Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
406/22.4T9FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM MOTOR
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Nº do Documento: RP20231025406/22.4T9FLG.P1
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão administrativa de cassação do título de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada não conhece de qualquer contraordenação, não sendo aplicada através dela qualquer coima, e, logicamente, também nenhuma sanção que desta pudesse ser considerada acessória.
II - As coimas e sanções acessórias que, após o trânsito em julgado das respetivas decisões, determinaram a abertura do procedimento administrativo autónomo onde foi comunicada a decisão de cassação da carta de condução que deu origem à impugnação judicial, e que constituem o seu primeiro e último fundamento material, foram aplicadas em processos já extintos e cuja materialidade é já insuscetível de discussão – isto é, os factos constitutivos das contra-ordenações ou dos crimes que, na soma (rectius, subtração) pontual a eles correspondente, impõem a cassação da carta, não voltam nem poderiam voltar a ser julgados no processo administrativo de cassação, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
III - A decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conhece da impugnação judicial da decisão administrativa que ordene a cassação de carta de condução nos termos do artigo 148.º, 4, c)/10, do Código da Estrada não preenche qualquer das hipóteses taxativas previstas nas alíneas a) a d) do n.º1 do artigo 73.º do Regime Geral das Contra–ordenações (RGCO), pelo que, se não preencher também as da alínea e) do n.º1 ou a do n.º2 do mesmo artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, tal decisão judicial não admite recurso para o Tribunal da Relação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 406/22.4T9FLG.P1
Referência: 17344131

Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Felgueiras – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este




Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.

No âmbito de processo administrativo autónomo de cassação do título de condução, e considerando estarem verificados os pressupostos da cassação previstos no art. 148º/4/c)/10 do Cód. da Estrada, pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foi ordenada – por decisão de 30/06/2022, notificada ao condutor – a cassação do título de condução nº ...97, de que é titular AA.
Não se conformando com tal decisão administrativa, o referido AA, ao abrigo do disposto no art. 148º/13 do Cód. da Estrada, impugnou-a judicialmente no Juízo Local Criminal de Felgueiras, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, impugnação essa que correu termos sob o processo n.º 406/22.4T9FLG, culminando com a prolação, de sentença, na qual foi decidido manter aquela decisão administrativa.

Não se conformando com esta decisão, vem AA interpor recurso da mesma para este Tribunal da Relação do Porto.

O recurso foi admitido por despacho de 09/06/2023.

O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso, propugnando pela respectiva improcedência.

Neste Tribunal da Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo também pela improcedência do recurso

Foi cumprido o disposto no art. 417º/2 do Cód. de Processo Penal.

No dia 08/09/2023 foi proferida, pelo ora relator, decisão sumária nos termos do disposto no art. 417º/6/b) do Cód. de Processo Penal, rejeitando o recurso interposto, por considerar ser a decisão recorrida legalmente irrecorrível – cfr. arts. 420º/1/b)/2 e 414º/2 do Cód. de Processo Penal, em conjugação com os arts. 148º/13 e 186º do Código da Estrada, e art. 73º do D.L. 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra–ordenações – RGCO).

Desta última decisão veio reclamar o recorrente AA, requerendo o julgamento em conferência, nos termos do disposto no art. 419º/3/a) do Cód. de Processo Penal.
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.
*
II. Apreciando

Cumpre desde logo assinalar que, apreciada colegialmente a questão, entende–se ser de reiterar o decidido em sede da decisão sumária reclamada – isto é, julga–se na verdade que o recurso interposto deve ser rejeitado por se considerar que a decisão é legalmente irrecorrível – cfr. arts. 420º/1/b)/2 e 414º/2 do Cód. de Processo Penal, em conjugação com os arts. 148º/13 e 186º do Código da Estrada, e art. 73º do D.L. 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra–ordenações – RGCO).

Vejamos quais as incidências processuais relevantes para contextualizar a presente decisão:

1º, Em processo administrativo autónomo de cassação do título de condução, considerando estarem verificados os pressupostos da cassação previstos no art. 148º/4/c)/10 do Cód. da Estrada, pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foi ordenada – por decisão de 30/06/2022, a cassação do título de condução nº ...97, de que é titular AA ;

2º, Não se conformando com tal decisão administrativa, veio o referido AA, ao abrigo do disposto no art. 148º/13 do Cód. da Estrada, impugná-la judicialmente no Juízo Local Criminal de Felgueiras, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, impugnação essa que corre termos sob o processo n.º 406/22.4T9FLG, culminando com a prolação de sentença em 26/05/2023, na qual foi decidido manter aquela decisão administrativa, sendo os seguintes os termos decisórios da dita sentença :
«V – DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se julgar o presente recurso improcedente, mantendo-se a cassação do ... do Recorrente AA, e decide-se ainda que não existe qualquer inconstitucionalidade das normas aplicadas na referida decisão administrativa.
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Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (cfr. artigos 92º, 93º, nº 3 e 94º, nº 3, todos do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas e artigo 8º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais).
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Cumpra, oportunamente, o disposto no artigo 70º, nº 4 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas e comunique ao I.M.T. e ANSR. ».

