Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2166/23.2T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Nº do Documento: RP202402222166/23.2T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os documentos juntos aos autos por iniciativa das partes só podem ser retirados do processo (e como tal não admitidos) se forem extemporâneos ou então se mostrarem impertinentes ou desnecessários.
II - Os documentos são impertinentes quando representem factos irrelevantes para a decisão da causa e desnecessários quando representem factos já provados.
III - Um meio de prova só será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo directo, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indirecto, por se tratar de um facto que permite accionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais.
IV - A violação das regras constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva só ocorre quando se limita, em absoluto, a possibilidade de junção de documentos que a parte tenha na sua posse ou a obtenção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2166/23.2T8AVR-A.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Ernesto Nascimento
João Venade

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.Relatório:
No âmbito do Acção Declarativa Popular de condenação sob a forma única de processo em que são requerentes A... e Autores Populares e requerido B... S.A. foi proferido seguinte despacho:
“Requerimento de 22/06/2023:
A A. veio juntar requerimentos relacionados com outro processo e que não visam a prova de quaisquer factos alegados na presente acção, pelo que estamos perante processado anómalo.
Ordena-se, pelo exposto, o desentranhamento do requerimento e a sua devolução ao A. quando solicitado.
Custas do incidente pela A.. Fixo a taxa de justiça em 1 UC. Notifique.
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Requerimento de 29/06/2023:
O R. B..., S.A., veio requerer a prorrogação, por 30 dias, do prazo para contestar a presente acção, alegando, em resumo, que: a) ao longo da petição inicial a A. invoca a violação pela Ré de diversas normas de Direito Português e de Direito da União Europeia; b) qualifica determinados factos, alegadamente praticados pela Ré, como especulação de preços, publicidade enganosa sobre os preços, práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência; c) requer a condenação da Ré em responsabilidade civil contratual e extracontratual e abuso de direito; d) subsidiariamente, requer a condenação da Ré em enriquecimento sem causa; e) requer o reenvio para decisão prejudicial pelo TJUE; f) formula um pedido final de 25 itens; f) antecipa questões processuais relacionadas com competência material, competência territorial, apensação de acções e legitimidade; g) junta diversos documentos com várias centenas de páginas.
Vejamos.
O nº 5 art.º 569.º do CPC estabelece o seguinte: “quando o juiz considere que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, pode, a requerimento deste e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar o prazo da contestação, até ao limite máximo de 30 dias”.
No caso em análise, justifica-se a prorrogação do prazo face às dificuldades encontradas pelo R. na organização da sua defesa bem expressas no requerimento antecedente e acima resumidas.
Defere-se, pelo exposto, o requerido e prorroga-se, por 30 dias, o prazo de apresentação da contestação.
Notifique.”
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A Requerente veio interpor recurso desta decisão apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A Requerida contra alegou.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como o próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela apelante/requerente nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).´
E é o seguinte o teor dessas conclusões:
1. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação dos factos e do direito ao proferir um despacho de rejeição de um meio de prova.
2. O presente recurso é de apelação autónoma e é feito nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1, d) e 647 (1), todos do CPC, para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo.
3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respectivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).
4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam do douto despacho que rejeitou um meio de prova, pelas razões de direito vertidas no § 5 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida, e com os fundamentos, de facto, depurados nos §§ 3 e 4 supra, para onde também se remente pelas mesmas razões retro apontadas.
5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de atentos ao pedido e à causa de pedir, o meio de prova junto aos autos, nunca poderia ser rejeitado pelo tribunal, desde logo atentos aos factos trazidos na petição inicial, nomeadamente, mas não exclusivamente, nos artigos 8, 9, 33 (2), 34, 50 a 52, 59, 119, 121 e 128, todos da petição inicial.
6. Assim como, igualmente, atento ao pedido, tal como formulado na petição inicial, percebe-se que tais factos, sendo instrumentais, aos pedidos nas alíneas E., F., I., e L., beneficiariam da prova que o tribunal a quo rejeitou.
7. Portanto, o meio de prova junto, na óptica dos autores e de acordo com a estratégia processual que delinearem e que não querem, neste momento relevar (por uma questão de igualdade de armas, inerente a um julgamento mediante um processo equitativo e justo), é relevante para a fixação da matéria de facto tal como supra descrito e sem prejuízo da prova que venham ainda a fazer e aquela que resultar do poder-dever do julgador, nos termos do artigo 17, da lei 83/95.
