Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
129/22.4T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RP20240205129/22.4T8MCN.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A discordância, por parte da Recorrente, da decisão sobre a matéria de facto e da interpretação e aplicação do direito efectuada pelo Tribunal a quo não constitui causa de nulidade da sentença recorrida.
II - O conceito de caso julgado abrange duas vertentes: a do caso julgado formal ou externo, relativo a questões de carácter processual e a do caso julgado material, substancial ou interno, “referente à relação material em litígio”.
III - O pressuposto processual caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, quando na primeira causa já tenha sido proferida decisão final transitada em julgado e a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância.
IV - A exigência da tríplice identidade – do pedido, da causa de pedir e dos sujeitos - fixa os limites subjectivos e objectivos do caso julgado.
V - A autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, funciona independentemente da verificação da tríplice identidade e tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, obstando a que, em novo processo, o juiz possa decidir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão.
VI - A concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, estão relacionados com a estabilidade das decisões, com o instituto do caso julgado e com o dever de lealdade e de litigar de boa fé.
VII - No processo especial de acidente de trabalho concentram-se todas as questões relacionadas com a caracterização do acidente e determinação da entidade responsável e em que moldes, pelo que toda a defesa referente a tais matérias deve ser deduzida nesses autos, ficando precludida a possibilidade de, em acção posterior, a entidade empregadora deduzir excepção do não cumprimento do dever de informação das cláusulas que integram o contrato de seguro, por parte da Seguradora.
VIII - O objecto processual decidido no processo especial de acidente de trabalho surge como condição para apreciação do objecto processual da acção proposta pela seguradora contra a entidade empregadora que tem como pressupostos a retribuição efectiva do sinistrado ser superior ao quantitativo reconhecido no contrato de seguro para efeito do prémio de seguro e a entidade patronal do sinistrado responder pelos danos decorrentes do acidente na medida da diferença entre aqueles dois valores.
IX - Os efeitos da autoridade de caso julgado emanados da decisão proferida no processo especial de acidente de trabalho repercutem-se nesta acção porquanto, naquela decisão foi definida a relação que constitui pressuposto da situação jurídica que nesta é necessário regular e definir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 129/22.4T8MCN.P1

Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo


Relatora: Anabela Morais
Primeiro Adjunto: Carlos Gil
Segundo Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais

I. Relatório

COMPANHIA DE SEGUROS A..., S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação contra B..., LDA., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €9.098,93 (nove mil, noventa e oito euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde data de interpelação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:

i. no exercício da sua actividade, no âmbito do Ramo Não Vida, celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a Ré B..., Lda., na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice nº ...09, através do qual foi transferida, para si, a responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos por AA, trabalhador da tomadora do seguro, mediante a retribuição anual de €545 x 14 + €93,94 x 11 + €577,50 x 11;

ii. AA foi vítima de um acidente de trabalho, tendo a Autora assegurado o pagamento de todas as despesas referentes a hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transporte daquele trabalhador da Ré mas, o rendimento anual auferido pelo sinistrado não se encontrava transferido na totalidade;

iii. Por sentença proferida no âmbito do processo nº315/15.3T8PNF que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Penafiel – Juiz 3, ficou provado que o sinistrado sofreu um acidente de trabalho; à data do acidente de trabalho, o sinistrado auferia a retribuição anual de €645 x 14 + €5,13 x 22 x 11 + €750 x 11; em consequência directa e necessária do acidente, resultou para aquele uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 39,916%;  à data do acidente de trabalho, a aqui Ré tinha a sua responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho, em que fosse interveniente o sinistrado, transferida para a aqui Autora, pela retribuição de €545 x 14 + €93,94 x 11 + €577,50 x 11, ou seja, €15.015,84 (quinze mil, quinze euros e oitenta e quatro cêntimos);

iv. Autora é responsável pela retribuição anual de €15.015,84 (quinze mil, quinze euros e oitenta e quatro cêntimos), ou seja, por 81,05% da retribuição anual do sinistrado, e a aqui Ré é responsável pela retribuição anual de €3.509,82 (três mil, quinhentos e nove euros e oitenta e dois cêntimos), ou seja, por 18,95 % da retribuição anual do sinistrado;

v. A Autora, no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas, no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, suportou todas despesas médicas e medicamentosas do sinistrado, liquidou todas as despesas de hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transportes, no total de €48,015,46 (quarenta e oito mil, quinze euros e quarenta e seis cêntimos) [€34.669,90 (trinta e quatro mil, seiscentos e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) referente a despesas suportadas a título de riscos traumatológicos; €13.195,58 (treze mil, cento e noventa e cinco cêntimos e cinquenta e oito cêntimos) a título de riscos traumatológicos no estrangeiro; e €150,00 (cinto e cinquenta euros) referente a transporte];

vi. De harmonia com o disposto no artigo 79º, n.º 5, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro e Cláusula 23ª da Apólice contratada, são da responsabilidade da ora Ré o pagamento das despesas efectuadas com o sinistro, designadamente as decorrentes de hospitalização, assistência clínica e medicamentos do sinistrado, na proporção do valor não transferido;

vii. A ausência de transferência do valor total da remuneração, faz com que a entidade empregadora do sinistrado, aqui Ré, tenha de assumir a percentagem de 18,95% das despesas efectuadas com hospitalização, medicamentos e assistência clínica daquele;

viii. Ao abrigo do disposto no artigo 79º, n.º 5 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a Autora tem assim direito ao reembolso da quantia de €9.098,93 (nove mil, noventa e oito euros e noventa e três cêntimos), que corresponde à percentagem de responsabilidade das despesas suportadas pela Autora, a cargo da Ré;

ix. Interpelou a Ré, por diversas vezes, por forma a ser reembolsada, não tendo obtido qualquer tipo de resposta por parte desta.

Citada, a B..., Lda. apresentou contestação, alegando, em síntese, que:

i. o contrato de seguro em causa é um contrato de adesão, sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais, aprovadas pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelos Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Janeiro, e nº 249/99, de 7 de Julho;

ii. o contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais tem o dever de informar e de comunicar o conteúdo de tais cláusulas, pois só podem ser correctamente aceites pela outra parte se desta forem conhecidas, sob pena de ocorrerem vícios na formação da vontade;

iii. não tendo assim procedido, por força do disposto no art. 8.º, al. a), do Decreto-Lei nº446/85, tais cláusulas consideram-se excluídas do contrato;

iv. na contestação que apresentou, no âmbito do processo nº315/15.3T8PNF, foi por si alegado que a sua responsabilidade pelos danos decorrentes do sinistro objecto dos autos, ocorrido em 31/01/2014, se encontrava transferida para a Companhia de Seguros A..., S.A., ao abrigo da apólice nº ...09,  e que à data do sinistro, se encontrava transferida para esta “mais a quantia mensal de €750 x 11, a título de outras remunerações”;

v. na sentença proferida nesse processo - processo 315/15.3T8PNF -, concluiu o Tribunal que a aqui Ré havia, efectivamente, transferido a responsabilidade pelo acima indicado valor de €750 x 11, a título de outras remunerações;

vi. contudo, como da folha de férias respeitante ao mês de Janeiro de 2014, apenas constava o pagamento de €577,50, concluiu o Tribunal, na sentença proferida no referido no processo, que a aqui Ré apenas tinha a responsabilidade transferida por €577,50, o que não corresponde efectivamente à verdade;

vii. Se o sinistrado, no mês de Janeiro de 2014, tivesse trabalhado o mês completo – 23 dias -, teria recebido a quantia de €750,00 e não seria abordada a questão da diferença entre a quantia de €750,00  e a quantia, paga, de €577,50,no valor de €172,50;

viii. Relativamente aos valores anuais, respeitantes ao diferencial conexo com o subsídio de alimentação - €208,12 - e ao diferencial entre o salário mínimo espanhol e português - no valor de €1.404,20 -, “jamais foi alertada para a necessidade de efectuar seguro que cobrisse o salário mínimo vigente em Espanha” e “para a necessidade de corrigir o valor transferido respeitante ao subsídio de alimentação”;

ix. O sócio-gerente da Ré, dado o seu escasso nível de habilitações académicas, carece de formação adequada à correcta percepção de tais questões;

x. A Autora não pode querer prevalecer-se da omissão da prática factos por parte da aqui Ré, sem prova de ter cumprido o dever de informação que sobre si impendia e impende;

xi. A Autora sempre assumiu que alertaria a Ré para as particularidades da relação contratual estabelecida entre ambas, atribuindo à falta de informação a diferença entre a retribuição real e a retribuição comunicada, no montante de €3.509,82, mencionada por aquela.

