Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
157/18.4T9VGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
EX-CÔNJUGE
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
Nº do Documento: RP20240221157/18.4T9VGS.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A condição de ex-cônjuge, prevista no n.º 2 do art. 132.º do CPenal, determina um grau de respeito por toda a vivência próxima que existiu, à semelhança dos laços familiares básicos, que se deve constituir para o agente como factor inibitório acrescido, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, sendo certo que a desinibição que a intimidade relacional propicia não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado.
II - Numa situação em que estamos perante agressão de mediana gravidade, consubstanciada num murro desferido da parte de trás da cabeça da assistente, que provocou tonturas, desequilíbrio, necessidade de tratamento hospitalar, e sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho, não é o acto de violência cometido que encerra em si especial censurabilidade ou perversidade.
III - Porém, a motivação, relacionada com a empresa de que ambos são sócios gerentes, afigura-se especialmente censurável, com laivos de proximidade ao motivo fútil, posto que a justificação verbalizada é a de que a assistente não devia falar com um funcionário.
IV - Para além disso, a forma de execução do acto é também especialmente censurável: percebe-se que o acto é inusitado e cobarde, pois atinge a visada na parte detrás da cabeça na sequência do desagrado do arguido com questões relativas a um empregado, diminuindo drasticamente as possibilidades de defesa, tudo contextualizado num ambiente de autoritarismo, onde também se apreende a especial perversidade da conduta.
V - Esta forma de tratamento dispensada pelo arguido à sua ex-mulher, a propósito da empresa de que ambos eram sócios-gerentes e que estava por partilhar à data dos factos, encerra sem dúvida uma culpa acrescida, um especial desvalor de atitude, que conforma o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal.

[Sumário da responsabilidade da Relatora]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 157/18.4T9VGS.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Vagos

Sumário:

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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular n.º 157/18.4T9VGS, a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Vagos, por sentença de 25-05-2023, foi decidido, entre o mais:
«Em face do exposto, o Tribunal decide:
A) Quanto à parte crime:
a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alíneas a), c) e d), n.º 2, alínea a) e 4 a 6 do Código Penal;
b) Absolver o arguido da prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal;
c) Absolver o arguido da prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal;
d) Julgar o arguido autor, na forma consumada, da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea b) do mesmo diploma legal e, em consequência, condená-lo numa pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;
e) Condenar o arguido nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s – cfr. artigos 513.º e 514.º, do Código de Processo Penal; artigo 8.º, n.º 9 com referência à tabela III anexa, e artigo 16.º, do Regulamento das Custas Processuais.

*
B) Quanto à parte cível:
a) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e, em conformidade condenar o demandado AA a pagar à demandante a quantia de €900 (novecentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;
b) condenar demandante e demandado no pagamento das custas respeitantes à instância cível, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 82% para a primeira e 18% para o segundo.
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Centro Hospitalar ..., E.P.E., e, em conformidade, condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de €158,91 (cento e cinquenta e oito euros e noventa e um cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de notificação do pedido de indemnização civil, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;
d) Sem custas, nesta parte, uma vez que o montante do respectivo pedido de indemnização civil formulado é inferior a 20 UC’s.»
*
Inconformado com o assim decidido, o arguido AA interpôs recurso, solicitando a desqualificação do crime por que foi condenado, apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«A- O Arguido vem condenado por um crime de Ofensa à Integridade Física Qualificado.

B- Do elenco dos Factos Provados não se retira qualquer facto que pudesse evidenciar uma especial perversidade ou censurabilidade na conduta do arguido.

C- O facto de Arguido e Assistente terem sido casados não pode sobrepor-se às considerações tidas pelo Tribunal a quo, designadamente,

D- Que os problemas entre Assistente e Arguido estavam relacionados com as “...tensões geradas com a gestão da empresa do casal”,

E- Que a conduta do Arguido não revela “...uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo e desconsideração pela vítima...”, pelo que,

F- O simples facto de se tratar de ex-marido e ex-mulher não permite que o contexto que rodeou a agressão efectuada pelo arguido, perpetrada na pessoa da assistente, sua ex-cônjuge, na empresa gerida por ambos seja elemento bastante para qualificar o crime de Ofensa à Integridade Física.

G- Mal andou a Sentença recorrida ao fazê-lo, impondo-se a sua revogação e a sua substituição por outra que, condenando o Arguido pelo Crime de Ofensa à Integridade Física simples dê cabal cumprimento ao disposto no Art. 145.º do C.P..

H- Em consequência da desqualificação peticionada, deverá igualmente ser revisto o valor da indemnização arbitrada, porquanto, a conduta do Arguido é consideravelmente menos censurável.
I- Termos em que, faltando elementos que evidenciem uma especial censurabilidade e perversidade na prática do crime pelo qual vem o Arguido condenado, impõe-se a desqualificação do mesmo, como é de direito, o que expressamente se invoca, assim se fazendo a tão costumada

JUSTIÇA.»


*

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Recorre o arguido AA da sentença 7 de Julho de 2023 que o condenou, como autor material, na forma consumada, da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea b) do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.

2. O Recorrente entende, em síntese, que não resulta do elenco dos factos provados qualquer facto que possa evidenciar uma especial perversidade ou censurabilidade da sua conduta, pugnando pela desqualificação para o crime de ofensa à integridade física simples.

3. Contudo, salvo melhor entendimento, não assiste razão ao aqui Recorrente, desde logo considerando os factos dados como provados, concretamente os factos 1., 2., 4., 6., 7., 11., 12., 13., 14. e 15., os quais não são impugnados pelo Recorrente e que, no nosso entendimento, foram devidamente considerados como provados e consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

4. A conduta em causa é objectivamente mais censurável do que se tivesse sido praticada contra um terceiro, completamente alheio às relações familiares existentes, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao qualificar o crime de ofensa à integridade física, em função da previsão legal constante da alínea b), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal.

5. O comportamento adoptado pelo Recorrente é, ressalvando o merecido respeito por diferente entendimento, especialmente censurável na medida em que o mesmo não se absteve de adoptar as condutas descritas apesar dos laços familiares existentes com a vítima (sua ex-cônjuge e mãe dos seus filhos), o que poderia, e deveria, ter constituído um factor inibitório acrescido.

6. Não obstante a evidência que tais circunstâncias não são de preenchimento automático, exigindo-se que, em concreto, esse juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do crime esteja sustentado, consideramos que o mesmo ocorreu no caso em apreço, em virtude, desde logo, de tais actos terem ocorrido em circunstâncias laborais.

