Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1524/22.4Y9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
LEI COVID
DETERMINABILIDADE DO TIPO CONTRAORDENACIONAL
Nº do Documento: RP202402071524/22.4Y9PRT.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Integra a causa suspensiva da prescrição do procedimento contraordenacional prevista no art.27.º -A, n.º1, alínea a),do RGCOC, a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 e posteriormente, por força do art. 6º-B, nº 1, e art. 6º-C, nº 1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que determinou nova suspensão no período de 22/01/2021 a 05/04/2021
II - Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, face à paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais.
III - Na descrição da conduta proibida, o legislador recorre frequentemente a clausulas gerais e, no âmbito do direito penal secundário, às normas penais em branco, em que a lei incriminadora remete para outra fonte normativa o preenchimento dos seus próprios pressupostos.
IV - o Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da tipicidade pode ter aplicação diferente no campo das contraordenações. Como salienta o acórdão n.º 500/2021, “Da jurisprudência constitucional podem extrair-se, pois, com toda a segurança, duas ideias fundamentais: no âmbito da definição dos ilícitos contraordenacionais, a Constituição somente impõe «exigências mínimas de determinabilidade»; mas estas apenas se encontrarão satisfeitas na medida em que o tipo legal permita aos respetivos destinatários darem-se conta de qual é a conduta proibida e da sanção que lhe corresponde.”
V – Notificada a arguida dos factos que lhe são imputados e das normas infringidas, estando, assim, devidamente identificada a conduta proibida, bem como a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito, está assegurada a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1524/22.4Y9PRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

No processo de contraordenação n.º 1524/22.4Y9PRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 3, por sentença proferida em 12/10/2023, foi julgada parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada pela arguida A..., SA e em consequência condenada:

a) pela prática da contraordenação prevista no artigo 31.º, n.º 2 da Lei n.º 34/2013 e art. 59.º, n.º 1 al. p) conjugado com a al. c) do n.º 4, n.º 8 do mesmo preceito legal na coima de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

b) pela prática da contraordenação prevista no n.º 4 (atual n.º 5) do art.11.º da Lei n.º 34/2013 de 16.05 conjugado com o n.º 2 do art. 108.º da Portaria n.º 273/2013 de 20.8 e art. 59.º, n.º 4 al. a) da Lei 273/2013, na coima de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros);

c) Em Cúmulo Jurídico das infrações aludidas em a) e b) nos termos do disposto no art. 19.º, n.º 1 do RGCO, condenada a arguida A..., S.SA.na coima única de € 7.900,00 (sete mil e novecentos euros).

         Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

1. A douta sentença proferida padece de nulidade nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, de erro na interpretação e aplicação do Direito e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, aplicável ex vi art. 41.º do RGCO.

2. A Recorrente alegou que a inexistência das gravações não se deveu a falta de implementação do sistema de videovigilância em uso, ou incúria, mas a avaria e à solução técnica encontrada para a sua reparação, remetendo para o documento n.º 4, junto com o Auto de notícia, a fls … dos autos.

3. O documento apresentado aos agentes da autoridade demonstra que, em momento prévio á fiscalização, a Recorrente havia detectado um problema técnico no sistema de videovigilância e actuado em conformidade; e do documento o técnico fez constar das observações a intervenção necessária no sistema e respectivas consequências, podendo ler-se: “Descrição dos trabalhos executados – Recuperação dos discos dos sistemas Nuvo. – Não foi possível recuperar as gravações (ambos os sistemas foram formatados).”.

4. Este é um ponto essencial na defesa da Recorrente, no entanto, não consta como provado ou não provado na douta sentença recorrida não tendo o douto Tribunal a quo proferido qualquer entendimento sobre a factualidade, pelo que ao omitir pronúncia sobre tal alegação e facto documentalmente demonstrado incorreu o douto Tribunal a quo em nulidade.

5. O facto em apreço demonstra a actuação diligente e adequada da Recorrente na identificação de um problema e na tentativa da sua correcção

6. Tal facto não permite dar-se como provado o art. 7º da matéria de facto dada, porquanto os agentes não foram “informados” foi-lhes sim apresentada documentação, que revelava o cuidado e diligência da Recorrente na manutenção e funcionamento dos equipamentos de videovigilância.

7. Ao não mencionar sequer a existência do documento, na factualidade provada, e não se pronunciar sobre a prova efectuada sobre o seu teor incorreu o douto Tribunal a quo em nulidade por omissão de pronúncia sobre questão que devesse apreciar.

8. Em momento anterior à realização da inspecção pelos agentes de autoridade a Recorrente detectou e promoveu a reparação de avaria no sistema de videovigilância, a qual passou pela formatação das gravações, significando a intervenção técnica com apagamento do conteúdo existente no sistema.

9. A Recorrente é alheia à avaria e logo que a detectou agiu diligentemente no sentido da sua reparação, tendo solicitado intervenção especializada em momento anterior à acção inspectiva efectuada. A Recorrente não está imune à ocorrência de avarias, não sendo a sua área de actuação a reparação deste tipo de sistemas e contratando empresas especializadas para o fazer. Crê-se que nenhuma outra conduta poderia ser exigida da Recorrente que diligentemente procurou e obteve a reparação do sistema.

10. Não decorrendo a avaria de culpa sua, nem podendo controlar o modo de reparação da mesma, forçoso será concluir que nenhuma infracção foi cometida, sequer a título negligente, porquanto nenhum facto ilícito ou omissão pode ser imputado à Recorrente.

11. A Recorrente agiu com o cuidado de um utilizador atento e procurou a intervenção de técnicos especializados, agindo assim com o cuidado adequado e dentro das suas capacidades, sendo que a ausência de dias de gravação não decorreu de conduta negligente da Recorrente, mas sim do método de reparação que se mostrou possível e adequada ao técnico competente e contratado para o efeito.

