Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
90/19.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
VALORAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP2025092290/19.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 09/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na fixação da indemnização com recurso à equidade (art. 588.º, n.º 3, do Cód. Civil), não é viável a apresentação de um silogismo demonstrativo linear, isto é, de um silogismo que evidencie que o valor arbitrado é inequívoca e irrefutavelmente o único que pode resultar da aplicação da lei aos factos apurados.
II - É justo e equitativo atribuir uma indemnização de € 150.000,00 por danos não patrimoniais ao lesado, vítima de acidente de viação, sem qualquer culpa sua, que à data do acidente tinha 39 anos e que, em resultado deste, sofreu dores intensas (de grau 6/7), passou a sofrer de uma afetação da atividade sexual de 2/7, passou a sofrer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, passou a padecer de alterações ao nível do controlo dos esfíncteres, passou a sentir permanente dor neuropática nos membros superiores e desequilibra-se e claudica visivelmente ao andar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 90/19.2T8PVZ.P1

Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………
***
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA instaurou ação declarativa com processo comum contra A... Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal (anteriormente B..., S.A.), pedindo a condenação da ré no pagamento da quantias de “€ 627.524,00, acrescida do que se liquidar em ampliação do pedido ou liquidação ulterior e, bem assim, de juros legais de mora a partir da citação”.
Para tanto, alegou que foi vítima de um acidente de viação, sendo o causador de tal acidente o condutor de um veículo segurado na ré. Sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, cuja indemnização ascende ao valor pedido.

Citada, a ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação.
A C... Companhia de Seguros, S.A., interveio espontaneamente, pedindo a condenação da ré no pagamento do montante de € 148.496,50, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, computados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data dos pagamentos efetuados, alegando que o acidente que vitimou o autor foi simultaneamente de viação e de trabalho, sendo a interveniente responsável pelo ressarcimento deste no âmbito laboral.
Admitida a intervenção, a ré contestou o pedido da interveniente.
A interveniente principal ampliou o pedido para o valor de € 366.488,41 (ref. 36122544 de 03-07-2023), tendo tal ampliação sido parcialmente admitida, nos termos do despacho de 08-09-2023, ref. 451409282, para o montante de € 219.582,75‬, relegando para sentença a apreciação da questão colocada quanto às reservas matemáticas.
O autor ampliou o pedido (ata de 03-10-2023 e requerimento de 04-10-2023, ref. 36852005), o que foi parcialmente admitido (despacho de 13-12-2024), acrescendo ao pedido primitivo o valor de € 550.000,00.

Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou os pedidos formulados parcialmente procedentes, concluindo nos seguintes termos:
Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação e o incidente de intervenção principal espontânea parcialmente provados e procedentes:
A) condena a ré B..., S. A. a pagar ao autor AA o seguinte:
. a) a quantia de € 223.762,54, a título de indemnização por danos patrimoniais relativos à perda de rendimentos no período compreendido entre 23 de janeiro de 2016 e 14 de novembro de 2017 e dano biológico, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 21 de janeiro de 2019 até integral e efetivo cumprimento;
. b) a quantia de € 250.000,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a presente data até integral e efetivo cumprimento;
B) absolve a ré dos restantes pedidos formulados pelo autor;
C) condena a ré B..., S. A. a reembolsar à Interveniente Principal C... – Companhia de Seguros, S.A. o montante global de € 94.950,08, acrescido de juros à taxa legal de 4% desde 20 de maio de 2019 relativamente aos valores que constam dos pontos 81), 85) a), 86) a), b), c), e), g), i) da fundamentação de facto e desde 6 de julho de 2023 quanto aos identificados nos pontos 85) b), 86) d), f), h), j), k) e l) da fundamentação de facto.

Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
1 – A reapreciação, em primeira linha, das declarações de parte do demandante, deverá levar ao aditamento à fundamentação de facto do seguinte facto (…):
. À data atual, ou à data de hoje, o demandante aufere como rendimento do seu trabalho a quantia mensal de 1.200,00 € brutos, sendo certo que trabalha metade das horas que trabalhava antes do acidente dos autos. (…)
4 – Daqui resulta, conjugado com a restante factualidade dada como provada, inequívoco o seguinte: // – o demandante não sofreu qualquer perda a título de lucro cessante. (…)
6 – (…) [A]s indemnizações pelo acidente de viação e pelo acidente de trabalho não são cumuláveis, mas complementares (…). (…)
9 – O dano biológico é, nem mais nem menos, uma outra designação para o dano patrimonial ou perda de capacidade de ganho; traduz-se numa limitação física para o exercício de qualquer atividade; é um dano funcional, tal como a perda de capacidade de ganho ou lucro cessante; e, diga-se, desde já, qualquer outro tipo de dano é enquadrável no dano moral, e não no dano biológico. (…)
22 – Mas, se assim se não entender, e se se concluir pela admissibilidade dessa indemnização, sempre esta deverá ser reduzida para uma quantia nunca superior a 50.000,00 €, em face, quer da IPP de 65 pontos, quer do rendimento de 1.000,00 € mensais, quer do templo expectável de atividade profissional.
23 – (…) [É incorreta] a ausência de método de cálculo aplicado na douta sentença aqui em recurso, que (…), com recurso à equidade, fixou o montante de 200.000,00 €; é muito mais correto apurar o valor indemnizatório com base em fórmulas matemáticas.
36 – (…) [O] valor fixado pelo tribunal a quo é excessivo, afastando-se, e muito, dos parâmetros que vêm sendo estabelecidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores; (…) a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais (…) não deveria situar-se em montante superior a € 50.000,00, também porque não se provaram quaisquer outros danos suscetíveis de inflacionar tais quantia indemnizatória.
39 – (…) [A] haver condenação, esta apenas poderia vencer juros de mora (…) a partir da sentença, e não a partir da citação.
NESTES TERMOS, dando provimento ao recurso e, em consequência, revogando a Douta Sentença da seguinte forma:
A) Absolvendo a demandada do pedido de 200.000,00 € atribuído ao demandante a título de dano patrimonial, ou, se assim se não entender, fixar em 50.000,00 € o montante a atribuir ao demandante a título de dano patrimonial;
B) Fixar em 50.000,00 € o montante a atribuir ao demandante a título de dano não patrimonial;
C) Fixando a contagem dos juros sobre todas as indemnizações a partir da data da douta sentença.

O apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. Interpôs recurso subordinado, apresentando as seguintes conclusões:
48) Deve (…) a recorrida do recurso subordinado ser condenada não no pagamento da quantia de € 223.762,54 (…), mas antes no pagamento ao recorrente da quantia de € 683.762,54 (…), a titulo de dano biológico e de lucros cessantes não abrangidos pela indemnização recebida em sede laboral, acrescida de juros legais calculados desde a citação da recorrida para a ação;
49) Deve ainda ser admitida a ampliação do pedido formulada e a recorrida condenada a liquidar o peticionado, em incidente de liquidação posterior à sentença, e na medida do que não vier a ser prestado pela seguradora responsável pelos danos que estão a ser prestados em sede de acidente laboral.

A ré apelada não contra-alegou (praticou um ato que apelidou de “CONTRA-ALEGAÇÕES”, mas que, na verdade, não passa de uma estéril repetição da sua alegação de recurso).

II – Objeto do Recurso:

São as seguintes as questões cuja apreciação é suscitada nas conclusões das alegações de recurso:
Quanto à questão de facto, apreciação do requerido aditamento de um novo facto, adquirido na instrução da causa.
As questões de direito suscitadas no recurso independente, com relevância no montante indemnizatório, respeitam à natureza do dano biológico e âmbito da sua indemnização; à fixação do valor da indemnização com recurso à equidade; ao critério de fixação da indeminização por danos não patrimoniais e ao início da contagem dos juros de mora quando a indemnização é atualizada.
Já no âmbito do recurso subordinado, cumpre apreciar a pretensão de condenação em indemnização a liquidar ulteriormente quanto aos danos futuros previsíveis, de alteração do valor da indemnização arbitrado para € 683.762,54 e de condenação, a liquidar ulteriormente, do que não vier a ser prestado pela seguradora responsável pelos danos que estão a ser prestados em sede de acidente laboral.
Acresce a responsabilidade pelas custas

III – Fundamentação:

É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida (inserindo-se, para melhor apreensão, a identificação do tema da factualidade em causa incluída nos factos provados).

