Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8816/24.6T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Nº do Documento: RP202509168816/24.6T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exoneração do passivo constitui uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste, ficando o devedor durante esse período (designado período da cessão) obrigado a ceder ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, dele se excluindo o “montante necessário ao sustento digno do insolvente”, a que se reporta o artº 239º do CIRE.
II - Porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo-se por referência o valor da remuneração mensal mínima garantida
III - Se for fixado como rendimento indisponível o valor da remuneração mensal mínima garantida e o insolvente demonstrar a necessidade de dispor mensalmente da quantia correspondente, é adequado considerar que o rendimento indisponível deve salvaguardar também a disponibilidade dos valores dos subsídios de férias e de Natal, pois que estes valores se integram no conceito de remuneração mensal mínima garantida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 8816/24.6T8VNG-C.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 6

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

Anabela Andrade Miranda

Rodrigues Pires

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

AA, apresentou-se à insolvência declarando, simultaneamente, pretender a exoneração do passivo restante.

Foi declarada a sua insolvência.

Pronunciando-se sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, afirmou o Senhor Administrador da Insolvência à mesma não se opor.

Veio a ser proferido despacho datado de 30.1.2025, que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e decidiu nesse âmbito, o seguinte:

“(…) Conjugados e ponderados todos os elementos carreados para os autos, designadamente a sua situação socioeconómica, decido fixar em 1 (um) salário mínimo nacional por mês, - acrescido de ½ salário pela filha menor de idade - com referência aos 12 meses do ano, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, nos termos e para os efeitos do dispositivo nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.

Em consequência determino que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2, do artigo 239.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (na versão introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro).

O apuramento do rendimento disponível e, assim, o cálculo dos montantes a ceder deverá ser feito anualmente, aquando da apresentação da informação prevista no artigo 240.º, n.º 2, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, dividindo-se o rendimento anual do insolvente por 12.”

Inconformado, o insolvente, AA, veio interpor o ressente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso vem interposto do Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante proferido pelo Tribunal a quo e circunscreve-se à fixação ao insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional e meio que tal valor será multiplicado por doze meses;

2. Com o devido respeito, o despacho proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ferido de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 613.º, n.º 3 do CPC e 17.º do CIRE, na parte em que procede à fixação do rendimento disponível a entregar pelo recorrente/insolvente ao fiduciário;

3. No despacho recorrido o Tribunal a quo limitou-se a fixar como estando excluído do montante do rendimento disponível a entregar ao fiduciário o valor equivalente a um salário mínimo nacional e meio por mês;

4. Mas tal despacho não fundamenta, nem sequer minimamente, a decisão proferida, nem os pressupostos que estiveram na base da referida exclusão;

5. Sendo totalmente omisso quanto à fundamentação, não sendo possível descortinar qual o percurso decisório levado a cabo pelo Tribunal a quo, pois da decisão não constam quaisquer factos assentes, dos quais se possa concluir do acerto, adequação e razoabilidade de que é esse valor que garante a sobrevivência condigna do insolvente e do seu agregado familiar;

6. Da decisão proferida não decorre, ainda que mínima e deficientemente, qual a ponderação que esteve subjacente à fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, com o que o despacho ora recorrido, por total ausência de fundamentação quanto a este ponto concreto, violou o disposto nos artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1 da CRP e padece de nulidade, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual expressamente aqui se arguiu para todos os efeitos legais;

7. O conceito de “rendimento disponível” vem indicado no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE e tratando-se de um conceito aberto, cabe ao intérprete essa tarefa de concretização;

8. Caberá ao juiz fixar, caso a caso, e de acordo com as regras da experiência, da equidade e atendendo à situação particular e concreta do insolvente e do seu agregado familiar, qual o valor a atribuir ao mesmo;

9. O montante mínimo a fixar em sede de exclusão ao rendimento disponível não corresponde necessariamente a um salário mínimo nacional – uma vez que se correspondesse o legislador tê-lo-ia dito;

10. O reconhecimento do princípio da dignidade humana, assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa é o princípio subjacente a tal conceito;

11. No juízo a formular pelo julgador impõe-se assim uma efetiva ponderação casuística da situação em causa;

12. Ponderação que o Tribunal a quo não fez;

13. Considerou o Tribunal a quo que o montante equivalente a um salário mínimo nacional e meio é suficiente para os “fins do artigo 239.º, n.º 3, alínea b)”, isto é, para assegurar o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, onde se inclui a filha de oito anos de idade;