Suscita–se, pois, desde logo a questão da admissibilidade do presente recurso.

Como acaba de se relatar, os presentes autos têm origem no procedimento administrativo reportado à cassação da carta de condução do ora recorrente.
Assim, dispõe o art. 148º do Cód. da Estrada, sob a epígrafe «Sistema de pontos e cassação do título», dispõe o artº 148º do Código da Estrada (na redacção introduzida pela Lei 116/2015 de 28 de Agosto) o seguinte, e na parte aqui relevante:
«1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 – [...].
6 – [...].
7 – [...].
8 – [...].
9 – [...].
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações ».
No que respeita às infracções susceptíveis de configurar contraordenação, o legislador atribuiu competência para o respectivo processamento e aplicação de coimas e sanções acessórias que se justifiquem, às competentes autoridades administrativas (cfr. arts. 33º e 34º do RGCO).
E sendo certo que as decisões administrativas são impugnáveis por meio de recurso para os tribunais judiciais, a admissibilidade e grau recursório admitido são objecto de estrito condicionamento aos limites objectivos para tal efeito fixados na lei.
No que para aqui especialmente releva, o legislador, após admitir o recurso judicial das decisões da autoridade administrativa para o tribunal de primeira instância (nos termos previstos nos arts. 59º e 61º do RGCO, e cujo questionamento não se suscita), submete por sua vez limites à viabilidade de recurso para o Tribunal da Relação das decisões entretanto proferidas (em resultado daquela impugnação da decisão administrativa) pelo tribunal judicial de primeira instância.
Assim, estabelece o art. 73º do RGCO, de forma taxativa, quais as decisões (do tribunal judicial de comarca) de que cabe – e, assim, é admissível – recurso para o Tribunal da Relação, estipulando o seguinte:
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.»
Ou seja, em sede de direito das contra-ordenações, e como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do RGCO à luz da CRP e da CEDH” ed. 2011, pág. 298, «no direito das contra–ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista» – o que significa, no que se reporta à viabilidade de recurso das decisões judiciais proferidas em primeira instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos expressos casos previstos na lei, isto é, no art. 73º do RGCO.
Estamos, pois, perante norma de natureza especial em relação ao regime estabelecido nos arts. 399º e 400º do Cód. de Processo Penal – e que assenta na intenção do legislador de, em processo de natureza contraordenacional, limitar o recurso para o Tribunal da Relação –, não se mostrando por isso aqui configurada qualquer situação de lacuna processual legal, pois que aquela primeira norma afasta a aplicabilidade desta segunda.
Notar–se–á que a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20º/1 da Constituição da República Portuguesa (onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»), não implica a generalização do duplo grau de jurisdição.
Tal princípio constitucional apenas garante imperativamente um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contraordenacional está, desde logo, assegurado pela possibilidade de impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção.
Donde, o art. 32°/1 da Constituição da República Portuguesa respeitar apenas ao processo criminal, sendo que, por sua vez, o nº 10 do mesmo artigo garante ao arguido os «direitos de audiência e defesa», nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios.
Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/04/2021 (proc. 194/20.9T9ALB.P1), «A decisão de cassação do título de condução constitui, assim, uma decisão que não envolve necessidade de interpretação de regras de direito, sendo o grau de impugnação para os tribunais judiciais a que alude o nº 13 do artº 148º do CE manifestamente suficiente para garantia de defesa dos interesses em causa».

Donde, no presente caso só seria admissível recurso da decisão que conheceu do mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação do título de condução de que é titular o ora requerente, se o art. 73º do RGCO o permitisse por via da integração em algum dos casos ali especifica e exclusivamente previstos.
No caso dos autos está em causa uma decisão cuja materialidade jurídica contraordenacional se mostra tutelada no Código da Estrada, decorrendo do art. 186º do Cód. da Estrada a admissibilidade do recurso, mas nos termos em que a mesma esteja prevista na lei geral aplicável às contra-ordenações. No mesmo exacto sentido prevê o art. 148º/13 do Cód. da Estrada, como já vimos, que a decisão administrativa de cassação da carta de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações.
Logo, e no que tange ao segundo grau de recurso, para o Tribunal da Relação, apenas nas hipóteses previstas no art.º 73º do RGCO.