8. A prova é um direito, ainda que não absoluto, inerente ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, com assento constitucional, e que encontra desde logo escopo no artigo 417 (1), do CPC e atento à função da prova (cf. artigo 341, do CC).
9. Destarte, não se vislumbrando qualquer razão ponderável para a sua rejeição, o tribunal a quo violou o direito dos autores a um julgamento justo, mediante um processo equitativo, e à tutela jurisdicional efectiva, ao rejeitar um meio de prova sem qualquer fundamento ou razoabilidade.
10. Assim como não permitiu o direito ao contraditório relativamente a essa admissão – e, com isso, violou o princípio da proibição de decisões surpresa estabelecido no artigo 3 (3), do CPC.
11. Por fim, suscita a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 6, 417 (1) e 423 (2), todos do CPC e artigo 341, do CC, no sentido de poder ser rejeitado um meio de prova apresentado pelos autores, de acordo com a sua estratégia processual, como potencialmente útil para a decisão dos factos necessitados de prova e que relevam para as possíveis soluções de direito da causa, ainda sejam meramente instrumentais para a prova dos factos nucleares e para o apuramento da verdade material, por violação do princípio do Estado de Direito, na sua vertente de princípio da segurança jurídica (cf. artigo 2, da CRP) e do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na vertente do direito à produção de prova [cf. artigo 20 (4) e (5), da CRP].
12. A violação das disposições processuais (direito adjectivo) pode, pelos motivos supra referidos, constituir um vício fundamental no processo susceptível de afectar o resultado do julgamento, tal como tem firmado a jurisprudência do TEDH, pelo que a violação do direito do contraditório e a consequente rejeição de um meio de prova que os autores pautam e demonstram ser necessário à prova de factos que carrearam para a petição inicial importantes para a resolução do litigio, enferma o presente processo de um vício que coloca em causa o seu resultado.
13. Para além do mais, a junção do documento de prova em questão, sempre beneficiaria o tribunal a quo, porquanto diz respeito à descoberta da verdade e da posição (correta) do ministério público relativamente a questões processuais noutro processo, contribuindo para a boa decisão da causa, pelo que até na égide artigo do artigo 7 e 8, ambos do CPC, deveria ser admitido – certo que com essa posição se evitaria os vários recursos que já correm termos nos Venerandos Tribunais da Relação e no Colendo Supremo Tribunal de Justiça na sequência de decisões contraditórias entre juízes sobre as mesmas questões e em processos em tudo iguais – onde apenas mudam as datas, os produtos, os preços e as sucursais onde tais comportamentos ocorreram.
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Por outro lado é o seguinte o teor das conclusões das contra alegações do requerido/apelado:
1ª - Nos termos do disposto no artigo 341º do Código Civil (normativo citado pela Recorrente), “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, a causa de pedir da presente acção é a venda tomate em pedaços, manjericão e orégão, guardanapos, manteiga magra e fiambre extra, alegadamente, com preço adulterado na sua Loja sita na cidade da Anadia, alegadamente entre o dia 3 de maio e o dia 07 de Junho de 2023.
2ª - O documento que a Requerente juntou aos autos trata-se de uma Promoção de uma Digníssima Procuradora da República proferida no processo 10374/23.0T8PRT que corre termos no Juízo Central Cível do Porto, Juiz 6;
3ª- O poder-dever conferido/imposto ao Tribunal pelos arts. 411º e 417º, n.º 1 do CPC pressupõe que os documentos ou elementos requisitados sejam (objectivamente) necessários ao esclarecimento da verdade e são mitigados, designadamente, pelo disposto no artigo 5º do CPC, o que equivale a dizer que para que o Tribunal possa fazer uso do Princípio do Inquisitório terá que considerar, em concreto, se o documento é ou não apto a provar a matéria controvertida nos autos – que deverá, aliás, estar abrangida pelos temas da prova – sendo certo que na presente fase processual não existem ainda temas da prova, uma vez que não houve lugar à estabilização da instância, que como é sabido ocorre apenas após a fase dos articulados (cfr. artigo 595º do CPC);
4ª – A Promoção, cuja junção se requereu, determina a abertura de um processo criminal com base numa alegação feita pela própria Autora/Recorrente naqueles autos de processo cível que correm no Tribunal do Porto;
5ª - Tal alegação da prática de factos que poderão, ou não, constituir crime terá que ser investigada, apurada com o respeito pelos direitos da Recorrida – se nesses autos vier a ser constituída Arguida - para depois de tramitada a fase de inquérito ser proferido despacho de acusação ou de arquivamento, tudo com respeito pelas normas do Processo Penal.