Factos provados

1. Dinâmica do acidente

1 – No dia 23 de janeiro de 2016, pelas 13h40, o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-XN circulava na Estrada Nacional ..., ao Km 9,950, na freguesia ..., concelho de Vila do Conde.
2 – O XN era conduzido por BB.
3 – O XN seguia animado de velocidade que não excedia os 50 km/hora.
4 – O XN transitava pela metade direita da faixa de rodagem, destinada ao sentido ... – ..., sensivelmente a meio dela.
5 – Nessa mesma ocasião, o veículo de matrícula ..-EO-.. encontrava-se na berma direita da Estrada Nacional ..., atento o sentido ... – ..., totalmente fora da faixa de rodagem e com a sua frente voltada em direção a ....
6 – O EO pertencia a CC.
7 – O EO era conduzido por DD.
8 – O condutor do EO pretendia passar a circular no sentido ... – ....
9 – Num momento em que o XN se acercava no sentido referido em 4), o condutor do EO arrancou bruscamente da berma onde se achava e, simultaneamente, em rápida aceleração, fletiu para o seu lado esquerdo.
10 - O condutor do EO não deu, previamente, qualquer sinal que indicasse a manobra que pretendia realizar.
11 – O EO atravessou-se na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido ... – ....
12 – O EO meteu-se na frente do veículo XN quando este se encontrava a menos de 15/20 metros de distância.
13 – Apesar do referido em 12), o condutor do XN travou a fundo deixando marcas no pavimento numa extensão de cerca de 7 metros.
14 – Apesar da travagem, o condutor do XN não logrou evitar o embate da frente deste na parte lateral esquerda do EO.
15 – O embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem da Estrada Nacional ..., atento o sentido de marcha ... – ..., sensivelmente a meio dessa metade.
16 – O local referido em 1) e 14) desenvolve-se em reta, com mais de 200 metros de extensão e com excelente visibilidade.
17 – O seu piso é em alcatrão e possui ali duas faixas de rodagem, destinadas a sentidos de trânsito inversos, separadas entre si por uma linha longitudinal contínua, pintada no pavimento com tinta de cor branca.
18 – Cada uma dessas duas faixas tem a largura de 3,60 metros.
19 – Em ambos os lados da aludida estrada existem bermas, também em alcatrão, tendo, cada uma, a largura de cerca de 2 metros.
20 – No momento referido em 1) estava bom tempo.
21 – O autor seguia como passageiro no EO, transportado no banco de trás.

2. Cobertura de riscos

22 – Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... CC transferira para a Ré a responsabilidade pelos danos causados a terceiro pelo veículo BMW ... matrícula ..-EO-...
23 – Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... D..., S. A. transferiu para a Interveniente Principal a responsabilidade pelo pessoal ao seu serviço, conforme folhas de retribuição a remeter até ao dia 15 de cada mês e em suporte eletrónico, em ficheiro com as características técnicas definidas pela Interveniente, que eram consideradas as pessoas e retribuições aí identificadas.
24 – Ficou a constar da apólice identificada em 23) que a Interveniente Principal garantia salário integral de 100% do salário líquido nas incapacidades temporárias.
25 – No momento identificado em 1) o autor dirigia-se para o local de trabalho, após pausa para almoço, no trajeto local de refeição - local de trabalho.

3. Sequelas do acidente

26 – O autor nasceu a 12 de novembro de 1976.
27 – Logo após o acidente, o autor teve perda de consciência e foi assistido no local pelos serviços do INEM, que lhe prestaram os primeiros socorros, o colocaram em plano duro e com colar cervical e o transportaram ao Hospital ..., na cidade do Porto.
28 – Deu entrada no serviço de urgência do referido Hospital, com soroterapia em curso e algaliado com sonda de Foley.
29 – Ali, após realização de vários exames, incluindo TAC da coluna, verificou-se que havia sofrido, além do mais, traumatismo vertebro-medular, por contusão, a nível de C3/C4 com compressão medular.
30 – Nesse mesmo dia, foi submetido a intervenção cirúrgica, com anestesia geral, em que foi realizada descompressão medular, discectomia de C3/C4 com enxerto ilíaco e colocação de Cage (devido a síndrome de cordão central).
31 – Durante entubação oro traqueal para a cirurgia referida em 30) ocorreu a avulsão de duas peças dentárias, tendo sido assistido pela especialidade de estomatologia a 26 de janeiro seguinte.
32 – Após a realização da referida cirurgia, por necessidade de ventilação controlada e estar medicado com Metilprednisolona, ficou internado no serviço de cuidados intensivos neurocríticos até 27 de janeiro seguinte, sendo transferido nessa data para o serviço de ortopedia/traumatologia do mesmo Hospital.
33 – Manteve-se internado no serviço de ortopedia do Hospital ... até 3 de fevereiro de 2016.
34 – Neste dia foi transferido para o serviço de medicina física e de reabilitação do polo de Valongo do mesmo Hospital.
35 – Devido a tetraplegia AIS D, nível neurológico C2, realizou tratamentos de recuperação funcional nessa última unidade hospitalar, mantendo-se internado.
36 – Por indicação dos serviços clínicos da Interveniente Principal, a 25 de fevereiro de 2016 foi transferido para o Hospital 1..., na cidade do Porto, onde ficou internado para continuar programa de reabilitação.
37 – Neste Hospital, manteve tratamentos intensivos de recuperação e fisiatria, que se prolongaram até 2 de setembro de 2016, data em que teve alta para o domicílio, não curado.
38 – Aquando da alta hospitalar, o autor teve indicações para tomar medicamentos, uns com regularidade (Buspirona 10 mg, Gabapentina 300 mg) Escitalopram 10 mg, Transulosina 0,4 mg, Alprazolam 1 mg, Sene 12 mg) e outros em SOS (Paracetamol 1000 mg, Tramadol 100 mg e Microlax) e para manter tratamento fisiátrico, em regime ambulatório, nas valências de fisioterapia e terapia ocupacional.
39 – No cumprimento dessas indicações, manteve a toma da medicação prescrita e prosseguiu tratamentos de fisioterapia na Clínica ..., na cidade do Porto.
40 – Estes tratamentos de MFR mantiveram-se até 10 de novembro de 2017.
41 – As lesões sofridas pelo autor atingiram a consolidação médico-legal em 14 de novembro de 2017.