Assim percorridas as várias situações em que o art. 73º do RGCO tutela a viabilidade de recurso para o Tribunal da Relação, constata–se que as mesmas se reportam a critérios relativos ou à dimensão da coima aplicada, à circunstância de haver lugar à aplicação de sanções acessórias, ou a incidências processuais relacionadas como a tramitação processual ao abrigo da qual a decisão do tribunal foi proferida; ou ainda quando essa admissibilidade seja ditada por motivos de manifesto interesse jurisprudencial.

Pois bem.

No caso em apreço, não está desde logo em causa qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) e b) do art. 73º/1 do RGCO – a aplicação de uma coima de valor superior a €249,40, ou a aplicação de alguma sanção acessória ao requerente.
Cumpre realçar que a cassação do título de condução determinada pela ANSR ao abrigo do disposto no art. 148º do Cód. da Estrada não reveste a natureza jurídica de «sanção acessória».
Por princípio, a sanção acessória não é um efeito automático da prática da infracção que a prevê, porque tem que ser decretada numa decisão condenatória, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função da natureza da infracção em causa, da existência de uma moldura abstracta privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das sanções principais. Ou seja, a sanção acessória é aplicável ao agente imputável em cumulação com uma sanção principal, dependendo desde logo de uma condenação nesta última; porém, não é um efeito dessa sanção (principal), mas antes uma consequência do ilícito (criminal ou contraordenacional).
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, ed. 1993, pág. 96 –, “continua a considerar–se que certos efeitos jurídicos da condenação desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, de que o sistema penal não pode, ou não quer, prescindir ; e, na verdade, e uma função preventiva que não se esgota da intimidação da generalidade, mas se dirige também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente”, sendo necessário, para a sua aplicação, «que o tribunal comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória» – ob. citada, pág. 197.
Porque se trata de uma sanção, ainda que acessória, a determinação da sua medida deve operar-se de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação daquela principal.
Tendo estes aspectos em consideração, e volvendo ao caso concreto, é evidente que ao arguido/recorrente não vem aplicada qualquer sanção acessória.
A cassação do título de condução prevista no art. 148º do Cód. da Estrada constitui antes um efeito das penas (principais ou acessórias) aplicadas por ilícitos de mera ordenação social ou crimes, ambos de natureza rodoviária, e que tenham determinado a perda total de pontos atribuídos ao respectivo titular. Trata-se de uma sanção de natureza meramente administrativa, de um efeito decorrente da aplicação prévia de verdadeiras penas, sanção essa aplicada em processo que se inicia após a ocorrência da perda total de pontos de que o condutor beneficia.
Em bom rigor, adianta–se, a decisão administrativa que foi objecto de impugnação judicial nos autos não conheceu sequer de qualquer contraordenação, não tendo sido por isso aplicada através dela qualquer coima e logicamente também nenhuma sanção que dela pudesse ser considerada acessória, sendo que para tal necessário seria que tal decisão administrativa tivesse assentado num procedimento administrativo, no qual se tivesse decidido a aplicação de uma coima e eventualmente também de uma sanção acessória, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos arts. 1º e 33º do RGCO o que não aconteceu no caso autos, porquanto as coimas e sanções acessórias que, após o trânsito em julgado das respectivas decisões, determinaram a abertura do procedimento administrativo autónomo onde foi comunicada a decisão de cassação que deu origem à impugnação judicial, e que constituem o seu primeiro e último fundamento material, foram aplicadas em processos já extintos e cuja materialidade é já insusceptível de discussão – isto é, os factos constitutivos das contra-ordenações ou dos crimes que, na soma (rectius, subtracção) pontual a eles correspondente, impõem a cassação da carta, não voltam nem poderiam voltar a ser julgados no processo administrativo de cassação, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/05/2023 (proc. 1159/22.1T9VCD.P1), «O que no processo administrativo autónomo se visa é apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao titular da carta de condução – cf. art.º 148º, nº 10, do CE. Ou seja, decisão que é proferida após e apenas por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto objeto de decisões já transitadas em julgado. Soma essa que está pré-anunciada, de um modo perfeitamente previsível, transparente, tanto quanto pedagógico, para o respetivo titular da licença, que não pode ignorar ou deixar de saber que a cassação da carta é um resultado meramente reflexo do trânsito em julgado daquelas decisões condenatórias e não da ordem administrativa de cassação, que apenas executa a consequência jurídica daquelas adveniente. E tanto assim é que a efetivação da cassação ocorre com a sua notificação ao titular da carta (“A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação” - art.º 148º, nº 12, do CE) e desse modo também lhe comunicando algo que já deveria saber, por força das anteriores condenações e da perda total de pontos que as mesmas representavam, isto é, que deixou de ter as condições de aptidão que estiveram na base da concessão do título de condução, e assim se verificando a caducidade do título de condução que inicialmente lhe tinha sido atribuído – art.º 130º, nº 1, al. d), do CE.
Assim, é bom de ver que a cassação da carta a que se refere o art.º 148º do CE não é uma sanção contraordenacional, porquanto não traduz em si a aplicação de qualquer coima – art.º 1º do RGCO -, nem é uma sanção acessória da coima».

