio que presenciaram quando chegaram ao local, independentemente da participação do acidente de viação e que apenas não o fizeram, devido ao telefonema que o arguido AA recebeu do Cabo GG.

E resulta que não levantaram o auto de contra-ordenação não só de tais elementos probatórios, mas também dos autos de contra-ordenação lavrados no dia 13 de Novembro de 2020 de fls. 11 a 14 e da informação de contra-ordenações do veículo de matrícula do veículo ..-..-IA e participação de acidente de viação e do auto de contra-ordenação levantado no dia 20 de Novembro de 2021 constante de fls. 19.

Por outro lado, resulta de tais elementos probatórios que a participação do acidente, naturalmente elaborada posteriormente e não no local, onde os arguidos apenas retiraram os elementos necessários para o efeito, conforme resulta da intercepção telefónica sessão 55035 e das regras de experiência comum, não corresponde à realidade percepcionada pelos arguidos relativamente à localização exata do veículo quando acorreram ao local, sendo certo que, naturalmente, tal foi efetuado deliberadamente e com o intuito de ocultar o crime resultante do não levantamento do auto de contra-ordenação a que sabiam estar obrigados por estacionamento no passeio.

E não se diga que o simples facto de da participação apenas constar o nome do arguido BB é susceptível de infirmar a existência de indícios suficientes de que a mesma foi elaborada da forma como o foi unicamente por este e sem qualquer intervenção ou acordo prévio entre ambos os arguidos.

E a verdade é que da análise do mesmo não resulta indiciada a versão dos arguidos de se tratar de lapso, já que está expressamente escrito na participação do acidente a fls. 31, a propósito do veículo n.º 1 na altura da ocorrência “estacionado – na faixa de rodagem” e, no croquis de fls. 33, ao contrário do que o arguido AA disse quando interrogado em sede de instrução – que o veículo quando chegaram ao local estava estacionado em cima do passeio com as duas rodas do mesmo lado em cima do passeio e as outras duas na estrada -, o veículo está posicionado na diagonal, com as duas rodas da frente e a traseira esquerda em cima do passeio e apenas a roda traseira direita na faixa de rodagem, dando assim a aparência de se ter deslocado aquando do embate, o que, está fortemente indiciado, ambos sabiam, conforme já supra explanado e pelos motivos aí aduzidos, que não correspondia à verdade.

Conforme já se referiu supra, existem indícios suficientes dos factos imputados a ambos os arguidos e nos termos em que o foram, sendo certo que a prova produzida em sede de instrução não teve a virtualidade de infirmar minimamente a prova recolhida em sede de inquérito.

Com efeito, de nada releva a versão apresentada no requerimento de abertura de instrução e relativa a procedimentos habituais, uma vez que foi recolhida prova nos autos suficiente do que se passou, de facto e ainda que nesta fase apenas em termos indiciários, no caso concreto.

Por outro lado, ainda assim importa referir que os documentos juntos em sede de instrução acabam por corroborar a acusação, na medida em que, em consonância com as suas obrigações legais, é suposto os militares da GNR levantarem os autos de contra-ordenação que presenciam, como está fortemente indiciado no caso concreto, o estacionamento indevido e relativamente às participações de acidente, aí sim, dependerão de inquérito posterior.

As declarações do arguido AA em sede de instrução não diferem, no essencial das já por si prestadas em sede de inquérito, tendo ainda declarado que viu a viatura estacionada em cima do passeio e que a sua intenção não era autuar, embora tenha depois afirmado que se fosse ele o incumbido de o fazer, o teria feito por ser esse o seu procedimento habitual.

As suas declarações, no entanto, mostram-se infirmadas pelos demais elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e já supra analisados, não sendo assim de molde a, pelo menos, nesta fase, suficientes, como se disse, para os colocar em causa.

De referir ainda que não tem qualquer relevância a circunstância de, segundo afirmou o arguido no seu requerimento de abertura de instrução, ter ficado a constar da participação de acidente de viação elementos que configuram a prática de contra-ordenações, já que tal situação seria apreciada posteriormente já não por si, mas por outros militares da GNR, isto é, já não seriam da sua responsabilidade, sendo certo, saliente-se, mais uma vez, que dos elementos probatórios recolhidos, resulta a sua intenção concreta.