14. E decidiu fixar o rendimento disponível do recorrente no valor correspondente a um salário mínimo nacional e 1/2, não tendo em consideração a composição do agregado familiar do insolvente;

15. Não tendo considerado o Tribunal a quo, os montantes concretos que o insolvente despende com as despesas referidas no artigo 10.º da petição inicial, a saber, “despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”;

16. A decisão do Tribunal a quo fixou o mencionado rendimento disponível no valor correspondente a um salário mínimo nacional e meio por mês, sendo que da leitura da parte da decisão sob recurso não se vislumbra como foi alcançado tal valor, não constando da mesma uma exposição dos factos julgados relevantes para justificar a fixação do valor que veio a ser fixado;

17. Nem teve a preocupação de que ficasse salvaguardada a sobrevivência minimamente digna do insolvente e do seu agregado familiar;

18. Ao não fazer a casuística ponderação que é exigida, não explicitou as despesas que teve em consideração para fixar tal valor;

19. O despacho recorrido considera erradamente que o insolvente paga a título de pensão de alimentos à sua filha menor o valor de € 75,00, quando na verdade, o valor pago é de €100,00, conforme resulta do relatório do Sr. Administrador de Insolvência.

20. Na decisão tomada pelo Tribunal a quo, não foram ponderadas as despesas efetivas do insolvente e do agregado familiar, devendo este Tribunal da Relação, o que desde já se requer, mandar ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, com vista a ser proferida decisão que determine que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao recorrente, com exclusão do valor correspondente:

- a dois salários mínimos nacionais vezes catorze meses

Ou, em alternativa

- a um salário mínimo nacional acrescido de metade de um salário mínimo nacional para a filha menor, com referência a catorze meses.

21. O montante que se encontra fixado revela-se manifestamente insuficiente para fazer face às despesas que o insolvente e esposa mensalmente têm de suportar para assegurar o seu sustento;

22. Não sendo concebível, dada a letra e o espírito do CIRE, que se fixe, sem mais, ignorando as regras da experiência, os princípios da razoabilidade e da equidade, o valor que foi fixado como estando excluído do rendimento disponível e, por essa via, se obrigue o recorrente, para (sobre)viver, a depender da ajuda ininterrupta de familiares e amigos;

23. O sacrifício que é imposto ao insolvente, que fica privado de proventos futuros que em circunstâncias normais lhe adviriam, tem necessária e obrigatoriamente como limite a respetiva vivência minimamente condigna;

24. No modesto entender do recorrente, o despacho ora posto em crise coarta a possibilidade de o mesmo se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e do agregado familiar;

25. O valor excluído do rendimento objeto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma decisão inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da CRP;

26. Os subsídios de férias e de Natal devidos ao insolvente deverão ser incluídos no valor do rendimento disponível;

27. O rendimento mínimo mensal indisponível deverá ser encontrado pelo valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) multiplicado por 14;

28. Como tem sido decidido por este Tribunal da Relação: o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade. Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano

29. O despacho proferido deverá ser revogado e substituído por Acórdão que estabeleça que o insolvente, tem a obrigação de entregar ao Sr. Fiduciário os montantes que anualmente receba ou venha a receber e que excedam 2 vezes 1 salário mínimo nacional vezes 14 meses.

TERMOS EM QUE DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, DEVE O DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO NOS TERMOS CONSTANTES DO PRESENTE RECURSO.ASSIM, SERÁ FEITA, COMO SEMPRE, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!!!”