12. A negligência afere-se pela previsão do tipo de ilícito e pela omissão do cuidado do agente em face dos seus conhecimento e capacidade, art. 15.º CP, tendo a Recorrente detectado a avaria e agido com base nesse conhecimento recorrendo a serviços técnicos competentes, questiona-se qual a omissão de cuidado que se pode imputar à Recorrente. Crendo-se forçoso concluir que inexiste.

13. Ao omitir pronúncia sobre prova essencial resultante dos autos, que permite a conclusão pela inexistência de prática de qualquer infracção pela Recorrente, incorreu o douto Tribunal a quo em nulidade cuja declaração expressamente se requer.

14. A douta sentença recorrida incorreu ainda em erro de interpretação e aplicação do Direito porquanto veio a pronunciar-se no sentido da verificação de pressupostos de alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos do art. 358.ºdo CPP e não existir alteração da qualificação jurídica dos factos.

15. Aquando da notificação alegadamente em cumprimento do art. 358.º do CPP, a tramitação não se encontrava em fase de audiência, sequer existia acusação nos termos legais, v. art. 62.º, n.º 1 do RGCO, motivo pelo qual se mostra inaplicável o art. 358.º do CPP.

16. Acresce que, a douta sentença recorrida afirma: “Com efeito, compulsados os autos verifica-se que a alteração da incriminação que constava no auto de notícia e na notificação efetuada à arguida (fls. 70) foi motivada por um erro/lapso na integração jurídica dos factos por parte da entidade fiscalizadora e por tal facto foi solicitado à entidade instrutora do processo para proceder à respetiva correção.” (Cfr- fls 2, terceiro parágrafo da douta sentença recorrida). O sublinhado é nosso.

17. Daqui se conclui que não se verificou qualquer circunstância que determinasse a alteração da qualificação jurídica dos factos, porquanto não foram conhecidos factos novos, nem foram valorados diferentemente os factos já constantes dos autos. Sucedeu sim que a entidade decisória se apercebeu que havia incorrido em lapso.

18. Existindo lapso da entidade decisória a conduta adequada não é o recurso a alteração da qualificação jurídica dos factos, mas sim emissão de notificação rectificativa com as legais consequências, nomeadamente a de ser dado sem efeito todo o processado anterior.

19. Não se confunda, por tal ser legalmente inadmissível, uma situação juridicamente valerosa que imponha a alteração da qualificação jurídica dos factos, com a rectificação de um lapso pela entidade sancionatória.

20. O mecanismo do art. 358.º tem como propósito assegurar as garantias de defesa constitucionalmente consagradas do arguido, em face de alterações factuais adquiridas no decurso do inquérito ou da audiência e não sanar erros ou lapso de qualificação jurídica cometidos pela entidade.

21. A ter-se por correcta a afirmação deste douto para sanar um erro/lapso da entidade sancionatória recorreu-se a um mecanismo não adequado e coarctou-se o direito da aqui Recorrente de ver reconhecida a prescrição ocorrida.

22. A rectificação de lapso importa a anulação do processado o que no caso em apreço tem a consequência da prescrição, porquanto os factos tiveram lugar em 17 de Dezembro de 2018, a coima máxima aplicável ascende a €44.500,00 e a notificação rectificativa, ocorreu 17 de Fevereiro de 2022, decorridos mais de 3 anos sobre os factos.

23. A douta sentença recorrida ocorreu ainda em erro na interpretação do Direito ao considerar improcedente a alegação de inconstitucionalidade da norma incriminadora prevista na al. d) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, alterada e republicada pela Lei n.º 46/2019, de 8 de Julho.

24. Dispõe o normativo legal que “São contra-ordenações leves: (…) d) O incumprimento das obrigações, deveres, formalidades e requisitos estabelecidos na presente lei ou fixados em regulamento, quando não constituam contraordenações graves ou muito graves.”.

25. É pacífico na jurisprudência e na doutrina, no que à aplicação do princípio da legalidade às infracções contra-ordenacionais se refere, que os tipos contra-ordenacionais podem ter maior flexibilidade do que aqueles que preveem infracções criminais, contendo assim normas em branco, que remetem para critérios fixados pela própria Administração Pública. É também pacífico que, não obstante a admissibilidade da utilização das normas penais em branco, as mesmas não obstem à determinabilidade objectiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos.

26. Indispensável é que as normas incriminadoras, como é o caso da al. d) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei n.º 34/2013, “contenha em si mesmo o núcleo essencial da proibição, por forma a que essa concreta norma possa orientar “suficientemente os destinatários quanto às condutas que são efectivamente proibidas (…)”.

27. A norma incriminadora prevista na citada al. d) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei n.º 34/2013, é manifestamente contrária ao princípio da legalidade, traduzido no conteúdo essencial de que não pode haver crime, nem pena, que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa. Porquanto, da mesma não é possível extrair qual a conduta efectivamente proibida e demais elementos de punibilidade, cabendo, em bom rigor, na sua letra, todo e qualquer comportamento que não esteja previsto como ilícito contra-ordenacional numa qualquer outra norma.

28. A norma incriminadora tem um conteúdo absolutamente amplo não concretizando minimamente os elementos típicos da infracção, resultando, como se disse, na punição de todo e qualquer comportamento.

29. O que viola claramente os princípios da legalidade e da tipicidade, consagrados no artigo 29.º da CRP, mas também no artigo 2.º do RGCO, o que não é afastado pela remissão para o art. 108.º da Portaria supra identificada, contrariamente ao afirmado na decisão sancionatória e mantido na douta sentença.

30. Não pode a Arguida ser punida pela infracção, porquanto em bom rigor a mesma não poderá produzir quaisquer efeitos.

31. Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada com as legais consequências.