Por outro lado, tendo em consideração as finalidades da instrução e o disposto no art.º 291.º n.º 3 do Código de Processo Penal, não relevam nesta fase processual os factos relativos à personalidade e ao carácter do arguido.

Assim sendo, forçoso é de concluir que se mostram suficientemente indiciados todos os factos constantes da acusação de fls. 121 a 125 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos e necessariamente como não suficientemente indiciados os seguintes:

- O arguido AA ficou constrangido ao receber a chamada telefónica e que o que fez foi “despachar” o Cabo;

- O arguido AA não transmitiu qualquer conteúdo da chamada recebida do Cabo ao arguido BB;

- A factualidade constante do ponto 18) da acusação ocorreu por lapso do arguido BB que elaborou sozinho a participação do acidente e o croqui sem o conhecimento e qualquer acordo prévio com o arguido AA.

De salientar que não se atendeu, naturalmente, a alegações que constam do requerimento de abertura da instrução que não são factos, mas sim conclusões e, consequentemente, não suscetíveis de prova, nem a factualidade irrelevante para o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo dos crimes imputados aos arguidos, nem a factualidade que apenas pode ser atendível noutra fase processual que não a fase de instrução.

Selecionada a factualidade indiciada, importa agora aferir se a mesma é suscetível de integrar a prática pelos arguidos dos crimes de que vêm acusados.

Dispõe o art.º 369.º n.º 1 do Código Penal que “o funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra o direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias”.

O n.º 2 do mesmo preceito legal acrescenta que “se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos”.

Os bens jurídicos protegidos pelo crime em análise são a realização da justiça, na sua vertente de integridade dos órgãos de administração da justiça e dos órgãos de colaboração com a justiça (polícias) e, concomitantemente, os interesses individuais do visado pelo ato ilegal do funcionário.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5.ª ed., pág. 1269, “a tutela destes bens jurídicos é cumulativa, pelo que basta que um deles seja prejudicado para se verificar o dano típico”.

Trata-se de um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e formal quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.

O tipo objetivo consiste nas seguintes condutas:

- as ações tomadas por funcionário no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, no sentido de promover, conduzir, decidir ou praticar ato no exercício das suas funções contra o direito;

- as omissões, isto é, “não promover” e “não decidir”, de funcionário contra o direito ocorridas no exercício das suas funções no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar;

- as ações do funcionário competente de ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal.

Os agentes do crime, conforme mencionado o citado autor “in op. cit”, são os juízes, os magistrados do Ministério Público, os funcionários judiciais e os jurados e, na fase de inquérito, também os polícias.

A atuação tem de ser contra o direito, isto é, contra as normas da ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e de natureza (pública ou privada, substantiva ou processual), incluindo os princípios vertidos em normas positivas e inclui não apenas a interpretação objetivamente errada da norma, mas também a incorreta apreciação e subsunção dos factos à norma, seja numa decisão interlocutória, seja numa decisão final.

Por outro lado, o tipo subjetivo só admite o dolo direto, em face da exigência típica resultante da expressão “conscientemente”.

O n.º 2 prevê um tipo qualificado por uma intenção (dolo direto) de prejudicar ou beneficiar alguém, seja a vítima da prevaricação ou pessoa diferente da vítima da prevaricação, não sendo necessário que se verifique o efetivo prejuízo ou benefício de outra pessoa.

A qualidade de funcionário é comunicável aos comparticipantes que não a possuem e a intenção de prejudicar ou beneficiar alguém não é um elemento comunicável por se tratar de um elemento subjetivo do tipo, pelo que só pode atuar como comparticipante aquele que tenha tido a dita intenção ou, no caso do cúmplice, o conhecimento da intenção do autor.

No caso em que a omissão de denúncia é cometida por um funcionário, o crime de omissão de denúncia é uma forma especial do crime de denegação de justiça.