Concluiu, pugnando pela improcedência da acção.


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Notificada para, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, exercer o seu direito ao contraditório relativamente à defesa por excepção (art. 3.º, n.º3, do Código de Processo Civil), apresentada pela Ré, a Autora Companhia de Seguros A..., S.A., alegou, em síntese, que:

- com a presente acção, pretende exercer o direito que lhe é conferido pelo artigo 79º, nº 5, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro,  e não por qualquer cláusula ínsita no contrato de seguro celebrado entre as partes,  pelo que não faz sentido que a Ré venha alegar que estamos perante um contrato de adesão, regulado pelo disposto no diploma relativo às Cláusulas Contratuais Gerais;

- não faz qualquer sentido a alegação de que sobre a Autora impendia um qualquer dever de informação, no que ao valor da retribuição dos trabalhadores abrangidos no contrato de trabalho em causa diz respeito, considerando os deveres de informação da Ré, decorrentes do artigo 78.º do Decreto-Lei n.º72/2008, de 16 de Abril.

Conclui que não tinha a obrigação de alertar a Ré para a necessidade desta de efectuar um seguro que cobrisse o salário mínimo vigente em Espanha, nem informar que não se encontrava transferido o valor do subsídio de alimentação.


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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, constando do dispositivo:

 “Nestes termos julgo a ação totalmente procedente por provada em consequência condeno a ré B..., Lda. a pagar à autora a quantia de €9.098,93 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento à taxa de 4% ao ano.

Mais condeno a ré no pagamento das custas processuais.

Registe.

Notifique”.


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Inconformada, a Ré/Recorrente interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

“1ª Preliminarmente, esclarecesse que a questão dos autos respeita a contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável/folha de férias, que pedido de regresso tem por base a apólice de seguro constante no Proc. nº 315/15.3T8PNF e que o presente recurso incidirá sobre matéria de facto.

2ª Que, quanto à dita matéria - facto provado 39 – cujo teor aqui se dá como reproduzido, o Tribunal fundou a sua convicção com base no depoimento do BB, justificando a convicção nos seguintes termos: “Segundo o mediador de seguros as  particularidades das condições contratuais foram entregues à ré, tendo o mesmo explicado a necessidade do preenchimento correto das folhas de férias, com os elementos referentes ao salário base x11, subsídio de alimentação e ajudas de custo, por forma a ser assegurada a indemnização correspondente, tendo concluído que a ré tinha conhecimento desta necessidade e da comunicação das alterações. (bold e sublinhado nosso).

Foi assim cumprido o ónus da prova que impendia sobre a autora no que respeita ao cumprimento do dever legal de informação.” Sic.

Relativamente ao essencial do recurso, é da resposta ao referido ponto 39 e da sua fundamentação que discordamos.

4ª Quanto aos concretos pontos de facto que a R.te considera incorretamente julgados consideramos a resposta ao referido facto/ponto 39.

Neste aspeto, tendo a R.te excecionado nos termos em que o fez e sendo o ónus da prova do cumprimento do dever de informação da A., havia que ter ido bem além daquilo que o Sr. BB declarou, sendo certo que ele sabia e podia, sem dúvidas, ter explicado o que era essencial para o apuramento da verdade e boa decisão da causa.

5ª Relativamente aos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, ao depoimento da testemunha (única) e indicação das concretas passagens, uma vez que a testemunha CC, funcionária da A., nada disse, quanto ao facto provado nº 39, resta-nos, apenas o depoimento do Sr. BB, com destaque para as seguintes concretas passagens:

00:00m:25 aos 00:00m:27s - A instâncias do tribunal – declarou que a Ré já não é sua cliente.

Nota: à data da audiência destes autos, a R.te já não é cliente do Sr. BB.

Ao contrário do que ocorreu na audiência do Proc. 315/15.3T8PNF, nesta o seu depoimento omite aspetos essenciais decorrentes da contratação em causa, mas, paradoxalmente, é intencionalmente sugestivo e exuberante quanto o teor constante da documentação que é entregue a qualquer tomador de seguro…

Bem ou mal, o certo é que ficamos apreensivos…

00:00m:56s aos 00:04m:38s - Diz que não faz a mínima ideia há quanto tempo a R.te contratou o seguro a que se reporta a apólice dos autos;

- Refere que quando se faz um seguro são entregues as condições gerais e particulares onde vem explicado tudo e mais alguma coisa, todavia, questionado quanto àquilo que possa ter conversado à data da contratação com o sócio-gerente da Ré/R.te, diz que, palavra por palavra, não se recorda.

00:04m:29 aos 00:05m:13s - Diz (e repete-o mais tarde) que é mediador da R.te há mais de uma década e questionado quanto à importância das ajudas de custo, situação conexa com o objeto dos autos, declara que as empresas têm hoje mais sensibilidade para a questão das “ajudas de custo”.

00:07m:11 aos 00:07m55s - Explica que a Cª de seguros pergunta qual é o valor do salário, do subsídio de alimentação e das ajudas de custo.

Nota – não nos parece que o faça/pergunte aos tomadores de seguro.

A instâncias da mandatária da A. - 00:07m:11 aos 00:09m10s - Perguntado se explicou  os “pormenores” do contrato, diz “não faço a mínima ideia”; explica como funciona um seguro por folha de férias e diz que se as empresas não enviarem as folhas de férias levam com agravamento de 30%.

Nota: podia e devia ter explicado as implicações do seu específico regime.

III.3 - Decisão que deve ser proferida sobre o ponto de facto incorretamente julgado

6ª Tendo em conta a situação do específico contrato de seguro e o depoimento do Sr.

BB, conforme abaixo explicitaremos, não temos dúvidas de que a resposta ao quesito/facto 39 deveria ter sido “não provado”.

7ª O depoimento do Sr. BB é, com o devido respeito, insuficiente para, sem mais e por si só, para o Tribunal concluir que a não transferência da retribuição anual do sinistrado da Ré para a aqui A. – co-Ré no âmbito do Proc. 315/15.3T8PNF – ocorreu por culpa sua/da aqui R.te.

8ª Aquando da produção de prova no Proc. 315/15.3T8PNF, em que a aqui ora R.da não aceitou a transferência do montante de 750€, o Sr. BB defendeu a sua cliente (aí Ré), passe a expressão, com “unhas e dentes”, e esteve na origem da indevida fixação daquela quantia de 750€ como parte da retribuição transferida em benefício do sinistrado. Nessa altura havia que ter dito – porque ele sabia-o – que na modalidade de seguro por prémio variável/folha de férias, não há, garantidamente, transferência de concreto valor de parte de retribuição.