Nestes termos,

E nos melhores de Direito que Vs. Exas. doutamente suprirão, deverá ser declarada a nulidade da douta sentença recorrida, ou, caso assim se não entenda deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que conhecendo a procedência do recurso absolva a Recorrente.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, a Exma.Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento (referência 17486257).

 Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, o recorrente apresentou resposta ao parecer, mantendo a posição defendida no recurso que interpôs (referência 47445687).

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida

A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, a que se seguiu a respetiva fundamentação:

“II.1 – Factos Provados

Dos elementos constantes nos autos, resultam apurados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

Proc n.º 729/2020 (com origem no auto de notícia com o NPP ...89/2018):

1.No dia 17.12.2018, pelas 11h30 na sequência de uma acção de fiscalização efetuada ao estabelecimento da arguida, sito na Avenida ..., no Porto, verificou-se que as imagens do equipamento de videovigilância existente não eram conservadas pelo prazo obrigatório de 30 dias.

2.O sistema de videovigilância apenas mantinha imagens dos dias 16 e 17 de novembro e dos dias 6 a 16 de dezembro, o que perfaz 13 dias de gravação.

3.O estabelecimento aludido em 1. dos factos provados é uma superfície comercial com uma área de venda a nível nacional de 503.897m2, ultrapassando os 30.000m2 e, portanto, está sujeita a essa obrigatoriedade.

4.A arguida enquanto agente económico tem obrigação de conhecer as normas jurídicas que regem a sua atividade económica e ao atuar da forma aludida não atuou com o zelo e diligência a que estava obrigada e não observou o necessário cuidado, violando um dever de cuidado que era capaz de cumprir e ao qual estava obrigada no execício da sua atividade.

5.A arguida, enquanto pessoa coletiva, através do seu representante legal, agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que ao agir como o fez não observou os deveres de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.

6.Na data dos factos em 17.12.2018 o sistema de videovigilância da arguida estava em funcionamento no entanto não estavam gravadas as imagens referentes aos últimos 30 dias anteriores à captação.

7.No dia da fiscalização em 17.12.2018, o elemento fiscalizador foi informado por parte da arguida da existência de uma avaria técnica e deslocação e intervenção no equipamento da empresa especializada na manutenção e reparação de tal equipamento no dia 28 de novembro de 2018.


*

Proc n.º 1327/2020 (que teve origem no auto de notícia com o NPP ...30/2019):

8.No dia 21.2.2019, pelas 22h45 na sequência do acionamento de alarme instalado no estabelecimento A..., sito na Praceta ..., ..., a PSP deslocou-se ao local e verificou todas as entradas do aludido estabelecimento.

9.Os elementos fiscalizadores contactaram a gerente do estabelecimento AA, que se deslocou também ao local, sendo que após uma vistoria desta ao estabelecimento apurou-se que estava tudo normal, apenas uma das portas automáticas no interior se encontrava com uma pequena avaria que entrava em conflito com o alarme.

10.BB, funcionária do estabelecimento foi notificada em 25.2.2019 para que providenciasse de imediato pela intervenção técnica do sistema, devendo remeter o relatório dessa intervenção à força de segurança territorialmente competente no prazo de 10 dias úteis, o que não aconteceu.

11.A arguida enquanto agente económico tem obrigação de conhecer as normas jurídicas que regem a sua atividade económica e ao atuar da forma aludida não atuou com o zelo e diligência a que estava obrigada e não observou o necessário cuidado, violando um dever de cuidado que era capaz de cumprir e ao qual estava obrigada no exercício da sua atividade.

12.A arguida, enquanto pessoa coletiva, através do seu representante legal agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que ao agir como o fez não observou os deveres de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.

II.2 – Factos Não Provados:

Mais nenhum facto com relevo se provou, designadamente que BB seja a proprietária do alarme instalado.


*

II.3 – Motivação:

A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 32º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, doravante RGCOC, tendo por base a apreciação da prova documental constante dos autos conjugada com a prova testemunha produzida, CC; DD; EE, FF; GG, HH, AA e BB e II.

A arguida não põe em causa a factualidade objetiva dos factos provados consoante o teor dos respetivos autos de participação constantes de fls. 9 e 10 e 147 dos autos.

A testemunha CC, agente da PSP que procedeu á fiscalização inicial do A... sito na Av. ..., no Porto em 12.12.2018, de forma clara, serena e pormenorizada explicou o circunstancialismo anterior e posterior aos factos, explicando que no dia em apreço por volta das 11h deslocou-se ao referido estabelecimento comercial no sentido de proceder à fiscalização das medidas de segurança obrigatórias ali implementadas, tendo, entre o mais, verificado o funcionamento do sistema de videovigilância. Nesse mesmo dia constatou que não era possível aceder à gravação das imagens para se aferir da conformidade com o disposto no n.º 3 do art. 95.º da Portaria 273/2013 de 20.8, ou seja, a conservação desses dados por período não inferior a 30 dias, tendo sido informado pela gerente que não tinha acesso aos códigos para visualizar a gravação, tendo acordado com a gerente da loja que acompanhou a fiscalização uma nova fiscalização no dia 17.12.2018 para aferir o incumprimento de tal dispositivo legal, tendo confirmado o auto de participação de fls. 9 e 10 bem como ao elaboração do auto de notícia de fls. 60 a 61 em 27.1.2022, sobre os mesmos factos, após ter sido determinado pela entidade instrutora do processo uma alteração da qualificação jurídica constante do primitivo auto de noticia, o que foi elaborado – fls. 53, a 61. Tal factualidade foi igualmente corroborada pela testemunha EE que acompanhou, quer a 1.ª fiscalização no dia 12.12.2023, quer a 2.ª fiscalização a 17.12.2018.