7. No nosso entendimento, não apresentaria igual censurabilidade se a conduta do arguido tivesse sido praticada contra um qualquer outro sócio-gerente da sociedade comercial partilhada pelo arguido e vítima, ou trabalhador ou colaborador daquela, e sem qualquer relação familiar entre aqueles.

8. Atente-se que a argumentação utilizada pelo Recorrente, concretamente no que respeita à circunstância de a factualidade considerada como provada não assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo e desconsideração pela vítima, permitiu ao Tribunal a quo afastar o preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica, precisamente por não se considerar que as condutas do arguido tenham consubstanciado um atentado à dignidade pessoal da vítima.

9. Diferente é considerar que esta ausência de intensa crueldade, insensibilidade, desprezo e desconsideração pela vítima permite não qualificar a agressão perpetrada pelo arguido. Na verdade, as circunstâncias em que os factos foram praticados, em contexto laboral, numa empresa gerida pelo arguido e pela vítima e na sequência de uma conduta que a vítima (também sócia-gerente daquela) adoptou relativamente a um trabalhador de ambos, permite a qualificação do referido crime de ofensa à integridade física.

10. Pelo exposto, verificando-se uma especial censurabilidade na conduta praticada pelo arguido, defendemos ser irrepreensível a sentença recorrida, a qual deve ser mantida, nos seus precisos termos, não merecendo o Recurso procedência.

Nestes termos, e nos demais de direito, que V. Exas se dignarão suprir, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, como é de toda a inteira e acostumada

JUSTIÇA.»


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Também a assistente apresentou resposta, defendendo a manutenção da decisão recorrida e o não provimento do recurso, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):

«A.

É facto provado (ponto 6 dos factos provados) que “No dia 26 de Março de 2019, na empresa, o arguido, desagradado com questões relativas a um empregado, desferiu um murro na parte de trás da cabeça da assistente, provocando tonturas e desequilíbrio, ao mesmo tempo que afirmava “Não tens nada que falar com o empregado, caralho!”, tendo a assistente necessidade de receber tratamento hospital”

B.

Considerou a Sentença a quo que a factualidade considerada como provada é subsumível ao tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, posição que se acompanha,

C.

Independentemente de os conflitos entre Recorrente e Recorrida, ou da razão que motivou as desavenças entre ambos, o arguido agiu com a intenção de causar dano físico e psicológico à Recorrida, tendo perpetrado tais condutas junto de outras pessoas, causando humilhação naquela que foi sua companheira e mãe dos seus filhos,

D.

Termos em que deverá o presente Recurso ser considerado totalmente improcedente e em consequência deverá a Douta Sentença a quo manter-se nos precisos termos em que foi proferida, assim se fazendo a acostumada Justiça!»


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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª Instância, emitiu parecer também no sentido de que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso e confirmada a sentença recorrida.

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Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso respeita à qualificação jurídica dos factos, devendo, em sua opinião, operar a desqualificação do crime por que foi condenado.

Para análise da questão que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença recorrida (transcrição):

«II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. Factos provados

1. BB e AA casaram no dia 7 de Novembro de 1981, tendo resultado dessa união dois filhos em comum, já maiores de idade, residindo na Rua ..., ..., ..., ...;

2. Para além disso, o casal partilha a propriedade e gestão de uma empresa, sendo sócios-gerentes da sociedade comercial “A..., Lda.” [doravante, apenas “A...”], sita na Zona Industrial ...;

3. No dia 16 de Agosto de 2018, pelas 17h30, na sede da empresa referida em2., o arguido envolveu-se numa contenda com o filho, CC;

4. Por sentença de 18 de Setembro de 2018, transitada em julgado no dia 24 de Outubro de 2018, o casal acabou por se divorciar, ficando por resolver a partilha dos bens do casal;

5. No dia 20 de Novembro de 2018, a assistente recebeu tratamento hospitalar, apresentando um edema dos tecidos moles subjacentes ao terço médio da face lateral da perna direita, com subjectivos dolorosos à palpação, o que lhe determinou, directa e necessariamente, 5 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional;

6. No dia 26 de Março de 2019, na empresa, o arguido, desagradado com questões relativas a um empregado, desferiu um murro na parte de trás da cabeça da assistente, provocando tonturas e desequilíbrio, ao mesmo tempo que afirmava “Não tens nada que falar com o empregado, caralho!”, tendo a assistente necessidade de receber tratamento hospitalar;

7. Como consequência directa e imediata da agressão perpetrada pelo arguido, a assistente apresentou sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional;

8. No dia 29 de Março de 2019, na sede da empresa, o arguido, desagradado com o facto de a vítima não pretender assinar uma procuração, afirmou “Tu assina-me senão eu dou cabo de ti!”, “Vai para a puta que te pariu!”, “Tu não sabes o que eu sou capaz”;

9. Nessa sequência, a assistente fugiu da empresa, procurando boleia até à ..., a chorar e apresentando-se desorientada e aos gritos, tendo a GNR ido ao seu encontro;

10. No dia 06 de Março de 2020, a assistente apresentava uma escoriação localizada na face externa, terço médio, do pescoço, uma equimose localizada na face interna, terço médio, do braço esquerdo, e uma equimose arroxeada localizada na face interna da articulação do joelho direito, passíveis de determinar oito dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional;

11. O arguido actuou com intenção, concretizada, de atingir a assistente, com quem estava casado e depois se divorciou e de quem tinha dois filhos em comum, na sua saúde física, pretendendo molestar o seu corpo e lesando a sua integridade física;

12. Bem sabendo o arguido que a sua actuação era apta a causar, como causou efectivamente, para além de dores, tensão e inquietação;

13. Actuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente;

Mais se provou que:

14. Nos dias 20.11.2018 e 26.03.2019, a assistente deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., E.P.E., tendo-lhe sido prestada assistência, por força das lesões por si apresentadas;

15. Os cuidados prestados à assistente no dia 26.03.2019 foram originados pela conduta do arguido, supra descrita no ponto 6;

16. Os encargos com a assistência prestada à assistente importaram a quantia de €244,82, mais concretamente €85,91 no dia 20.11.2018 e €158,91 no dia 26.03.2019;

17 A assistente recebe ajuda de instituições de solidariedade social com bens alimentícios;

18. O arguido é sócio-gerente da sociedade “A..., Lda”, auferindo a quantia de €2.900,00, a título de salário;

19. Reside com a sua actual companheira, que exerce funções de gerente da sociedade referida no ponto anterior, auferindo a remuneração mensal de €1.900,00;

20. Suporta o pagamento da quantia de €500,00, a título de amortização de empréstimo contraído com vista à aquisição de habitação;

21. Suporta, ainda, o pagamento da quantia de €400,00, a titulo de amortização de empréstimo contraído com vista à aquisição de veículo automóvel;

22. O arguido tem o 4.º ano de escolaridade, bem como o equivalente ao 9.º ano do ensino francês;

23. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.