Importa, no entanto, salientar que, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque in “op. cit.”, pág. 1269, “o funcionário atua ou é omisso no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, processo por contraordenação ou processo disciplinar. Contudo, só relevam os processos criminais, contra-ordenacionais e disciplinares em fase contenciosa (jurisdicional), sendo o “inquérito processual”, o inquérito criminal que ainda não tenha sido distribuído num tribunal (como resulta expressamente da vontade da comissão de revisão do CP de 1989-1991, in Actas CP/Figueiredo Dias, 1993: 425 e 426, “A intenção da Comissão foi a de afastar claramente o processo administrativo gracioso”; sobre a constitucionalidade desta opção legislativa, ver o acórdão do TC n.º 478/2010, onde se afirma que “não se inserindo o processo administrativo gracioso na atividade judiciária do Estado, não se revela arbitrária e sem sentido a exclusão dos atos praticados pelos funcionários nesse tipo de processo do tipo legal de crime previsto no artigo 369.º, do Código Penal”). A consequência prática é a de que as condutas que ocorrem na fase administrativa do processo contra-ordenacional ou disciplinar são subtraídas ao tipo penal.”.

No mesmo sentido e entre outros, importa referir o Ac. da Relação do Porto de 14 de Março de 2012, disponível in www.dgsi.pt., segundo o qual “a incriminação em causa não inclui a fase não jurisdicional do processo de contraordenação”.

Refere-se em tal acórdão que “o elemento histórico mostra-nos claramente que na incriminação em causa, o legislador não quis incluir a fase não jurisdicional do processo de contra-ordenação. (…)

Apelando ao elemento literal, também é claro o disposto no artigo 369.º n.º 1 do CP, quando por um lado se refere ao “âmbito de inquérito processual” e, por outro lado, ao “processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar”.

Decorre da letra da lei que, a área de tutela típica da incriminação em causa, no que aqui interessa analisar, reporta-se ao “processo jurisdicional por contraordenação”, o que significa que se refere à fase judicial do processo de contraordenação (estando, por isso, excluída a fase administrativa do processo de contraordenação a que se reporta a acusação.

Também pelo elemento sistemático podemos chegar a igual conclusão, considerando por um lado a unidade do sistema jurídico como um todo, o capítulo onde a incriminação em causa se insere, sendo claro que o sujeito ativo (funcionário) aqui está restringido (em relação ao conceito amplo previsto no art.º 386.º do CP) àqueles que atuem no âmbito de inquérito processual ou de processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar (v. g. magistrados e funcionários judiciais).

O elemento teleológico aponta no mesmo sentido, considerando a razão de ser da norma, o específico bem jurídico protegido que é a realização da justiça, máxime pelos órgãos de administração da justiça, assegurando que estes funcionam de forma íntegra e correta, de acordo com os princípios gerais de direito, nomeadamente, com imparcialidade, com objetividade e com justiça.

E na busca do sentido correto de interpretação da lei, não há dúvidas que o sujeito ativo, funcionário, terá de atuar “no exercício dos deveres do cargo” que tem (portanto, consoante os casos concretos, poderá abranger além de magistrados e funcionários judiciais, os jurados e órgãos de colaboração na administração da justiça como sejam os opc no âmbito de “inquérito processual” (inquérito criminal) ou de “processo jurisdicional por contra-ordenação ou disciplinar” (estes na fase judicial).

Dispõe o art.º 170.º n.º 1 do Código da Estrada que “quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia (…).

O n.º 2 do mesmo preceito legal acrescenta que “o auto de notícia é assinado pela autoridade ou agente da autoridade que o levantou ou mandou levantar e, quando for possível, pelas testemunhas”.

E o n.º 3 que “o auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário”.

A obrigação decorrente de tais normativos integra-se assim na fase administrativa do processo de contra-ordenação.

O art.º 14.º al. i) do Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03 estabelece que “compete ainda ao militar da Guarda: (…) i) prestar auxílio em qualquer diligência em matéria legal e adoptar a iniciativa na repressão de qualquer tentativa ou cometimento de crime ou contraordenação, às leis e aos regulamentos, de que tenha conhecimento”.