6ª - Pelo que, é por demais evidente que, da mera existência de uma Promoção do Ministério Público como a que é objecto do presente recurso não se pode extrair-se outra conclusão senão a de que a haverá um inquérito criminal com vista a apurar os factos que compõem a causa de pedir do processo identificado na conclusão 1ª, que são diferentes dos factos que compõem a causa de pedir dos presentes autos.
7ª - Caso o Tribunal tivesse dado provimento ao requerimento da Recorrente e permitido a junção da Promoção aos autos, teria violado o disposto no artigo 4º do Código de Processo Civil, uma vez que colocaria a Recorrida numa posição de inferioridade objectiva no processo, por confrontada com a existência de informação de foro criminal, passando a ser tratada nos autos como entidade criminosa ou potencialmente criminosa.
8ª - E, concomitantemente, a Recorrida veria os seus direitos processuais penais violados, designadamente o disposto nos artigos 61º e 86 nº 2 do Código de Processo Penal, facto que determinaria a violação do disposto nos artigos 20º nº 4 e 202º da Constituição da República Portuguesa.
9ª - Adicionalmente, a admissão junção da Promoção aos autos violaria cabalmente o disposto no artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que se poderia valorar criticamente nos autos de um processo cível a mera existência de um processo criminal, no qual não foi sequer proferido despacho de acusação (não se sabendo sequer se os autos serão arquivados, finda a fase de inquérito) e muito menos condenada a Recorrida pela prática de qualquer facto.
8ª - Admitir a junção da Promoção aos autos determinaria que a junção aos autos constituiria um acto inútil, para além de ilícito, e como tal proibido nos termos do disposto no artigo 130º do CPC.
9ª - Relativamente aos demais documentos referentes aos processos listados pela Recorrente e às diversas peças processuais que dos mesmos fazem parte e que a Recorrente pretende juntar aos presentes autos, desde já se dá por reproduzidos com as devidas alterações tudo quanto se alegou relativamente à Promoção do Ministério Público;
10ª - Nenhum dos documentos juntos com o requerimento diz respeito aos factos que se discutem nos presentes autos.
11ª - Os documentos em questão são documentos processuais que dizem respeito a outros processos que a Recorrente entendeu mover contra a Recorrida que correm termos em diferentes Tribunais Judiciais, tais processos não foram objecto de sentença, dizem respeito a factos estranhos aos presentes autos, os factos neles alegados são ou serão objecto de contraditório e contestação por parte da Recorrida.
12ª - O que a Recorrente pretende fazer é um verdadeiro julgamento de carácter sobre a Recorrida, pretende colocar o Tribunal a decidir sobre um comportamento ou uma série de comportamentos abstractamente alegados ou referidos e que estão a ser julgados por outros Tribunais, a Recorrente pretende colocar sobre a Recorrida um anátema de culpabilidade com o qual pretende infectar o processo de decisão nos presentes autos.
13ª - Admitir a junção daqueles documentos determinará a colocação da Recorrida numa posição de absoluta desigualdade perante a Recorrente na exacta medida em que a Recorrida passará a ser valorada não como uma mera Ré mas como uma “múltipla Ré” ou uma pessoa jurídica sobre a qual recai um prévio e inaceitável juízo de pré-culpa.
14ª - Se o Tribunal admitisse a junção daqueles documentos aos autos estava a permitir que a sua decisão nos presentes autos pudesse levar em causa alegações que serão objecto de prova em processos distintos e que, sendo estranhas aos autos, sempre seriam valoradas com base num pré juízo de culpabilidade a todos os títulos inadmissível.