Por outro lado, a situação ora em apreço não cai na previsão de qualquer das alíneas c), d) e e) do nº 1 do art. 73º do RGCO.
Manifestamente não estamos perante um caso de absolvição do requerente ou de arquivamento do processo (al. c)), nem de uma situação em que a impugnação judicial haja sido rejeitada (al.d)) – sendo certo resultar claro desta específica norma que a rejeição da impugnação judicial (da decisão administrativa) a que ali se alude, se traduz numa recusa por parte do tribunal de primeira instância em sequer conhecer do mérito da mesma impugnação, o que aqui não sucedeu.
Do processado dos presentes autos também não decorre que o tribunal de primeira instância haja decidido através de despacho (nos termos do art. 64º do RGCO) não obstante o ali recorrente (ora requerente) se ter oposto a tal modo de decisão (al. e)) – a decisão judicial que confirmou a cassação administrativamente determinada foi proferida, aliás, após a realização de audiência.

Finalmente, também não estamos perante uma situação enquadrável no nº2 do art. 73º do RGCO, pois nem sequer existe requerimento do requerente ou do Ministério Público, no sentido de este Tribunal da Relação dever aceitar o recurso da sentença proferida por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

De tudo quanto fica exposto, conclui–se que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância sobre o mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o requerente (nos termos do art. 148º/4/c)/10 do Cód. da Estrada), não é susceptível de recurso para o Tribunal da Relação, por não se mostrarem preenchida qualquer das possibilidade taxativamente constantes do art. 73º do RGCO.

No sentido da irrecorribilidade das decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas de cassação do título de condução, aí se considerando inadmissível tal recurso exactamente por não estar verificado um qualquer pressuposto dos previstos no art. 73º do RGCO, já se pronunciou este Tribunal da Relação do Porto, nos Acórdãos de 28/04/2021 (proc. 194/20.9T9ALB.P1) de que foi relatora a Juíza Desembargadora Dra. Eduarda Lobo, de 17/05/2023 (proc. 1159/22.1T9VCD.P1) de que é relator o Juiz Desembargador Dr. Francisco Mota Ribeiro, e ainda as Decisões sumárias de 23/03/2023 (proc. 2728/22.5T9AVR.P1), e de 04-05-2023 (proc. 2885/22.0T8VFR.P1) das quais é relator o Juiz Desembargador Dr. William Themudo Gilman, e ainda a Decisão sumária de 29/06/2023 (proc. 188/21.7T9FLG.P1) de que é relator o ora signatário (entretanto confirmada por Acórdão após reclamação para a conferência em termos similares aos do presente processo) – todas as decisões disponíveis em www.dgsi.pt/jtrp.nsf.

A decisão recorrida, que conheceu da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, não cabe no âmbito de previsão do art. 73º do RGCO, pelo que se terá de concluir pela respectiva irrecorribilidade.
Razão pela qual – e sendo certo que, nos termos do disposto no art. 414º/3 do Cód. de Processo Penal, não está este Tribunal da Relação vinculado à decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal de primeira instância –, de harmonia com as disposições conjugadas dos arts. 414º/2/3, e 420º/1/b) do Cód. de Processo Penal (das quais decorre que deve o recurso ser rejeitado sempre que, “se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artº 414º nº 2”, nomeadamente quando a decisão for irrecorrível), deve ser rejeitado o recurso interposto, por inadmissibilidade legal.
*
III. Decisão.

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em rejeitar o recurso apresentado por AA, por se considerar que a decisão impugnada é legalmente irrecorrível.

Custas a cargo do requerente com a taxa de justiça que se fixa em 3 (três) U.C.s (cfr. art. 420º/3 do Cód. de Processo Penal).
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Porto, 25 de Outubro de 2023
Pedro Afonso Lucas
Paulo Costa
Maria do Rosário Martins


(Texto elaborado pelo signatário, e revisto integralmente – sendo a assinatura autógrafa substituída pela electrónica aposta no topo da primeira página)