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2.2. Factos não provados

Com relevância para a presente decisão, não resultaram provados os seguintes factos:

a) Um dos filhos do casal, CC, trabalha na “A...”;

b) No dia 25 de Maio de 2018, na sede da empresa, o arguido chamou “cabra” à sua mulher, dizendo ainda “Vai para o caralho!” e “Desaparece daqui, não fazes aqui falta!”;

c) No dia 16 de Agosto de 2018, o arguido, em frente aos empregados, desferiu um empurrão no peito da vítima, afirmando “Sai daqui! Vai para a puta que te pariu! És burra! És um caralho!”;

d) No dia 20 de Novembro de 2018, pelas 16h00, o arguido agarrou a vítima pelo braço direito, seguido de um empurrão, que a fez cair ao chão, magoando-se na perna e pé direitos;

e) Em momento não concretamente apurado, mas situado entre os dias 18 e 19 de Março de 2019, pelas 17h00, na sede da empresa, quando a vítima estava no seu automóvel, o arguido empunhou uma pedra e apontou para a frente da viatura, gerando pânico que fosse ser atingida, acabando AA por desferir pontapés na viatura;

f) No dia 26 de Março de 2019, o arguido chamou “filha da puta” à assistente e lhe disse “Vai-te foder! Dou cabo de ti!”,;

g) Quando a vítima tentou regressar a casa, foi novamente agredida pelo arguido;

h) O arguido, nessa altura, trocou também as fechaduras da residência, não tendo a vítima mais acesso à mesma;

i) Retirando ainda o automóvel da empresa que, na prática, estava em uso pela vítima, desmontando-o, para que a vítima deixasse de ter mobilidade;

j) No dia 29 de Março de 2019, o arguido disse à assistente “Eu mato-te!”, “sou capaz de tudo e tu sabes bem caralho!”, afirmando que a mandaria para o hospital se necessário;

k) A procuração referida no ponto 8 visava a disposição de todo o património:

l) No dia 7 de Junho de 2019, o arguido desferiu um empurrão à vítima, fazendo-a cair no solo, tendo de fazer esforço com mãos e braços por forma a proteger a cara e peito, acabando por embater com a cara no chão, acabando por ter de receber tratamento hospitalar no dia seguinte, face às dores apresentadas;

m) Por causa dos factos descritos, e com receio de voltar, a vítima acabou por sair de casa, procurando acolhimento provisório, inicialmente em casa do filho CC e depois em casa de uma pessoa amiga;

n) O arguido impediu ainda a vítima de aceder à empresa e à casa de morada de família, não tendo acesso a bens ou a contas bancárias, deixando de ter salário desde julho de 2019 e não tendo rendimentos, passando a residir numa garagem cedida por um casal amigo em ..., não tendo acesso a casa de banho, necessitando da ajuda de terceiros para alimentação e medicamentos;

o) Em data não concretamente apurada, próxima do dia 26 de Fevereiro de 2020, o arguido apertou o braço direito da vítima, atingindo o ombro e pescoço, provocando dores intensas, levando a que tivesse de ser assistida no Centro de Saúde ...;

p) Apresentando as queixas melhor descritas na perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 62/63 do NUIPC 82/20.9GAVGS;

q) No dia 5 de Março de 2020, na empresa, o arguido referiu à sua ex-mulher “Vai para o caralho!”, “Vai-te foder!”, “Eu mato-te! Eu rebento contigo!”, agarrando-a pelo pescoço em seguida e pelo braço direito, empurrando-a e retirando ainda o telemóvel para não pedir auxílio, levando a que tivesse de ser assistida no Centro de Saúde ...;

r) No dia 12 de Março de 2020, na empresa, o arguido desferiu uma palmada na cara e cabeça da vítima, levando a que esta tenha tido necessidade de tratamento hospitalar;

s) Apresentando dor à palpação na região maxilar inferior, que determinaram, direta e necessariamente, 2 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional;

t) No dia 29 de Março de 2020, o arguido, no Bairro ..., em ..., quando a vítima se encontrava a estacionar a viatura de matrícula ..-XM-.., supreende-a, abrindo rapidamente a porta da viatura, retirando um molho de chaves que estavam acopladas à chave de ignição, retirando desse molho apenas essa chave e entregando as restantes à sua ex-mulher, fazendo-a sua e sabendo que isso ia contra a vontade de quem utilizava a viatura;

u) No dia 19 de Abril de 2020, em frente às instalações da empresa, o arguido, munido de uma chave suplente do automóvel de matrícula ..-XM-.., que era utilizado pela vítima e da qual a mesma tinha o benefício e usufruto, sendo pertença da sociedade, cortou o tubo de combustível e desligou o cabo da bateria, tudo com o objectivo de o estragar e que a vítima ficasse sem poder usufruir do automóvel para se poder deslocar livremente, provocando estragos de valor não concretamente apurados, mas não inferiores a 150€, tendo a viatura que ser rebocada e a vítima ficado sozinha e apeada, acabando por ter boleia da GNR;

v) Colocando ainda anteriormente, em data não concretamente apurada, mas que se situará em Dezembro de 2019, uma pedra na traseira da viatura da vítima, para que se visse impedida de utilizar o veículo, bem como colocando diversos bens da vítima na rua, assim também a humilhando, na medida em que se tratam de factos ocorridos na via pública;

w) No dia 3 de Maio de 2020, na Avenida ..., em ..., o arguido foi atrás da vítima, que se encontrava a caminhar, afirmando “Vou-te bater! Vou-te matar! Vou-te dar cabo dessas trombas!”, o que muito amedrontou a sua ex mulher;

x) No dia 30 de Maio de 2020, na casa de morada de família, o arguido, na sequência de discussão sobre bens, gozou com a situação precária de BB agarrou a vítima pelos braços, desferindo ainda um pontapé no joelho, afirmando para abandonar o local e que não a queria ver mais ali, levando a que a vítima BB tivesse de procurar auxílio e refúgio nas proximidades, em casa da testemunha DD, com medo que o arguido atentasse contra a sua vida, sendo perseguido até esse local pelo arguido, tendo de ser esta a proteger a vítima apelando à calma;