9ª À data da audiência destes autos, a R.te já não é cliente do Sr. BB… - No âmbito da audiência destes autos omitiu aspetos essenciais decorrentes da contratação em causa todavia, paradoxalmente, foi intencionalmente sugestivo e exuberante quanto o teor constante da documentação que é entregue a qualquer tomador de seguro…

10ª Na pendência do Proc. 315/15.3T8PNF – a que se reportam os factos 1º a 24º destes autos – foi discutida a transferência da responsabilidade quanto à quantia de 750,00€. A ora A - Ré no Proc. 315/15.3T8PNF - não aceitou a transferência daqueles 750€, mas também não esclareceu a situação…

11ª Tendo em conta a modalidade de seguro, a Ré seguradora, ou qualquer outra, cobra prémio fixo por estimativa de massa salarial e, no início do ano imediatamente subsequente, efetua acerto para mais ou para menos em função dos valores de retribuição constantes dos recibos de salário que lhe são enviados.

Obviamente que se então a ora R.da tivesse esclarecido as consequências da contratação do seguro por folha de férias, o que podia ter feito algum tempo depois de ter recebido a participação do sinistro ocorrido em 30/01/2014 o recibo donde constava o nome do sinistrado - logo aí (fevereiro de 2014), se tivesse dado atenção ao 750€ constantes da participação e ao diferente valor de 577,50€ constante do recibo, ficou em situação de perceber o erro em que a empresa/R.te estava a incorrer.

Porque é que nem nessa altura, nem nos cerca de 6 anos que decorreram até à audiência do Proc. 315/15.3T8PNF informou que havia erro quanto ao indicado valor de ajudas de custo?!

12ª Se a Ré/ora R.da, no Proc. 315/15.3T8PNF ou o seu mediador (desde há mais de 40!...) tivessem informado da necessidade de emitir recibo em função do salário mínimo de Espanha, obviamente que a tomadora do seguro/aqui R.te o tinha feito.

A A./R.da, para além de, garantidamente, ter recebido o prémio que lhe foi devido, é ponto assente que ao omitir a informação que devia ter prestado criou a possibilidade de, a posteriori, vir reclamar os 9.098,93€ que peticiona na presente ação.

Por outro lado,

13ª esquecendo as implicações da modalidade de seguro que liga as partes e, bem assim, a impossibilidade da transferência dos indicados 750€, é óbvio que se o indicado mediador, na altura em que ele atualizou/aumentou a massa salarial, tivesse informado a Ré de que havia necessidade de atualizar a retribuição de forma a fazê-lo corresponder ao valor da retribuição mínima em Espanha, ela a teria feito.

Teria bastado reportar parte desses 750,00€ x 11, transferido parte desse montante para a retribuição base e estava resolvida a situação.

14ª A questão da prevalência do salário mínimo de país da união europeia era, à data do evento, muito recente – veja-se a data da jurisprudência citada.

15ª Quanto ao violado dever de informação – há que convir que em momento algum o Sr. BB disse haver informado a Ré da obrigatoriedade de atualizar o valor da retribuição do sinistrado.

16ª A soma do valor global dos montantes auferidos e efetivamente transferidos pela aqui R.te para a R.da ultrapassa o valor do montante global a que o sinistrado/A. tinha direito, levando em consideração o salário mínimo em Espanha. À partida, tendo em conta o específico contrato de seguro, é de supor que quem pagou prémio por X, o teria pago por Y.

Efetivamente,

17ª Teria sido tudo uma mera e simples questão de distribuição de valores de retribuição no recibo. As seguradoras sabem-no! Os Srs. mediadores têm formação e informação para também o saberem.

As empresas, que têm outras “vidas” - poucas o saberão!

A prevalecer a sentença dos autos estar-se-á a, em bom rigor, deixar passar uma forma omissiva de venire contra factum próprium.

18ª Concluindo, dir-se-á que, no essencial, o diferencial de retribuição anual de €3.509,82, correspondente a 18,95%, que está na origem da demanda dos presentes autos (pág. 19 da sentença do Proc. 315/15.3T8PNF), resulta de um lapso no que tange à errada informação do valor da ajuda de custo de 750€ e, a parte restante, da ausência de informação para que a R.te fizesse constar do recibo o valor do salário mínimo em Espanha.

19ª Tendo em conta o concreto tipo de seguro contratado, acima explicitado, há que convir que a Ré/R.te já foi, injustamente, penalizada por questões formais e sê-lo-á novamente a manter-se a procedência da decisão em crise, motivo porque deverá revogar-se a douta sentença mediante douto aresto que leve em conta a argumentação acabada de aduzir.

Concluindo, somos da opinião de que, ao decidir nos termos expostos, o Tribunal violou o disposto, designadamente, no art. 615º do CPC, devendo, por isso, revogar-se a sentença e proferir-se douto aresto que leve em conta a argumentação acabada de aduzir, com o que se fará boa e equitativa.”


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Notificada, a Autora/Recorrida apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:

“A. Na modalidade de prémio variável do contrato de seguro de acidentes de trabalho em vigor à data do sinistro entre a Recorrida e a Recorrente, a Recorrida só respondia em relação aos trabalhadores e salários declarados nas folhas de férias que a Recorrente estava obrigada a enviar-lhe.

B. A Recorrente tinha conhecimento dessa circunstância, como foi possível validar através do depoimento do mediador de seguros BB, assente no facto provado 39 da Sentença a quo, ora colocado em crise pela Recorrente.

C. A testemunha BB informou a Recorrente como é que deveria proceder após a contratação de um seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável, nomeadamente, remetendo as folhas de férias com as remunerações reais dos trabalhadores.

D. As conclusões da Mm. ª Juiz para julgar provado o facto 39 da Sentença a quo, são resultado direto da prova produzida e do contacto com as testemunhas em sede de Audiência de Julgamento, tendo formado a sua convicção nos factos objetivos, claros e, sem dúvida para interpretações duvidosas, uma vez que, se encontra vinculada ao princípio da livre, e crítica, apreciação da prova.

E. Na ação que correu termos no Juízo Central do Trabalho de Penafiel com o n.º de processo 315/15.3T8PNF, na qual foram parte a Recorrida e a Recorrente, ficou assente que a responsabilidade baseada na retribuição do sinistrado, não estava transferida na integra para a Recorrida, tendo a Recorrente sido aí condenada ao pagamento de uma pensão anual e, uma indemnização a título de incapacidade temporária absoluta ao sinistrado.

F. Refere o artigo 154º, n.º 2 do Código do Processo do Trabalho que “As decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos”.

G. A Recorrente não recorreu da decisão proferida na ação emergente do acidente de trabalho, tendo a mesma, valor de caso julgado na determinação da responsabilidade das partes.

H. Determinada a responsabilidade das partes intervenientes no processo de trabalho, e conformação com o resultado, dali apurado, a Recorrida intentou a presente ação, em conformidade com o disposto no artigo 79º, n.º 5 da Lei n.º98/2009, de 4 de setembro.

I. A Recorrente nunca, outrora, tinha alegado a violação dos deveres de informação pela Recorrida, mas sim que a deslocação para Espanha do sinistrado por sua conta, não implicava a alteração da relação laboral em matéria de valor de retribuição, não sendo o valor peticionado pelo sinistrado de salário base devido.

J. O salário mínimo nacional praticado nos Estados membros da EU é uma das matérias vitais e de interesse público de aplicação imediata, segundo o Regulamento Roma I (art.s 9º, 23º) de aplicação directa, da “Diretiva Destacamento” nº 96/71/CE, razão pela qual, a retribuição a atender para base de cálculo das prestações por acidente de trabalho é o salário mínimo do país onde se exerce funções.

K. Acresce que, “Em nenhum caso a retribuição pode ser inferior à que resulte da lei ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”, artigo 71º da Lei nº 98/2009, de 04/09 (LAT), A Recorrente vem imputar o ónus do seu desconhecimento à Recorrida, alegando ausência de informação, quando tal circunstância decorre da própria lei.