Não foi apresentada resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, em conformidade com o preceituado nos artigos 14.º, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, 639.º, n.º 1, 644.º, n.º 1, 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

Assim, as questões decidendas são as seguintes:

-nulidade do acórdão por falta de fundamentação e;

-se deve ser alterado o rendimento disponível do insolvente para um rendimento disponível superior ao fixado (de 1 + 1 S.N.M X 14), ou em alternativa, se mantenha o rendimento disponível de 1 S.M.N + 1/2. mas multiplicado por 14 meses, ao invés dos atuais 12 meses.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:

a) O devedor apresentou-se à insolvência a 17-11-2024, sendo que por sentença proferida no dia 29-11-2024 foi declarada a sua insolvência;

b) O insolvente desempenha as funções de vigilante na empresa “A..., S.A.”;

c) Aufere o salário base mensal de € 912,53 (novecentos e doze euros e cinquenta e três cêntimos), aos quais acresce subsídio de chefe de grupo, no valor de € 57,18 (cinquenta e sete euros e dezoito cêntimos) e subsídio APA-P, no valor de € 109,60 (cento e nove euros e sessenta cêntimos), e subsídio de alimentação.

d) O insolvente é solteiro e tem 1 filha, menor, com 7 anos de idade;

e) Atualmente reside com a mãe, reformada, em habitação camarária;

f) O insolvente suporta mensalmente as despesas necessárias à alimentação, vestuário, calçado, água e outras decorrentes da vida normal em sociedade;

g) O devedor paga a título de pensão de alimentos devidos à filha menor de idade o valor de € 75,00 (setenta e cinco euros) mensais, ao qual acrescem metade do valor das despesas médicas e/ou medicamentosas, de educação e de saúde (não comparticipadas).

h) O insolvente não tem antecedentes criminais;

i) O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, alínea d), e 232.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

4.1 Da nulidade da sentença

Veio o Recorrente arguir a nulidade do despacho recorrido, alegando em suma que, o Tribunal a quo limitou-se a fixar como estando excluído do montante do rendimento disponível a entregar ao fiduciário o valor equivalente a um salário mínimo nacional e meio por mês, sem contudo, fundamentar, nem sequer minimamente, a decisão proferida, nem os pressupostos que estiveram na base da referida exclusão.

Assim, sendo totalmente omisso quanto à fundamentação, não sendo possível descortinar qual o percurso decisório levado a cabo pelo Tribunal a quo, pois da decisão não constam quaisquer factos assentes, dos quais se possa concluir do acerto, adequação e razoabilidade de que é esse valor que garante a sobrevivência condigna do insolvente e do seu agregado familiar.

Da decisão proferida não decorre, ainda que mínima e deficientemente, qual a ponderação que esteve subjacente à fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, com o que o despacho ora recorrido, por total ausência de fundamentação quanto a este ponto concreto, violou o disposto nos artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1 da CRP e padece de nulidade, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual expressamente aqui se arguiu para todos os efeitos legais;

Apreciando.

Os vícios determinantes da nulidade da sentença (elencados no art. 615º do CPC) correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

O art. 154º nº 1 do C.P.C estabelece que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

O dever de fundamentação das decisões judiciais, decorrente do art.º205.º da Constituição da República Portuguesa.

Como refere o Juiz Conselheiro Henriques Gaspar[1], habitualmente citado acerca desta questão, “A fundamentação adequada e suficiente da decisão (…) realiza uma dupla finalidade: projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada á realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos; para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nele contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos), para, sobre tais fundamentos formular o seu próprio juízo”.

A doutrina e a jurisprudência têm porém, decidido de forma reiterada e unânime, que a falta de fundamentação só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respetivo enquadramento legal.

Por contraponto, a sentença/acórdão que contenha uma fundamentação deficiente ou incompleta poderá padecer de vários vícios, mas não será, por esta via, nula.

No caso em apreço, á manifesto que o despacho recorrido não padece da nulidade apontada, pois que na tarefa de apurar o rendimento do devedor disponível para a cessão, o tribunal a quo não só elenca a factualidade de considera provada com relevância para a decisão a proferir (facto aí elencados de a) a i), que infra reproduzimos na fundamentação de facto, indicando os meios d prova em que se baseou), como fundamenta a decisão, indicando a norma aplicável, procedendo ao seguinte juízo:

“Conjugados e ponderados todos os elementos carreados para os autos, designadamente a sua situação socioeconómica, decido fixar em 1 (um) salário mínimo nacional por mês, - acrescido de ½ salário pela filha menor de idade - com referência aos 12 meses do ano, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, nos termos e para os efeitos do dispositivo nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.”

Improcede pois a nulidade arguida, sem necessidade de ulteriores considerações.

4.2 Do valor do rendimento disponível

Insurge-se ainda o Recorrente quanto ao valor do rendimento disponível fixado.

A exoneração do passivo restante é uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste.

Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.