Por sua vez, a testemunha DD e EE, ambos agentes da PSP, explicaram, de forma clara e imparcial que no dia 17.12.2018 deslocaram-se ao aludido estabelecimento comercial a fim de aferir o cumprimento de tal dispositivo legal pelas 11h30, referindo, de forma coincidente que verificaram que as imagens não eram conservadas pelos 30 dias obrigatórios. No caso concreto, o sistema apenas mantinha imagens dos dias 16 e 17 de novembro e dos dias 6 a 16 de dezembro, o que perfaz 13 dias de gravação, tendo sido confrontado com o documento de fls. 12 e 13 que explica tal situação e que consubstancia imagens do monitor no qual se visualizam as imagens do sistema de videovigilância do estabelecimento fiscalizado e que demonstra os dias que mantinham a gravação do mês de novembro e dezembro (16 e 17 de novembro e 6 a 16 de dezembro – diferenciados dos demais por estarem a vermelho na imagem), sendo certo que a fiscalização ocorreu no dia 17 de dezembro. Mais referem que lhes foi comunicado que tinha existido uma intervenção no sistema por reparação.

A testemunha FF, em nada contribuiu para a formação da convicção do tribunal, não se recordando dos factos.

Por sua vez, a testemunha GG, pessoa que trabalhava na arguida à data dos factos como segurança e que acompanhou aquela fiscalização referiu que efetivamente aquando da fiscalização verificou-se não estavam gravados os 30 dias no sistema e que tal se deveu a algumas avarias técnicas tendo sido apresentadas aos agentes fiscalizadores as folhas de serviço referentes à assistência ao sistema de videovigilância, elaborado pela empresa denominada “B...”.

A testemunha II, pessoa que trabalha para a empresa de reparação da avaria que deslocou ao estabelecimento da arguida sito na Av. ..., apesar de não possuir conhecimento direto uma vez que a intervenção foi feita por outra pessoa, refere que foi consultar o processo e verificou que do sistema de videovigilância não constavam as imagens de 30 dias, não tendo conseguido recuperar as mesmas uma vez que não estavam lá, tudo conjugado com o documento de fls. 15.

No que se refere à área de venda do estabelecimento comercial em causa atendeu-se ao documento de fls. 11 conjugado com o alvará de utilização de fls. 37 a 44 de onde resulta ser a área de venda superior a 30.000m2.

No que se refere à factualidade aludida 8 a 12 valorou-se desde logo o depoimento da testemunha HH, agente da PSP que se deslocou ao estabelecimento da arguida em ..., Praça ... em fevereiro de 2019, pelas 22h45 na sequência do acionamento do alarme do estabelecimento. Quando chegou ao local verificou juntamente com a pessoa encarregada do estabelecimento de tal ativação do alarme se devia a uma anomalia da porta de entrada automática, tendo sido a mesma desativada, tendo confirmado o teor e assinatura do auto de participação de fls. 147 e 148. Tal factualidade foi corroborada pela testemunha AA, gestora de loja do A... há 25 anos e que à data dos factos exercia as funções de gerente de loja do estabelecimento sito na Praça ... e que refere que no dia concreto dos factos, apos o acionamento do alarme deslocou-se ao estabelecimento e verificou a avaria na porta automática que acionou o alarme. Acrescenta que depois de verificar o problema, solucionou-o desligando a porta e no dia seguinte refere que chamou a assistência técnico ao local para resolver a anomalia.

Por sua vez, não obstante a testemunha BB, à data secretária da loja do A... da Praça ..., referir que não se recorda de ter recebido qualquer notificação para providenciar pela intervenção técnica do sistema de alarme devendo remeter relatório dessa intervenção à força de segurança no prazo de 10 dias uteis, o certo é que tal factualidade resulta de fls. 149, e confrontada com tal documento a testemunha confirma a sua assinatura, acrescentando que quando recebia notificações, era procedimento normal, remeter as mesmas para quem de direito.

No que se refere à notificação da funcionária BB, não podemos deixar de chamar à colação que, não obstante da decisão constar que BB é proprietária de tal alarme e não o ser uma vez que é funcionária da sociedade arguida, o certo é que da notificação consta como “proprietário ou utilizador do alarme instalado” e o art. 11.º n.º 4 da Lei n.º 273/2013 de 20.8 é clara a definir “utilizador do alarme quem tenha a posse do espaço protegido, dele usufruindo, independentemente do título ou contrato estabelecido”, pelo que a notificação encontra-se corretamente efetuada à arguida conforme se verifica de fls. 149.

Quanto aos factos constantes dos pontos 4. A 5 e 11 e 12. tomou-se em consideração as regras da experiência comum aliadas à demais factualidade provada. Com efeito, sendo a arguida agente económico, conhece e tem obrigação de conhecer as normas jurídicas que regem a sua atividade económica e ao atuar da forma aludida não atuou com o zelo e diligência a que estava obrigada e não observou o necessário cuidado, violando um dever de cuidado que era capaz de cumprir e ao qual estava obrigada no exercício da sua atividade,. Sendo certo que exerce essa atividade há mais de 20 anos, como é do conhecimento notório e comum.

Por outro lado, a negligência supõe o poder/dever de o responsável, embora não pretendendo cometer a infração, ter, no entanto, o poder ou a possibilidade de atuar de modo diferente por forma a impedir que ela se verificasse. Aliás, não é necessário que aquele tenha conhecimento de que a infração esteja ou possa ser cometida (em tal caso poder-se-ia até cair no dolo, na sua forma eventual), bastando que omita ou se demita do exercício dos seus deveres, e do cumprimento dos normativos legais e deveres especiais a que está obrigado.