M. A Recorrida não violou nenhum dos deveres de informação a que se encontra vinculada, constantes no Artigo 78.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.

N. A Recorrida não tinha a obrigação de alertar a Recorrente para a necessidade de efetuar seguro que cobrisse o salário mínimo vigente em Espanha, nem informar que não se encontrava transferido o valor do subsídio de alimentação.

O. Refere o artigo 79.º da Lei nº 98/2009, de 04/09 (LAT) que, “O empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, ficando à sua responsabilidade fazê-lo.

P. Contudo, “quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida”.

Q. É manifestamente improcedente a pretensão da Recorrente, devendo ser salvaguardado o exercício do direito da Recorrida plasmado no artigo 79º, n.º 5 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências, doutamente suprirão, deve a Douta Sentença recorrida ser mantida na íntegra, como é de inteira e esperada, JUSTIÇA”.


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Por despacho de 31/10/2023, foi admitido o recurso.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II_ Questões a decidir:

Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

A Recorrida, na resposta apresentada, invocou o instituto do caso julgado, questão não suscitada na fase dos articulados, nem apreciada na sentença proferida nos autos.

Em princípio, os recursos visam apenas reapreciar ou modificar as decisões já tomadas e não proceder à apreciação de questões novas, não apreciadas na instância que proferiu a decisão recorrida, excepto se forem de conhecimento oficioso, o que se verifica na questão suscitada pela Recorrida.

Assim, há que apreciar as seguintes questões:
i. Nulidade da sentença com fundamento no artigo 615º do Código de Processo Civil.
ii. Verificação da excepção de caso julgado e/ou se a autoridade do caso julgado da sentença proferida no âmbito do Processo nº315/15.3T8PNF que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Penafiel – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, se repercute na  presente acção.
iii Impugnação da decisão da matéria de facto por referência à factualidade vertida no ponto 39: os factos ínsitos no ponto 39 devem ser carreados para a matéria de facto não provada.
iv. Responsabilidade da Ré, enquanto entidade empregadora, pelas despesas com hospitalização, assistência médica e transporte do sinistrado, na proporção da diferença entre a retribuição efectiva auferida por este e a retribuição declarada no contrato de seguro.
v. Abuso do direito, na vertente de venire contra factum proprium.


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III. Fundamentação de facto

Da decisão recorrida, no “Ponto III. Fundamentação de Facto”, consta:


A. Factos Provados:

“1. No exercício da sua atividade, no âmbito do Ramo Não Vida, a Autora celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a Empresa B..., Lda., ora Ré, na modalidade de prémio variável titulado pela apólice ...09.

2. Em virtude da celebração do referido contrato de seguro foi transferida, para a Autora, a responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos por AA, trabalhador da tomadora de seguro supra indicada, mediante a retribuição anual de 545€ x 14 + 93,94€ x 11 + 577,50€ x 11.

3. No dia 30 de janeiro de 2014, pelas 16:00 horas, em Espanha, na obra “... (FASE II)”, em Lugo, AA, trabalhador da Ré, foi vítima de um acidente de trabalho,

4. A atividade da Ré está associada à Construção Civil.

5. À data do acidente, o referido sinistrado exercia as funções de carpinteiro de cofragem de 1ª sob as ordens, direção e fiscalização da Ré.

6. Nas circunstâncias de tempo e lugar, o sinistrado estava incumbido de proceder à montagem de cofragem.

7. No dia da ocorrência do acidente, estava a ser efetuada movimentação de taipais metálicos com o auxílio de uma grua.

8. No decorrer dos trabalhos, um dos taipais foi encostado a um tabule.

9. Como era habitual, o sinistrado utilizou uma escada móvel, posicionando-a contra o taipal de forma a aceder ao seu topo para desengatar o cabo que passava pelo interior de um anel ligado ao taipal e cujos laços foram colocados sobre o gancho da grua.

10. Após realizar esta operação, o sinistrado desceu da escada.

11. E afastou-se uns metros do local onde a mesma se encontrava.

12. Entretanto, o operário que estava a controlar a grua, elevou a mesma para tirar o cabo da argola.

13. Mas quando tirou o cabo, o taipal subiu na sua vertical.

14. Tombando e atingindo o sinistrado da cintura para baixo ficando com os membros inferiores debaixo do taipal.

15. O sinistrado não conseguiu evitar o acidente, pois as suas botas ficaram presas na lama, que havia no chão.

16. Na sequência do evento, o sinistrado foi transportado para o Hospital Universitário 1..., antigo complexo Hospitalário ..., em Lugo,

17. onde lhe diagnosticaram um traumatismo da bacia, traumatismo do polegar direito, traumatismo da coxa direita e traumatismo do pénis e testículos,

18. tendo sido submetido a diversas cirurgias, designadamente, ao polegar direito (reimplantação), à anca direita e aos testículos e pénis.

19. A 31 de janeiro de 2014, teve o sinistrado alta do Hospital Universitário 1..., para ser transferido para outro hospital, para completar tratamento.

20. Regressado a Portugal, ficou o sinistro internado no Hospital 3... até final de março de 2014, ao cuidado dos serviços clínicos da Autora.

21. Foi operado por uma ocasião à coxa direita e mais três vezes ao polegar direito e fez fisioterapia na Clínica ... em Marco de Canaveses.

22. Foi atribuída alta clínica a 13 de junho de 2015.

23. Na fase conciliatória do processo 315/15.3T8PNF que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Penafiel por as partes não terem chegado a um consenso, foi proferido Auto de não conciliação.

24. No Auto de não conciliação, a Autora aceitou a existência e a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, a retribuição anual de 545€ x 14 + 93,94€ x 11 e a quantia reclamada a título de transportes, não concordando, porém, com o grau de desvalorização que foi atribuído ao sinistrado pelo Perito Médico do Tribunal, uma vez que os seus serviços clínicos atribuíram ao sinistrado uma desvalorização de 23,18% desde 14 de julho de 2015.

25. Por seu turno, a ora Ré, aceitou a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e a retribuição anual de 545€ x 14 + 5,13€ x 22 x 11 + 750€ x 11, contudo, não concordou com o grau de desvalorização que foi atribuído ao sinistrado pelo Perito Médico do Tribunal, uma vez que os serviços clínicos da aqui Autora lhe tinham atribuído uma desvalorização de 23,18%, não aceitando inclusive pagar qualquer tipo de valor a título de pensão e/ou indemnização, uma vez que alega ter toda a responsabilidade infortunística transferida para a seguradora.

26. Pelas partes não se terem conciliado o processo seguiu os seus termos tendo sido proferido despacho saneador no âmbito do qual foi decidido que a fixação da incapacidade para o trabalho correria por apenso.

27. No processo apenso para a fixação da incapacidade para o trabalho, foi proferida decisão, na qual foi fixada ao sinistrado uma incapacidade permanente parcial (IPP), de 39,916%.

28. Proferida sentença no âmbito do processo 315/15.3T8PNF ficou provado que o sinistrado sofreu um acidente de trabalho;

29. que à data do acidente de trabalho, o sinistrado auferia a retribuição anual de 645€ x 14 + 5,13€ x 22 x 11 + 750€ x 11;

30. que em consequência direta e necessária do acidente resultou para o sinistrado uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 39,916%;

31. e que à data do acidente de trabalho a aqui Ré tinha a sua responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho, em que fosse interveniente o sinistrado, transferida para a aqui Autora pela retribuição de 545€ x 14 + 93,94€ x 11 + 577,50 € x 11, ou seja, 15.015,84 € (quinze mil, quinze euros e oitenta e quatro cêntimos).