Ora dos factos suficientemente indiciados e que já constavam da acusação resulta que a conduta imputada aos arguidos resultante do não levantamento do auto de contraordenação a que estavam obrigados ocorreu, naturalmente, a montante da fase judicial do processo de contraordenação pelo que, forçoso é de concluir que não integram o tipo objetivo do crime de denegação de justiça e, consequentemente, não lhes pode ser imputada a sua prática.

O art.º 382.º do Código Penal, por seu turno, estabelece que “o funcionário que, fora dos casos previstos nos números anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

O bem jurídico protegido é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa. É um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.

O tipo objetivo consiste no abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário e o tipo subjetivo admite qualquer modalidade do dolo e inclui um elemento subjetivo adicional: a intenção de obter para si ou para outra pessoa física ou coletiva, privada ou pública (excluindo o Estado), beneficio patrimonial ou não patrimonial ilegítimo ou causar prejuízo patrimonial ou não patrimonial a outra pessoa física ou coletiva, privada ou pública (incluindo o Estado), não sendo necessário que o beneficio patrimonial ou não patrimonial tenha sido alcançado, nem o prejuízo se tenha verificado, bastando que o funcionário os tenha querido.

Ora, da análise dos factos suficientemente indiciados imputados na acusação pública aos arguidos resulta que os mesmos são suscetíveis de integrar a prática do crime de abuso de poder, na medida em que violaram os seus deveres funcionais, incluindo ao não levantar auto de contraordenação pelo estacionamento indevido de veículo por si presenciado, sendo certo que agiram dolosamente e estando ainda preenchido o tipo subjetivo específico, já que, ao contrário do que refere o arguido requerente de abertura de instrução, consta da acusação que o fizeram com o intuito de evitar que II e/ou HH fossem condenados no pagamento de uma coima. É este o benefício ilegítimo obtido por estes terceiros e que motivou a atuação dos arguidos.

Dispõe o art.º 256.º n.º 1 al. d) do Código Penal que “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…) d) fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante (…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

O n.º 3 acrescenta que “se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força (…) o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias”.

E o n.º 4 que “se os factos referidos nos n.º 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos”.

O documento autêntico ou com igual força é aquele que como tal é definido pela lei civil, bem como todos os outros documentos que tenham origem numa autoridade pública.

O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a “segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório”, ou seja, “a verdade intrínseca do documento enquanto tal” (Figueiredo Dias/Costa Andrade in “O Legislador de 1982 optou pela Descriminalização do Crime Patrimonial de Simulação, Parecer”, C.J. VIII; 3-20 e ss.).

De referir que integra o tipo legal de crime não só a falsificação material como a falsificação ideológica, o que abrange a falsificação intelectual e a falsidade em documento, sendo certo que, em qualquer dos casos, se falsifica o documento enquanto declaração, isto é, falsifica-se a declaração incorporada no documento.

Na falsificação material o documento não é genuíno e na falsificação ideológica, o documento é inverídico.

No âmbito da falsificação intelectual integram-se todas as situações em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante.

Importa ainda referir que o crime de falsificação de documento é um crime de perigo, uma vez que, após a falsificação, ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação do mesmo.

Além disso, é um crime de perigo abstrato, bastando para que o tipo legal esteja preenchido, que se conclua, a nível abstrato, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico protegido.

É também um crime formal ou de mera atividade, não sendo necessária a produção de qualquer resultado, pese embora se exija uma certa atividade do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento. Como refere Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 681, “podemos assim considerar que se trata de um crime material de resultado, isto é, “um crime formal considerado o resultado final que se pretende evitar (violação da segurança no tráfico jurídico em virtude da colocação neste do documento falso), mas um crime material considerado o facto (modificação exterior) que o põe em perigo. Assim, se considerarmos, por um lado, a atividade e os interesses que este tipo legal visa proteger estamos perante um crime formal; se, por outro lado, considerarmos a atividade do agente – isto é, o ato de falsificar o documento – já estamos perante um crime material”.

O tipo legal de crime comporta diversas modalidades de conduta:

- fabricar documento falso;

- falsificar ou alterar documento;

- abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;

- fazer constar falsamente facto juridicamente relevante;

- usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa;

- facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito.