No caso concreto, o facto de ter resultado provado que em momento prévio à visita da entidade policial, a arguida percecionou a avaria do sistema de videovigilância e promoveu a sua reparação, não é impeditivo da consumação da contraordenação, a titulo negligente, sendo certo que tinha o poder ou a possibilidade de atuar por forma a impedir que ela se verificasse, omitindo um dever geral de cuidado, sendo certo que mesmo após a verificação da avaria e a ida de técnicos ao local se manteve a não gravação dos últimos 30 dias, conforme determinado por lei. Tal factualidade apenas poderá eventualmente ser valorado em sede de determinação da medida concreta da coima, considerando que a inexistência das gravações pelo período de 30 dias não se deveu à falta de equipamento de videovigilância mas sim a uma avaria e à solução de reparação encontrada, tendo por tal facto, aliás, em sede de decisão administrativa sido determinada a atenuação espacial da coima nos termos do disposto no art. 72.º do co, ex vi do art, 32.º dp RGCO.

Acresce ainda que, no que se refere à infração ocorrida em fevereiro de 2019 igualmente se verifica, atenta a prova produzida, a factualidade em causa aliada às regras da experiência comum que a arguida, enquanto pessoa coletiva, através do seu representante legal, agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que ao agir como o fez não observou os deveres de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.

Nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, dúvidas não teve o Tribunal em considerar provados e não provados os factos nos termos deixados consignados.”

Apreciação

É entendimento uniforme da jurisprudência que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação das matérias de conhecimento oficioso.

Atento o disposto no nº 1 do art.75.º do Decreto-lei nº 433/82, de 27/10, que aprovou o Regime Geral das Contraordenações e Coimas (de ora em diante designado RGCOC),  o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida ou de anulação e devolução do processo ao mesmo tribunal, conforme dispõe o art.75.º n.º2 do aludido diploma, seguindo os recursos a tramitação do processo penal – art.74.º n.º4 do citado DL –, decorrente do princípio da subsidiariedade a que se refere o art.41.º.

O Tribunal da Relação pode conhecer ainda de facto, mas apenas nas hipóteses que constam do art. 410.º nº 2 do C.P.Penal , aplicável ex vi dos arts. 41.º n.º 1 e 74.º nº 4 do citado DL 433/82, ou seja, desde que, do texto da decisão recorrida resulte insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova.

Assim, por aplicação dos preceitos reguladores do processo penal, que é o direito subsidiário do processo contraordenacional, nada obsta a que o tribunal conheça dos vícios referidos, caso se verifiquem e resultem do texto da decisão recorrida.

Atentas as conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:

- nulidade da sentença nos termos do art.379.º, n.º1, alínea c), do C.P.Penal,

 - indevida aplicação do disposto no art.358.º do C.P.Penal na fase administrativa,

- da inconstitucionalidade da norma incriminadora prevista na citada al. d) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei n.º 34/2013, por manifestamente contrária ao princípio da legalidade e ao princípio da tipicidade.

A recorrente invoca ainda o vício previsto na alínea c) do art.410.º, n.º2, do C.P.Penal, erro notório na apreciação da prova, mas nem na motivação nem nas alegações, para além de o enunciar, alega em que circunstâncias o vício resulta do texto da decisão recorrida, nem se nos afigura verificar-se em face do teor desta, sendo que não se pode recorrer a elementos externos à mesma.


*

         1ªquestão: sustenta a recorrente  que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia porquanto, em sede de impugnação, alegou, quanto aos factos ocorridos no dia 17/12/2018, que a inexistência das gravações se deveu não a uma falta de implementação do sistema de videovigilância em uso, ou incúria, mas a uma avaria e à solução técnica encontrada para a sua reparação, remetendo para o documento n.º 4, junto com o auto de notícia e que foi apresentado aos agentes da autoridade, sendo que o tribunal não se pronunciou quanto a tal questão.

Conforme estabelece o art. 379.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do C.P.Penal, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

A omissão de pronúncia que determina a nulidade da sentença prevista no art.379.º n.º1 al.c) do C.P.Penal traduz-se na ausência de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei impõe que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual[1].

No caso presente, analisando a factualidade dada como provada, no ponto 7 há referência à avaria técnica no sistema bem como à intervenção em 28 de novembro de 2018 de uma empresa de manutenção e reparação dos sistemas de videovigilância. Por outro lado, na fundamentação de facto e de direito, o tribunal pronuncia-se sobre a avaria, a documentação junta aos autos e concretamente quanto ao documento n.º4 que consta de fls.15 dos autos e a razão pela qual não considerou que a inexistência de gravações pelo período de 30 dias fosse resultado único dessa avaria e que a recorrente tenha atuado com a diligência a que estava obrigada.

A recorrente pode discordar do ponto de vista defendido pelo tribunal recorrido, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia.

Pelo exposto, não há omissão de pronúncia, pelo que improcede a arguição de nulidade.

2ªquestão: na tese recursiva, na fase administrativa não pode haver alteração da qualificação jurídica nos termos do art.358.º, n.º3, do C.P.Penal, pois a mesma está prevista para a audiência de julgamento. Por isso, tendo a entidade fiscalizadora ao elaborar o auto de notícia cometido um erro quanto à qualificação jurídica dos factos, a entidade instrutora ao ordenar o cumprimento do art.358.º, n.º3, do C.P.Penal coartou o direito da ora recorrente ver reconhecida a prescrição ocorrida: os factos tiveram lugar em 17 de dezembro de 2018 e a notificação inicial para a arguida apresentar a sua defesa ocorreu em 27 de fevereiro de 2019, tendo a segunda notificação, a retificativa, ocorrido em 17 de fevereiro 2022. Ocorrendo a prescrição decorridos que sejam 3 anos sobre os factos em contraordenações sancionadas com coima máxima inferior a €49.879,79, a prescrição já tinha ocorrido aquando da notificação retificativa.

Vejamos.

No caso presente, quando a PSP elaborou o auto de notícia incorreu num lapso quanto à integração jurídica dos factos, pelo que a entidade instrutora do processo - SGMAI- solicitou à PSP a elaboração de um auto de notícia com a correção da qualificação jurídica e a sua notificação à arguida, bem como de prazo para apresentação da sua defesa face à referida correção.