4. Danos sofridos

42 – Apesar de curado, em resultado das lesões que sofreu no acidente, o autor ficou a padecer de sequelas permanentes:
a) avulsão das peças dentárias 21 e 22 (incisivos superiores à esquerda) substituídos por próteses;
b) duas cicatrizes de tipo cirúrgico, lineares, oblíquas, nas faces antero-laterais do pescoço com 5 cm de comprimento à direita e 4,5 cm à esquerda;
c) ligeira rigidez cervical na generalidade dos arcos de movimento;
d) dor à palpação para-vertebral lombar;
e) reflexos osteotendinosos presentes, mais vivos nos membros à esquerda;
f) força muscular dos membros à esquerda de 3+/5 sendo de 5/5 à direita;
g) assimetria da cintura escapular em repouso com ligeira atrofia dos músculos deltoide, trapézio e peitoral à esquerda, mais evidente em movimento com menor mobilidade à esquerda;
h) duas cicatrizes de tipo cirúrgico, lineares, no abdómen, uma sobre a crista ilíaca antero-superior à direita com 5,5 cm e outra à esquerda com 5 cm de comprimento;
i) postura em repouso do membro superior esquerdo com flexão do cotovelo a 90º e espasticidade ligeira;
j) limitação da mobilidade do ombro esquerdo, permitindo abdução e flexão máximas até aos 100º, mas rotações interna e externa com limitação moderada a acentuada, limitação moderada da prossupinação e manifesta impossibilidade de adotar mão em punho cerrado, sustendo a flexão dos dedos mas com mobilidade mantida e diminuição progressiva da força de pinça contra resistência até ao 5º dedo;
k) cicatriz acastanhada de tipo cirúrgico, linear, no dorso do pé esquerdo sobre o primeiro metatarsiano, com 5 cm de comprimento;
l) pé esquerdo com tonalidade levemente mais arroxeada e temperatura mais fria do que o direito;
m) hipossensibilidade de todo o membro inferior esquerdo;
n) limitação acentuada da mobilidade do hálux esquerdo;
o) limitação moderada da dorsiflexão e flexão plantar do tornozelo esquerdo;
p) perturbações persistentes do humor com grave repercussão na autonomia pessoal, social e profissional.
43 – Na data referida em 41) o autor apresentava dedos do pé esquerdo em garra, que foi tratado através de cirurgia realizada em 27 de agosto de 2021.
44 – As sequelas referidas em 42) e), f), g), i), j), m), n) o) dizem respeito a quadro de tetraparésia AIS O, com força muscular 3 e alterações esfincterianas.
45 – Devido a diminuição de força muscular o autor tem dificuldade em pegar e transportar objetos com a mão esquerda.
46 – Apresenta marcha espástica, desequilibra-se e claudica visivelmente ao andar.
47 – Tem dificuldades em caminhar sobre pisos irregulares, subir e descer escadas.
48 – Não consegue correr nem fazer caminhadas de duração superior a 15/20 minutos.
49 – Padece de alterações ao nível do controlo dos esfíncteres.
50 – Sente permanente dor neuropática nos membros superiores.
51 – Somente consegue conduzir veículos automóveis com caixa de velocidades automáticas.
52 – Não consegue permanecer muito tempo na mesma posição, seja sentado, seja de pé.
53 – Ocasionalmente tem pesadelos e, devido às dores, apresenta dificuldade em dormir e descansar.
54 – O autor tem tendência para o isolamento.
55 – Na interação com outras pessoas, tende a apresentar uma postura reservada e tímida.
56 – Antes do acidente, o autor era alegre e comunicativo, apresentando-se atualmente com humor deprimido, com episódios de ansiedade e irritabilidade.
57 – Ficou também a padecer de disfunção sexual ou eréctil, carecendo de tomar medicação, o que corresponde a repercussão permanente na atividade sexual de grau 2 numa escala de 1 a 7.
58 – As sequelas referidas em 42) c) a g), i), j), l) a p) correspondem a défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, referentes a tetraparésia com força muscular de grau 3, de predomínio esquerdo com força muscular 3 nos membros inferiores (código Na0105 de 58 pontos) e perturbação persistente de humor (código Nb0901 de 16 pontos) compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual mas a implicar esforços suplementares e adaptação da mesa e cadeira de trabalho, o que foi levado a cabo pela entidade patronal, que também reduziu para 20 horas o seu horário semanal.
59 – Devido às lesões e tratamentos o autor sofreu dores de grau 6, numa escala de 1 a 7.
60 – A 11 de agosto de 2016, faleceu a esposa do autor, o qual se viu impedido de tratar e acompanhar, na qualidade de viúvo, as cerimónias e exéquias fúnebres, com exceção do funeral, bem como dar apoio, à sua filha menor.
61 – Passando a ser o único progenitor vivo, durante o restante período de internamento não pôde também prestar cuidados de educação e assistência à sua filha, o que constituiu igualmente causa de grandes preocupações.
62 – Tem dificuldade em transportar objetos de peso superior a 1 kg, com o membro superior esquerdo.
63 – As limitações físicas impedem-no de acompanhar a filha nas suas brincadeiras e atividades lúdicas, o que muito o entristece.
64 – Devido às sequelas teve de abandonar definitivamente a prática de atividades físicas de manutenção, tais como ciclismo, futebol e marcha, que, anteriormente realizava com habitualidade, o que traduz prejuízo de afirmação pessoal de grau 4 numa escala de 1 a 7.
65 – As cicatrizes referidas em 42) b), h) e k) e a claudicação correspondem a dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7.
66 – Em consequência das sequelas, o autor não consegue tratar sozinho das lides domésticas, incluindo a limpeza e o asseio da habitação, lavar, passar a ferro.
67 – Necessita e necessitará até ao fim da sua vida de auxílio de terceira pessoa para execução das tarefas referidas em 66) com frequência não apurada.
68 – Para evitar o agravamento das sequelas e melhorar as queixas álgicas, o autor carece de se submeter, para o resto da vida, a tratamentos regulares de fisioterapia com a periodicidade a definir pelo médico fisiatra.
69 – Além do referido em 68) o autor carece de acompanhamento em consultas e tratamentos regulares do foro de neurologia da dor e urologia.
70 – Os tratamentos e consultas referidos em 68) e 69) implicam perdas de tempo.
71 – Para minimizar os efeitos das sequelas, concretamente a dor neuropática e a bexiga neurogénica, o autor carece, regularmente, de ajudas medicamentosas, que atualmente correspondem a Amitriptilina (ADT), Gabapentina (Neurontin), Baclofeno (Lierosal), Tramadol (em SOS), no primeiro caso e Darifenacina (Emselex) no segundo, assim como protetor gástrico Omeprazol.

