Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
335/25.0T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: INTERESSE EM AGIR
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP20250710335/25.0T8MAI.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tem interesse em agir o autor que necessita da intervenção do tribunal para obter a tutela jurisdicional correspondente ao direito exercido.
II - A falta do interesse em agir, constitui uma excepção dilatória inominada, sanável através da prolacção do despacho do juiz nesse sentido.
III - Por se tratar de um pressuposto processual, susceptível de ser sanado pelo autor, não é admissível o indeferimento liminar da petição, se dela não resultar o interesse na demanda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 335/25.0T8MAI.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Alexandra Pelayo

Adjunta: Dores Eiró


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

AA intentou a presente acção declarativa contra BB pedindo que se declare que a Ré se encontra desde 19 de Junho de 2013 sujeita a um perfil neuropsicológico sugestivo da presença de síndrome demencial, apresentando um funcionamento cognitivo global inferior ao esperado para o seu grupo padrão, estando dependente de terceiros para gerir a sua pessoa e os seus bens e carecendo de permanente apoio e acompanhamento de terceiras pessoas, impossibilitando-a, desde então de exercer os seus direitos pessoais, designadamente, os elencados no artigo 147.º, do Código Civil, sendo que a deterioração definitiva incapacitante e irreversível da Ré ocorreu em momento próximo do ano de 2017, o que deve fazer-se contar do registo de nascimento da Ré.

Para tanto, alegou:

A Autora é descendente e filha da Ré, que foi sujeita a medida de acompanhamento de representação geral no âmbito da Ação Especial de Acompanhamento de Maior n.º 939/23.0T8MAI, que tramitou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local da Maia - Juiz 2, com sentença proferida em 05.08.2024 e transitada em julgado; A decisão de acompanhamento de maior que incidiu sobre a vivência da Ré apenas dispõe para o futuro, nos termos, aliás, da legislação aplicável, maxime, a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto (Regime Jurídico do Maior Acompanhado);Foi declarada e total incapacitada da Ré para reger a sua pessoa e os seus bens, quer pelos défices cognitivos de que padece, quer pela sua situação de cegueira, manifestaram-se em momento em muito anterior à prolação da sentença supra referida. A Ré, BB, nasceu no dia ../../1925, sendo filha de CC e de DD; A Ré é viúva, tendo dois filhos, designadamente a aqui Autora, AA, nascida em ../../1950 e EE, nascido em ../../1958; A R. não consegue cuidar da sua higiene pessoal, nem confecionar refeições, nem executar tarefas domésticas, sendo auxiliada, designadamente, por funcionárias contratadas para o efeito, as quais a acompanham durante todo o dia; A Ré não tem noção do espaço e do tempo, não distinguindo os dias da semana, nem as estações do ano; E não consegue ler, escrever ou fazer contas; A Ré não dispõe de capacidade para tomar a medicação que lhe está prescrita, nem para tomar decisões quanto a cuidados de saúde, designadamente consultas, tratamentos e internamentos; E não conhece o dinheiro, nem tem noção do valor relativo do mesmo; A Ré não é capaz de manter uma conversa lógica e coerente e não é capaz de compreender o teor de documentos; A Ré perdeu a sua capacidade de autonomia em data anterior ao ano de 2014;A Ré é, assim e desde há alguns anos a esta parte, cuidada por duas cuidadoras; A Ré mantinha um quadro clínico demencial relevante desde o ano e repristinando os factos dados enquanto provados no processo especial de maior acompanhado, desde, pelo menos, 19 de Junho de 2013, a R. apresentava já um perfil neuropsicológico sugestivo da presença de síndrome demencial com padrão de afetação predominantemente fronto/subcortical;

Tal não é consentâneo, aliás e de forma nenhuma, com as declarações atestadas pela médica neurologista, designadamente, em 22 de Agosto de 2018, em 22 de Maio de 2019, em 25 de Outubro de 2019 e em 26 de Setembro de 2021, ou seja, de que a Ré se encontrava, nos anos de, pelo menos, 2017 a 2021, perfeitamente capaz de gerir e decidir a sua vida pessoal e patrimonial;

De facto, foi a aqui Autora quem, desde, pelo menos, o ano de 2013, assegurou o acompanhamento da sua Mãe, de forma permanente e constante;

Já que apenas no decurso do ano de 2019 o irmão da Autora e filho da Ré, começou a prestar os cuidados de que a Mãe de ambos necessitava; Isto, porque tendo vindo do Brasil não tinha outra casa para habitar. Momento temporal que coincidiu com o facto de o agora representante da Ré, EE, embora tenha sido declarado insolvente por sentença datada de 23 de Janeiro de 2013, mas com encerramento processual proferido em 9 de Novembro de 2017, e ter necessitado de utilizar o imóvel residencial da sua Mãe, para manter a sua vida pessoal e familiar e ai impedindo a Autora e o seu filho de frequentarem a casa para visitar e acompanhar a Mãe e Avó.