15ª - O que a Recorrente faz e o modo como atua contrariam frontalmente os mais elementares princípios de boa fé processual, uma vez que a sua conduta tem como único objectivo o que lançar suspeitas sobre a Recorrente na expectativa final de condicionar o Julgador fazendo-o crer que a Recorrida é uma pessoa que atua de modo ilegal de forma sistemática.
16ª - Uma tal conclusão é contrária às regras do direito. Os Tribunais decidem sobre factos concretos, aplicando aos mesmos o Direito. Por tudo quanto precede, admitir a junção dos referidos documentos aos autos constituiria uma gravíssima violação do Princípio da Igualdade das Partes consagrado no artigo 4º do CPC.
17ª – Não existe qualquer violação do artigo 3º do CPC na medida em que o Tribunal decidiu sobre o requerimento que a Recorrente apresentou nos autos, nos moldes que entendeu por convenientes, tendo antes de proferir o despacho feito cumprir o contraditório.
18ª – Após a submissão de um requerimento e de ter sido assegurado o contraditório sobre o mesmo é dever do Tribunal proferir decisão sobre o mesmo, assim cumprindo o dever de Administração de Justiça, previsto no artigo 152º do CPC o que foi absolutamente respeitado e cumprido no caso concreto.
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Perante o antes exposto, resulta claro ser a seguinte a questão objecto do presente recurso:
A admissibilidade da junção aos autos dos documentos apresentados pela Requerente com o requerimento com a Ref.ª 45935226.
Vejamos, pois, da pertinência de tal pretensão.
Na sua petição inicial os Requerentes alegam, entre o mais, o seguinte:
“27º. A presente acção popular para defesa de interesses difusos e individuais homogéneos, intentada pela autora interveniente supra identificada e demais autores populares, é uma acção de defesa dos direitos dos consumidores, que assenta na violação dos direitos destes e em práticas comerciais desleais que se manifestam do seguinte modo:
1. a ré dedica-se comercialmente à venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista, de produtos alimentares, nomeadamente na sua sucursal, com estabelecimento na Avenida ..., ..., ..., ..., Anadia, distrito de Aveiro, in casu, vendendo embalagens de tomate em pedaços com manjericão e orégãos, da marca ..., 390 g, guardanapos, folha dupla, da marca ..., Manteiga magra, da marca ..., 250 g e fiambre da perna extra, fatias finas, da marca ..., 150 g, por preço superior ao que consta dos letreiros elaborados por si;
2. A ré, por intermédio de um letreiro fixado junto das supra aludidas embalagens, preçava-as em 1,79 euros, 1,35 euros, 2,50 euros e 1,39 euros respectivamente e por embalagem, mas no momento do seu pagamento, tanto nas caixas electrónicas de self-checkout, como nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da ré, cobrava 2,40 euros, 1,58 euros, 2,78 euros e 1,49 euros respectivamente e por embalagem, ou seja, a ré chegou a cobrar um preço 34,01 % superior ao anunciado por si;
3. Muitos consumidores, clientes da ré, os aqui autores populares, que não se aperceberam que o preço cobrado no momento do pagamento era superior ao anunciado no letreiro que anunciava o preço e que fundamentou a sua escolha, acabaram por pagar um sobrepreço que chegou a 0,61 euros, 0,23 euros, 0,28 euros e 0,10 euros por cada embalagem.
28º. O comportamento da ré descrito no número anterior é aquele que esta adopta para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia em publicidade enganosa e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzem, de modo secante, na defesa do consumidor – embora, neste caso, confinado e por decisão da sua sucursal na Avenida ..., ..., ..., ..., Anadia, distrito de Aveiro.
29º. Para além da publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, tal comportamento consubstancia em especulação de preços na medida em que a ré, vende bens por preço superior ao que consta no letreiro por si elaborado.”
Mais adiante alegam o seguinte:
“50º. Os danos morais, causados a um conjunto difuso de interesses e que se traduz num universo de interesses individuais homogéneos, são, in casu, danos in reipsa e graves – de tal forma que são merecedores de uma tutela indemnizatória.