O devedor mantém-se por um período de cessão adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos. Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art.º 239.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Esta medida especial de proteção do devedor pessoa singular traduz-se assim, esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.

A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.

A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.

Durante o período de cessão, o Insolvente encontra-se sujeito a um conjunto de deveres, nos termos elencados no art.º 239.º do CIRE.

Com efeito, durante o período da cessão, segundo as alíneas a) e c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE, o devedor fica obrigado nomeadamente a informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que lhe isso lhe seja requisitado e a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.

Caberá depois ao tribunal, findo o prazo da cessão, proferir decisão final da exoneração, concedendo-lhe ou não a exoneração do passivo restante, sendo que esta concessão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (cfr. artigos 244º e 245º do CIRE).

Só no final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º do CIRE, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, mas com exceção dos legalmente excluídos (nº 2 do art.245º do CIRE).

O nº 2 do art. 239º do CIRE dispõe que, «O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.»

E o nº 3 da mesma norma estabelece que «Integram o rendimento disponível os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua atividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»

Está em causa no presente recurso aferir precisamente o montante que deverá integrar o rendimento disponível do insolvente, que seja razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar, o qual não deverá exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional- al b) citada.

A exclusão do rendimento do que seja razoavelmente necessário para o sustento mínimo do devedor e do seu agregado familiar, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda [2] radica na proteção constitucional da dignidade humana.

No Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/07/2002, afirma-se o seguinte: "O salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o "mínimo dos mínimos" não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respetivo beneficiário."

Daí que, porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar. E, para tanto, a jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objetivos adjuvantes do juízo a formular, designadamente ao salário mínimo nacional.

Explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/16,[3]:"Jogam-se no art.º 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da proteção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da "segunda oportunidade" concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos."

Na ponderação do equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno, tal como dissemos, deve ter-se por valor de referência mínima o salário mínimo nacional.

Por sua vez, o montante mensal retido para o insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação socioeconómica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.

Na ponderação casuística a que procedeu o tribunal recorrido, decidiu que o insolvente deverá ser ceder aos credores da insolvência o rendimento que obtenha, que em cada um dos doze meses do ano, ultrapasse o equivalente a um salário e meio mínimo nacional, designadamente o valor dos subsídios de férias e de Natal e na proporção em que os mesmos ultrapassem este valor.

Ou seja, por um lado fixou em 1 salário e meio mínimo nacional mensal a quantia referida na alínea b) i) do citado n.º 3 do art.239º do CIRE, por outro, determinou que para se apurar o rendimento disponível a ceder pelo/a/s insolvente/s durante o período de cessão, deve-se multiplicar, em cada ano de cessão, o valor do rendimento indisponível fixado por 12 meses, devendo ser cedida a quantia que, tendo em consideração o rendimento anual líquido obtido pelo/a/s insolvente/s, incluindo subsídios de férias e de natal, exceder tal montante.

O recorrente, como vimos, discorda daquelas decisões.

Porém, quanto à primeira parte – fixação de um salário mínimo nacional mensal a excluir da cessão de rendimentos, a discordância (pretende que seja fixado um rendimento disponível superior correspondente a 2x o rendimento mínimo nacional), não se baseia, a nosso ver, em qualquer fundamento atendível.

Com efeito, o insolvente, é solteiro, vive com a mãe, sendo que mostra-se já acrescido de ½ salário pela filha menor de idade -para acorrer a despesas com esta.

E mostra-se a nosso ver, em face do valor fixado, inútil, para a boa decisão da causa, reapreciar a factualidade impugnada, relativamente ao valor dos alimentos que paga à filha (se 75€ como ficou a constar na sentença, se 100€, como alega), porquanto se trata de valores inferiores a ½ de uma smn, que foi considerado para atender às despesas com a filha menor.

Assim sendo, sob pena de estar a levar a cabo atividade inútil, infrutífera, vã e estéril, deve a Relação abster-se de apreciar da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto relativamente a factualidade que não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da ação.

É que a reapreciação da matéria de facto apenas se justifica quando, se for alterada, essa alteração tiver incidência na questão de direito; se assim não suceder, não tem o Tribunal da Relação de proceder à análise do material probatório tendo em vista saber se a prova produzida justifica ou não justifica que determinado quesito seja dado como provado integralmente

O valor de um salário mínimo e meio nacional, que corresponde a atualmente (em 2025) a 870,00€ + 435€, por mês, mostra-se a nosso ver, suficiente para garantir a satisfação das despesas reconhecidas ao requerente.