y) Apresentando as queixas melhor descritas na perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 214/215 do NUIPC 82/20.9GAVGS;

z) No dia 3 de Junho de 2020, pelas 9h00, na empresa, o arguido, desagradado com a presença da vítima, agarrou-a pelo braço com força e colocou-a fora do escritório;

aa) Votando o arguido a sua ex-mulher, pelos factos descritos, a um isolamento total e deixando-a em condições de precariedade económica e vulnerabilidade extrema, retirando os seus bens de casa e mesmo após uma transação não cumprida no âmbito de questões legais ligadas à sociedade de ambos, apresentando a vítima elevada sintomatologia ansiógena e depressiva devido à violência e factos referidos;

bb) O arguido sabia que, ao ter actuado da forma supra exposta, causava os estragos descritos no automóvel conduzido e afecto ao uso da vítima, que não se encontrava autorizado a fazê-lo e que agia contra a vontade da sua ex-mulher, tendo agido sempre com o propósito, concretizado de alcançar tal resultado;

cc) O arguido, com a conduta descrita de retirar a chave do carro afecto à sua ex-mulher, agiu com intenção, concretizada, de se apoderar da mesma, integrando-a no seu património, sabendo não ter direito à mesma, porque afecta ao uso da vítima, pretendendo justamente privá-la desse objecto, e que agia contra a vontade da sua utilizadora e beneficiária;

dd) O arguido actuou com intenção, concretizada, de atingir a vítima na sua honra e saúde psíquica, lesando a sua dignidade pessoal e causando grande trauma psicológico, pretendendo privá-la de bens e valores, votando-a a situação de carência económica grave e fazendo-a depender de terceiros para viver, não se abstendo de levar a cabo tais condutas por largos meses e em frente a terceiros, em público e na via pública, bem como na residência comum, confiando a arguida que este tipo de acções não ocorreria entre quem manteve um casamento e tinha dois filhos, sabendo que lhe era devido especial respeito e consideração pela sua ex-mulher;

ee) Bem sabendo o arguido que tais actuações eram aptas a causar, como causaram efetivamente, desgosto, tristeza, mal-estar, humilhações várias e condição económica precária, vivendo da ajuda de terceiros, dessa forma a depreciando e fragilizando física e psiquicamente.

ff) A assistente recusa-se a receber do arguido a quantia de € 275.000,00, resultado de uma transacção judicial e a concretizar a partilha;

gg) A assistente, sabendo que a sociedade de que era sócia e gerente se obriga com a assinatura de dois gerentes, dela própria e do arguido, sempre se recusou a colaborar na gestão daquela, pondo inclusivamente em causa o meio de subsistência de diversas famílias;

hh) Os desentendimentos entre assistente e arguido nunca estiveram relacionados com a relação de marido e mulher existente entre ambos;

ii) Os cuidados prestados à assistente no dia 20.11.2018 foram originados por força da conduta do arguido;

jj) Para além de ser vítima de violência por parte do arguido, o que muito sofrimento, desgosto e dor tem causado na assistente, a mesma vê-se numa situação economicamente frágil, vivendo abaixo do limiar da pobreza;

kk) A assistente viu-se obrigada, por uma questão de protecção, a sair da sua habitação e deixar de ir à empresa com medo que o arguido atentasse contra a sua integridade física ou contra a sua vida;

ll) A assistente deslocava-se em automóvel que, apesar de pertencer a sociedade de ambos, estava na sua posse, sendo utilizado exclusivamente por si;

mm) O arguido não só provocou danos nesse veículo, como lhe retirou o mesmo, mantendo o veículo fora do alcance da assistente, tendo-lhe retirado as rodas;

nn) Desconhece a assistente como está a ser gerida a empresa da qual é gerente mas que actualmente não dispõe de qualquer poder, pois é impedida pelo arguido de o fazer, tendo inclusivamente este vedado o acesso da assistente às contas da sociedade e deixou de pagar o salário que esta auferia e que permitia que vivesse dignamente;

oo) Desta feita, sem acesso aos seus bens, e sem receber o seu salário por causa do arguido, a assistente vê-se a residir numa garagem cedida por pessoas amigas e a viver da caridade alheia;

pp) A assistente vive, desde 2014, pelo menos, em constante sobressalto, com medo contante, com receio de que o arguido concretize as ameaças por si proferidas;

qq) Toda esta situação, todos estes anos de violência física, psicológica e as humilhações tem criado na assistente transtornos psicológicos, vivendo imensamente desgostosa e em constante tristeza, tendo ficado bastante nervosa e num estado de ansiedade permanente.


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Os restantes factos (mormente da contestação e pedidos de indemnização civil deduzidos), não especificamente dados como provados ou não provados, constituem factos repetitivos, conclusivos ou que contêm factualidade irrelevante para a presente decisão.

Em concreto, importa atentar no seguinte. Constava da acusação pública deduzida nos autos contra o arguido, além do mais, que:

3. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2014, que o casal começou a ter conflitos, tendo, a partir daí, o arguido começado, com frequência e em casa, para a incomodar e humilhar, a chamar de “cabra” e “puta” a sua mulher, dizendo “Vai para a puta que te pariu!” e afirmando “Parto-te as trombas!”, “Madeirensa”(sendo a vítima natural dessa região autónoma) e ”Não tens nada na cabeça!”.

4. Partindo objetos e obrigando a vítima a limpar.

5. Também a partir de certa altura, não concretamente apurada, o arguido começou a maltratar a sua mulher no local de trabalho, e em frente a terceiros, empregados, com o intuito de a humilhar, afirmando “Vai para o caralho!”, “Vai-te foder!”, “És uma filha da puta!”, “És uma burra!” “Não sabes fazer nada!” e “Só atrapalhas!”.

Ora, os comportamentos imputados ao arguido na factualidade acima transcrita constituem imputações desprovidas de concretização espacial e temporal, sendo utilizadas expressões de conteúdo vago e indefinido, para lá de revestirem cunho conclusivo, que impossibilitam o cabal exercício do seu direito de defesa.

Como pode ler-se no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no dia 30.09.2015, Relatora: Maria Luísa Arantes, Processo n.º 775/13.7GDGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt, “As imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente”, devendo, nessa decorrência, “considerar-se não escritas”.

Em particular no que respeita ao ilícito ajuizado nos autos, sustenta o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão datado de 08.07.2015, Relator: José Carreto, Processo n.º 1133/13.9PHMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt, que “[O] crime de violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroactivamente, o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de «regime». Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial. Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos”.