5. Danos sofridos (continuação)

72 – O autor despendeu € 200 com a emissão de relatório médico de avaliação do dano em Direito Civil elaborado para instaurar a ação.
73 – Os serviços clínicos da interveniente principal avaliaram o autor no âmbito do acidente de trabalho, atribuindo-lhe alta em 14 de novembro de 2017, com o coeficiente de desvalorização de 0,61.
74 – Subsequentemente, a desvalorização referida em 73) foi confirmada em exame médico no INML e por junta médica, ambos realizados no âmbito do processo n.º … que correu termos pelo Tribunal de Trabalho da Maia – Juiz 1, instaurado pelo autor na sequência do acidente.
75 – O autor exercia e exerce a atividade profissional de desenhador trabalhando por conta e ao serviço de D..., S. A..
76 – Na data referida em 1) o autor auferia o salário mensal base de € 950 x 14 meses.
77 – Em virtude do acidente o autor esteve impossibilitado de trabalhar até 14 de novembro de 2017, data em que teve alta clínica.
78 – O período referido em 77) corresponde a um total de 661 dias, dos quais 32 com incapacidade temporária parcial a 60%.
79 – Durante o período referido em 77), o autor deixou de auferir salários da sua entidade patronal, incluindo os correspondentes subsídios de férias e de Natal.
80 – Por sentença proferida a 20 de fevereiro de 2019 no processo identificado em 74) foi decidido:
a) fixar ao sinistrado a incapacidade permanente parcial de 61% e, com referência a 15 de novembro de 2017, a pensão anual vitalícia de € 6.570,12;
b) condenar a Interveniente Principal em regime de co-seguro com a “Companhia de Seguros E..., S.A.” e com a “F... Companhia de Seguros, S.A.”:
i) a pagarem, ao sinistrado, a respetiva quota-parte da pensão anual e vitalícia referida em a) na proporção, respetivamente, de 60%, 20% e 20%, desde o dia seguinte ao da alta, 15 de novembro de 2017, mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no seu domicílio, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual, montantes a serem pagos nos meses de maio e de novembro de cada ano, respetivamente, acrescido dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%/ano, desde a data de vencimento de cada uma das prestações;
ii) a pagarem-lhe, na mesma proporção de responsabilidade, a quantia de € 30, a título de despesas com transportes;
iii) a medicação para a disfunção eréctil associada às suas sequelas (1 cx de 8 comprimidos de CIALIS/mês) e a prestarem-lhe auxílio de 3.ª pessoa durante 2 horas diárias.
81 – No período referido em 77) e 78) o autor recebeu da interveniente principal o valor global de € 21.480,08, sendo € 636,25 referente ao período compreendido entre 14 de outubro e 14 de novembro de 2017.
82 – A profissão referida em 75) impõe a manutenção durante muito tempo consecutivo na posição sentado e implica, também, a movimentação constante dos membros superiores, o que obriga o autor a empregar esforços acrescidos para continuar a desempenhar as suas funções profissionais, designadamente, devido às dores que sente e a demorar mais tempo na execução das tarefas que lhe são inerentes.
83 – Antes do acidente o autor não sentia dificuldades na execução dos movimentos referidos em 67).
84 – A interveniente principal tem assegurado o pagamento das despesas do auxílio referido em 67) e 80) b) iii).
85 – A interveniente principal pagou ao autor, a título de pensões, as seguintes quantias:
a) € 8.478,54 no período compreendido entre 15 de novembro de 2017 e 31 de janeiro de 2019;
b) € 4.681,20 entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023, sendo € 926,88 referente ao auxílio referido em 67) e 84).
86 – A interveniente principal suportou ainda:
a) € 1.737,65, a título de honorários de cirurgias e consultas pré e pós-operatórias;
b) € 42.735,48, a título de despesas médicas até 31 de janeiro de 2019;
c) € 1.507,60, a título de meios complementares de diagnóstico até 31 de janeiro de 2019;
d € 428, a título de meios complementares de diagnóstico entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023;
e) € 554,11, a título de aparelhos e ortóteses;
f) € 255 de taxas de justiça referentes à ação identificada em 74);
g) € 3.982,70 despesas de transporte até 31 de janeiro de 2019;
h) € 91 de despesas de transporte entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023;
i) € 7.802,47, a título de despesas diversas até 31 de janeiro de 2019;
j) € 33,95 a título de consultas entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023;
k) € 260 de fisioterapia entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023;
l) € 1.177,30 em medicamentos, designadamente, os identificados em 71) e 80) b) ii), entre 20 de dezembro de 2022 e 29 de junho de 2023.
87 – Em 3 de julho de 2023, a provisão matemática relativa às pensões futuras estava calculada em € 97.149,71.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Defende a ré apelante que foi adquirida para o processo, em resultado da instrução da causa (art. 5.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil), a seguinte factualidade:
À data atual, ou à data de hoje, o demandante aufere como rendimento do seu trabalho a quantia mensal de 1.200,00 € brutos, sendo certo que trabalha metade das horas que trabalhava antes do acidente dos autos.
No entender da apelante, este facto é relevante, por dele se extrair que “o demandante não sofreu qualquer perda a título de lucro cessante”. Trata-se de um facto não alegado pela apelante, mas que, como referido, resultou “da instrução da causa”.
O material probatório invocado pela apelante no recurso sustenta a sua pretensão. Efetivamente, em declarações de parte, o autor admitiu que aufere atualmente € 1200,00 mensais (ilíquidos), trabalhando cerca de 20 horas por semana.
É admissível considerar que, de acordo com uma solução plausível para a questão de direito, o atual salário do autor constitua factualidade relevante. Assim sendo, sem que tal represente o acolhimento de tal solução plausível de direito, é de julgar procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, aditando-se à fundamentação da causa o seguinte facto:
88 – Em 3 de outubro de 2023, o demandante auferia como rendimento do seu trabalho a quantia mensal ilíquida de € 1.200,00, prestando 20 horas de trabalho por semana, pelas razões referidas no ponto 58 – factos provados.
Determina-se ainda a alteração do ponto 76 – factos provados –, passando tal a ter o seguinte conteúdo:
76 – Na data referida em 1) o autor auferia o salário mensal base de € 950 x 14 meses, prestando cerca de 40 horas de trabalho por semana.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Questões de direito suscitadas pela ré apelante (recurso independente)
1.1. Âmbito do dano biológico: posições das partes
1.1.1. Pretensão do autor
1.1.2. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’
1.1.3. Dano biológico (dimensão patrimonial: perda da capacidade de ganho)
1.2. Fixação do montante de uma indemnização com recurso à equidade
1.2.1. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’
1.2.2. Avaliação do dano biológico com recurso à equidade
1.3. Perda de rendimentos e perda da capacidade de ganho
1.3.1. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’
1.3.2. Posição adotada
1.4. Dano não patrimonial
1.5. Contagem dos juros moratórios
2. Questões de direito suscitadas pelo autor apelante (recurso subordinado)
2.1. Liquidação da indemnização em incidente pós-decisório
2.2. Alteração do valor da indemnização arbitrado
2.3. Condenação subsidiária da ré
3. Responsabilidade pelas custas

1. Questões de direito suscitadas pela ré apelante (recurso independente)

São quatro as questões essenciais suscitadas pela apelante:
a) a natureza do dano biológico e o âmbito da sua indemnização – defendendo a apelante que, no caso, ocorreu uma duplicação, sendo indemnizados danos já ressarcidos com a indemnização fixada por acidente de trabalho;
b) a fixação do montante de uma indemnização com recurso à equidade – defendendo a apelante que esta não pode deixar de ser ancorada em fórmulas matemáticas ou em dados tangíveis;
c) na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, o tribunal a quo desviou-se acentuadamente do padrão decisório dos tribunais superiores;
d) sendo a indemnização atualizada, a contagem dos juros moratórios deve ter o seu início com a notificação da prolação da decisão final, e não a partir da citação.
Passaremos à análise de cada uma destas questões.

1.1. Âmbito do dano biológico: posições das partes

Defende a apelante nas conclusões da alegação:
9 – O dano biológico é, nem mais nem menos, uma outra designação para o dano patrimonial ou perda de capacidade de ganho; traduz-se numa limitação física para o exercício de qualquer atividade; é um dano funcional, tal como a perda de capacidade de ganho ou lucro cessante; e, diga-se, desde já, qualquer outro tipo de dano é enquadrável no dano moral, e não no dano biológico. (…)
22 – Mas, se assim se não entender, e se se concluir pela admissibilidade dessa indemnização, sempre esta deverá ser reduzida para uma quantia nunca superior a 50.000,00 €, em face, quer da IPP de 65 pontos, quer do rendimento de 1.000,00 € mensais, quer do templo expectável de atividade profissional.

Na análise desta questão, iniciaremos pela pretensão do autor, seguindo-se a apresentação da posição assumida pelo tribunal a quo e concluiremos, tomando posição sobre o problema.

1.1.1. Pretensão do autor

Na petição inicial, alegou o autor:
89. A sobredita desvalorização de 71 pontos, (…) e considerando um salário de € 950,00/mês, a idade do autor à data do acidente (39 anos), o período médio de vida ativa (75 anos), bem como a taxa de juro, a inflação e os ganhos de produtividade, deve ser compensada com indemnização não inferior a € 350.000,00.
90. Uma vez que a alegada profissão do autor, de desenhador, impõe a manutenção durante muito tempo consecutivamente sentado e implica também a movimentação constante dos membros superiores, o autor tem de empregar esforços acrescidos para o exercício desta sua atividade profissional, designadamente por virtude das dores que sente quando está a trabalhar (…).
91. Essa repercussão na vida laboral do autor consiste, pois, no facto de o exercício da sua atividade profissional acarretar, em virtude das alegadas sequelas, maiores esforços e sacrifícios, sendo que o autor necessita de empenhar uma maior força, dedicação e energia na execução das tarefas profissionais em relação às quais, antes do acidente, não sentia qualquer tipo de dificuldade, estado ao qual o autor se vê agora condicionado de forma permanente, pelo que, por tais esforços acrescidos, deverá ser compensado em quantia não inferior a € 50.000,00”.