A primeira modalidade da conduta típica apontada consiste na produção originária de um documento inteiramente falso. Trata-se, pois, de uma contrafação total, através da feitura ex novo e ex integro de um documento.

Ao tipificar a falsificação ou alteração de documento, a lei pretende abarcar os casos em que um documento (verdadeiro) já existente é viciado pela conduta do agente que altera, acrescenta ou suprime parte do seu conteúdo.

O fabrico de documento por abuso de assinatura de outrem tem lugar sempre que, mediante a utilização de uma assinatura alheia, se cria um documento falso. Assim acontecerá nos casos em que se falsifica a assinatura de terceiro em documento contendo uma declaração de vontade; ou nos casos em que se utiliza assinatura mecânica alheia não autorizada para os documentos em que é aposta; ou ainda, nos casos em que se aproveita papel assinado em branco por terceiro introduzindo-lhe uma declaração de vontade que não foi proferida pela pessoa que o escrito aparenta.

A inserção falsa, em documento, de facto juridicamente relevante, traduz, por seu turno, a chamada falsificação intelectual. Nestes casos, não existe propriamente uma falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração inserta num documento regular (FIGUEIREDO DIAS, Atas, 1993, 298), verificando-se uma desconformidade entre o documento e as declarações que este se destina a exarar. Esta “mentira”, inserta no documento em virtude da conduta do agente, terá que ser juridicamente relevante, ou seja, apta a produzir um qualquer efeito jurídico.

Quanto ao uso de documento falsificado ou fabricado (por terceiro) pelas formas que se acabam de descrever, ele só será objeto de punição autónoma quando o documento for falsificado por pessoa diferente daquela que o utiliza, uma vez que se a falsificação resultar de ato do próprio utilizador, o uso será absorvido pela própria falsificação em si. Apenas cabe referir, aqui, que a utilização só será criminosa que tiver na sua base o conhecimento de que se usa documento falso.

Assim, a quinta modalidade da conduta típica consiste no uso de documento falsificado por terceiro através da utilização abusiva da assinatura alheia.

Importa ainda atender ao disposto no art.º 255.º al. a) do Código Penal, o qual define “Documento: a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.

Por outro lado, dispõe o art.º 369.º n.º 1 do Código Civil que “o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar” e o art.º 371.º n.º 1 do mesmo diploma legal que “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.

Ora resulta dos factos indiciados e que constavam já da acusação todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime em análise na sua forma agravada, dado que os arguidos, militares da GNR e no exercício das suas funções, com intenção concretizada de ocultar a prática do crime resultante do não levantamento do auto de contraordenação pelo estacionamento indevido do veículo, decidiram e fizeram constar na legenda D) e E) do croqui da Participação de Acidente de Viação ... a designação de “berma” que sabiam ser falsa, ao invés de “passeio”, cientes que a mesma criava a aparência, reforçada por ter sido emitida pela autoridade pública, que os factos nela exarados correspondiam à verdade e que tal substituição que fizeram constar no croqui atentava contra a fé pública acrescida de que gozam os documentos emitidos por entidades públicas e que era apto a criar junto dos seus superiores, das seguradoras e de quem quer os lesse, a errada convicção de que o veículo ..-..-IA estava estacionado em cima da berma e não em cima do passeio o que queriam e sabiam não corresponder à verdade.

Por outro lado e ao contrário, do que refere o arguido requerente da abertura de instrução, já constava da acusação e mostra-se indiciado o benefício ilegítimo que os arguidos pretenderam obter com a falsidade ideológica por si praticada: a ocultação do crime que haviam praticado ao não levantarem o auto de contraordenação.