Efectivamente: “(…) A norma que prevê e pune o crime de violência doméstica não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos (…). Não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas (…)” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.01.2018, Processo n.º 204/10.8GASRE.C1, disponível em www.dgsi.pt.

Nestes termos, sufragando, na íntegra, as considerações expendidas nos citados arestos, as transcritas imputações genéricas, desprovidas da indicação do tempo e circunstancialismo em que ocorreram, por obstarem ao efectivo exercício do direito de defesa do arguido, foram tidas como não escritas, razão pela qual sobre as mesmas não nos pronunciamos.»


*

Vejamos então a questão colocada.

Invoca o recorrente que o Tribunal a quo entendeu que «a imputação ao arguido da prática de um crime de violência doméstica cai pelo facto de a factualidade considerada como provada não assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo e desconsideração pela vítima, não sendo, por isso, um atentado à sua dignidade pessoal, como é exigível no crime de violência doméstica.»

Porém, acrescenta, «[p]ara se qualificar o crime de Ofensa à Integridade se impunha que o Tribunal a quo fizesse esse mesmo juízo de aferição da censurabilidade e da perversidade da conduta do Arguido, o que, salvo o devido respeito, não aconteceu.»

Refere que «é a própria sentença que baliza os desentendimentos entre Arguido e assistente no contexto empresarial», que o casamento já tinha acabado e que nenhum dos elementos referidos «confere especial perversidade ou censurabilidade à conduta do Arguido, sobretudo se atentarmos no facto de ser o próprio Tribunal a quo a evidenciar as tensões geradas com a gestão da empresa do casal.

Concluiu que o crime de ofensa à integridade física não devia ser qualificado.

Sobre esta temática, fez o Tribunal a quo a seguinte análise (transcrição):

«Do crime de violência doméstica

Dispõe o artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…)”c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.

Por sua vez, resulta do n.º 2 da mesma norma legal o seguinte: “No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

Prescrevem, ainda, os n.ºs 4 a 6 do mesmo artigo 152.º do Código Penal: “4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica; 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância; 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos”.

A disposição legal acabada de transcrever está, sistematicamente, integrada no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. Deste modo, pode, desde já, concluir-se que a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.

Com efeito, o bem jurídico tutelado pela incriminação é a integridade corporal, a saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral – neste sentido, cfr. Augusto Silva Dias, in “Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2.ª edição, 2007, página 110.

Em sentido coincidente, escreveu Taipa de Carvalho que “a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (…) Apesar de integrado no Capítulo III, cuja designação é “crimes contra a integridade física”, a ratio deste art. 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, não prestação de cuidados higiénicos ou de medicamentos, etc.). Portanto, deve dizer-se que o bem jurídico directamente protegido por este tipo de crime é a saúde” – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, 2.ª Edição, 2012, páginas 511 e 512.

A este respeito, refere ainda Plácido Conde Fernandes que “A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa” – cfr. “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal” in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, página 305.

Em conclusão, podemos dizer que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física, psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.

O crime de violência doméstica constitui um crime específico, pressupondo que um dado agente se encontre numa determinada relação face ao sujeito passivo daqueles comportamentos.

A este propósito, ensina Taipa de Carvalho que, na maioria dos casos, tratar-se-á de um crime específico impróprio, na medida em que a relação pré-existente determina uma agravação da ilicitude, da culpa, e, consequentemente, da pena estabelecida para a infracção – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, 2.ª Edição, 2012, página 513.

Quanto às condutas previstas e punidas por este tipo de ilícito, o legislador optou por uma enumeração exemplificativa, podendo aquelas ser de várias espécies, como: maus tratos físicos (ofensas corporais simples); maus tratos psíquicos (humilhações, molestações, etc); tratamento cruel e desumano (ex. reiterada omissão de fornecimento de alimentos ou medicamentos a horas), privações de liberdade e ofensas sexuais.

Com efeito, as condutas que integram o tipo objectivo do crime de violência doméstica podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem outros crimes, maxime uma pluralidade de crimes de tipo comum (nomeadamente de ofensas à integridade física).

Em sentido coincidente, o conceito de maus-tratos físicos ou psíquicos, a que se refere a disposição incriminadora em análise, é determinado por Taipa de Carvalho nos seguintes termos: “(…) maus-tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.)” – vd. Comentário Conimbricense do Código Penal -Parte Especial, Tomo I, página 333.

Deste modo, e como se esclarece no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14.01.2014, relatado por Ana Brito, no processo 1.015/12.1GCFAR.E1, “1. A realização do tipo de crime de violência doméstica previsto no artigo152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal não exige a imposição de maus-tratos físicos. 2. A reiteração da prolação de expressões injuriosas e a adopção de um comportamento psicologicamente agressivo e repetido ao longo de vários anos relativamente a cônjuge que se vai fragilizando e diminuindo enquanto “pessoa” consubstancia maus-tratos psíquicos no nível de intensidade contido no tipo”

Atente-se ainda que o n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, ao terminar com a expressão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, consagra a regra da subsidiariedade, o que vale por dizer que a punição por este crime apenas terá lugar quando ao crime geral a que corresponde a ofensa não seja aplicada uma pena mais grave, como acontece com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, ameaças, coacção, sequestro, coacção sexual, violação, importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes ou crimes contra a honra.

Conforme constitui doutrina estabilizada, entre o crime de violência doméstica e os crimes, entre outros, de ofensa à integridade física e de ameaças que o integram, ocorre uma relação de concurso aparente ou de mero concurso de normas.

Como ensina Paulo Pinto de Albuquerque, “O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidiariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”) “– cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ob. citada, página 645.

Resumidamente, e como é dito no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03.07.2012 (relatado por Sérgio Corvacho – processo n.º 53/10.3GDFTR.E1), “a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Quanto aos elementos subjectivos do tipo, a incriminação em apreço exige uma actuação dolosa, isto é, que o agente, conhecendo a relação que o une ao sujeito passivo e a ilicitude das suas condutas, actue com vontade de realizar os elementos objectivos do tipo, isto é, actue querendo atentar contra a saúde (lato sensu) e dignidade deste.


*

Feita esta resenha da disciplina normativa aplicável, importa que nos detenhamos na análise do caso concreto, por forma a apurar se os factos dados como provados preenchem os elementos do tipo de ilícito de violência doméstica.

Antes de mais, importa atentar que da factualidade considerada provada se extrai que o arguido e a assistente casaram no dia 7 de Novembro de 1981 e se divorciaram entretanto, por sentença transitada em julgado a 24.10.2018, tendo resultado dessa união dois filhos em comum, já maiores de idade.