51º. Os danos morais causados pela ré são avultadíssimos considerando o universo de autores populares que traduzem todo o universo de interesses homogéneos, sendo esses danos morais os homogeneamente partilhados e sofridos por todos os autores populares e que resultam, nos seguintes:
1. sofrimento com a quebra da confiança depositada na insígnia “...”, com mais de 441 lojas espalhadas estrategicamente pelo país;
2. a desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da quebra de confiança que o comportamento da ré incutiu nos autores populares, que agora se sentem forçados a fiscalizar, com elevada atenção e a viverem na dúvida sistemática de que estão a ser enganados por este tipo de práticas lesivas dos seus direitos;
3. sofreram e sofrem com a preocupação, transtorno e incómodos decorrentes de terem de verificar se de facto os produtos que adquirem à ré são de qualidade, tendo em conta as denominações e preços.
52º. Estes danos foram causados de modo homogéneo a todos os autores populares, seja os que já conhecem a prática ilegal da ré e que os afectou, como aqueles que ainda não conhecem e aqueles que vão acabar por conhecer por via desta acção popular.”
No decurso processual dos autos e fazendo referência aos artigos 7º, 8º, 417º, nº1 e 423º, nº2 do CPC, vieram requerer a junção ao processo de dois documentos.
Da leitura mais atenta de tais documentos o que se verifica é o seguinte:
O primeiro deles consubstancia uma promoção subscrita pelo Ministério Público numa Acção Popular que corre termos no Juízo Central Cível do Porto e na qual são partes as mesmas que intervêm nos presentes autos, promoção essa onde em suma se suscita e requer o seguinte:
Se suscita a incompetência territorial do referido tribunal para tramitar a acção e se promove a remessa do processo ao Juízo Central Cível de Lisboa;
Se requer a notificação dos Requerentes para virem identificar as várias acções similares que correm termos contra a Requerida e sendo possível para indicar o estado processual das mesmas;
Estando denunciados factos susceptíveis de integrar o crime de especulação (de preço), se requer a extracção de certidão da petição e dos documentos que acompanham a mesma, com vista à instauração de procedimento criminal, pela prática do referido crime.
O segundo deles consubstancia a resposta dos Requerentes à identificada promoção do Ministério Público.
Como antes já vimos, foi sobre a admissibilidade da junção aos autos de tais documentos que se pronunciou o Tribunal “a quo” no despacho que agora é objecto do presente recurso.
Bem ou mal é o que cabe apurar.
Para tanto, vamos recorrer ao que ficou consignado no Acórdão da Relação de Lisboa de 26.09.2022, no processo nº7074/15.8T8LSB-D.L1-PICRS, relatado pelo Desembargador Sérgio Rebelo e que foi, entre o mais, o seguinte:
“Ora, à luz do CPC, os meios de prova traduzem-se em instrumentos ou elementos corporais ou materiais através dos quais o juiz, por actividade perceptiva, dedutiva ou até indutiva, colhe os dados (material probatório) que conduzirão à demonstração dos factos alegados (resultado probatório), à luz do valor legal ou tarifado atribuído a esses meios de prova ou recorrendo à convicção firmada na base do argumento probatório (vide “Noções e Quadros Elementares do Direito Probatório Civil e Comercial”, de Manuel Tomé Soares Gomes, 1994, edição policopiada, CEJ, pp. 2-10, cujas considerações seguimos de perto).
O regime da prova tem por função primordial disciplinar os mecanismos e procedimentos que visam aferir a correspondência entre a factualidade alegada, afirmada pelas partes, e o acontecer fáctico, histórico, como realidade vivida, a que aquela factualidade se reporta, designadamente pela actuação dos meios de prova perante o tribunal.
Nesta medida, podemos afirmar que os meios de prova são, ao fim e ao cabo, os modos de revelação dos factos que servem de fonte às relações jurídicas de que emergem os direitos, participando, por conseguinte, do equipamento da garantia dessas relações. Daqui resulta, salvo melhor entendimento, a sua inserção no instituto “Do Exercício e Tutela dos Direitos”, nos arts. 334º e seguintes do CC – do qual constitui o Capítulo II, “Provas”. Esta matéria situa-se naquilo que se designa por direito probatório material.
Já o direito probatório formal tem o seu desenho adjectivo nos arts. 410º a 526º do CPC, que regem a instrução do processo e a audiência final.
Por seu turno, o objecto da prova, em processo civil, consiste, no fundo, nos factos alegados pelas partes que interessam à discussão da causa; isto é, o substracto factual do thema decidendum.