32. Ficou ainda provado que à data em que o aludido acidente ocorreu, o sinistrado auferia a retribuição anual de 18.525,66€ (645€ x 14 + 5,13€ x 22 x 11 + 750€ x 11).

33. A Autora foi condenada a pagar a quantia de 5.773,95 € (cinco mil, setecentos e setenta e três euros e noventa e cinco cêntimos) a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (ITA) acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa legal; uma pensão anual, vitalícia e atualizável, nos termos da lei, de 4.195,61 € (quatro mil, cento e noventa e cinco euros e sessenta e um cêntimos) acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa legal, bem como a quantia de 150 € (cento e cinquenta euros) acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa legal, a título de transportes;

34. E a Ré, condenada a pagar a quantia de 3.366,51 € (três mil, trezentos e sessenta e seis euros e cinquenta e um cêntimo a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (ITA) acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa legal e uma pensão anual, vitalícia e atualizável, nos termos da lei aplicável, de 980,69 € (novecentos e oitenta euros e sessenta e nove cêntimos) acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa legal.

35. A Autora, no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, suportou todas despesas médicas e medicamentosas do sinistrado, liquidou todas as despesas de hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transportes, designadamente:

36. 34.669,90€ (trinta e quatro mil, seiscentos e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) título de despesas suportadas a título de riscos traumatológicos.

37. 13.195,58€ (treze mil, cento e noventa e cinco cêntimos e cinquenta e oito cêntimos) a título de riscos traumatológicos no estrangeiro.

38. e 150,00 € (cinto e cinquenta euros) a título de despesas de transportes.

39. A ré foi informada das cláusulas que integram o contrato de seguro de acidentes de trabalho que subscreveu, designadamente da necessidade de comunicar a alteração do salário do trabalhador em virtude de o mesmo exercer as suas funções em Espanha e a correção do subsídio de alimentação.

B. Factos não provados.”.


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IV. Fundamentação de direito

1ª Questão

A Recorrente invoca, de modo conclusivo, a violação do disposto no artigo 615º do Código de Processo Civil, sem especificar qual a nulidade ou nulidades da sentença com a qual foi confrontada e sem concretizar o fundamento da mesma.

Da leitura articulada da motivação e das conclusões resulta a discordância, por parte da Recorrente, da decisão sobre a matéria de facto e da interpretação e aplicação do direito.

Salvo o devido respeito, tais fundamentos não constituem causa de nulidade da sentença.

Improcede, assim, o recurso, nesta parte.


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2ª Questão

Após a referência, nas alegações, ao caso julgado nas suas duas vertentes – uma, a excepção dilatória do caso julgado e outra, respeitante à força e  autoridade do caso julgado -, sustenta a Recorrida que:

- na “ação que correu termos no Juízo do Trabalho de Penafiel com o n.º de processo 315/15.3T8PNF, na qual foram parte a Recorrida e a Recorrente, ficou assente que a responsabilidade baseada na retribuição do sinistrado, não estava transferida na integra para a Recorrida”;

- a “Recorrente não recorreu da decisão proferida na ação emergente do acidente de trabalho, tendo a mesma, valor de caso julgado na determinação da responsabilidade das partes”;

- “determinada a responsabilidade das partes intervenientes no processo de trabalho, e conformação com o resultado, dali apurado, a Recorrida intentou a presente ação, em conformidade com o disposto no artigo 79º, n.º 5 da Lei n.º98/2009, de 4 de setembro”.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 628.º do Código de Processo Civil que “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Como, entre outros, explicam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Diz-se que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da decisão constitui assim a pedra de toque do caso julgado [1].

O conceito de caso julgado abrange duas vertentes: a do caso julgado formal ou externo, relativo a questões de carácter processual e a do caso julgado material, substancial ou interno, “referente à relação material em litígio”.

O caso julgado material  tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada”. O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do próprio processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.” [2]

Ensinava o Professor Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, anotação ao art. 672º, que “com o trânsito da sentença em julgado, facto processual definido no § único do art. 677º, produz-se este fenómeno: a formação do caso julgado. O art. 671º propõe-se determinar a autoridade e o valor desta formação. E determina-os assim: a decisão proferida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele. Se confrontarmos este ditame com o que se lê no art. 672º, ficamos logo advertidos de que a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia: ao passo que o art. 671º fala de força obrigatória dentro do processo e fora dele, o art. 672º só atribui à decisão força obrigatória dentro do processo.

Estamos pois em presença de duas figuras diferentes, de duas realidades perfeitamente distintas. À que o art. 671º considera dá-se o nome de caso julgado material ou substancial: à que o art. 672º desenha cabe a designação de caso julgado formal ou processual. Quando é que o caso julgado reveste a primeira ou a segunda modalidade? A aproximação dos dois artigos habilita a dar a resposta. Se a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, temos o caso julgado formal. Se recai sobre o mérito da causa, e portanto sobre a relação jurídica substancial, temos o caso julgado material”.

Escrevem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[3], “a litispendência e o caso julgado são pressupostos processuais de índole negativa, na medida em que a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância (arts. 278º,1,e, e 577º,i)”.

A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma  causa, quando na primeira causa já tenha sido proferida decisão final transitada em julgado (cfr. art. 628º do CPC), dispondo o nº 1 do artigo 578º do Código de Processo Civil que “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

A exigência desta tríplice identidade fixa os limites subjectivos e objectivos do caso julgado. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “É através desta tríplice identidade – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado (...). O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor(ou pelo réu, através da reconvenção) (…). É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado(…)”.

Concluem, “Pode assim dar-se por assente que a eficácia do caso julgado apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (artigo 659º, 2, in fine), ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir (…). A força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final.” [4] [5]

No que respeita aos limites subjectivos, importa salientar que a identidade dos sujeitos relevante para efeito da excepção de caso julgado é, como dispõe o artigo 580º, nº 2, do CPC, a identidade jurídica, ou seja, não interessa tanto a identidade física dos sujeitos envolvidos nas várias acções, mas a qualidade jurídica em que intervieram no processo.

A identidade de pedidos assume grande relevância no âmbito do caso julgado, já que este se forma directamente sobre o pedido. Referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que “a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado”. [6]

Tendo presente as diferentes causas de pedir e de pedidos da acção cujos termos correram sob o nº 315/15.3T8PNF e da presente acção, desde logo concluímos não poder verificar-se a excepção dilatória do caso julgado.

E a figura da autoridade de caso julgado?

A “autoridade de caso julgado implica o acatamento de decisão proferida em acção anterior, cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”.[7]

Referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Vem surgindo com alguma frequência em arestos dos diversos tribunais o recurso à figura da «autoridade do caso julgado» (ou efeito positivo do caso julgado), com vista a extrair de algumas decisões o mesmo efeito impeditivo que emerge da verificação da exceção dilatória de caso julgado. (…) Em STJ 8-11-18, 478/08, decidiu-se que tal figura pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos que se apresenta como pressuposto indiscutível do efeito jurídico da decisão posterior”.[8]

Para “Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (…) a autoridade de caso julgado que emerge da sentença que transitou em julgado e a exceção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica: «pela exceção visa-se o efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida». Subsume-se nesta orientação  o STJ 14-10-2021, 251/13, ao entender que  (…):se o objecto de processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objetos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado”.[9]

Já Teixeira de Sousa, numa linha que tem obtido maior adesão por parte da jurisprudência,  defende que «a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, acrescentando, ainda, que «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada»”. [10]

Concluem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Enfim, respeitada a identidade dos sujeitos (…), a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art.º 581.º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmos sujeitos (…), abarcando, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam  antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado(…). Seguro é que tal mecanismo, que visa evitar contradições decisórias entre os mesmos sujeitos, não poderá ser invocado em ação que corra entre sujeitos diversos na perspectiva da sua qualidade jurídica...”.[11]
Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 27/2/2018[12]:
“Na jurisprudência deste Supremo Tribunal encontramos plasmado o entendido de que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 498º do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, cf. Ac. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; Ac. de 06.03.2008, processo nº 08B402, e Ac. do STJ de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – assim, nomeadamente, Ac. do 29/07.4.TBPST.S STJ de 12.07.2011, processo 11, www.dgsi.pt – o que tem apoio na doutrina de Miguel Teixeira de Sousa, ao afirmar: “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579)”.
No Acórdão de 17/05/2018, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que: [13]

Segundo a noção dada por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304, o caso julgado material, «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».