Tendo em consideração os factos em apreciação nos presentes autos, constata-se, assim, que as condutas em apreço, a subsumirem-se ao tipo legal de crime em análise - crime de violência doméstica -, integrarão, desde logo, as previsões normativas constantes das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 152.º.

Mais se julgou provado, com relevância para a apreciação da eventual responsabilidade jurídico-criminal do arguido, que (i) no dia 26 de Março de 2019, na empresa, o arguido, desagradado com questões relativas a um empregado, desferiu um murro na parte de trás da cabeça da assistente, provocando tonturas e desequilíbrio, ao mesmo tempo que afirmava “Não tens nada que falar com o empregado, caralho!”, tendo a assistente necessidade de receber tratamento hospitalar, apresentando sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional; (ii) no dia 29 de Março de 2019, na sede da empresa, o arguido, desagradado com o facto de a vítima não pretender assinar uma procuração, afirmou “Tu assina-me senão eu dou cabo de ti!”, “Vai para a puta que te pariu!”, “Tu não sabes o que eu sou capaz””.

Note-se que, tendo resultado provado que a assistente, nos dias 20.11.2018 e 06.03.2020, apresentava lesões corporais, não se apurou que essas mesmas lesões tenham sido provocadas pelo arguido.

Assim, analisando-se a conduta objectiva considerada como provada como encetada pelo arguido e circunscrevendo-se a nossa análise a tal factualidade, sendo de desconsiderar qualquer outra, nomeadamente a não provada, conclui-se, salvo melhor entendimento, que pelo modo de execução não assume os laivos de gravidade que são exigíveis para a condenação pela prática de um crime de violência doméstica.

Como defendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.02.2018, disponível em www.dgsi.pt, “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. O que importa saber é se a conduta do agende, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.

Também Nuno Brandão in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar n.º 12, p. 9/24 defende, a propósito da condenação por crime de violência doméstica que “aqui sim e para este feito, deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos.

Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de acção que agrava a sua ilicitude material do facto. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de anti- juridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso”.

Ora, in casu, a imputação ao arguido da prática de um crime de violência doméstica cai pelo facto de a factualidade considerada como provada não assumir uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo e desconsideração pela vítima, não sendo, por isso, um atentado à sua dignidade pessoal, como é exigível no crime de violência doméstica.

Não se olvida que o comportamento encetado pelo arguido assume inequivocamente relevância jurídico-penal, na medida em que atingiu a integridade física da assistente e a sua liberdade ou autodeterminação.

No entanto, não ficou demonstrado que as condutas do arguido, valoradas à luz do relacionamento entre agressor e vítima, sejam susceptíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou atentarem contra a sua liberdade ou autodeterminação.

Dito de outro modo, consideramos que a factualidade apurada não assume laivos de excessiva gravidade e de subjugação da vítima ao arguido para que este Tribunal considere que a conduta do arguido implicou a sujeição da vítima a maus-tratos psíquicos e/ou a comportamentos violentos ou submissão a um ascendente do arguido, como exige o crime de violência doméstica.

Cremos, pois, que a factualidade descrita não ultrapassava o desvalor jurídico-penal censurado pelos crimes de coacção, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e ainda de ofensa à integridade física (qualificada), previsto e punido pelo artigo 143.º e 145.º do Código Penal.

Posto isto, concluímos que a factualidade considerada como provada não é susceptível de enquadrar a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, devendo, por isso, ser absolvido da prática de tal crime imputado pelo Ministério Público na acusação pública deduzida.

No entanto, como referido supra, a conduta do arguido não é irrelevante do ponto de vista jurídico-penal, sendo, ao invés, subsumível à prática de um crime de coacção, na forma tentada, e de um crime de ofensa à integridade física.

(…)

Do crime de ofensa à integridade física (qualificada)

Nos termos do artigo 143.º do Código Penal, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

É protegido pela incriminação o bem jurídico integridade física, constitucionalmente consagrado no artigo 25.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, concedendo-se, desta feita, a cada cidadão, “um direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo, por meios físicos, sendo certo que tal direito, enquanto organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, goza de protecção absoluta, não podendo ser afectado mesmo em situações de suspensão de direitos fundamentais, na vigência de estado de sítio ou de emergência, como dispõe o artigo 19.º/6 da Lei Fundamental” – vd. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.03.2011, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Abílio Ramalho, disponível em www.dgsi.pt.

O crime em análise trata-se de um crime de dano, pelo que o crime apenas se consuma com a verificação objectiva do resultado, mormente a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa. Nestes termos, importa verificar, caso a caso, se existe um nexo de causalidade entre o resultado produzido e a conduta perpetrada pelo agente, segundo a teoria da causalidade adequada (10.º, n.º 1 do Código Penal), por forma a saber se o resultado que se verificou na realidade deve ser imputado como consequência adequada, razoável e previsível da conduta do agente, tendo em conta, não só as regras da experiência comum, como os próprios conhecimentos individuais de cada agente em concreto.

Mais ainda prevê o artigo 145.º do Código Penal que “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido (…) com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º”. Nos termos do n.º 2 do artigo 145.º do Código Penal, “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”.

Com efeito, comete um crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos das disposições conjugadas supra referidas, aquele que, sabendo que o visado assume umas das categorias previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (nas quais se inclui o cônjuge e ex-cônjuge), tem intenção de ofender o seu corpo ou a sua saúde, bem sabendo que a conduta é punida por lei (elemento volitivo e intelectual do dolo – elemento subjectivo do tipo, na modalidade de dolo directo), tendo em consequência do seu comportamento causado ofensa ao corpo ou à saúde da pessoa (elemento objectivo do tipo).

O agente só comete um crime de ofensa à integridade física qualificado, nos termos referidos, quando o Tribunal concluir pela verificação de uma circunstância perversa e especialmente censurável, de que é exemplo o facto de o ofendido ser uma das pessoas referidas no artigo 132.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal.

Todavia, é entendimento unânime na jurisprudência, a propósito da interpretação do artigo 132.º do Código Penal, que a verificação de uma das circunstâncias previstas no n.º 2 de tal preceito legal não implica necessária e automaticamente a qualificação do crime, assim como, ao invés, quaisquer outras poderão operar a qualificação. De facto, é reconhecida, neste contexto, a técnica dos exemplos padrão, que impõe ao julgador o dever de sempre ponderar, ainda que verificada uma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, se a circunstância se revela especialmente censurável e perversa. No caso de não se revelar, deverá o arguido ser condenado pelo crime na sua forma simples e não na forma qualificada. Por outro lado, se o julgador entender que uma qualquer outra circunstância, ainda que não esteja legalmente prevista, é de tal forma grave que reclame um juízo de censura jurídico-penal especialmente severo e perverso, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime na forma qualificada.