No requerimento de ampliação do pedido, alegou o autor:
11. Por outro lado tal como está alegado em 91. da petição inicial está a ser peticionados o dano biológico, que se não confunde como a incapacidade permanente para o trabalho, ou seja, para além da incapacidade permanente geral com repercussão na perda de capacidade aquisitiva, que constitui um dano patrimonial (…), pois que se verifica uma vertente claramente patrimonial expressa no facto de o lesado ficar privado da sua inteira capacidade física, determinante da necessidade de esforço acrescido nas suas atividades produtivas e não produtivas (...). O sinistrado tem, pois, direito ainda a ser indemnizado pelo dano biológico de que foi vítima e que compromete a sua qualidade de vida, para além de suportar uma limitação funcional e ter de despender esforços acrescidos no desempenho da profissão, o que faz com que os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se limitam à redução da sua capacidade de trabalho pois implicam, desde logo, uma lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física pelo que a indemnização a arbitrar não pode atender apenas àquela redução, acresce que a limitação da condição física que a deficiência, dificuldades ou prejuízo de certas funções ou atividades do corpo, o handicap que a incapacidade permanente geral acarreta, colocará sempre, até pelas consequências ao nível psicológico, uma diminuição da capacidade laboral genérica e dos níveis de desempenho exigíveis, pelo que, atendendo à gravidade das lesões que o autor sofreu e o que condicionam o seu trabalho a sua progressão na carreira, etc. deve ser ampliado o montante alegado no art. 91 da petição inicial para nunca menos de 200.000, 00 (…).
12. Relativamente ao peticionado no art. 89. da petição inicial, e apenas até ao valor que as rés responsáveis pelo acidente de trabalho já liquidam ao autor em sede de decisão do processo de acidentes de trabalho, ser a aqui ré condenada, nos termos do art. 567.º do Código Civil, solidariamente, a pagar essa renda mensal, equivalente à indemnização por acidentes de trabalho, que atualmente se cifra no valor anual de € 7.490,00 a ser paga 14 vezes ao ano e atualizada pelos índices previstos para os acidentes de trabalho.
13. E completando-se a indemnização pela incapacidade geral que ficou a padecer o Autor e o rendimento que auferia à data em que ocorreu o acidente, e atento a que a indemnização auferida como renda mensal não abrange a totalidade da perda salarial do autor ser ainda condenada a ré numa importância, em complemento dessa indemnização, em montante não interior a € 150.000,00 (…)”;

1.1.2. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’

O tribunal ao quo fundamentou a sua decisão de mérito, quanto a esta questão, nos seguintes termos:
“Os tribunais superiores têm vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, porquanto se entende que a existência de incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, pode determinar a necessidade de desenvolver um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido. (…) // Neste contexto, os lucros cessantes não decorrem apenas de uma incapacidade que implique uma perda total ou parcial de rendimentos auferidos pelo lesado no exercício da sua atividade profissional, mas igualmente prejuízos que incidem na sua esfera patrimonial, relacionados com a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis.
“Noutra perspetiva, o dano biológico tem sido configurado como um tertius genus, com autonomia relativamente ao dano não patrimonial, pois se pondera que se trata de um dano de natureza específica, que envolve prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado, que implica uma perda genérica de potencialidades funcionais do lesado das quais deriva penosidade acrescida no exercício das tarefas do dia a dia. Nessa medida, entende-se que mesmo não sendo perspetiváveis perdas patrimoniais próximas ou previsíveis, aquela perda constitui um dano ressarcível, o qual, pela sua gravidade, não poderá deixar de merecer a tutela do direito. // Por outras palavras, o dano biológico enquanto dano-evento, integrado por uma lesão de bens eminentemente pessoais, concretamente, da saúde, coloca a ênfase num aspeto importante: tratando-se de uma incapacidade funcional ou fisiológica que se centra, em primeira linha, na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, traduz-se numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das atividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando, com regularidade. Este enquadramento permite valorizar o dano biológico em lesados que não entraram ainda no mercado de trabalho ou que, por via da idade ou de outras vicissitudes, não exercem uma atividade profissional.
“O dano em causa é entendido como tendo um cariz dinâmico compreendendo vários fatores, sejam atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, tanto mais que se traduz numa “diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre”. Por outras palavras, o dano biológico reflete a afetação da potencialidade física do lesado determinando uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará, com perda de qualidade de vida”.

Conclui-se desta fundamentação do tribunal a quo que o dano biológico a atender compreende os danos descritos nos arts. 90.º e 91.º da petição inicial (esforço acrescido na atividade remunerada) – inicialmente liquidados em € 50.000,00 – e os danos descrito no art. 89.º do mesmo articulado (perda da capacidade de ganho) – liquidados em € 350.000,00.
São estes os dados da questão que nos cumpre apreciar.

1.1.3. Dano biológico (dimensão patrimonial: perda da capacidade de ganho)

Ainda que não resulte provada qualquer específica perda definitiva da capacidade de ganho – e, no caso, até resultou –, o esforço acrescido – geral, logo, não afastado no trabalho − tem uma repercussão económica no âmbito laboral. O dano biológico constitui uma capitis deminutio relativamente a toda a dimensão humana do lesado, logo, também em relação a uma das dimensões mais relevantes de qualquer pessoa adulta: a atividade laboral. Por exemplo, pode obrigar à aquisição de calçado (para o trabalho) mais confortável, à utilização de uma cadeira de escritório ergonómica ou à aquisição de uma viatura pessoal com uma suspensão melhor ou com uma direção mais suave – encargos que podem não ser suportados por terceiros.
A aferição da necessidade de compensação pela perda da capacidade de ganho fundada na existência de uma incapacidade no âmbito laboral assenta numa perspetiva estática da atividade remunerada ou, se se preferir, na perpetuação da situação de inserção no mercado de trabalho do lesado. Esta perspetiva não apreende a realidade dinâmica de procura de novo emprego ou de uma promoção. Como é evidente, num mercado de trabalho extremamente competitivo, os melhores empregos (incluindo as promoções) tenderão a ser oferecidos aos candidatos que, em abstrato, se apresentam como mais eficientes, isto é, aos candidatos que não revelam qualquer capacidade funcional diminuída. A legítima expetativa de melhoria das condições salariais ou laborais de diferente natureza fica comprometida com a afetação da integridade física, não sendo a indemnização arbitrada em sede laboral, que apenas atende ao rendimento auferido, e não ao potencial de obtenção de um rendimento superior, apta a ressarcir este dano.
Importa, no entanto, ter presente que a afirmação do dano biológico (na sua vertente patrimonial) não é um exercício estéril de história alternativa. A avaliação deste dano não pode ser feita retrospetivamente, olhando para dois momentos na vida do lesado – o dia do sinistro e o dia do julgamento – e comparando os seus rendimentos conjunturais. Por exemplo, o lesado com um “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” de 1%, que auferia mil euros na data do sinistro e que, na data da audiência final, não exerce nenhuma atividade remunerada, não padece de uma perda de capacidade de produção de 100% (não tendo, pois, por dano biológico, direito a uma indemnização em forma de renda de mil euros mensais). Do mesmo modo, não se pode dizer, simplisticamente, que o lesado que auferia mil euros na data do sinistro, auferindo dez mil euros na data da avaliação, sofreu um aumento na sua capacidade de produção de 1000%, apesar de, por exemplo, padecer de um “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” de 50%.
Não procede, pois, o argumento da apelante, de acordo com o qual o autor não terá sofrido nenhuma perda da capacidade de ganho, a pretexto de o seu salário ser hoje superior àquele que auferia em janeiro de 2016. As causas da alteração dos rendimentos são múltiplas, sendo o dano biológico uma condicionante objetiva da sua obtenção, e não a causa única à qual possam ser imputadas todas as variações, positivas ou negativas. O mesmo se diga da carga horária trabalhada. Se o Estado – comunidade política – ou a entidade patronal reconhecem ao lesado a faculdade de desempenhar menos horas de trabalho por semana, tal não representa uma vantagem decorrente do sinistro e, menos ainda, constitui um benefício do qual o lesante se possa aproveitar para ver diminuído valor da indemnização que deve suportar.
Em suma, as alterações do rendimento efetivo do lesado, seja qual for o seu sentido, não constituem critério válido que confirme ou infirme a perda da capacidade de ganho resultante do dano biológico. No entanto, como veremos, e pela mesma ordem de razões, a avaliação deste dano não se pode reconduzir, sem mais, à aplicação de uma regra de “três simples”, tendo por base o rendimento na data do sinistro e a percentagem do “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” apurada no processo.