E foi nesta persistência de cuidados prestados a sua Mãe que a aqui Autora se apercebeu que a mesma apresentava um declínio físico cognitivo que a impossibilitava, na realidade, de regrar e cuidar da sua vida pessoal e patrimonial; Designadamente, evidencia, desde essa altura, um quadro demencial, de provável doença de Alzheimer; Este quadro neurogenético, com um carácter irreversível, impossibilita-a, desde o citado ano de 2013 e com absoluta clareza, de exercer os seus direitos pessoais, entre outros os elencados no art.º 147.º do CC.


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Proferiu-se decisão que julgou verificada a excepção de falta de interesse em agir e determinou o indeferimento liminar da petição inicial, nos termos dos artigos 278º, nº 1, alínea 2), 576º, nº 2 e 578º, todos do Código de Processo Civil.

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Inconformada com a decisão, a Autora interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

Primeiro.No que concerne ao recurso propriamente dito, a decisão datada de 27 de janeiro de 2025, confronta a aqui recorrente com a verificação da exceção de falta de interesse em agir, conduzindo ao determinar do indeferimento liminar da petição inicial, nos termos dos artigos 278º, nº 1, alínea 2), 576º, nº 2 e 578º, todos do CPCivil;

Segundo.A decisão recorrida omite questões processuais sobre as quais o douto Tribunal deveria ter tomado posição, pronunciando-se;

Terceiro.Ainda que o interesse em agir, tenha enquanto finalidade a limitação da liberdade de ação da A. para agir em juízo por forma a, circunscrevendo o direito de ação às situações objetivamente carecidas de tutela jurisdicional e que, para que se verifique tal pressuposto processual ter a A./recorrente de invocar situação justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo para nele fazer valer direito seu carecido de tutela judiciária, os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça imporiam sempre solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil;

Quarto.Resulta para o Tribunal, quer do disposto no art.º 6.º da CEDHomem, quer do art. 20.º, n.º 4, da CRPortuguesa, o dever de proporcionar mecanismos de tutela jurisdicional que, com as garantias de independência e de imparcialidade cumpram o objetivo da celeridade e da eficácia na resolução de conflitos e na regulação de interesses, mormente, por inexistir alternativa, in casu, que não ao recurso à via judiciária, por existência de litígio ou real dúvida sobre o direito invocado através do pedido formulado em juízo;

Quinto.Sendo pacífico na prática judiciária que o momento da prolação do despacho liminar dá ao M.mo Juiz uma primeira das possibilidades de convidar a parte a suprir as excepções dilatórias existentes ou a aperfeiçoar o articulado, poderia o douto Tribunal a quo, no âmbito dos poderes de gestão processual que sobre ele recaem, dirigir à A./recorrente um convite ao aperfeiçoamento da peça processual que esta apresentou em juízo, assim suprindo as irregularidades - formais e/ou materiais - que se entendeu existirem;

Sexto.O não convite ao aperfeiçoamento da petição inicial constitui uma derrogação do disposto no art.º 560º do CPCivil ex vi do art.º 590.º, n.º 1 do mesmo diploma adjetivo;

Sétimo.Da mesma forma, o não convite ao aperfeiçoamento da petição inicial enquanto âncora da defesa da A./recorrente à sua permanência em juízo/acesso à justiça constitui, ainda, uma violação do dever de colaboração entre o Tribunal e a parte, assim como uma violação dos princípios da economia e celeridade processuais. Assim,

Q.encontram-se, por esta fórmula de entendimento, violadas as normas / princípios basilares constantes do art.º 8.º do CPCivil;

R.Ao assim proceder, foi violado o disposto nos art.ºs 8.º e 560.º, este ex vi do art.º 590.º, n.º 1, todos do CPCivil e decorrendo, ainda desta exegese processual a violação do disposto no princípio constitucional do acesso à justiça previsto no artigo 20.º da CRPortuguesa, mormente, os seus n.ºs 1, primeira parte, 4 e 5 do preceito constitucional, no direito de acesso ao tribunal e de defesa dos seus interesses;


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se devia ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição relativamente ao interesse em agir da Autora.


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III—FUNDAMENTAÇÃO

-Correu termos os autos de acompanhamento de maior sob o nº 939/23.0T8MAI-J2, no âmbito dos quais foi proferida sentença, datada de 5.08.2024, transitada em julgado, que aplicou a favor da Ré a medida de acompanhamento de representação geral, com inibição do exercício dos direitos de perfilhar, adoptar, exercer responsabilidades parentais, decidir as suas intervenções cirúrgicas e tratamentos, deslocar-se no país ou no estrangeiro, fixar domicílio/residência e testar.


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IV-DIREITO

A Autora, filha da Ré, a qual foi sujeita a um processo de maior acompanhado, pretende, neste processo, que o tribunal declare a incapacidade da Ré de exercer os seus direitos desde 2017, em resultado de síndrome demencial, irreversível.

A petição foi liminarmente indeferida por não ter sido alegada a necessidade da Autora em obter a declaração da incapacidade da Ré desde 2017.