Descendo ao caso dos autos, entendemos que a factualidade considerada como provada é subsumível, em pleno, ao tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada.

De facto, foi considerado como provado que o arguido e a assistente casaram em 1981 e se divorciaram em 2018.

Mais foi considerado como provado que, no dia 26 de Março de 2019, o arguido, desagradado com questões relativas a um empregado da sociedade “A...”, desferiu um murro na parte de trás da cabeça da assistente, provocando tonturas e desequilíbrio, ao mesmo tempo que afirmava “Não tens nada que falar com o empregado, caralho!”, tendo a assistente necessidade de receber tratamento hospitalar.

Mais se provou que, nessa sequência, a assistente apresentou sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

Provou-se ainda que o arguido actuou com intenção, concretizada, de atingir a assistente, com quem estava casado e depois se divorciou e de quem tinha dois filhos em comum, na sua saúde física, pretendendo molestar o seu corpo.

O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que toda a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Em face da factualidade exposta, não há dúvidas de que o arguido agrediu o corpo da sua ex-cônjuge, tendo-lhe provocado dores no seu corpo, encontrando-se, por esta razão, perfeito o tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física, assim como o tipo subjectivo, sendo este na modalidade de dolo directo.

A tudo isto acresce, no entender deste Tribunal, que o contexto que rodeou a agressão efectuada pelo arguido, perpetrada na pessoa da assistente, sua ex-cônjuge, na empresa gerida por ambos, num momento em que procurava sobre a mesma exercer controlo, determinando que não falasse com um terceiro, permite a qualificação do referido crime de ofensa à integridade física, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 143.º e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal.

Em face de todo o exposto, não emergindo da factualidade provada uma qualquer causa de exclusão da ilicitude ou culpa, cremos que o arguido, com factos por si praticados no dia 26 de Março de 2019, incorreu na prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2 alínea b) do Código Penal, devendo ser condenado.»

Completada a leitura deste segmento da fundamentação da qualificação jurídica dos factos, percebemos as razões pelas quais o recorrente invoca alguma incoerência entre decidir-se que os factos não assumem os laivos de gravidade que são exigíveis para a condenação pela prática de um crime de violência doméstica e simultaneamente afirmar-se, relativamente à mesma factualidade, que atingem o patamar de censurabilidade ou perversidade, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), do CPenal – no caso por se tratar de ex-cônjuge e de progenitor de descendente comum em 1.º grau –, para o enquadramento do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do CPenal.

É que, a nosso ver, a questão não é de gravidade da ofensa, mas sim de contexto.

Cremos que esse foi, igualmente, o entendimento que o Tribunal a quo pretendeu transmitir. É o que detectamos na parcela da fundamentação onde se refere que:

«Não se olvida que o comportamento encetado pelo arguido assume inequivocamente relevância jurídico-penal, na medida em que atingiu a integridade física da assistente e a sua liberdade ou autodeterminação.

No entanto, não ficou demonstrado que as condutas do arguido, valoradas à luz do relacionamento entre agressor e vítima, sejam susceptíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou atentarem contra a sua liberdade ou autodeterminação.

Dito de outro modo, consideramos que a factualidade apurada não assume laivos de excessiva gravidade e de subjugação da vítima ao arguido para que este Tribunal considere que a conduta do arguido implicou a sujeição da vítima a maus-tratos psíquicos e/ou a comportamentos violentos ou submissão a um ascendente do arguido, como exige o crime de violência doméstica.

Cremos, pois, que a factualidade descrita não ultrapassava o desvalor jurídico-penal censurado pelos crimes de coacção, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e ainda de ofensa à integridade física (qualificada), previsto e punido pelo artigo 143.º e 145.º do Código Penal.»

Independentemente de ter sido ou não essa a perspectiva do Tribunal a quo é a solução que perfilhamos.

Explicando.

Os factos em causa são apenas os consignados nos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada, isto é, no dia 26 de Março de 2019, na empresa, o arguido, desagradado com questões relativas a um empregado, desferiu um murro na parte de trás da cabeça da assistente, provocando tonturas e desequilíbrio, ao mesmo tempo que afirmava “Não tens nada que falar com o empregado, caralho!”, tendo a assistente necessidade de receber tratamento hospitalar e como consequência directa e imediata da agressão perpetrada pelo arguido, a assistente apresentou sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

Estes factos ocorreram cerca de seis meses após ser prolatada a sentença de divórcio entre o arguido e a assistente, sendo certo que o casal esteve casado cerca de 27 anos.

Esta é a única agressão perpetrada arguido, aqui recorrente, que foi dada como provada, para além de que nem há notícia de outros processos onde pudesse ter sido condenado por violência doméstica contra a assistente.

É certo que desde as alterações introduzidas em 2007, através da Lei n.º 59/2007, de 04-09, ficou inequivocamente resolvida a questão da necessidade, ou não, de se verificarem condutas reiteradas para a qualificação de determinada conduta como crime de violência doméstica, admitindo-se que um único acto ou episódio, dependendo do grau de gravidade inerente à violação da dignidade da vítima enquanto pessoa, pudesse configurar o referido tipo de ilícito.

Mas essa aptidão de um único acto não dispensa a sua ocorrência no contexto pressuposto pelo art. 152.º do CPenal, de existência de uma relação de proximidade e intimidade emocional.

Em 2007 é também alargado o âmbito da protecção da norma, passando a estar incluídas situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges.

É igualmente inequívoco que a alteração legislativa introduzida pela Lei 19/2013, de 21-02, na al. b), do n.º 1, do art. 152.º do CPenal, que acrescentou a relação de namoro a par da relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, já prevista, como alvo da previsão criminal, alargou de forma muito significativa o leque de situações que passaram a ficar sob a protecção deste tipo legal, bastando-se agora o legislador com o estabelecimento de uma relação amorosa não fortuita ou de carácter puramente sexual, onde a intimidade dos afectos associada a alguma continuidade na ligação propicia o desenvolvimento de comportamentos de maior confiança, de mais à vontade, que poderão deixar expostos à violência, através de atitudes atentatórias da dignidade dos visados, aqueles que nesse vínculo se revelam mais frágeis ou subjugáveis ao domínio pelo outro[2].