1.2. Fixação do montante de uma indemnização com recurso à equidade

Na avaliação do dano biológico, o tribunal a quo recorreu a equidade (art. 566.º, n.º 3, do Cód. Civil). Concluiu tal avaliação afirmando “que o montante de € 220.000 é adequado para o ressarcimento do dano em causa.”.
Defende a apelante na conclusão da alegação:
23 – (…) [É incorreta] a ausência de método de cálculo aplicado na douta sentença aqui em recurso, que (…), com recurso à equidade, fixou o montante de 200.000,00 €; é muito mais correto apurar o valor indemnizatório com base em fórmulas matemáticas.
36 – (…) [O] valor fixado pelo tribunal a quo é excessivo, afastando-se, e muito, dos parâmetros que vêm sendo estabelecidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores; (…) a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais (…) não deveria situar-se em montante superior a € 50.000,00, também porque não se provaram quaisquer outros danos suscetíveis de inflacionar tais quantia indemnizatória.

A posição assumida pelo autor já acima foi exposta. Cumpre, agora, recordar a posição defendida pelo tribunal a quo e concluir, tomando posição sobre o valor da indemnização devida.

1.2.1. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’

O tribunal ao quo fundamentou a sua decisão de mérito, quanto a esta questão, nos seguintes termos:
“No que concerne aos fatores a ponderar no respetivo cálculo, com vista à maior uniformidade na sua quantificação, têm sido apontados os seguintes:
“– a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida; // – no cálculo (…) interfere (…) a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência (…); // – os métodos matemáticos (…) são apenas um instrumento de auxílio (…); // – deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez (…); // – deve ter-se preferencialmente em conta (…) [a] esperança média de vida do lesado (…); // – a idade do lesado; // – o grau de défice funcional permanente; // – as suas potencialidades de aumento de ganho (…), aferidas, em regra, pelas suas qualificações.
“Quando ao valor de referência para o cálculo, o mesmo critério uniformizador e a ponderação de que idêntico grau de défice funcional permanente não é maior nem menor consoante o valor do vencimento, sucedendo, com frequência, serem as profissões produtoras de menores rendimentos, relacionadas com funções indiferenciadas por via da inexistência de formação técnica ou superior, aquelas onde se encontram os lesados mais afetados, tem-se defendendo que importa partir do valor do salário médio nacional.
O tribunal a quo verteu para o caso dos autos estes critérios gerais, e concluiu nos seguintes termos:
“No que concerne ao autor, o défice funcional permanente de 65 pontos corresponde a dano biológico na vertente que anteriormente expusemos, sendo que continua a permitir-lhe o desenvolvimento da atividade profissional de desenhador, embora lhe imponha a manutenção durante muito tempo consecutivo na posição sentado e implica, também, a movimentação constante dos membros superiores, obrigando-o a empregar esforços acrescidos para continuar a desempenhar as suas funções, designadamente, devido às dores que sente e a demorar mais tempo na execução das tarefas que lhe são inerentes.
“Importa ter presente que a progressão na carreira ficou coartada, dado que o elevado nível do défice funcional determina, necessariamente, uma adaptação às limitações e uma concentração de energias para ultrapassar as dificuldades que se apresentam no dia-a-dia, deixando-o cansado física e emocionalmente, com menor força anímica para projetar desafios na vertente profissional.
“Ponderando o valor mensal de € 1.012,30 do salário médio praticado em Portugal à data da alta, a idade do autor, nascido a 12 de novembro de 1976, a esperança média de vida até aos 77,61 anos, as taxas de juro das aplicações financeiras e a inflação e recorrendo à equidade, afigura-se que o montante de € 220.000 é adequado para o ressarcimento do dano em causa”.

Não se explica na sentença apelada qual é a relação entre as premissas e a conclusão. Não é, pois, possível perceber a razão “matemática” pela qual “o montante de € 220.000,00” é mais adequado ao ressarcimento do dano, do que são, por exemplo, os montantes de € 200.000,00 ou de € 250.000,00.
Entendemos, no entanto, que a descrição de um silogismo demonstrativo linear é impossível e contraria o sentido do recurso à equidade, como em seguida explicitaremos.

1.2.2. Avaliação do dano biológico com recurso à equidade

O autor ficou definitivamente afetado(a) na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, no grau 65, numa escala até 100. Tanto basta para que se deva concluir pela perda da capacidade de ganho. Tem o autor, assim, direito a uma indemnização pelo dano biológico (patrimonial) sofrido.
No entanto, por um lado, é perfeitamente arbitrário fazer-se equivaler o esforço acrescido a uma incapacidade parcial permanente para o trabalho, decalcando-se a indemnização correspondente da indemnização devida pela perda efetiva da capacidade de obtenção de rendimentos. A liquidação desta indemnização não pode ser simplisticamente decalcada do cálculo da indemnização devida pela perda de rendimentos em sede laboral. Aliás, em muitos casos, cumular-se-á com essa outra indemnização.
Por outro lado, haverá que ter em atenção o valor da compensação a arbitrar (como será apreciado neste aresto, adiante) pelos incómodos resultantes de esforços suplementares, como danos (que são) não patrimoniais, considerando que essa compensação visa sobretudo permitir ao lesado obter meios para suavizar ou eliminar o sofrimento. A não se atentar nesta realidade, estar-se-ia, então, perante uma duplicação de vias ressarcitórias: numa via, procura-se a compensação do sofrimento que será sentido no futuro; noutra via, atribui-se uma indemnização para adquirir os meios a que o sofrimento não ocorra. A compensação a fixar para indemnização do dano biológico destina-se, deste modo, apenas a compensar o efetivo handicap do(a) autor(a) no fortemente concorrencial mercado de trabalho – isto é, no mercado dos “melhores trabalhos”, de acordo com as suas habilitações, que o autor tinha e tem a legítima expetativa de integrar.
Tratando-se, como se trata, de um dano futuro, justifica-se e impõe-se o recurso à equidade (art. 566.°, n.º 3, do Cód. Civil), informada por critérios de verosimilhança e de probabilidade, considerando as balizas dadas por provadas – como a natureza da atividade laboral que o lesado pode exercer, a remuneração normal dessa atividade (e o nível de tributação fiscal), a sua idade – e período normal de vida ativa (que não se confunde com a idade legal de reforma) – e o grau de dano biológico fixado (sobre o recurso à equidade, cfr. o Ac. do STJ de 19-09-2019, proc. n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1).
Não se apurando a remuneração normal da atividade que o lesado exercia ou que, razoavelmente, se poderia admitir que viesse a exercer, afigura-se apropriado considerar o “salário médio praticado em Portugal à data da alta”. Assim foi feito na sentença apelada.

1.3. Perda de rendimentos e perda da capacidade de ganho

Afigura-se-nos apodítico que pode existir uma sobreposição parcial entre o dano descrito como perda da capacidade de ganho (dano biológico) e a previsível perda de rendimentos do trabalho. Assim sendo, se uma indemnização também visar o ressarcimento desta perda – como ocorre com a indemnização por acidente de trabalho –, podemos ter de considerar esta indemnização na fixação da compensação respeitante àquele dano. É este o procedimento a seguir sempre que se relacione o défice funcional com os rendimentos futuros (normais ou potenciais), considerando estes diminuídos na proporção daquele.