Este novo auto de notícia foi elaborado em 27/1/2022, do qual consta a nova qualificação jurídica efetuada ao abrigo do disposto no art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.Penal, ex vi art.41.º do RGCOC, sendo a arguida notificada, na pessoa de um funcionário, em 17 de fevereiro de 2022 (fls.70).

A arguida apresentou a sua defesa em 15 de março de 2022 (fls.87).

No caso presente, independentemente da designação atribuída ao procedimento efetuado, o certo é que cabia fazer a retificação do enquadramento jurídico, dar conhecimento à arguida e conceder-lhe novo prazo para a defesa face a tal retificação, tendo sido exercido em toda a plenitude o contraditório.

Os factos eram os mesmos do auto de notícia inicial, só tendo havido uma alteração da qualificação jurídica e da qual foi dado conhecimento à arguida, para exercer o seu direito de defesa. Não há fundamento para anular o processado e a notificação inicial da arguida, pois essa notificação não enferma de qualquer vício.

Saliente-se ainda que a arguida parece incorrer num equívoco quando refere que o art.358.º, n.º3, do C.P.Penal pressupõe uma alteração dos factos. A remissão que o n.º3 faz o n.º1, caso em que existe efetivamente uma alteração dos factos, circunscreve-se à tramitação a levar a efeito, os termos em que a alteração é dada a conhecer ao arguido e a faculdade que tem de exercer o seu direito de defesa.

No caso presente, não houve qualquer alteração dos factos, mas tão-só do enquadramento jurídico, o que foi, e bem, dado a conhecer à arguida e concedido prazo para exercer a sua defesa face a uma diferente subsunção legal dos factos.

Por outro lado, a recorrente também parece esquecer que a alteração da qualificação jurídica não está prevista apenas para a fase de julgamento, mas também na fase da instrução (art.303.º, n.º5, do C.P.Penal).

A arguida em nada foi afetada por este procedimento em termos de prescrição do procedimento criminal, contrariamente ao que é por si alegado.

Nos termos do art.27.º, alínea b), do RGCOC,  o procedimento por contraordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contraordenação hajam decorrido  três anos, quando se trate de contraordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a €2493,99 e inferior a €49879,79.

Na qualificação jurídica constante do auto de noticia inicial – art.8.º, n.º7, da Lei n.º34/2013, de 16/5 –  , configurando uma contraordenação grave, a punição é a constante do art.59.º, n.º2, da citada Lei, ou seja, uma coima de €7500 a €37500, enquanto no auto de notícia que procedeu à retificação da qualificação jurídica – art.31.º, n.º2 da Lei n.º34/2013  - a punição é a constante do art.59.º, n.º4 da mesma Lei,  sendo aplicável uma coima de €15 000 a €44 500.

Assim, em qualquer das qualificações jurídicas efetuadas, o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional é de três anos – art.27.º alínea b), do RGCO.

Estabelece o art.27-A do RGCO, [Suspensão da prescrição]:

1. A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:

a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;

b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º,

c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.

2. Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.”  

Por sua vez, o art.28.º do RGCOC, sob a epígrafe Interrupção da prescrição, dispõe:

“1 - A prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se:

a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;

b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;

c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

2 - Nos casos de concurso de infrações, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contraordenação.

3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.”.

No caso vertente, os factos ocorreram em 17/12/2018 e a arguida foi notificada para exercer o seu direito de defesa em 27/2/2019 (fls.56), ou seja, quando foi notificada do auto de notícia “retificativo” em 17/2/2022, ainda não tinham decorrido três anos, pois a notificação em 27/2/2019 interrompeu a prescrição, recomeçando nessa data a contagem do prazo de três anos.

 Com a notificação em 17/2/2022 da alteração da qualificação jurídica e do prazo concedido para apresentação da defesa, mais uma vez se interrompeu o prazo de prescrição, recomeçando novo prazo de contagem nessa data.

Em 17/8/2022 foi proferida a decisão condenatória da autoridade administrativa, a qual foi notificada à arguida, por carta registada com aviso de receção, enviada em 23/8/2022, pelo que interrompeu-se e voltou a recomeçar nessas datas a contagem do prazo de prescrição de três anos, nos termos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 28.º do RGCO.

A prescrição do procedimento contraordenacional tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, como estipula o n.º 3 do art.º 28.º do RGCO.

Por força do disposto no art.º 27.º-A, n.º 2 deste diploma, nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses, pelo que o respetivo procedimento contraordenacional prescreveria no dia 17/12/2023, se outra causa suspensiva não se verificasse (17/12/2018 + prazo normal de prescrição acrescido de metade + 6 meses).

A questão que ora se coloca é saber se a suspensão da prescrição estabelecida nas Leis n.º1-A/2020, de 19/3 e n.º4-B/2021, de 1/2, legislação temporária que vigorou durante a pandemia Covid 19,  é aplicável a factos praticados antes do início da sua vigência.

Por força do art.7.º, n.º3 e 4 da Lei  n.º1-A/2020, os prazos de prescrição estiveram suspensos entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, ou seja, 86 dias.

         E nos termos do art.6.º-B, n.º3, da Lei n.º4-B/2021, ocorreu nova suspensão relativa ao período de 22/1/2021 a 5/4/2021, num total de 73 dias.

Estas duas leis estabeleceram, assim, um período de suspensão dos prazos no total de 5 meses e 10 dias, salientando-se que o Acórdão TC n.º 500/2021, de 9 de Junho de 2021, acompanhado pelos Ac.s TC nº660/2021, de 29 de julho, e Acórdão n.º 798/2021, de 21 de outubro, decidiu: “Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”.