Mas, em todas estas situações que passaram a estar sob a alçada de protecção do crime de violência doméstica, não podemos dispensar o contexto de proximidade relacional, pois é ele que permite o desenvolvimento de comportamentos que revelam as mencionadas atitudes atentatórias da dignidade dos visados, daqueles que nesse vínculo se revelam mais frágeis ou subjugáveis ao domínio pelo outro.

Se os factos de que aqui tratamos tivessem ocorrido no decurso da vivência em comum do arguido e da ofendida seriam qualificados como violência doméstica, pois, apesar de não reiterados, espelhavam sobremaneira o esvaziamento da dignidade da ofendida enquanto pessoa inserida numa relação matrimonial, bem reflectido na conduta brutal, inopinada, e degradante a que o recorrente sujeitou a visada.

Mas no caso concreto, a agressão de que aqui tratamos mostra-se isolada, quer em termos de ausência de reiteração, quer em termos de continuidade de qualquer relacionamento entre ofendida e arguido após o divórcio que a coloque ainda, enquanto ex-cônjuge, em posição de subjugação. Mais, como se referiu, não há notícia de que na constância do matrimónio ou nos meses sequentes ao divórcio esse enquadramento se tenha verificado.

Dito de outro modo, os factos não revelam que tenha sido por força de um relacionamento passado ou presente, onde o arguido, aqui recorrente, surge como figura dominadora, controladora, humilhadora, que colocam a visada numa posição de fragilidade e subjugação ao arguido, que a ofensa se produziu.

E, por isso, mostra-se correcta a decisão de não enquadrar a ofensa física perpetrada como violência doméstica.

Mas esta apreciação, respeitante à configuração do crime de violência doméstica, não significa que o facto de a ofendida ser ex-cônjuge do arguido não releve para a qualificação do crime de ofensa à integridade física simples que está demonstrado ter sido cometido pelos pontos de facto provados 6, 7, 11, 12 e 13.

É que essa condição de ex-cônjuge – igualmente introduzida na redacção do n.º 2 do art. 132.º através da Lei n.º 59/2007, de 04-09 – deve determinar um grau de respeito, por toda a vivência próxima que existiu, à semelhança dos laços familiares básicos, que «devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade», sendo certo que a desinibição que a intimidade relacional propicia «não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado.»[3]

Figueiredo Dias[4], por referência ao crime de homicídio qualificado, transponível para os demais crimes onde essas circunstâncias estão previstas, explica que «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da “especial censurabilidade ou perversidade” do agente. À primeira vista dir-se-ia que, traduzindo-se a culpa jurídico-penal, em último temo, em um juízo de censura, apelar tipicamente para uma especial censurabilidade só poderia ter o significado tautológico e, como tal, inútil e equívoco, de apelar para uma culpa especial. Parece ser outro, todavia, o pensamento da lei e, na verdade, o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (na conclusão, ao que nos foi dado compreender, também TERESA SERRA, Homicídio Qualificado cit. 62 ss., louvando-se em lição oral de Sousa e Brito que, na argumentação, distinguiria componente da culpa relativos ao facto e ao agente, como de resto se encontra divulgado na doutrina alemã relativa à medida da pena: cf. SOUSA E BRITO, Homenagem Eduardo Correia III 1987 573 ss.; criticamente FIGUEIREDO DIAS, DP II § 284 ss. e ANABELA RODRIGUES, A Medida da Pena 1994 524 ss.). Esta distinção fica justificada, no essencial, quando se analisa a mais de perto cada um dos exemplos-padrão contidos nas diversas alíneas do art. 132°-2 e o seu significado para o “tipo orientador” em função do qual é construído o tipo de culpa.»

Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2010[5], «[a] especial censurabilidade, documentada no facto, referentemente ao agente, uma forma da respectiva realização especialmente desvaliosa. A especial perversidade evidencia que o agente na materialização do facto é portador de qualidades altamente desvaliosas ao nível da personalidade, merecedor de um juízo de culpa agravado, neste sentido (cf. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I volume, pág. 29).»

Ora, no caso concreto estamos perante agressão de mediana gravidade, consubstanciada num murro desferido na parte de trás da cabeça da assistente, que provocou tonturas, desequilíbrio, necessidade de tratamento hospitalar, e sintomas de cervicalgia, passíveis de determinar dois dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho.

Não é o acto de violência cometido que encerra em si especial censurabilidade ou perversidade.

Porém, a motivação, relacionada com a empresa de que ambos são sócios gerentes, afigura-se especialmente censurável, com laivos de proximidade ao motivo fútil, posto que a justificação verbalizada é a de que a assistente não devia falar com um funcionário. Para além disso, a forma de execução do acto é também especialmente censurável: percebe-se que o acto é inusitado e cobarde, pois atinge a visada na parte detrás da cabeça na sequência do desagrado do arguido, aqui recorrente, com questões relativas a um empregado, diminuindo drasticamente as possibilidades de defesa, tudo contextualizado num ambiente de autoritarismo, onde também se apreende a especial perversidade da conduta.

Esta forma de tratamento dispensada pelo arguido à sua ex-mulher, a propósito da empresa de que ambos eram sócios-gerentes e que estava por partilhar à data dos factos, encerra sem dúvida uma culpa acrescida, um especial desvalor de atitude, que conforma o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal.

Nenhuma censura se impõe, assim, fazer nesta sede à sentença recorrida.


*

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3,5 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Porto, 21 de Fevereiro de 2024

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Luís Coimbra
Paula Natércia Rocha
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Neste sentido, António Latas, in “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de fevereiro”, texto que corresponde à comunicação que, numa versão mais curta, foi apresentada em 03-05-2013 em acção de formação do CEJ: Curso de Especialização Temas de Direito Penal e Processual Penal, podendo ser consultado em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20MAT%20CRIMINAL/Alter_Cod_Penal_Lei%2019-2013.pdf.
Cf. ainda, entre muitos outros, os acórdãos do TRE, de 26-09-2017, Proc. n.º 518/14.8PCSTB.E1, relatado por António João Latas, e do TRP de 07-07-2016, Proc. n.º 8/15.9GAPRD.P1, relatado por Horário Correia Pinto, e de 08-03-2017, Proc. n.º 121/15.5JAPRT.P1, relatado por Jorge Langweg, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Dezembro de 2008, anotação 4 ao art. 132.º, págs. 349 e 350.
[4] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 29.
[5] Relatado por Armindo Monteiro no âmbito do Proc. n.º 242/08.0GHSTC.S1, acessível in www.dgsi.pt.