É imposto por razões de certeza do direito, mas, sobretudo, de segurança das relações jurídicas.

Tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor, obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.



Mas, enquanto que alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis, para Lebre de Freitas e para Remédio Marques, defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, outros há, como Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, que defendem uma conceção mais ampla do caso julgado.

Assim, nesta última linha, sustenta Miguel Teixeira de Sousa, que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

Também, na esteira desta doutrina, afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) que «a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».

Mas, não obstante a divergência registada ao nível da doutrina sobre o âmbito objectivo do caso julgado, a verdade é que todos parecem estar de acordo num ponto, ou seja, que os fundamentos de facto, por si só, nunca formam caso julgado.

Com efeito, pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Remédio Marques, que o caso julgado «não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final».

No mesmo sentido, refere Antunes Varela que «os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final».

Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».

E é também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente».

Pronunciando-se sobre a autoridade de caso julgado, no Acórdão de 2 de Junho de 2021, decidiu  o Tribunal da Relação de Guimarães [14]:

“Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 26.2.2019 (in www.dgsi.pt)a exceção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. art. 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: exigir essa tríplice identidade equivaleria, como já se afirmou, a "matar" esta figura; "a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva”.

A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2 do CPC).
A autoridade de caso julgado "tem o efeito positivo de
impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (...)

Na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.
Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”(sublinhados nossos).

Dito de outro modo, o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão) (Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.6.2019 in www.dgsi.pt).

Por outro lado, como referido no Acórdão do STJ de 30.4.2019 (in www.dgsi.pt) “tem sido entendido por alguns, nomeadamente a maioria da jurisprudência, que a autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida”.

Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 9/11/2021:[15]
“2- A autoridade do caso julgado deriva não desta tríplice identidade, mas sim da necessidade de assegurar que uma decisão judicial não tenha um efeito contraditório ou incompatível com decisão anterior, sendo fundamental atender ao anteriormente decidido, sempre de acordo com a interdependência e prejudicialidade entre as duas acções;
3.–Para tanto, haverá que atender ao direito material e à relação existente entre a situação já definida por sentença e aquela que vem a juízo, sendo primordial definir quais os terceiros, titulares de relações jurídicas conexas, que ficam abrangidos pela autoridade do caso julgado, ou seja, pelo conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva;
4.–Do regime jurídico do seguro de responsabilidade civil extrai-se a existência de uma relação de prejudicialidade entre a decisão proferida em acção proposta pelo lesado contra o segurado, onde este foi condenado, por sentença transitada em julgado, e a decisão a proferir na acção proposta contra a Seguradora, sendo que aquela decisão faz parte do objecto da nova acção, fixando quer a responsabilidade do lesante, quer os termos da obrigação de indemnizar e que, por esse motivo, devem ser respeitados;
5.–Assim, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado formado na 1ª acção;
6.–Esta interpretação relativamente ao caso julgado e sua autoridade, não é violadora de qualquer preceito constitucional, não existindo qualquer violação dos direitos à tutela judicial efectiva e à defesa”.

A autoridade do caso julgado, decorrente da necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas, não é colocada em crise mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei. [16]

Transpondo tais princípios para os presentes autos, na acção proposta contra as oras Autora e Ré – processo nº 315/15.3T8PNF que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Penafiel – foi qualificado o acidente como de trabalho e determinada a responsabilidade da entidade patronal do sinistrado, ora Ré, bem como os termos da obrigação de indemnizar, quer desta, quer da ora Autora.

A Autora propôs a presente acção contra a Ré tendo como pressuposto que:

i. Por sentença proferida no âmbito do processo nº315/15.3T8PNF ficou provado que o sinistrado sofreu um acidente de trabalho; que à data do acidente de trabalho, o sinistrado auferia a retribuição anual de 645€ x 14 + 5,13€ x 22 x 11 + 750€ x 11 e que em consequência directa e necessária do acidente resultou para o sinistrado uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 39,916%, e que à data do acidente de trabalho a aqui Ré tinha a sua responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho, em que fosse interveniente o sinistrado, transferida para a aqui Autora pela retribuição de 545€ x 14 + 93,94€ x 11 + 577,50 € x 11, ou seja, 15.015,84 € (quinze mil, quinze euros e oitenta e quatro cêntimos);

ii. A Autora é responsável pelos danos decorrentes do acidente de trabalho na proporção de 89,05% correspondente à retribuição anual de 15.015,84 € (quinze mil, quinze euros e oitenta e quatro cêntimos) e a Ré é responsável pelos danos decorrentes do acidente de trabalho na proporção de 18,95% correspondente à diferença entre a retribuição anual auferida pelo sinistrado e a retribuição declarada para efeitos de seguro.

A questão da responsabilidade pelo acidente qualificado como de trabalho na primeira acção proposta pelo sinistrado contra a seguradora, ora Autora, e contra a empregadora, ora Ré, a repartição de responsabilidades entre seguradora e empregadora e os termos da obrigação de indemnizar o sinistrado, inserem-se no objecto desta acção, proposta pela mesma seguradora contra a empregadora  do sinistrado, ambas intervenientes na primeira acção, motivo pelo qual tem de admitir-se a projecção da autoridade do caso julgado, formado nessa acção quanto à qualificação do acidente como de trabalho, a obrigação de indemnizar o sinistrado que recai sobre a Autora e Ré e a repartição de responsabilidades entre ambas aí definida.

Em conclusão, concentrado no processo especial de acidente de trabalho, todas as questões relacionadas com a caracterização do acidente e determinação da entidade responsável e em que moldes, foi, nessa acção proferida decisão final transitada em julgado. A questão da retribuição efectiva do sinistrado ser superior ao quantitativo reconhecido no contrato de seguro e a medida da responsabilidade da empregadora pelos danos decorrentes do acidente mostram-se decididas no processo especial de trabalho.

A situação jurídica que foi definida por decisão proferida nessa  acção não coincide com o objecto desta acção mas constitui pressuposto da situação jurídica que nesta é necessário regular e definir.

Nesta acção, a Autora alega que na sequência do acidente de trabalho objecto do processo nº 315/15.3T8PNF, assegurou o pagamento de todas as despesas de hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transporte do sinistrado. Invocando o disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 79º da Lei 98/2009, de 04.09.2009, e tendo como pressuposto que a retribuição efectiva do sinistrado era superior ao quantitativo reconhecido no contrato de seguro para efeito do prémio de seguro e que a entidade patronal do sinistrado responde pelos danos na proporção de 18,95%, correspondente à diferença entre aqueles dois valores, pretende ser reembolsada do montante das despesas que suportou com a hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transporte do sinistrado, na parte que excede a medida da sua obrigação que se mostra fixada  na sentença, transitada em julgado, no processo de acidente de trabalho.

As despesas com a hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transporte do sinistrado não foram incluídas no objecto do processo de acidente de trabalho.