Como se refere no Ac.R.Porto de 8/3/2023, proc. n.º 3482/22.6T9AVR.P1 , relatado pela Desembargadora Paula Natércia Rocha, disponível in www.dgsi.pt, “A questão tem sido colocada nos nossos Tribunais, não havendo, porém, entendimento unânime, na doutrina e jurisprudência.

A posição que defende que quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, fundamenta-se, resumidamente, no facto de a suspensão em causa constituir uma medida legislativa excecional e aprovada num quadro de elevada excecionalidade. Com efeito, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excecionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal, pelo que a suspensão dos prazos, em todos os prazos e procedimentos, é justificada, desde logo, pelo facto de as diligências processuais, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais. (…)

Por sua vez, a posição contrária defende que a causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021 apenas se aplica aos factos praticados durante a sua vigência, porquanto, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas, pois no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepor à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.”

Em nossa opinião e, seguindo de perto quer o citado acórdão de 8/3/2023, quer o Ac.R.Porto de 7/9/2022, proc. n.º 294/22.0T9VCD.P1, relatado pelo Desembargador João Pedro Pereira Cardoso, o que se verifica é uma outra causa suspensiva da prescrição - a prevista no art.27º- A, n.º1, alínea a), do RGCOC - decorrente da paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 e posteriormente, por força do art. 6º-B, nº 1, e art. 6º-C, nº 1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que determinou nova suspensão no período de 22/01/2021 a 05/04/2021.

Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, face à paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais.

O fundamento desta suspensão baseia-se na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao início ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos”[2].

Ora, aplicando ao caso o regime da suspensão previsto no art.º 27º-A, n.º 1, al. a) do RGCOC, correspondente ao art.º 120º, nº 1, al. a), do C. Penal, já que os procedimentos criminal e contraordenacional não podiam legalmente continuar por falta de autorização legal, essa suspensão limitou-se ao período de 86 + 73 dias, sendo aquela uma causa de suspensão da prescrição do procedimento contraordnacional expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.

Como atrás referimos, o prazo máximo de prescrição (art.28.º, n.º3, do RGCOC), contemplando já as causas de suspensão previstas no art.27.º-A, n.º 1, alíneas b) e c), do RGCOC, terminaria em 17/12/2023.

Contudo, importa atender ainda ao período de 159 (86 + 73) dias de suspensão, que configura a causa de suspensão prevista no art.º 27.º-A, n.º 1, alínea a), do RGCO.

Posto isto, o procedimento contraordenacional pelos factos de 17/12/2018 não se encontra prescrito, na medida em que o prazo de prescrição apenas se completa no próximo mês de maio do corrente ano.

Em face do exposto, soçobra a pretensão da recorrente.

3ªquestão: na tese recursiva a decisão recorrida incorreu em erro de direito ao pronunciar-se pela improcedência da invocada inconstitucionalidade da norma incriminadora prevista na al. d) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, alterada e republicada pela Lei n.º 46/2019, de 8 de Julho, por violadora do princípio da legalidade e do princípio da tipicidade, uma vez que daquela “não é possível extrair qual a conduta efetivamente proibida e demais elementos de punibilidade, cabendo, em bom rigor, na sua letra, todo e qualquer comportamento que não esteja previsto como ilícito contraordenacional numa qualquer outra norma.” (conclusão 28).

O princípio da legalidade, com consagração constitucional (art. 29.º, n.º 1, da CRP) traduz-se, no seu conteúdo essencial, não poder haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poene sine lege)[3].

Corolário do princípio da legalidade, é o princípio da tipicidade, nos termos do qual é necessário que o facto punível se encontre definido com rigor e determinabilidade. Como tal, essa descrição jurídica deve ser formulada de uma forma tanto quanto possível precisa.

No entanto, na descrição da conduta proibida, nem sempre o legislador usa expressões que não sejam ambíguas, recorre  frequentemente a clausulas gerais e, no âmbito do direito penal secundário, às normas penais em branco, em que a lei incriminadora remete para outra fonte normativa o preenchimento dos seus próprios pressupostos,  ou, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque[4], “normas que preveem a sanção, mas omitem a factispecie, remetendo a definição dos elementos do crime para uma norma extra-pena”.

Embora no direito das contraordenações se mantenha a exigência da tipicidade, sempre se aceita uma maior flexibilidade. Neste âmbito, o Tribunal Constitucional tem considerado que

o princípio da tipicidade pode ter aplicação diferente no campo das contraordenações. Como salienta o acórdão n.º 500/2021, “Da jurisprudência constitucional podem extrair-se, pois, com toda a segurança, duas ideias fundamentais: no âmbito da definição dos ilícitos contraordenacionais, a Constituição somente impõe «exigências mínimas de determinabilidade»; mas estas apenas se encontrarão satisfeitas na medida em que o tipo legal permita aos respetivos destinatários darem-se conta de qual é a conduta proibida e da sanção que lhe corresponde.”

         Assentes estas noções, atentemos na situação em apreço.

         A arguida foi condenada pela prática, a título negligente, de uma infração ao disposto no n.º4 (atual n.º5) do art.11.º da Lei n.º34/2013, de 16/5, conjugado com o n.º2 art.108.º da Portaria n.º273/13, de 20/8.

         Estabelece o art. 11.º da Lei n.º 34/2013 sob a epígrafe de “instalação de dispositivos de alarme com sirene”:

“1 - A instalação de dispositivos de alarme em imóvel que possua sirene audível do exterior ou botão de pânico está sujeita a comunicação e registo na autoridade policial da área, no prazo de cinco dias úteis posteriores à sua montagem.

2 - A comunicação a que se refere o número anterior é efetuada pelo utilizador do dispositivo e contém o nome, a morada e o contacto das pessoas ou serviços que, permanentemente ou por escala, podem em qualquer momento desligar o aparelho que tenha sido acionado.