1.3.1. Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’

A propósito da potencial duplicação de indemnizações, lê-se na sentença apelada:
“Coloca-se a questão de saber se o princípio da proibição da acumulação de indemnizações se aplica neste caso, o que na prática, passa por determinar se o ressarcimento do dano biológico consubstancia uma indemnização de natureza idêntica à pensão vitalícia anual não remível que o demandante vem recebendo desde 15 de novembro de 2017. (…)
“(…) [N]um acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento de capital de remissão pelo lesado no contexto do processo de acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir: enquanto o capital de remissão visa ressarcir as perdas salariais associadas à incapacidade laboral, “a indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se refletem na maior penosidade e esforço no exercício da atividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.

1.3.2. Posição adotada

Entendemos, como já adiantámos, que a questão se reconduz à escolha dos critérios válidos para a avaliação do dano biológico. Se se sobrevalorizar a perda de capacidade laboral, não podemos deixar de ter na devida consideração a atribuição de uma indemnização no foro laboral. Não é irrelevante a circunstância de o acidente ser in itinere, estando os (mesmos) danos cobertos por um seguro por acidentes de trabalho, na satisfação do qual o sinistrado será (parcialmente) ressarcido.
No caso dos autos, resulta dos factos provados que:
80 – Por sentença proferida a 20 de fevereiro de 2019 no processo identificado em 74) foi decidido:
a) fixar ao sinistrado a incapacidade permanente parcial de 61% e, com referência a 15 de novembro de 2017, a pensão anual vitalícia de € 6.570,12; (…)
87 – Em 3 de julho de 2023, a provisão matemática relativa às pensões futuras estava calculada em € 97.149,71.

Se lançarmos mão dos critérios enunciados pelo tribunal a quo – apenas dos objetivos –, devemos considerar o salário médio (arredondado) de € 1000,00, a produção de rendimentos, a contar da data da alta clínica – com a retoma da atividade laboral (dia 14 de novembro de 2017) –, por mais (cerca de) 36 anos e uma perda da capacidade de ganho de 65%. Isto representa uma perda potencial total de rendimentos de € 327.600,00 – € 1000,00 x 14 x 36 x 0,65.

Sob uma diferente perspetiva, a constituição de uma provisão para garantir o rendimento anual perdido – € 9100,00 = € 1000,00 x 14 x 0,65 –, a uma taxa de 2,5% ao ano, tem o custo de € 364.000,00. Sobre a taxa de 2,5% considerada, é útil recordar que a taxa de juro (TAA) de novos depósitos a prazo dos particulares – uma das aplicações mais seguras, atualmente em queda – era, em dezembro de 2024, de 2,16%.
Qualquer um destes valores - € 327.600,00; € 364.000,00 – é claramente superior ao montante que foi arbitrado pelo tribunal a quo, pelo que se pode aceitar que tal montante inferior (€ 220.000,00) já leva em devida conta a indemnização fixada no processo laboral. Vista a questão sob este prisma, não é evidente que exista uma duplicação de indemnizações, não se vendo razão bastante para alterar a decisão recorrida.

Podemos ainda inverter o raciocínio desenvolvido e considerar que ao rendimento anual perdido se deve abater o valor correspondente à pensão anual vitalícia atribuída no âmbito laboral. Vejamos o que resulta desta abordagem.
Começamos por fazer uma análise mais fina das estatísticas oficiais (INE) trabalhadas pela Pordata, das quais o tribunal a quo se socorreu. Afirme-se na sentença apelada que o “salário médio praticado em Portugal à data da alta” tinha o valor mensal de “€ 1.012,30”. Este valor não considera nem o sexo do autor, nem a sua idade.
Nos anos de 2016 e de 2017 – a consolidação médico-legal ocorreu em 14 de novembro de 2017 –, eram os seguintes os valores relevantes respeitantes ao “Ganho médio mensal” entre indivíduos do sexo masculino:

O rendimento anual perdido é, sensivelmente, de € 11.500,00 – € 1266,90 x 14 x 0,65. Consideramos o valor do ano de 2016, pois o dano biológico não ocorre apenas com a alta. O défice no rendimento é de € 4900,00 anuais – € 11.500,00 - € 6.600,00 (valor – arredondado –
fixado no processo laboral).
Este rendimento anual perdido deve ser atualizado, quer em função do tempo, quer em função da idade. Quanto à idade, os mesmos dados revelam uma progressão de cerca de 0,67% (acumulados) por ano de vida (multiplicador 1,0067). Quanto ao tempo, sabemos que o salário médio anual ajustado a tempo inteiro em Portugal, entre 1995 e 2023, cresceu de € 9706,00 para € 22.933,00. Isto corresponde a um crescimento acumulado de cerca de 0,364% (em casas decimais: 0,03647586).
Combinando estes dois fatores de atualização (idade e tempo) ao longo de 36 anos (multiplicador: 1,04317586 – 0,0067 + 0,03647586), e ao longo da vida do autor (passagem de nível etário), facilmente se chega a valores próximos do arbitrado pelo tribunal a quo, isto é, superiores a € 211.000,00, conforme resulta dos cálculos que se seguem.
Legenda:
Coluna 1 (Ano) – Ano de vida produtiva considerado (36 anos no total);
Coluna 2 (Dano) – Dano biológico anual (€ 4900,00) atualizado anualmente à taxa de (1,0067 + 0,03647586);
Coluna 3 (Indemnização) – Capital da indemnização pago (€ 211.850,00) e sua evolução anual – aumentos resultantes da capitalização dos juros não empregues no pagamento do dano anual (enquanto este é inferior ao juro) e abatimento do valor necessário ao pagamento do dano anual (enquanto este é superior ao juro);
Coluna 4 (Juro) – Rendimento do capital restante em cada ano remunerado com uma taxa de juro conservadora (2,5%);
Coluna 5 (Valor) – Valor positivo: parte do juro (coluna 4) que não é empregue no ressarcimento do dano (coluna 2) e que se soma ao capital (coluna 3) para o ano seguinte. Valor negativo: parte do capital (coluna 3) necessária para o ressarcimento do dano (coluna 2), por o juro (coluna 4) não ser suficiente, e que se abate ao capital (coluna 3) para o ano seguinte.

O valor a que se chega – € 211.850,00 – não diverge daquele a que chegou o tribunal a quo para além do que os juízos de equidade consentem. Vista a questão também sob este prisma, não é evidente que exista uma duplicação de indemnizações, não se vendo, por conseguinte, razão bastante para alterar a decisão recorrida.
Não procedem as razões invocadas pela apelante (recurso independente), pelo que, neste ponto, deve ser mantida a decisão apelada.

1.4. Dano não patrimonial

Defende ainda a apelante que “o valor fixado pelo tribunal a quo [€ 250.000,00] para ressarcimento do dano não patrimonial sofrido é excessivo, afastando-se, e muito, dos parâmetros que vêm sendo estabelecidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores; (…) a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais (…) não deveria situar-se em montante superior a € 50.000,00, também porque não se provaram quaisquer outros danos suscetíveis de inflacionar tais quantia indemnizatória”. O inconformismo do apelante não é integralmente desprovido de fundamento.
Veja-se a seguinte amostra jurisprudencial, da qual resulta uma indemnização média na ordem dos € 115 000,00:



Não existe uma clara relação entre o grau de incapacidade e o valor da indemnização, desde logo porque existem outras afetações não patrimoniais a considerar – para além de poderem variar os demais critérios previstos no n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil. Ainda assim, se procurarmos essa relação, verificamos que, por cada ponto percentual, é atribuída, em média, uma indemnização de cerca de € 2250,00. Ou seja, padecendo o autor de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, será ajustado arbitrar-lhe uma indemnização de € 150.000,00.
Como termo de comparação mais próximo, veja-se o Ac. do STJ de 19-09-2024, proc. n.º 347/21.2T8PNF.P1.S1, em cujo sumário se pode ler: “É justa e equitativo atribuir uma indemnização de € 200.000,00 por danos morais ao lesado, vítima de acidente de viação, sem qualquer culpa sua, que à data do acidente tinha 40 anos, era um homem ativo e saudável, que em consequência do acidente ficou paraplégico, que sofreu dores intensas (de grau 7/7), com dano estético permanente de grau 5/7, repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 6/7, com a vida sexual fortemente limitada por impotência coeundi, por ausência de ereção, tendo ficado afetado de um défice funcional de integridade físico-psíquico de 72 pontos, dependente da ajuda de terceira pessoa para os atos quotidianos, e que ao longo do tempo vai necessitar de consultas e tratamentos, o que tudo lhe provoca sentimentos de angústia, revolta e tristeza” – negrito nosso.
No caso aqui em apreciação, o autor tinha 39 anos à dada do acidente e, em resultado deste, sofreu dores intensas (de grau 6/7), passou a sofrer de uma afetação da atividade sexual de 2/7, passou a sofrer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, passou a padecer de alterações ao nível do controlo dos esfíncteres, passou a sentir permanente dor neuropática nos membros superiores e, além do mais descrito na fundamentação de facto, desequilibra-se e claudica visivelmente ao andar.
Pelo exposto, procedem aqui as razões aduzidas pela apelante, fixando-se a indemnização atribuída por danos não patrimoniais em € 150.000,00 – sendo este o valor que se considera equitativo na data da sentença proferida em 1.ª instância.

1.5. Contagem dos juros moratórios

Na sentença apelada, o tribunal a quo condenou a apelante a pagar ao apelado:
a) a quantia de € 223.762,54, a título de indemnização por danos patrimoniais relativos à perda de rendimentos no período compreendido entre 23 de janeiro de 2016 e 14 de novembro de 2017 e dano biológico, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 21 de janeiro de 2019 até integral e efetivo cumprimento”.
Fundamentou o tribunal a quo a sua decisão nos seguintes termos:
“Estatui o n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil que existe mora independentemente de interpelação se a obrigação provier de um facto ilícito; no entanto, nos termos do n.º 3, se o crédito for ilíquido, aquela só ocorrerá a partir da data da citação. (…)
Como já referimos, a atribuição da compensação pelos danos não patrimoniais é atual, pelo que os juros apenas serão devidos a partir da presente data.
Os frutos civis da indemnização devida pelos danos patrimoniais, já liquidados, serão considerados a partir da data da citação, ocorrida a 21 de janeiro de 2019”.

Defende a apelante que “a indemnização já foi fixada em valor atualizado à data da sentença, pois que julgados segundo a equidade” [os danos sofridos]. Por esta razão, defende que, acolhendo a orientação do AUJ n.º 4/2002, deveriam os juros moratórios respeitantes à indemnização respeitante ao dano biológico ser contados a partir da sentença, e não da data da citação. Faltou à apelante explicar por que razão uma indemnização fixada com base na equidade não se pode reportar a uma data pretérita.
Tal como vimos no ponto 1.2.1 – “Fundamentação apresentada pelo tribunal ‘a quo’” –, na fixação da indemnização devida, o tribunal a quo recorreu a dados de facto pretéritos: a esperança de vida à nascença (sexo masculino) na data do sinistro (77,61 anos) e salário médio praticado em Portugal à data da alta (€ 1012,30). Sobre o valor resultante da aplicação destes critérios, o tribunal apelado não aplicou nenhuma taxa de desvalorização monetária (taxa de inflação) nem qualquer outra fórmula atualizadora.
Carece, pois, de fundamento o pretendido afastamento da norma constante do n.º 3 do art. 805.º do Cód. Civil, pelo que também neste ponto deve ser mantida a decisão apelada.

2. Questões de direito suscitadas pelo autor apelante (recurso subordinado)

São três as questões essenciais suscitadas pela apelante:
44) (…) [Devem] a recorrida ainda ser condenada em suportar e liquidar o montante necessário para pagar todos os danos futuros previsíveis que o recorrente venha a sofrer, (…) a liquidar em incidente posterior à sentença (…).
48) Deve (…) a recorrida do recurso subordinado ser condenada não no pagamento da quantia de € 223.762,54 (…), mas antes no pagamento ao recorrente da quantia de € 683.762,54 (…), a titulo de dano biológico e de lucros cessantes não abrangidos pela indemnização recebida em sede laboral, acrescida de juros legais calculados desde a citação da recorrida para a ação;
49) Deve ainda ser admitida a ampliação do pedido formulada e a recorrida condenada a liquidar o peticionado, em incidente de liquidação posterior à sentença, e na medida do que não vier a ser prestado pela seguradora responsável pelos danos que estão a ser prestados em sede de acidente laboral.
São estas as últimas questões a apreciar neste aresto.

2.1. Liquidação da indemnização em incidente pós-decisório

O incidente pós-decisório de liquidação não é uma segunda oportunidade para a parte provar o dano, mas tão-só para liquidar o prejuízo já provado na ação declarativa instaurada. Ora, no caso dos autos, os danos provados (mesmo futuros) mostram-se liquidados, pelo que é despropositado relegar a sua liquidação para um ulterior instância incidental pós-decisória.
Improcede, nesta parte, o recurso subordinado.

2.2. Alteração do valor da indemnização arbitrado

Sobre o valor justo e equitativo da indemnização a fixar, já acima nos pronunciámos, aqui se dando por transcrito o raciocínio anteriormente desenvolvido. Nada mais há a acrescentar.
Improcedente, por conseguinte, também nesta parte, o recurso subordinado.

2.3. Condenação subsidiária da ré

Pretende ainda o autor que a ré seja condenada a “liquidar o peticionado, em incidente de liquidação posterior à sentença, e na medida do que não vier a ser prestado pela seguradora responsável pelos danos que estão a ser prestados em sede de acidente laboral”. Trata-se de uma pretensão inadmissível.
O efeito prático-jurídico pretendido não foi pedido na petição inicial. Não tendo sido pedido, não podia o tribunal a quo proferir semelhante condenação (art. 609.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
Não vale aqui dizer que o objeto em questão foi pedido no requerimento de ampliação do pedido. É que, por um lado, este pedido também não se encontra claramente enunciado no requerimento de ampliação. Por outro lado, não representa tal objeto uma ampliação, mas sim uma inadmissível alteração do pedido (art. 265.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Finalmente, o requerimento de ampliação não foi admitido nesta parte, sendo que o despacho autónomo (prévio à sentença) que sobre ele foi proferido não foi objeto de nenhuma apelação.
Concluímos, deste modo, também nesta parte, pela improcedência do recurso subordinado.

3. Responsabilidade pelas custas

A responsabilidade pelas custas da apelação independente cabe a ambas as partes, na proporção de 80% para a ré apelante e de 20% para o autor apelado, por ser essa a medida do vencimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
A responsabilidade pelas custas da apelação subordinada cabe ao autor apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
Quanto às custas da ação, as mesmas ficam a cargo da autor e ré, na proporção de 65% e de 35%, respetivamente, por ser essa a medida do vencimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação independente, acorda-se em alterar a al. b) da parte A) da sentença recorrida, nos seguintes termos:
A) condena a ré B..., S. A. a pagar ao autor AA o seguinte:
a) (…);
b) a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal que em cada momento vigorar por força da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil, desde a data da sentença proferida em 1.ª instância e até efetivo cumprimento.
No mais, mantém-se a decisão apelada (sem prejuízo do agora decidido quanto a custas)
Julga-se totalmente improcedente a apelação subordinada.

Custas da apelação independente a cargo de ambas as partes, na proporção de 80% para a ré apelante e de 20% para o autor apelado.
Custas da apelação subordinada a cargo do autor apelante.
Custas da ação a cargo do autor e ré, na proporção de 65% e de 35%, respetivamente.
Notifique.
***
Porto 22/9/2025 (data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
Francisca Mota Vieira
Judite Pires