Consequentemente, os efeitos da autoridade de caso julgado emanados da decisão, proferida naqueles autos, repercutem-se nesta acção porquanto, naquela decisão foi definida a relação que constitui pressuposto da situação jurídica que nesta é necessário regular e definir.

Assim, nesta acção, o Tribunal deve apreciar e definir a concreta relação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição, sem nova apreciação ou discussão, a decisão proferida no processo de acidente de trabalho quanto aos termos da  responsabilidade da Autora e Ré pelos danos decorrentes do acidente de que foi vítima o sinistrado AA.

Em consequência da repercussão da autoridade de caso julgado formado pela decisão proferida naqueles autos, mostra-se precludida a reapreciação da questão que se prende com a obrigação da Ré de responder pelos danos decorrentes do acidente de trabalho, na proporção de 18,95%, fixada na sentença, transitada em julgado, correspondente à diferença entre a retribuição efectiva do sinistrado e a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro.

Permitir que a Ré pudesse ver discutida, de novo, a questão da sua obrigação de suportar o pagamento de parte das despesas decorrentes do acidente, conduziria a permitir precisamente aquilo que a lei quis evitar com a extensão do autoridade do caso julgado, isto é, que a mesma matéria, pressuposto quanto a um pedido deduzido na acção posterior, pudesse ser objecto de dois julgamentos contraditórios, no caso, na acção de acidente de trabalho, ter sido determinada a obrigação da Ré a suportar os danos decorrentes do acidente de trabalho, na proporção de  18,95%; e na presente acção ser determinado que a obrigação da Autora abrange a totalidade dos danos decorrentes desse acidente.

Salienta-se, ainda, que a questão suscitada pela Ré, nos presentes autos, do não cumprimento do dever de informação das cláusulas que integram o contrato de seguro, sendo prévia à propositura da acção de acidente de trabalho, teria de ser suscitada nesses autos, como decorre do princípio da concentração da defesa a que se liga o princípio da preclusão dos meios que as partes têm ao seu alcance quer, quando são autores devendo alegar os factos essenciais da causa de pedir que sejam do seu conhecimento, quer quando são réus, devendo opor ao seu antagonista todas as excepções que, desde logo, puderem invocar.  A concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estão ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado e com o dever de lealdade e de litigar de boa fé.

Pelo exposto, procede a excepção de autoridade do caso julgado.
3ª Questão

Pela Recorrente foi impugnada a decisão da matéria de facto por referência ao ponto 39 dos Factos Provados de cujo teor consta: “A ré foi informada das cláusulas que integram o contrato de seguro de acidentes de trabalho que subscreveu, designadamente da necessidade de comunicar a alteração do salário do trabalhador em virtude de o mesmo exercer as suas funções em Espanha e a correção do subsídio de alimentação”.

Concluindo o Tribunal no sentido da repercussão da autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida no processo nº315/15.3T8PNF, mostra-se inócua a apreciação da factualidade vertida no ponto 39 dos Factos Provados.

Como referido, no processo especial de acidente de trabalho concentram-se todas as questões relacionadas com a caracterização do acidente e determinação da entidade responsável e em que moldes. Significa que toda a defesa referente a tais matérias deve ser deduzida nesse processo especial de acidente de trabalho, ficando precludida a possibilidade de, em acção posterior, deduzir excepção fundamentada em factos ocorridos em data anterior à propositura da acção especial de trabalho. A questão do cumprimento /não cumprimento do dever de informação, por parte da Seguradora, é prévia ao processo especial de acidente de trabalho. A responsabilidade pelos danos decorrentes do acidente qualificado como de trabalho e a medida da obrigação que recai sobre Autora e Ré encontra-se fixada na proporção de 81,05% e 18,95%, respectivamente. Neste processo, por efeitos da autoridade do caso julgado emanados da decisão proferida no processo especial de acidente de trabalho, mostra-se vedado o conhecimento do cumprimento/não cumprimento dos deveres de informação – e as consequências do não cumprimento desse dever - que impendiam sobre a Autora e Ré, por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de prémio variável titulado pela apólice ...09, celebrado entre ambas e através do qual foi transferida, para a Autora, a responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos por AA, trabalhador da Ré, tomadora do seguro.

Por último, a Autora fundamenta o direito que se arroga titular nos nºs 4 e 5 do artigo 79º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, e não nas cláusulas que integram o contrato de seguro, em particular a cláusula 23ª do Contrato de Seguro na qual se encontra vertido o disposto no nº5 do citado artigo.

Pelo exposto, decide-se não conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto.


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4ª Questão

Nas conclusões, a Recorrente insurge-se com a sentença recorrida por considerar que o  Tribunal "a quo" não fez uma correcta aplicação do direito à matéria de facto provada. Fundamentou a sua pretensão de revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo na alteração da decisão da matéria de facto (ponto 39 dos Factos Provados).

A  Autora fundamenta  a sua pretensão no disposto no artigo 79º, nºs 4 e 5, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

Nos termos do nº1 do artigo 79º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, “O empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, dispondo o nº 4, “Quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida”, caso em que “o empregador responde pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respectiva proporção”.

Considerou este Tribunal que se repercute, na presente acção, a autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida no processo nº315/15.3T8PNF. 

No âmbito do processo especial de acidentes de trabalho foi definida a repartição de responsabilidades entre Autora e Ré na proporção de 89,05% e 18,95%, respectivamente, assente nos seguintes pressupostos:

-  por contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice ...09, a Ré transferiu para a Autora a sua responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos pelo seu trabalhador AA, mediante a retribuição anual de 545 € x 14 + 93,94 € x 11 + 577,50 € x 11;

- no dia 30 de Janeiro de 2014, pelas 16:00 horas, em Espanha, na obra “... (FASE II)”, em Lugo, AA, quando exercia funções para a Ré, foi vítima de um acidente qualificado de trabalho;

- à data em que o aludido acidente ocorreu, o sinistrado auferia a retribuição anual de 18.525,66€ (645€ x 14 + 5,13€ x 22 x 11 + 750€ x 11).

Nestes autos, encontra-se demonstrado que a Autora, no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, suportou todas despesas médicas e medicamentosas do sinistrado, liquidou todas as despesas de hospitalização, assistência clínica, medicamentos e transportes, designadamente: 36.34.669,90€ (trinta e quatro mil, seiscentos e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) a título de despesas suportadas a título de riscos traumatológicos; 13.195,58€ (treze mil, cento e noventa e cinco cêntimos e cinquenta e oito cêntimos) a título de riscos traumatológicos no estrangeiro; e 150,00€  (cinto e cinquenta euros) a título de despesas de transportes.

Decidiu o Tribunal a quo que “a ré transferiu para a autora 81,05% da responsabilidade correspondente à retribuição anual efetivamente auferida pelo trabalhador [pelo que], terá que suportar o remanescente, correspondente a 18,95%” e que  “assiste (…) razão [à Autora] em peticionar da ré o reembolso de €9.098,93, correspondente a 18,95% da quantia total, com o que se concorda.

Improcede o recurso, nesta parte.


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5ª Questão

A Recorrente insurge-se com a decisão recorrida, invocando que  “[a] prevalecer a sentença dos autos estar-se-á a, em bom rigor, deixar passar uma forma omissiva de venire contra factum proprium”.

Sustenta que caso a Autora, “no Proc. 315/15.3T8PNF ou o seu mediador (...) tivessem informado da necessidade de emitir recibo em função do salário mínimo de Espanha, obviamente que a tomadora do seguro (…) o tinha feito (…).Teria bastado reportar parte desses 750,00€ x 11, transferido parte desse montante para a retribuição base e estava resolvida a situação”; “Teria sido tudo uma mera e simples questão de distribuição de valores de retribuição no recibo” e que “A soma do valor global dos montantes auferidos e efetivamente transferidos pela aqui Recorrente para a Recorrida ultrapassa o valor do montante global a que o sinistrado/A. tinha direito, levando em consideração o salário mínimo em Espanha”.