Assim sendo e tendo em consideração o teor de toda a prova recolhida em sede de inquérito e devidamente enunciada no despacho de acusação e que aqui se dá por integralmente reproduzida, forçoso é de concluir que existem indícios suficientes da prática pelos arguidos, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real, de um crime de abuso de poder p. e p. pelo art.º 382.º com referência ao disposto no art.º 386.º n.º 1 al. a) do Código Penal, art.º 170.º n.º 1 e 3 do Código da Estrada, art.º 2.º, 3.º, 4.º, 10.º, 11.º n.º 1, 13.º al. b), d), f) e j) e 14.º al. a), b) e i) do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03, art.º 2.º, 5.º e 6.º do Código Deontológico do Serviço Policial divulgado por decisão contida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002 de 07/02 e art.º 7.º, 8.º, n.º 1 e 2 al. b), c), d), e), f) e j), 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana aprovado pela Lei n.º 145/99 de 01/09 com as alterações dadas pela Lei n.º 66/2014 de 28/08 e de um crime de falsificação de documento agravado p. e p. pelo art.º 256.º n.º 1 al. d), n.º 3 e 4 do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 369.º n.º 1 e 374.º n.º 1 do Código Civil e mostram-se ainda incursos na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no art.º 66.º n.º 1 al. a) a c) do Código Penal.

Com efeito, resultam indiciados suficientemente todos os factos que integram os tipos objetivo e subjetivo dos ilícitos criminais supra referidos, sendo manifesto que a acusação não viola o disposto nos art.º 2.º, 13.º, 18.º e 226.º da Constituição da República Portuguesa, aliás, nem minimamente concretizada pelo arguido requerente da instrução.

Em face do exposto e sem necessidade de tecer mais considerações, forçoso é de concluir que tem de ser julgado totalmente improcedente o requerimento de abertura de instrução e, existindo indícios suficientes da prática pelos arguidos da factualidade constante da acusação e que aqui se dá por integralmente reproduzida, forçoso é de concluir que têm os mesmos de ser pronunciados e submetidos a julgamento, onde fazendo-se aplicação plena dos princípios do contraditório, da imediação, da livre apreciação da prova e da liberdade de convicção do julgado, se formulará então um juízo de condenação ou absolvição dos mesmos.


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IV – Decisão

Assim sendo, decido ao abrigo do disposto nos art.º 283.º n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, pronunciar, para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal coletivo:

AA, casado, militar da GNR, nascido a ../../1992, natural da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, filho de CC e de DD, atualmente com domicílio profissional no Posto Territorial ... e residente na Rua ..., r/dto, ...; e

BB, solteiro, militar da GNR, nascido a ../../1995, natural da freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, filho de EE e de FF, com domicílio profissional no Posto Territorial ... e residente na Rua ..., ...;

Pela prática dos factos descritos na acusação pública de fls. 121 a 125 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos,

Pelo exposto, cometerem, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real, um crime de abuso de poder p. e p. pelo art.º 382.º com referência ao disposto no art.º 386.º n.º 1 al. a) do Código Penal, art.º 170.º n.º 1 e 3 do Código da Estrada, art.º 2.º, 3.º, 4.º, 10.º, 11.º n.º 1, 13.º al. b), d), f) e j) 14.º al. a), b) e i) do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017 de 22/03, art.º 2.º, 5.º e 6.º do Código Deontológico do Serviço Policial divulgado por decisão contida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002 de 07/02 e art.º 7.º, 8.º, n.º 1 e 2 al. b), c), d), e), f) e j), 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana aprovado pela Lei n.º 145/99 de 01/09 com as alterações dadas pela Lei n.º 66/2014 de 28/08 e um crime de falsificação de documento agravado p. e p. pelo art.º 256.º n.º 1 al. d), n.º 3 e 4 do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 369.º n.º 1 e 374.º n.º 1 do Código Civil e mostram-se ainda incursos na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no art.º 66.º n.º 1 al. a) a c) do Código Penal.


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Prova:

Por leitura de declarações permitida:

- declarações perante MP de AA, Guarda da GNR, fls. 2106-2107;

- declarações perante MP de BB, Guarda da GNR, fls. 2111-2213.

Intercepções telefónicas:

- autos de transcrição das sessões 55020, 55023 e 55035 do alvo 113966040 de fls. 73 a 76.