3 - Quando o alarme possua sirene audível do exterior, o utilizador do alarme assegura que o próprio ou as pessoas ou serviços referidos no número anterior, no prazo de duas horas, contadas a partir da comunicação da autoridade policial competente, comparecem no local e procedem à reposição do alarme.

4 - Considera-se utilizador do alarme quem tenha a posse do espaço protegido, dele usufruindo, independentemente do título ou contrato estabelecido.

5 - Os requisitos técnicos, as condições de funcionamento dos equipamentos descritos no n.º 1 e o modelo de comunicação a que se refere o n.º 2 são aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.”

 O art. 59.º, n.º 3 da Lei n.º34/2013 (sendo aplicável à data dos factos a alínea c) que atualmente corresponde à alínea d):

“3 - São contraordenações leves:

a) O incumprimento do estabelecido no n.º 4 do artigo 25.º e no n.º 2 do artigo 37.º;

b) O incumprimento do estabelecido no n.º 5 do artigo 25.º e no n.º 3 do artigo 37.º;

c) A omissão de algum dos elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 38.º;

d) O incumprimento das obrigações, deveres, formalidades e requisitos estabelecidos na presente lei ou fixados em regulamento, quando não constituam contraordenações graves ou muito graves.”

E o n.º 4 do mesmo dispositivo dispõe “Quando cometidas por pessoas coletivas, as contraordenações previstas nos números anteriores são punidas com as seguintes coimas
a) De 1.500 (euro) a 7. 500 (euro), no caso das contraordenações leves;
b De 7. 500 (euro) a 37.500 (euro), no caso das contraordenações graves;
c) De 15.000 (euro) a 44.500 (euro), no caso das contraordenações muito graves.”

A Portaria n.º273/2013, de 20/8, regula as condições específicas da prestação dos serviços de segurança privada, o modelo de cartão profissional e os procedimentos para a sua emissão e os requisitos técnicos dos equipamentos, funcionamento e modelo de comunicação de alarmes.

O art.1.º, alínea g), deste diploma, dispõe que regula e define os requisitos técnicos dos equipamentos, condições de funcionamento e modelo de comunicação dos alarmes previstos no artigo 11.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio.

Por sua vez, o art.108.º da mesma Portaria estabelece :

“1 - Sempre que se verifique um alarme e a partir do momento em que a força de segurança competente tiver solicitado a sua presença, o proprietário ou utilizador do mesmo deve assegurar o procedimento previsto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, no sentido da reposição do sistema de alarme.

2 - Sendo constatado que o alarme é falso, o proprietário ou utilizador do alarme, deve providenciar de imediato para que o sistema seja objeto de intervenção técnica, devendo remeter o relatório dessa intervenção à força de segurança territorialmente competente, no prazo de dez dias úteis contados desde a data da ocorrência.”

Na tese recursiva, o art.59.º, n.º3, alínea d) da Lei n.º34/2013, viola o princípio da legalidade e da tipicidade, pois deste dispositivo não é possível extrair qual a conduta efetivamente proibida e demais elementos de punibilidade, cabendo em rigor, na sua letra, todo e qualquer comportamento que não esteja previsto como ilícito contraordenacional numa qualquer outra norma.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão à recorrente.

A citada norma do art.59.º, n.º3, alínea d), objeto deste recurso, conjuga-se com o art.11.º, n.º4 (atual n.º5) do mesmo diploma e com o art.108.º, n.º2 da Portaria n.º273/2013, no qual estão descritos os deveres do proprietário ou utilizador de alarme, em caso de se constatar que o alarme foi falso, mostrando-se assim delimitado o âmbito do ilícito.

Como se escreveu no Ac.T.Constitucional n.º85/2012, de 15/2, “Ora, deve desde logo sublinhar-se que o simples facto de o tipo contraordenacional dever ser lido em conjugação com outras normas presentes no mesmo diploma não viola, por si só, qualquer princípio constitucional. Trata-se de uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais através de remissões materiais, em que o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código. Neste contexto, “ao contrário da generalidade dos tipos incriminadores que preveem condutas proibidas e, em imediata conexão com elas, uma pena, a técnica legislativa no Direito de mera ordenação social não tem de obedecer a este paradigma rígido da tipicidade. Pelo contrário, nesta área as funções heurística e motivadora das normas não se identificam com a norma de sanção, mas sim com a norma de conduta. Neste sentido, algumas funções da tipicidade penal são, no Direito de mera ordenação social, assumidas pelas próprias normas substantivas que impõem deveres, (…). Assim, a técnica de tipificação no Direito de mera ordenação social pode inclusivamente ser mais precisa para o destinatário da norma, já que descreve expressamente as normas de conduta (nos ‘pré-tipos’), ao contrário do que acontece nos tipos penais onde as normas de conduta surgem, na generalidade dos casos, apenas implícitas na matéria da proibição”. Em suma, “a exigência de tipicidade não tem no Direito de mera ordenação social de obedecer à mesma técnica dos tipos penais incriminadores” (Frederico da Costa Pinto, O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos valores mobiliários, Almedina, 2000, p. 28).”

A recorrente foi notificada dos factos que lhe foram imputados e das normas infringidas, estando, assim, devidamente identificada a conduta proibida, bem como a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito, sendo que é nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida A..., SA, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando em 4 Uc a taxa de justiça.


(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)

 

Porto, 7/2/2024
Maria Luísa Arantes- relatora
Maria Joana Grácio – 1ªadjunta
Castela Rio – 2ºadjunto
_____________________________
[1] Ac.STJ de 21/1/2009, proc. n.º09P0111, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral e Ac.STJ de 16/9/2008, proc. n.º08P2491, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
[2] Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de direito das contraordenações, Almedina, 2020, pág.223.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág.177
[4] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição atualizada, UCE, pág.54