Ou seja, na ponderação e compatibilização possível de todos os interesses em presença, mostra-se adequado fixar o rendimento indisponível para os credores, a reservar para o insolvente, num montante fixado na sentença, que permitirá a vivência do insolvente, durante o período de cessão, em condições de mínima dignidade humana.

Nesta parte improcederá, pois o presente recurso de apelação, já que o insolvente pretendia que fosse acrescido ao valor fixado pelo tribunal recorrido ½ do rendimento mínimo nacional.

A segunda questão suscitada diz respeito à integração ou não dos subsídios de férias e de Natal no conceito de rendimento disponível.

No fundo, a questão é de saber se o montante a salvaguardar para o insolvente há-de ser aferido relativamente a 12 ou a 14 meses

Estes subsídios são, como se sabe, um complemento de retribuição do trabalho com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.

A forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.

Ora, o n.º 3 do art.º 239.º do CIRE é claro quando refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.

A jurisprudência encontra-se muito dividida nesta questão.

Uma parte da jurisprudência[4] defende que os subsídios de férias e de Natal são rendimentos disponíveis do devedor, pelo que deverão por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.[5]

Confrontados porém, com a declaração de voto de vencido subscrita pelo Sr. Cons. João Cura Mariano, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 (https://www.tribunalconstitucional.pt /tc/acordaos /20140770.html) entendemos que não podemos deixar de aderir a este entendimento, por ser aquele que, a nosso ver, melhor se adequa ao princípio da dignidade da pessoa humana que tem cobertura constitucional, logo no 1º artigo da CRP, que constitui um valor axial e nuclear da Constituição portuguesa vigente, o qual nesse título, terá necessariamente de inspirar e fundamentar todo o ordenamento jurídico.

Pode aí ler-se, o seguinte, a propósito da impenhorabilidade de rendimentos, mas com total pertinência para de cisão a proferir: “(…) Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.

No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.

Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.

Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.”

Nas concretas circunstâncias do caso, foi fixado ao insolvente, como rendimento indisponível o valor de um salário mínimo e meio.

Não se teve por justificado que devesse manter valor superior.

Porém, devemos admitir em face da exposição feita no voto de vencido, acabada de transcrever, feito no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 citado, que um tal valor deve corresponder àquele que compreende também os montantes que o insolvente venha a receber a título de subsídios de férias e de Natal, pois que estes integram o que na citada declaração de voto se designa como o «…“mínimo dos mínimos” a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica».

Em suma, se se lhe atribui o mínimo, deve entender-se que este mínimo corresponde ao que o próprio legislador pressupôs no conceito de mínimo: o valor que atualmente corresponde a 870,00€ por mês, mas percebido 14 vezes por ano.[6]

Procederá, em conclusão, a apelação nesta parte, cumprindo alterar a decisão recorrida em conformidade, fixando-se como rendimento indisponível a quantia correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida, calculada nos termos descritos, ou seja: valor mensal do salário mínimo multiplicado por 14 vezes.

V-DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento à presente apelação, em razão do que a alteram fixando como rendimento indisponível ao insolvente a quantia correspondente ao valor de uma remuneração mínima e 1/2 mensal garantida, multiplicada por catorze vezes.

Custas pela massa insolvente.


Porto, 16 de setembro de 2025.
Alexandra Pelayo
Anabela Miranda
Rodrigues Pires
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[1] Em anotação ao art. 97º in Código de Processo Penal Comentado, 2ª edição revista, pg 293.
[2] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788.
[3] Relator Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Na qual a relatora tem vindo a incluir-se, importando este acórdão uma inflexão da sua posição, pelas razões a seguir apontadas.
[5] Veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão desta Relação de 07/05/18, proferido no Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1 e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/02/14, proferido no Processo n.º 467/11.1TBVND-C.C1 e de 13/05/14, proferido no Processo n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Ver neste sentido o recente Acórdão desta Relação relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Rui Moreira de 29.4.2025, proferido no Processo 3175/24.0T8STS-B.P1, disponível in www.dgsi.pt, ao qual se adere.