Documental: toda a dos autos, nomeadamente:

- informação da GNR quanto às funções de AA e de BB de fls. 91;

- auto de informação e impressões anexas de fls. 951 a 971 relativamente à identificação do titular do número ...67 de fls. 57 a 59;

- informação A... de que o telemóvel ...67 esteve atribuído a II a fls. 56;

- guia de patrulha de 13 de Novembro de 2020 a fls. 10;

- autos de contra-ordenação lavrados no dia 13 de Novembro de 2020 de fls. 11 a 14;

- auto de contra-ordenação levantado no dia 20 de Novembro de 2021 contra II a fls. 19;

- auto de análise de fls. 21 a 24;

- informação de contra-ordenações do veículo ..-..-IA e participação de acidente de viação de fls. 25 a 35.

Testemunhal:

- HH, melhor id. a fls. 36;

- JJ, melhor id. a fls. 38;

- GG, melhor id. a fls. 20.


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Estatuto coativo

Os arguidos aguardarão os ulteriores termos do processo sujeitos a Termo de Identidade e Residência, já prestado a fls. 40 e 45, por não se verificar qualquer um dos pressupostos previstos no art.º 204.º do Código de Processo Penal.


*

Condeno o arguido requerente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC, a liquidar a final com a condenação pela prática dos crimes pelos quais foi pronunciado (art.º 513.º n.º 1 do Código de Processo Penal e art.º 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais).

*

Registe, eletronicamente e fisicamente (conforme Provimento de 13/09/2016), como decisão instrutória, notifique e dê baixa, de imediato, na estatística oficial.

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Remeta o processo, de imediato, à distribuição para julgamento atento o disposto no art.º 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal.»

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Existência de indícios suficientes da prática pelos arguidos de um crime de denegação de justiça e de prevaricação (art.º 369.º do CP) – apreciação do mérito do recurso.

Estabelece o art.º 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

No presente recurso encontra-se unicamente em discussão, como vimos, o enquadramento jurídico-penal dos factos constantes do despacho de acusação e acolhidos na decisão instrutória, considerando o Ministério Público/recorrente que tais factos configuram a prática pelos arguidos, em coautoria material, de um crime de denegação de justiça e prevaricação e já não de um crime de abuso de poder, diversamente do que foi entendido pelo tribunal a quo na decisão recorrida. 

De acordo com o disposto no n.º 1, do art.º 187.º do Código Penal, «O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias», estabelecendo o respetivo n.º 2 que «Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos».

O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo referido art.º 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objetivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.

No que concerne ao respetivo tipo subjetivo, considerando a exigência típica decorrente da expressão «conscientemente», só o dolo direto e o necessário são relevantes, excluindo-se, portanto, a punibilidade a título de dolo eventual, como é jurisprudência uniforme do STJ.

Por outro lado, e como se observa no acórdão do STJ de 12/7/2012 [1], não é a prática de qualquer ato que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art.º 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorretamente, “contra legem”, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.

Não existem dúvidas de que os arguidos, ambos militares da GNR, violaram os seus deveres funcionais, omitindo deliberadamente a prática de um ato a que estavam obrigados, no exercício das suas funções (em concreto, o levantamento do auto de contraordenação), com a intenção de beneficiar terceiros (em concreto, visando evitar que II e/ou HH fossem condenados no pagamento de uma coima).

Considerou, porém, o tribunal a quo que, tendo ocorrido a montante da fase judicial do processo de contraordenação, a conduta imputada aos arguidos não integra o tipo objetivo do crime em apreço, não lhes podendo, consequentemente, ser imputada a sua prática, mas unicamente a de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP.

Ora, como assinala A. Medina de Seiça [2], não vemos razões para nos afastarmos da doutrina dominante que encontra na realização da justiça o específico bem jurídico protegido pelo tipo legal em análise. Enquanto noutros tipos de crime incluídos neste capítulo, a lesão do bem jurídico - realização da justiça - provém de agentes que se situam fora do aparelho estadual da administração da justiça, na fattispecie em apreço o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, isto é, por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correta realização da justiça. Desta forma, não causará surpresa o facto de, muito embora o tipo abranja uma larga série de funcionários para além dos magistrados, o delito em apreço continue a ser perspetivado como a resposta penal aos abusos da função judicial. Por isso lhe chamou Spendel, «o pecado contra o espírito judicial», pelo que «a criação de um tipo específico de prevaricação e com ele a estatuição da responsabilidade penal do juiz constituem os mais importantes correlatos e contra-pesos à garantia da irresponsabilidade e independência judiciais».