Ao nível da admissibilidade dos meios de prova, assume-se, como princípio geral, o da livre admissibilidade dos meios de prova, segundo o qual o juiz, para a generalidade dos factos, atenderá a qualquer dos meios de prova admitidos por lei, graduando-os à luz da sua livre convicção (vide art.º 607º, nº 5 do CPC – vide, entre outros, o Acórdão da Relação de Évora de 6-01-2015, in www.dgsi.pt).
Como é sabido, são as próprias partes que assumem o risco pela condução do processo - princípio da autorresponsabilidade probatória -, o que torna a dinâmica processual fundamentalmente tributária dos princípios do dispositivo e do contraditório (vide arts. 5º e 3º do CPC), articulados num plano de igualdade de direitos, sob o signo da independência e da imparcialidade do tribunal, mas sem prejuízo do poder de iniciativa legalmente conferido ao juiz.
Ou seja, o nosso sistema adjectivo civil está desenhado com sujeição à ideia-força de que são as partes quem melhor pode trazer ao processo todo o factualismo pertinente ao litígio e todos os meios de prova úteis à decisão da causa.”
Prosseguindo:
Todos sabemos que nos termos do disposto no artigo 362.º do Código Civil, “diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa coisa ou facto”, norma que consagra uma noção ampla de documento, onde se destaca a sua “função representativa ou reconstitutiva do objecto” (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1982, pág. 319).
Numa noção restrita, documento é “o escrito que corporiza uma declaração de verdade ou ciência (declaração testemunhal: destinada a representar um estado de coisas) ou uma declaração de vontade (declaração constitutiva, dispositiva ou negocial: destinada a modificar uma situação jurídica pré-existente)” (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 221).
Sendo assim, o documento traduz um suporte material que integra uma declaração de natureza meramente descritiva de uma realidade ou destinada a produzir efeitos de natureza jurídica sobre uma situação pré-existente.
O Código de Processo Civil regula os termos da junção de documentos aos autos, referindo no n.º 1 do artigo 423.º que “os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser juntos com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”.
Nos n.ºs. 2 e 3 do artigo 423.º do CPC estabelecem-se as condições em que pode ocorrer a junção posterior de documentos, prevendo-se no artigo 425.º do CPC que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, sendo junto com as alegações, nos termos do artigo 651.º do mesmo código.
Nos autos já todos vimos qual a natureza e conteúdo dos documentos que agora estão em discussão.
E em face dos mesmos o que cabe dizer o seguinte:
Da conjugação dos citados artigos 423º e 443º do CPC, resulta que os documentos juntos aos autos por iniciativa das partes só podem ser retirados do processo (e como tal não admitidos) se forem extemporâneos ou então se mostrarem impertinentes ou desnecessários. (Neste sentido vide ainda Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, Livraria Almedina, pág. 144, nota, 54).
Segundo Lebre de Freitas, Falsidade no Direito Probatório, Coimbra, Almedina, 1984, pág.113, os documentos são impertinentes quando “representem factos irrelevantes para a decisão da causa” e desnecessários quando “representem factos já provados (designadamente por confissão).
Para Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 58, os documentos impertinentes “são os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa”, e os documentos desnecessários “são os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção”.
Finalmente e ainda a esse propósito, mostra-se relevante citar o que defendem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 511/512, ao consideraram como documento impertinente aquele que “diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da acção”, acrescentando ainda poder afirmar-se que “um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo directo, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indirecto, por se tratar de um facto que permite accionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de um facto importante para apreciar a fiabilidade do outro meio de prova”. (sublinhado nosso)
Assim e perante o exposto, pode pois afirmar-se que os documentos cuja junção aos autos se requereu não podem ser considerados pertinentes nos termos acabados de expor e sublinhar.
E isto porque não têm a virtualidade de provar factos relevantes para a resolução do conflito dos autos quer de um modo directo quer de um modo indirecto.
Nestes termos, impõe-se pois confirmar o despacho proferido e agora objecto de recurso.
A tal decisão justifica-se porque nos autos não ocorre qualquer violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
Assim e citando o supra identificado Acórdão da Relação de Lisboa de 26.09.2022, com relevante interesse também nesta parte:
“Ademais, também não há qualquer violação do direito fundamental de acesso à justiça. Na verdade, tal como bem acentua a recorrida em sede de contra-alegações, só assim seria, se estivesse vedada, em absoluto, a possibilidade de obtenção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro. O que não é o caso, como vimos.