Conclui que a “A./Recorrida, para além de, garantidamente, ter recebido o prémio que lhe foi devido, é ponto assente que ao omitir a informação que devia ter prestado criou a possibilidade de, a posteriori, vir reclamar os 9.098,93€ que peticiona na presente ação”.

O abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do Código Civil).

São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

Da leitura das motivações e conclusões da Recorrente, parece que a mesma olvida as obrigações que recaem sobre si enquanto empregadora. A entidade empregadora sujeita, em princípio, a indemnizar o trabalhador em função dos danos emergentes de acidente de trabalho, tem a obrigação de transferir essa responsabilidade para uma companhia seguradora, pretendendo a  lei garantir que o trabalhador lesado obtenha uma reparação do dano sofrido.

Refere Menezes Leitão, [17] «a responsabilidade civil não representa aqui a razão da obrigação do seguro. Se assim fosse, a função deste seguro teria de ser a protecção da entidade patronal contra o risco de eventuais acções de responsabilidade, o que não acontece. A verdadeira função do seguro é outra: a de garantir a reparação do trabalhador (…) O fundamento do seguro nesta matéria é comum ao fundamento da Segurança Social: a tutela da segurança económica do trabalhador».

Nos termos do artigo 79º da Lei 98/2009, “O empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, constituindo contra-ordenação a violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 79.º, bem como “A omissão ou insuficiências nas declarações quanto ao pessoal e às retribuições com vista ao não cumprimento do disposto no artigo 79.º” – cfr. artigo 171º da Lei 98/2009.

O contrato de seguro entre a Autora, seguradora, e a Ré – empregadora reveste a modalidade de prémio variável, sendo que, nesta modalidade de seguro, a seguradora só responde, em regra, em relação aos trabalhadores ao serviço do tomador de seguro na unidade produtiva identificada nas condições particulares e “de acordo com as folhas de  retribuições periodicamente enviadas  ao segurador nos termos da alínea a) do nº1 da cláusula 24ª das condições gerais”.

Constitui obrigação do tomador do seguro, nos termos da alínea a) do nº1 da cláusula 24ª das Condições Gerais, “enviar ao segurador, até ao dia 15 de cada  mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à Segurança Social, relativas às retribuições pagas no mês anterior, devendo, no envio mencionar a totalidade das remunerações previstas na lei como integrando a retribuição para efeito de cálculo da reparação por acidente de trabalho…” ; e “comunicar previamente ao segurador a deslocação ao estrangeiro das pessoas seguras ….”.

“O prémio provisório é calculado de acordo com as retribuições anuais previstas pelo Tomador do Seguro” - cláusula 1ª, nº2, das Condições Especiais – e [n]o final de cada ano civil ou aquando da cessação do contrato, e sem prejuízo do disposto no n° 5, é efectuado o acerto, para mais ou para menos, em relação à diferença verificada entre o prémio provisório e o prémio definitivo, calculado em função do total de retribuições efectivamente pagas durante aquele período de vigência do contrato”.

Em suma, decorre da lei a obrigação da Ré, enquanto entidade empregadora, proceder ao seguro por acidentes de trabalho em função da efectiva retribuição do trabalhador.

Por último, parece pretender a Ré que para o cumprimento da obrigação que sobre si impendia de mencionar a totalidade das remunerações previstas na lei que integram a retribuição para efeito de cálculo da reparação por acidente de trabalho, bastaria “transferir para a retribuição base”, parte da prestação complementar, no montante de 750,00€, que era paga ao sinistrado, ou seja, não declarar a verdadeira natureza das prestações pagas ao sinistrado, sendo que, conforme se referiu, constitui contra-ordenação a “omissão ou insuficiências nas declarações quanto (…) às retribuições com vista ao não cumprimento do disposto no artigo 79.º” – cfr. artigo 171º da Lei 98/2009.
Em conclusão, resulta expressamente da lei a obrigação da Ré de declarar a real retribuição auferida pelo trabalhador.

Por tudo quanto vimos expondo, e sem considerandos desnecessários, fixada a medida da responsabilidade da Ré na acção especial de acidente de trabalho,  não vemos como a actuação da Autora seja enquadrável na figura do abuso do direito, porquanto, como resulta de forma evidente do art.º 334.º do C.C., para tal é necessário que haja um exercício ilegítimo de um direito, a aferir pelo excesso ditado pelos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.


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Pelo exposto, ainda que com fundamentos não totalmente coincidentes, confirma-se a sentença recorrida.

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Custas

Atento o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Assim, as custas são da responsabilidade da Recorrente no pagamento das custas da apelação, face à improcedência do recurso.


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V_ Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas no recurso pela Recorrente (artº 527 do C.P.C.).

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Sumário:
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Porto, 5/2/2024
Anabela Morais
Carlos Gil
Miguel Baldaia de Morais

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[1] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 702.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 703 e 704.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª ed., vol. I, anotação ao art. 580º, pág.711.
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 712 a 714.
[5] Sobre as questões não cobertas pela força de caso julgado, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, págs. 714 e 715:”Da orientação assim fixada na lei duas conclusões práticas muito importantes se podem extrair: 1.ª – Sendo certo que o caso julgado apenas abrange a resposta dada pelo Estado à pretensão do autor (ou do réu, no caso especial da reconvenção), revestirá sempre o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final; 2ª –Pode haver – e haverá na comum das sentenças – muitos julgamentos, quer sobre a matéria de facto, quer sobre questões de direito que, por não estarem contidos na decisão final, embora integrem os seus fundamentos, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado”.
[6] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Lda., 1985, pág. 712.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 30 Março de 2017, no processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º,Almedina, 2022, pág. 798.
[9] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, pág.800.
[11] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2023, págs.798-780.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/2/2018, proc. 2472/05.8TBSTR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2018, proferido no processo n.º 3811/13.3TBPRD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão de 2 de Junho de 2021, do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº4806/20.6T8VNF-B.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Acórdão de 9/11/2021, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 877/20.3T8SNT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. Nesse Acórdão, pode ler-se:
“Também Alberto dos Reis in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVII, págs.206 e segs. (Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros) – apud Ac. STJ 08-01-2019, proc. 992/137TBMAI.P2.S1, relator Roque Nogueira, entendia que “O caso julgado formado sobre uma determinada relação jurídica só deve fazer sentir a sua influência sobre outras relações jurídicas quando estas estejam para com aquela num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão. E para se caracterizar esta dependência parece-nos aceitável o critério de Allorio – o critério da prejudicialidade. Se a relação coberta pelo caso julgado entre na formação doutras relações, como pressuposto ou como elemento necessário, tem de admitir-se a projecção reflexa do caso julgado sobre essas relações, na medida em que ele fixou e definiu a relação prejudicial”.
“Quando o caso julgado relativo a um objecto prejudicial é invocado numa acção posterior releva nesta segunda acção uma proibição de contradição daquele caso julgado, proibição que não impede a nova pronúncia do tribunal sobre o que é pedido, antes vincula o tribunal a utilizar o caso julgado como base da apreciação sobre o que lhe é solicitado”.
De igual modo, o Ac. TRG de 23-06-2021, proc. 123/20.T8VPC-A.G1, relator Maria dos Anjos Nogueira, refere que“É, portanto,“entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado ” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2016, proc. n.º 74300/15.9YIPRT.P1, relator: Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt)...”.
[16] Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019, proferido no processo nº 5998/16.4T8FNC.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
[17] Menezes Leitão, Temas Laborais- Estudos e Pareceres, vol. I, p 20.