Esclareceu-se, na decisão, que não tendo sido “…alegada a prática de qualquer acto jurídico pela beneficiária de tal medida, em data anterior à prolação da sentença não vemos qual a necessidade, objectiva e grave, da declaração de que a beneficiária se encontra incapaz de exercer os seus direitos pessoais desde 2013 e que a sua deterioração definitiva, incapacitante e irreversível, ocorreu em momento próximo do ano de 2017.”

A petição deve obedecer aos requisitos enunciados no artigo 552.º, n.º 1 do CPCivil nomeadamente com a exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção (al.d)).

Nesta temática, José Lebre de Freitas[1] esclarece que “Perante uma situação de violação do seu direito, uma ameaça de violação, a mera incerteza sobre a existência ou o conteúdo dum seu direito ou dever, ou sobre a verificação dum facto jurídico, ou a vontade de exercer um direito potestativo que só judicialmente possa ser exercido, o autor requer a providência judicial adequada para, respectivamente, reparar a violação consumada, prevenir a violação ameaçada, declarar a existência ou a inexistência do direito ou do facto, ou alterar as situações jurídicas das partes em conformidade com o direito exercido.”

As exceções dilatórias, que obstam ao conhecimento do mérito da causa, estão elencadas no art. 577.º do CPCivil a título exemplificativo, razão pela qual tem sido reconhecido que o pressuposto processual referente ao interesse em agir, ou seja, o interesse que advém ao autor na pretensão requerida ao tribunal, se encontra aí incluído.

E embora a lei não o refira expressamente, o “…interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.”[2]

O autor tem interesse processual, acrescentam A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[3] quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais.

Exige-se “…uma necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção.”[4]

No mesmo sentido, Manuel de Andrade[5] reconhecia ser “o interesse em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judicial o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.

No Acórdão desta Relação, de 10/01/2022[6] consignou-se que se entende “…como sendo manifestação da concreta e objetiva necessidade de tutela da posição jurídica que o autor pretende fazer valer na ação, aferindo-se pela posição do Autor assumida na petição inicial.

Traduz a maior barreira à prática de atos inúteis, adjetivamente proibidos (art. 130º).”

A falta deste pressuposto processual é aferida através da narrativa factual na qual o autor alicerça a tutela jurisdicional.

No caso concreto, a Autora pediu ao tribunal a fixação da data a partir da qual a incapacidade da Ré se tornou irreversível mas não justificou a necessidade de obter essa declaração judicial, razão pela qual, a falta do interesse em agir, como bem se decidiu, revela-se manifesta pelo teor da petição.

A Recorrente não questiona a falta do pressuposto processual, apenas manifestou o seu inconformismo com a omissão do despacho de aperfeiçoamento destinado a sanar a excepção dilatória suprível.

Nos termos do art. 590.º, n.º 1 do CPCivil “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente…”

Por conseguinte, o indeferimento liminar da petição só é admissível, quando ocorra a falta de pressupostos processuais, na hipótese de não ser possível a sanação.

Com efeito, nos termos do n.º 3 do art. 278.º do CPC as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º.

Ora, segundo este preceito legal «o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.»

Nos termos do artigo 590.º, n.º 2, al. b), n.ºs 3 a 7 do C.P.Civil, findos os articulados, o juiz profere, despacho (pré-saneador[7]) destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, concretamente convidando as partes a suprir irregularidades, insuficiências e imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.

José Lebre de Freitas[8] reconhece que “A insanabilidade é hoje residual, respeitando tão-só às excepções dilatórias que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem sanação, oficiosa ou mediante convite às partes, ao abrigo do art. 6-2.”

Sendo a falta de interesse em agir, apesar de não constar do elenco previsto na lei adjectiva, passível de ser suprida através de um despacho de aperfeiçoamento, o qual, se for cumprido, revelará a necessidade de tutela jurisdicional, não é admissível, neste caso, o indeferimento liminar da petição.

Nesta conformidade, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 6.º, n.º 2 e 590.º, n.º 2, al. a) do CPC o juiz deve convidar a Autora no sentido de justificar cabalmente a necessidade de recurso ao processo judicial para fixação da data da incapacidade da Ré.

A omissão desse despacho vinculado consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia pois não foi dada oportunidade à Autora de sanar a deficiência da petição- cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC-a qual, pode e deve ser sanada nesta sede de recurso.


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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a decisão, determinando que a Autora seja notificada para, em 10 dias, após trânsito, justificar cabalmente a necessidade de obter a pretensão que deduziu em juízo.

Custas pela Recorrida.

Notifique.

Porto, 10/7/2025
Anabela Miranda
Alexandra Pelayo
Maria Eiró
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[1] A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 3.ª edição, pág. 38.
[2] Varela, Antunes, Bezerra, Miguel J, Nora, e Sampaio, Manual de Processo Civil, 2.º edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 179.
[3] Ob. cit., pág. 180.
[4] Ob. cit., pág. 181.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 79.
[6] Rel. Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt; v. ainda o Ac. Rel.Lisboa de 11/02/2021, Rel. Gabriela Cunha Rodrigues.
[7] v. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, pág. 155 e segs.
[8] Ob. cit, pág. 56, nota 45.