Por seu turno, Paulo Pinto de Albuquerque afirma, sem hesitações, que só relevam os processos criminais, contra-ordenacionais e disciplinares em fase contenciosa (jurisdicional), com a consequência prática de que as condutas que ocorrem na fase administrativa do processo-contraordenacional ou disciplinar são subtraídas ao tipo penal.[3]

Tal entendimento é igualmente sustentado no acórdão desta Relação do Porto, datado de 14/3/2012 [4], onde se afirma que a incriminação em causa não inclui a fase não jurisdicional do processo de contraordenação. No crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto no art.º 369.º do CP, o sujeito ativo [funcionário] terá de atuar no exercício dos deveres do cargo no âmbito de inquérito criminal ou de processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, na fase jurisdicional, conclusão que deriva dos elementos histórico, literal, sistemático e teleológico.

Como se observa neste aresto, «O elemento histórico mostra-nos claramente que na incriminação em causa o legislador não quis incluir a fase não jurisdicional do processo de contra-ordenação», tendo sido intenção da Comissão de Revisão do Código Penal «afastar claramente o processo administrativo gracioso».

Além disso, «Também pelo elemento sistemático podemos chegar a igual conclusão, considerando por um lado a unidade do sistema jurídico como um todo, o capítulo onde a incriminação em causa se insere, sendo claro que o sujeito ativo (funcionário) aqui está restringido (em relação ao conceito amplo previsto no art.º 386º do CP) àqueles que atuem no âmbito de inquérito processual ou de processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar (v.g. magistrados e funcionários judiciais).

O elemento teológico aponta no mesmo sentido, considerando a razão de ser da norma, o específico bem jurídico protegido que é a realização da justiça, maxime pelos órgãos de administração da justiça, assegurando que estes funcionam de forma íntegra e correta, de acordo com os princípios gerais de direito, nomeadamente, com imparcialidade, com objetividade e com justiça.»

Observa-se no mencionado acórdão que «na busca do sentido correto de interpretação da lei, não há dúvidas que o sujeito ativo, funcionário, terá de atuar no “exercício dos deveres do cargo” que tem (portanto, consoante os casos concretos, poderá abranger além de magistrados e funcionários judiciais, os jurados e órgãos de colaboração na administração da justiça como sejam os opc) no âmbito de “inquérito processual” (inquérito criminal) ou de “processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar” (estes na fase judicial)».

Esta interpretação, «tendo em atenção a própria ratio essendi da norma em questão, atendendo ao seu efeito útil, o que exige uma compreensão racional do argumento histórico e mesmo do literal, é a única que está de acordo com o princípio da legalidade, com “o fim almejado pela norma”, considerando o espírito do legislador e a unidade do sistema jurídico, mostrando-se, assim, “funcionalmente justificada”».

Em suma, nenhuma razão suficientemente válida encontramos para divergir desta interpretação do tipo incriminador em apreço, que se nos afigura a mais adequada «ao espírito do legislador, à unidade do sistema jurídico, às circunstâncias em que a lei foi elaborada e ao contexto em que a mesma deverá ser aplicada» (cf. o art.º 9.º do Código Civil).[5]

Improcede, por conseguinte, o presente recurso, nenhuma censura nos merecendo a decisão instrutória recorrida.


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público/recorrente.

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

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Porto, 28 de fevereiro de 2024.
Liliana de Páris Dias
Horácio Correia Pinto
Maria dos Prazeres Silva
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[1] Relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[2] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, anotação ao art.º 369.º do CP, páginas 609/610.
[3] Cf. “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5.ª ed., pág. 1269.
[4] Relatado pela, então, Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Cf., no mesmo sentido, o recente acórdão do TRL, datado de 19/4/2023, relatado pela Desembargadora Isilda Pinho e disponível para consulta em www.dgsi.pt.