O art.º 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante CRP), ao afirmar que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”, não dispensa que a parte interessada tenha de alegar e fundamentar, em concreto, o meio probatório que pretende que o tribunal lance mão oficiosamente, escusando-se pura e simplesmente nesta norma.
Com efeito, esta norma constitucional prevê o acesso ao direito e aos tribunais mas não isenta, como é bom de ver, que a parte processual interessada tenha de requerer os meios probatórios com respeito pelos acima aludidos princípios processuais do dispositivo e da autorresponsabilidade probatória. Não basta invocar esta norma constitucional para que, de uma forma automática, a parte fique dispensada de cumprir aqueles princípios e ónus processuais a seu cargo.
Isto é, o direito à prova consagrado no art.º 20º da CRP não implica um direito colocado à disposição das partes para que estas apresentem toda e qualquer prova no processo a fim de provocar o convencimento do magistrado. O seu alcance é amplo, consistindo no: a)-direito das partes em alegar factos no processo; b)- direito de provar a existência ou inexistência desses fatos; c)- direito de participar na produção das provas; d)-direito de valoração das provas pelo magistrado; e)-direito do contraditório, quer seja das provas deduzidas pelas partes ou trazidas oficiosamente pelo juiz; f)-direito das partes à aquisição das provas admitidas (vide Acórdão da Relação de Lisboa de 11-12-2018, processo 14808/15.9T8LSB, in www.dgsi.pt).
Como já se aludiu supra, são as próprias partes que assumem o risco pela condução do processo - princípio da autorresponsabilidade probatória -, o que torna a dinâmica processual fundamentalmente tributária dos princípios do dispositivo e do contraditório (vide arts. 5º e 3º do CPC), articulados num plano de igualdade de direitos, sob o signo da independência e da imparcialidade do tribunal, mas sem prejuízo do poder de iniciativa legalmente conferido ao juiz.

Ou seja, o nosso sistema adjectivo civil está desenhado com sujeição à ideia-força de que são as partes quem melhor pode trazer ao processo todo o factualismo pertinente ao litígio e todos os meios de prova úteis à decisão da causa.
Daqui resulta que a intervenção oficiosa do juiz deverá ter como farol garantir o equilíbrio das partes. Mas, por outro prisma, essa intervenção oficiosa do juiz deverá ter um carácter subsidiário. Ou seja, o juiz só deverá intervir oficiosamente com base em razões ponderosas e objectivas, com vista à boa decisão da causa e à descoberta da verdade material.
Sucede que tendo em conta tais considerações, verifica-se à saciedade que a aqui recorrente não foi tolhida no seu direito ao acesso aos tribunais e aos meios probatórios, na medida em que o tribunal de 1ª instância deferiu parcialmente a sua pretensão. Acresce que, no mais, indeferiu o pretendido pela recorrente, ao níveo do acesso a documentos em poder de terceiros e da recorrida (sem que a recorrente sequer os soubesse, na sua plenitude, individualizar e até chegando ao ponto de requerer documentos que nem sequer sabe se existem), na sequência de anterior determinação do tribunal recorrido que não foi respeitado pela recorrida. Estamos a referir a falta de concretização dos factos (ocorrências concretas da vida real – cfr. Antunes Varela, in RLJ, Ano 122º, p. 219), do leque dos por si alegados no petitório, cujo acesso aos documentos visava provar. Tanto mais que até chegou a recorrer a uma técnica de alegação com base (em parte) a remissão para conjunto de factos alegados naquele articulado.
Assim sendo, não foi, de modo algum, obstaculizado o acesso ao direito e aos tribunais pelo tribunal recorrido – vide, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional de 10-07-1996, processo ACTC 6943 e de 21-03-1996, processo ACTC 6289 – acessíveis in www.dgsi.pt.”.
Ou seja, valendo nos autos como valem todas estas considerações, improcede também a argumentação da requerente ora apelante, não existindo por isso razão para censurar o que em 1ª instância está decidido.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.
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Custas a cargo da requerente/apelante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 22 de Fevereiro de 2024
Carlos Portela
Ernesto Nascimento
João Venade